A vigilância alimentar e nutricional foi instituída no campo de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS) pela Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990 e faz parte das diretrizes da Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN). Consiste em descrever continuamente e predizer as tendências das condições de alimentação e nutrição e fatores determinantes da população, abrangendo a vigilância nos serviços de saúde, dados de sistemas de informação em saúde, de inquéritos populacionais, de chamadas nutricionais e da produção científica (Brasil, 2013).
Através da vigilância alimentar e nutricional é possível a identificação de indicadores sociais e fatores de riscos associados à insegurança alimentar e nutricional, configurando-se como um importante instrumento para o monitoramento do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), bem como para o planejamento e definição de intervenções e políticas públicas direcionadas às necessidades da população, que permite o controle e a participação social (Brasil, 2015).
A atenção nutricional possui três pilares: a vigilância alimentar e nutricional, promoção da alimentação saudável e adequada e prevenção e controle de agravos nutricionais (Jaime et al., 2014). No âmbito hospitalar, a vigilância tem como objetivo o rastreamento e identificação do estado nutricional dos pacientes, a fim de corrigir e evitar deficiências nutricionais que implicam em aumento de complicações e risco de mortalidade, a definição do tipo de intervenção a ser realizada, de metas terapêuticas e de prioridades de cuidado a nível individual e coletivo (Seta et al., 2010).
Este estudo se faz necessário para o entendimento de como está sendo realizada a vigilância nutricional em hospitais para nortear a implementação destas boas práticas, para isso, questionou-se: Quais os estudos e estratégias relacionadas à vigilância nutricional hospitalar? A identificação de lacunas também elucidará se há necessidade de mais pesquisas na área. A sua relevância está associada aos impactos diretos e indiretos à saúde, tanto social quando relacionados ao bem-estar e melhorias na qualidade de vida dos pacientes atendidos, quanto econômicos ao sugerir um planejamento estratégico e otimizado dos recursos voltados para solucionar problemas existentes.
Em virtude do elevado impacto das condições alimentares e nutricionais sobre as condições gerais de saúde, agravamentos, tempo de internação, custos hospitalares e sua relação com o contexto social envolvido, este trabalho teve como objetivo desenvolver um estudo de revisão de escopo com vistas a reunir todo o conhecimento sobre o processo de vigilância nutricional no ambiente hospitalar, contemplando os aspectos econômicos e sociais envolvidos.
Método
Caracterização do estudo
Este artigo faz parte da produção para uma dissertação do mestrado profissional em gestão em saúde (MEPGES) pela Universidade Estadual do Ceará, que desenvolverá como produto tecnológico um processo para vigilância nutricional hospitalar. Este trabalho trata-se de um estudo de revisão escopo. O método de busca aplicado é composto por pesquisa bibliográfica desenvolvida a partir de todos os materiais disponíveis sobre o assunto, visando, assim, uma ampla revisão de trabalhos já existentes.
As revisões de escopo constituem-se como uma forma de pesquisa que busca reunir todo o conhecimento existente sobre determinado tema. Cada vez mais usados em pesquisa no campo da saúde, os estudos de escopo buscam reunir em um só documento uma série de evidências sobre o assunto, realizando o mapeamento e resumindo-os apresentando seu alcance, magnitude e profundidade, sendo possível clarificar sobre as lacunas existentes. Diferentemente das revisões sistemáticas, estas não avaliam a qualidade dos estudos, podendo incluir inclusive literatura cinzenta para realmente chegar ao estado da arte sobre a busca em questão (Levac et al., 2010).
Ao consolidar toda a base sobre o campo da pesquisa, os trabalhos com estudos de escopo trazem à tona os limites conceituais, desencadeando recomendações para realização de pesquisas futuras de forma a elucidar sobre o tópico que ainda necessita de aprofundamento de conhecimento (Peters et al., 2015).
As revisões de escopo são estruturadas por pesquisas de cunho mais amplo, com diferentes tipos de estudos e são utilizadas como base para revisão de tópicos que não foram pesquisados de maneira abrangente ou de temas com evidências emergentes (Arksey & O’Malley, 2005).
Estratégia de Pesquisa
A revisão de escopo foi realizada de acordo com os procedimentos metodológicos constantes nas diretrizes do The Joanna Briggs Institute (2020) e escrita conforme o relatório das recomendações do PRISMA-SCR (PRISMA extension for Scoping Reviews) (Tricco et al., 2018).
Esta pesquisa está registrada na plataforma Open Science Framework (OSF) sob o Número do DOI 10.17605/OSF.IO/2SXGB (https://osf.io/2sxgb/).
