As investigações sobre as relações entre saúde e envelhecimento estão centradas, em grande parte, no conceito de capacidade funcional (CF). Um dos interesses é descrever e explicar como as alterações em CF podem se sobrepor e interagir com o processo de envelhecimento, restringindo as capacidades do indivíduo para uma vida independente, com efeitos potenciais sobre o senso de autonomia pessoal e bem-estar emocional (Brown et al., 2022; WHO, 2021).
Embora o conceito de CF não seja único e consensual na literatura, vigora no campo da saúde a utilização de “variáveis proxy” que denotam a posse de atributos internos e externos, assim como de condições, competências e habilidades que favorecem o desempenho independente e autônomo nas relações com o ambiente (Brown et al., 2022). Em especial, o desempenho independente dos indivíduos um conjunto seleto de atividades cotidianas denominadas “atividades de vida diária” (AVDs) é utilizado para operacionalizar CF em instrumentos de medida clínicos e de rastreio epidemiológico. Segundo uma hierarquia funcional, as atividades são classificadas em básicas (AB), instrumentais (AI) e avançadas (AA) e atuam como importante fonte de informações para o estadiamento clínico de doenças ou como sinalizadores de comprometimentos em qualidade de vida na velhice (Brown et al., 2022; Pashmdarfard & Azad, 2020).
Necessitar de auxílio para a realização de AVDs são manifestações de dependência funcional. Em idosos residentes na comunidade, a dependência para atividades consideradas instrumentais reflete a ocorrência de restrições prévias em atividades avançadas relativas ao envolvimento social, comunitário e laboral de pessoas idosas. Dependência funcional para AI implicam em demandas de auxílio em tarefas que se referem à gestão da própria vida por meio de atividades realizadas dentro e fora do domicílio, com implicações sobre a divisão de responsabilidades familiares e potenciais efeitos sobre o senso de autonomia e controle pessoal (Gomes et al., 2021; Pashmdarfard & Azad, 2020).
Em levantamento realizado em países da União Europeia (Eurostat, 2019), 47,9% das pessoas idosas do continente referiram dificuldade moderada ou grave em pelo menos uma atividade básica ou instrumental de vida diária, sendo “trabalho doméstico pesado ocasional” (43,75%) e “fazer compras” (23,5%) as mais prevalentes, com significativas associações com variáveis como sexo e escolaridade. As mulheres e os menos escolarizados apresentam níveis maiores de prejuízo nas atividades pesquisadas. Em levantamentos norte-americanos, o Centro de Prevenção e Controle de Doenças (CDC, 2022) estimou a dependência para alguma AVD na proporção de 2 para cada 5 indivíduos com 65 anos ou mais. No Brasil, a estimativa é de 17,3% de dependência para pelo menos uma AI, sendo as de maior prevalência “sair de casa sozinho e/ou usar o transporte” (21,9%), seguida de “fazer compras” (17,8%) (SISAP-Idoso, 2013).
Estudos epidemiológicos sustentam relações importantes e bidirecionais entre dependências para a realização de AVDs e experiências psicológicas negativas, tais como a depressão (Agüera-ortiz et al., 2020; Blazer, 2003). Tais estudos operacionalizam a ocorrência de depressão a partir de critérios clínicos estritos (p.ex: Transtorno Depressivo Maior) ou da presença de desconfortos e sintomas associados à síndrome depressiva (como rebaixamento do humor, perda de interesse, pensamentos negativos sobre si, alterações psicomotoras e vegetativas).
Dentre os sintomas depressivos (SD) relatados por meio de escalas de rastreio, alguns tendem a ser mais amplamente endossados por pessoas idosas, sugerindo experiências emocionais, sociocognitivas e vegetativas específicas nessa faixa etária. Na descrição das experiências, pessoas idosas tendem a utilizar-se de referentes físicos e somáticos, especialmente característicos de anedonia (desânimo, falta de prazer ou energia), sobrepondo-se a sintomas de humor deprimido ou tristeza (Abrams & Mehta, 2019; Kim et al., 2021). A perda de interesse em atividades, o rebaixamento na experiência de afetos positivos (como baixa satisfação ou felicidade), o aumentos de experiência de afetos negativos (como tristeza, senso de inutilidade ou culpa) , a presença de dores inespecíficas, de fadiga ou lentidão na marcha são aspectos que dificultam compreensão da origem, curso e prognóstico da depressão em pessoas idosas pois podem ser resultantes de condições negativas de vida ou da presença de doenças e incapacidades (Blazer, 2003; Dejonckheere et al., 2021).