A princípio foi definida a questão norteadora da pesquisa, que foi a seguinte: Quais os estudos e estratégias relacionadas à vigilância nutricional hospitalar? Realizada a extração dos termos básicos para a pesquisa de acordo com a estratégia PCC (P=população, C=conceito, C=contexto). Para a busca das publicações utilizamos os descritores padronizados pelos Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) e Medical SubjectHeadings(MeSH), que foram: Nutritionalsurveillance; Research; Food service, hospital e Hospitals.
Pesquisa e Seleção de Artigos
As buscas foram realizadas nos meses de julho e agosto de 2021, incluindo estudos publicados até o ano vigente. A pesquisa das produções sobre o tema foi realizada na plataforma da Biblioteca Virtual em Saúde com a seguinte equação de busca por título-resumo-assunto: (“nutritionalsurveillance”) AND (research) AND (hospitals OR “food service, hospital”). Foi definido como critério de elegibilidade a vigilância nutricional dentro de hospitais, entendendo que este termo pode ser apresentado em outros ambientes comunitários. A equação de busca foi definida pelo pesquisador principal (primeiro autor). Quanto ao idioma foram contemplados os estudos nos seguintes idiomas: português, inglês e espanhol. Não houve limitação para ano das publicações.
A seleção dos artigos encontrados foi realizada por dois revisores (R1 e R2) (Nyanchoka et al, 2019). Inicialmente o R1 realizou a triagem dos artigos pelos títulos e, posteriormente, pelos resumos, utilizando as palavras-chave e seus sinônimos. O R2 examinou 10% dos achados. Após a primeira triagem, o R1 fez a leitura de todos os artigos selecionados na íntegra, e o R2 de 10% deles. Não houve discordância entre os revisores.
A busca apresentou 418 resultados distribuídos nas seguintes bases de dados: MEDLINE (403), IBECS (05), LILACS (05), WHO IRIS (02), CUMED (02) e LIPECS (01). As publicações foram refinadas na seguinte ordem: 1)avaliação por título, 2) avaliação por resumo, 3) leitura do texto na íntegra.
Todos os 418 estudos encontrados foram importados para o software gerenciador de referências Mendeley Desktop® 1.19.4. utilizado para armazenar todos os achados na literatura após as buscas nas bases de dados. Na sequência, foi realizada a busca por arquivos duplicados (01), após isso foi realizada a exclusão por título (396) e por resumo (14). Após estas etapas, seguindo o caráter exploratório do conteúdo, os 07 artigos selecionados forem lidos na íntegra para produção desta revisão. Os 410 estudos que não foram selecionados na leitura por título e resumo foram excluídos por não apresentarem componentes com relação direta ao objetivo desta pesquisa ou não se enquadrarem no critério de inclusão.
Os 7 estudos selecionados para esta revisão de escopo foram mapeados em planilha do programa Microsoft Excel® com categorização dos seguintes tópicos: autor(es), ano de publicação, título, objetivos dos estudos e principais resultados.
Resultados
Foram encontradas 418 publicações, sendo que destas apenas 7 foram selecionadas para esta revisão. Estas etapas foram inseridas no fluxograma Prisma-ScR no intuito de elucidar como ocorreu, conforme ilustrado na Figura 1.
Sobre a caracterização dos estudos selecionados para esta revisão, os artigos apresentam diversidade no que se refere a ano, objetivo e autor(res), conforme apresentado no Quadro 1. Dos 7 estudos, 2 foram publicados no mesmo ano (28,6%) e 02 tiveram um autor principal em comum (28,6%).
A investigação sobre a adequação da assistência nutricional oferecida pelas instituições hospitalares com o estabelecimento de diretrizes e a desnutrição hospitalar ou seu risco foram os temas mais encontrados nos estudos selecionados. Vale ressaltar que tiveram estudos que abordaram mais de um desses temas. Como temas secundários tivemos: busca por associação com morbidade e mortalidade, tempo de internação, custos hospitalares e lesão por pressão.