Há um menor número de investigações disponíveis na literatura que consideram as particularidades psicológicas da sobreposição entre manifestações de dependência e as experiências emocionais e sociocognitivas, refletidas, por exemplo, por sintomas depressivos específicos. Também é preciso considerar a influência de fatores antecedentes e contextuais na manifestação desse fenômeno e quanto ao papel dos contextos sociais em que os idosos estão inseridos (Abrams & Metha, 2020).
Em estudo com amostra de idosos italianos, Murri et al. (2020) demonstraram a centralidade dos sintomas clínicos de depressão referentes à anedonia (perda de prazer ou interesse em atividades) e pensamentos de morte (como desejo de não estar vivo no momento presente), especialmente entre os que apresentavam maior gravidade nas condições de dependência.
O presente estudo partiu da hipótese de haver heterogeneidade na manifestação de dependências para a realização de AI entre pessoas idosas residentes na comunidade e da existência de subgrupos segundo as atividades específicas nas quais ocorre a dependência. Tais subgrupos podem estar mais suscetíveis ao relato de SD em quantidade e qualidade diferentes. Buscou-se, portanto, descrever conglomerados de idosos a partir da manifestação de dependência para a realização de AI e identificar as razões de chance da apresentação de sintomas depressivos específicos, considerando uma amostra de idosos brasileiros residentes na comunidade.
Método
Participantes
Participaram do estudo 419 idosos brasileiros com média etária de 80 anos (+ 4,5) residentes em Campinas (São Paulo - Brasil) e no subdistrito Ermelino Matarazzo (São Paulo - Brasil) pertencentes à amostra de seguimento do estudo Rede FIBRA (Fragilidade em Idosos Brasileiros) - Pólo Universidade Estadual de Campinas, coletados no anos de 2016 e 2017.
Material
Para os objetivos do presente estudo, foram derivadas as seguintes variáveis de interesse:
Informações sociodemográfica. Idade; sexo; escolaridade formal (em anos); estado conjugal (com companheiro x sem companheiro) e arranjo de moradia (reside sozinho: sim x não).
Autoavaliação de saúde. Identificada por meio de questão: “De modo geral, como o/a senhor/a avalia sua saúde no momento atual?”. Para descrição e análise, as respostas foram categorizadas em “Boa” (“Muito boa”, “Boa” ) ou “Ruim” (“Muito ruim”, “Ruim” e “Regular”).
Percepção de Autonomia e Controle. Identificada por meio de duas questões da versão brasileira da Escala CASP-19 (Controle, Autonomia, Auto Realização e Prazer - Hyde et al., 2003) composta por 19 questões com respostas determinadas por grau de concordância (0 = nada 1=, um pouco (1), muito (2) e muitíssimo (3). O item (5) foi utilizado para percepção de autonomia “Eu posso fazer as coisas que quero” e o item (2) para identificar alterações no senso de controle “Eu sinto que não tenho controle sobre o que acontece comigo”. As respostas foram classificadas em “ausente” (nada) e “presente” (um pouco, muito e muitíssimo).
Dependência para a realização de AIVDs. Identificada por meio de auto relato de independência, dependência parcial ou total na realização das AIVDs segundo a escala de Lawton e Brody (1969 - versão brasileira de Santos & Júnior, 2008). Foi considerada a dependência para a realização de cada atividade instrumental e o escore total gerado pela escala, considerado dependentes os que relataram necessitar de ajuda parcial ou total para a realização de uma ou mais AIVDs.
Sintomas depressivos. Identificados a partir da aplicação da escala de depressão geriátrica (GDS) em sua versão de 15 itens (GDS-15; Yasavage et al., 1982 - versão brasileira de Almeida & Almeida, 1999), com respostas autorrelatadas dicotômicas “sim” ou “não” para cada uma das perguntas. O escore total (>6 pontos) foi utilizado para descrever a amostra e estimar a prevalência de depressão. A presença ou ausência de cada sintoma depressivo foi considerada na descrição e nas análises de regressão.
Procedimento
O estudo FIBRA é um estudo brasileiro multicêntrico, desenvolvido pela atuação de centros de pesquisa organizados em quatro polos de coordenação (Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP; Universidade de São Paulo - em Ribeirão Preto; Universidade Federal de Minas Gerais; e Universidade Federal do Rio de Janeiro) e apoio financeiro da CAPES, FAPESP e CNPq. O presente estudo é derivado dos dados e estratégias metodológicas adotadas pelo polo Unicamp.