Autor (ano) | Objetivo |
---|---|
Sullivan (1995) | Evidenciar o impacto da nutrição na morbidade e motarlidade hospitalar. |
Chima et al. (1997) | Identificar relação entre estado nutricional e tempo de permanência, situação de alta, readmissões e custos hospitalares. |
Braunschweig (1999) | Justificar e criar um registro de cuidado nutricional hospitalar. |
Sullivan et al. (1999) | Identificar média de ingesta diária de nutrientes, verificar causas de baixa ingestão e correlacionar adequação de ingestão alimentar com risco de mortalidade. |
Kondrup et al. (2002) | Definir a importância de potenciais causas de cuidados nutricionais inadequados. |
Ashworth et al. (2004) | Avaliar viabilidade e eficácia de diretrizes da OMS de gerenciamento de desnutrição grave em hospitais com poucos recursos. |
Baumgarten et al. (2006) | Estimar incidência de lesões por pressão adquiridas após internação e caracterizar associações com maiores incidências. |
Discussão
Um dado global preocupante é o da relação da desnutrição com mais de 60% das mortes de crianças de 0 a 04 anos. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estabeleceu diretrizes para que sejam implantadas em instituições hospitalares com o objetivo de melhorar o atendimento a crianças com comprometimento do estado nutricional. A viabilidade de sua estruturação em regiões com características econômicas deficitárias é devido a necessidade de baixo investimento financeiro. A divulgação, realização de treinamentos, clareza sobre a problemática de saúde pelos profissionais envolvidos, o acompanhamento, a revisão de práticas de trabalho e a gestão da rotina são necessidades peculiares para uma condução razoável com vistas ao alcance de transformações à nível de gestão e assistência nosocomial. A eficácia da implementação de intervenções é obtida quando ocorre o supervisionamento das práticas, com a realização regular de auditorias e feedbacks e com o uso de lembretes para fortalecimento das novas ações e conceitos (Ashworth et al., 2004).
Apesar de amplamente conhecida e com medidas preventivas e de tratamento eficazes, a ocorrência de lesão por pressão dentro de ambientes hospitalares não vem apresentando redução. Sua relação é inversamente proporcional a qualidade de vida do doente acometido e repercute diretamente na elevação dos custos hospitalares. Mesmo nos serviços de emergência como também nas primeiras horas de internação, os pacientes podem ser beneficiados de forma preventiva com a avaliação dos riscos e intervenções precoces. O uso de suplementação nutricional adequado pode reduzir de forma relevante a incidência de lesões por pressão. Estas possuem forte relação com baixo índice de massa corporal (IMC) e com o risco elevado de complicações associados à nutrição (Baumgarten et al., 2006).
Ashworth et al. (2004), afirmam que por meio do estabelecimento de boas práticas é possível a obtenção de resultados sustentáveis no manejo da desnutrição, com redução das mortes evitáveis, especialmente ao se adotar medidas preventivas e de combate aos fatores de risco não incomumente encontrados no ambiente hospitalar durante o manejo de pacientes desnutridos, conforme apresentado no Quadro 2.
Falta de realização de triagem nutricional |
Prescrição medicamentosa incorreta |
Registro inadequado de balanço hídrico |
Deficiência de eletrólitos e micronutrientes não corrigidas |
Má administração de fluidos |
Alimentação inespecífica |
Jejum prolongado |
Inadequação e/ou escassez de insumos hospitalares |
Insuficiência de recursos financeiros |
Superlotação |
Falta de liderança e supervisão |
Dimensionamento insuficiente de profissionais |
Dificuldades logísticas |
Deficiência na infraestrutura |
Profissionais inexperientes e/ou não treinados |
Fonte. Adaptado de Ashworth et al. (2004).
Estudos mostram que existe a associação entre a ocorrência de desnutrição e aumento do tempo de internação, da taxa de mortalidade e dos custos hospitalares. Em relação ao tempo de internação, também existem evidências que à medida que se prolonga o período do tratamento nosocomial, o doente pode acabar tendo seu estado nutricional comprometido. Apesar de profissionais com boa qualificação técnica, a desnutrição energética e proteica ocorre em 40 a 50% dos pacientes hospitalizados, sendo que, na maioria dos casos, sua ocorrência é evitável. A escassez de informações sobre os cuidados de nutrição clínica para fundamentar a prática parece ter impactos negativos e sua sistematização baseada em evidências poderia melhorar a qualidade da assistência prestada, ao minimizar variações inadvertidas de condutas dos médicos e de nutricionistas, e por fim, ainda resultaria na diminuição dos custos. Também há uma lacuna de conhecimento sobre as repercussões de intervenções nutricionais precoces e tardias quando as mudanças no estado nutricional, complicações e gastos hospitalares (Braunschweig, 1999).
A falta da realização da triagem e avaliação nutricional na admissão hospitalar, o não estabelecimento de um plano dietoterápico específico para o doente e consequentemente a oferta de uma alimentação inadequada, a ausência de monitoramento da ingesta alimentar e do peso são fatores que associados à baixa priorização para as atividades referentes aos cuidados nutricionais e à indefinição de atribuições, procedimentos e diretrizes compõem um conjunto de fatores que precisam ser estruturados e implementados para minimizar os riscos nutricionais e clínicos durante a internação (Kondrup et al., 2002).
Sullivan (1995) apresenta a desnutrição como um problema sério e comum em ambientes hospitalares, mas que comumente não são diagnosticados, e que mesmo quando os problemas nutricionais são de conhecimento pela equipe assistente, é oferecido um suporte nutricional inadequado e inespecífico. Variações entre instituições quanto às complicações e número de perdas de acessos/dispositivos quando se faz uso de suporte nutricional enteral ou parenteral remete que estas ocorrências estão relacionadas com o conhecimento e ações diretas da equipe responsável pelos cuidados. Identificação precoce do risco nutricional que direcionaria as condutas nutricionais aplicadas e capacitação dos profissionais de saúde são estratégias que devem ser utilizadas para solução destes gargalos.
Podem ser evidenciadas complicações decorrentes de um estado nutricional deficitário nos diversos sistemas orgânicos e órgãos vitais. Seus efeitos e manifestações possuem relação com tempo, proporção e condição geral de saúde. O quadro 3 apresenta algumas consequências da desnutrição (Sullivan, 1995).
Deterioração dos músculos cardíaco e respiratório |
Queda do índice cardíaco |
Diminuição da capacidade vital, freqüência respiratória e volume-minuto de ventilação |
Diminuição da taxa metabólica basal |
Deterioração da função hepática |
Redução da taxa de filtração glomerular |
Pancitopenia |
Comprometimento imunológico |
Retardo na cicatrização |
Redução da taxa de metabolismo de drogas |
Implicações prejudiciais físico e cognitivo |
Morte |
Fonte. Adaptado de Sullivan, 2015.
Flutuações diárias na aceitação da alimentação de pacientes hospitalizados por vezes não são identificadas pelos profissionais. Por vezes, o suporte nutricional não é capaz sequer de atender o gasto metabólico basal dos doentes e uma via de alimentação complementar não é cogitada. Especialmente em idosos, uma vez instalada uma condição de déficit nutricional, sua repleção é desafiadora e em muitos casos até irreversíveis (Sullivan et al., 1999).
Chima et al. (1997) constataram em sua pesquisa que pacientes com risco nutricional apresentaram maior tempo de permanência hospitalar, custos mais elevados e necessitaram mais de assistência domiciliar quando comparados com pacientes sem risco. Não houve diferença estatisticamente significante entre os grupos estudados quanto a taxa de readmissão.
É notório que não identificamos publicações que evidenciassem ou descrevessem um processo de vigilância nutricional hospitalar organizado e sistematizado. O que encontramos foram ações aparentemente não coordenadas que minimamente buscavam a compreensão dos impactos nutricionais sobre a saúde e a indicação de uma normatização para condutas assistenciais. Esta lacuna nos representa a necessidade de investimento de esforços nesta área para o desenvolvimento de um processo bem definido e executável em hospitais. As questões econômicas destas atividades parecem ter uma relação inversamente proporcional. Alguns estudos trataram de forma indireta e superficial as questões sociais envolvidas.
Dentre as limitações do estudo, apesar de ter sido buscado estabelecer uma estratégia de busca adequada e abrangente, a mesma pode ter sido ineficaz em identificar todos os estudos sobre o tema e algumas publicações importantes podem não ter sido obtidas. A seleção dos estudos foi realizada por apenas um dos autores de acordo com a divisão das atribuições pactuadas inicialmente e isto também pode se apresentar como um tipo de limitação para esta revisão de escopo.
O presente estudo evidenciou lacunas de estudos ainda existentes quando se pretender compreender como está ocorrendo o processo de vigilância nutricional hospitalar. A pesquisa constatou a importância da necessidade da implantação de um processo de assistência nutricional adequado, específico às necessidades nutricionais e seguro, como forma de minimizar a ocorrência de desdobramentos negativos junto ao paciente, familiares e unidade nosocomial. Sugere-se que pesquisadores da área tratem com afinco esta temática tão relevante para obtenção de melhores desfechos hospitalares.
Contribuição dos autores
Adélia Soares: Concepção e o planejamento do estudo, Coleta, Análise e Interpretação dos dados, Elaboração do artigo, Aprovação da versão final do manuscrito.
Larissa Vieira: Coleta, Análise e Interpretação dos dados.
Clarice Vergara: Planejamento do estudo, Revisão crítica do conteúdo, Aprovação da versão final do manuscrito.