Nas medidas de linha de base (LB) nos anos de 2008 e 2009, os participantes foram recrutados no domicílio. Os critérios de inclusão foram: idosos com 65 anos ou mais e que tivessem residência permanente no município. Os critérios de exclusão foram: recusa em participar da pesquisa e assinar TCLE; idosos com alterações cognitivas sugestivas de demência; Sequelas graves de acidente vascular encefálico; Doença de Parkinson em estágio grave ou instável; Deficiências auditivas ou visuais graves; Restritos ao leito; Em estado terminal, tinham câncer ou estavam em tratamento quimioterápico.. Foi considerada também a nota de corte do Miniexame do Estado Mental (MEEN): 17 pontos para analfabetos, 22 para 1 a 4 anos de escolaridade, 24 para 5 a 8 e 26 pontos para aqueles com 9 ou mais anos de escolaridade (Brucki et al., 2003).
As subamostras de pessoas idosas residentes nas localidades de Campinas - SP (n=900) e de Ermelino Matarazzo - SP (n=1284) foram alvo de um estudo de seguimento nos anos de 2016-2017 aprovado pelo Comitê de Ética da UNICAMP e aprovado mediante o aprovado pelo Comitê de Ética da UNICAMP e registrado na Plataforma Brasil sob o código C.A.A.E.: 49987615.3.0000.5404, bem como as avaliações secundárias correspondentes à presente pesquisa também foram aprovadas mediante o C.A.A.E.: 01456118.0.0000.5390. Os critérios de inclusão e exclusão permaneceram os mesmos, foram localizados e selecionados para o seguimento 549 idosos, sendo que 419 responderam na íntegra os instrumentos e variáveis selecionadas para o presente estudo.
Análise de dados
Análises derivadas de estatística descritiva foram utilizadas para a caracterização da amostra (frequência absoluta, prevalência e intervalo de confiança). As diferentes manifestações de dependência para a realização de AIVDs foram identificadas por meio da Análise de conglomerados (ou análise de Clusters) pelo método de agrupamento hierárquico de Ward e medidas de similaridade com testes de homogeneidade intragrupo e heterogeneidade intergrupos, considerando cada uma das sete AIVDs. O pertencimento dos indivíduos aos clusters identificados foram tomados como variáveis dependentes na regressão multinomial a fim de identificar as razões de chance representadas por cada sintoma depressivo que compõem a escala GDS-15. Variáveis sociodemográficas, de autoavaliação de saúde, de percepção de autonomia e controle foram as variáveis de ajuste para as análises de regressão multinomial. Os testes foram realizados com o auxílio das ferramentas computacionais SAS - Statistical Analysis System, versão 9.2 e SPSS - Statistical Package for Social Sciences, versão 22.0. A significância adotada para os testes estatísticos foi de p<0,05.
Resultados
Participaram do estudo 419 idosos, com idades de 72 a 98 anos (80,0 + 4,5), sendo a maioria (69,4%) do sexo feminino, com 1 a 4 anos de escolaridade (58,2%), sem companheiro (53,2%) e cerca de 80% relataram residir com outras pessoas (81,3%). A prevalência de sintomas depressivos foi de 29,1% e aproximadamente metade da amostra (50,36%) apresentou indicadores de dependência parcial ou total para a realização de AIVDs. As prevalências de dependência para cada AIVD estão descritas no Quadro 1.
Atividade | Independente | Dependente | ||||
n | Prevalência (%) | IC 95% | n | Prevalência (%) | IC 95% | |
Uso do telefone | 386 | 92,12 | 88,80-94,18 | 33 | 7,88 | 5,81-11,19 |
Uso de transportes | 321 | 76,98 | 72,28-80,52 | 96 | 23,02 | 19,47-27,22 |
Fazer compras | 297 | 71,52 | 66,65-75,45 | 118 | 28,43 | 24,54-33,34 |
Preparo de alimentos | 369 | 88,92 | 85,22-91,43 | 46 | 11,08 | 8,56-14,77 |
Tarefas domésticas | 296 | 71,15 | 66,39-75,22 | 120 | 28,85 | 24,77-33,60 |
Auto administração de Medicação | 378 | 91,08 | 88,24-93,76 | 37 | 8,92 | 6,23-11,75 |
Manejo de dinheiro | 339 | 81,10 | 76,70-84,38 | 79 | 18,90 | 15,61-23,29 |
Em relação a frequência de SD, na amostra total foram mais prevalentes os sintomas apresentados pelas questões: “Prefere ficar em casa a sair e fazer coisas novas?” (n=247), “Deixou muitos de seus interesses e atividades?” (n=167) e “O/a senhor/a se aborrece com frequência?” (n=152). Quando examinados apenas os idosos com dependências para a realização da AIVDs, as maiores prevalências referiram-se aos sintomas “(Não se) Sente-se feliz a maior parte do tempo?” (82,86%), “Sente-se inútil nas atuais circunstâncias?” (65,85%) e “(Não) Sente-se cheio/a de energia?”(65,42%).
Para realizar a análise central do presente estudo, foi utilizada a análise de cluster a partir do método de agrupamento hierárquico de Ward e medida de similaridade, a partir da média da variável binária (independente (1) e dependência parcial/total (0)) para cada AIVD avaliada (Figura 1). Ao todo, 10 clusters foram encontrados, considerando que alguns agrupamentos podem pertencer a grupos maiores, para obter a melhor variância entre grupos, foram determinados quatro clusters.
O Cluster 1 apresentou maior frequência, caracterizado por menores médias para dependência em todas as AIVDs. O Cluster 2 apresentou níveis intermediários de dependência para “tarefas domésticas” (0,71). O Cluster 3 foi composto por médias mais elevadas de dependência para “uso de transporte” (0,58), “fazer compras” (1) e “tarefas domésticas” (0,47). Por fim, o Cluster 4 apresentou maiores médias de dependência para um maior número de tarefas: “uso de transporte” (0,97), “fazer compras” (0,97), “tarefas domésticas” (0,47), “medicação” (0,41) e “manejo de dinheiro” (0,95).
Com relação às características sociodemográficas, testadas quanto a frequência e composição, comparadas ao cluster 1, foram encontradas diferenças significativas em todas variáveis (Figura 2), exceto às condições de idade e escolaridade.
Para associar os sintomas depressivos aos clusters formados, foi realizada a análise de regressão com ajustes para variáveis que revelaram associações bivariadas significativas (Quadro 2). Após o ajuste, os sintomas “rebaixamento de energia” e “(não se) sente-se feliz” apresentaram razões de chance significativas para estarem presentes entre pessoas idosas do cluster 2. Os sintomas “(não se) sente-se feliz”, “prefere ficar em casa” apresentaram razões de chance significativas para estarem presentes no cluster 3. Por sua vez, os sintomas “deixou interesses”; “sem saída"; "ficar em casa”; “baixa energia” revelaram razões de chance significativas para se apresentarem em idosos do cluster 4.
Discussão
A heterogeneidade na manifestação de dependências para a realização de AI entre pessoas idosas residentes na comunidade foi evidenciada a partir da formação de quatro grupos diferenciados por níveis e tipos de AI. As análises complementares também sugeriram que os grupos apresentam susceptibilidade diferenciada quanto ao relato de sintomas depressivos em quantidade e qualidade diferentes, indicando experiências emocionais, sociocognitivas e somáticas específicas.
Condizente com a realidade da população de pessoas idosas brasileira (SISAP-Idoso, 2013), as características da amostra destacaram o predomínio de mulheres, de indivíduos com poucos anos de escolaridade formal, que residem com outras pessoas, mas, em maioria, não estão em relação conjugal (especialmente devido à viuvez da população idosa feminina).
Quando comparada às características amostrais de outros estudos de coorte brasileiros publicados nos últimos anos (Lemes et al., 2021), os resultados do presente estudo foram derivados de uma amostra com idade mais avançada, correspondendo às classificações demográficas e gerontológicas dos grupos "idosos-idosos, especialmente quando se refere às populações e países em desenvolvimento (Barranquero & Ausín, 2019). Assim como os estudos apresentados, cerca de metade dos entrevistados avaliou sua própria saúde como boa. Esse percentual foi superior aos registrados em publicações prévias sobre autoavaliação de saúde identificados pelo estudo FIBRA nas medidas de linha de base (25%; Borim et al., 2012) e de estudos populacionais brasileiros com médias etárias mais jovens. Tal comparação é sugestiva de que, prospectivamente, dois fenômenos podem ter atuado conjuntamente: a seletividade dos participantes mais saudáveis na medida de seguimento do FIBRA e a tendência positiva na autoavaliação positiva da saúde demonstrada na velhice avançada.
No que se refere ao relato de dependência para a realização de AIVDs, cerca de metade da amostra identificou necessitar de ajuda parcial ou total para pelo menos uma das AIVDs. Quando analisadas individualmente, a AIVD que apresentou maior prevalência de dependência foi “Tarefas domésticas” (28,85%) seguida por “Fazer compras” (28,43%), essas atividades têm alcance interpessoal e podem estar relacionadas com o envolvimento dos indivíduos que moram na mesma casa.
A percepção de autonomia, por sua vez, não foi tão afetada. Cerca de 8% discorda, em algum grau, da afirmação “Eu posso fazer as coisas que quero”. É possível que o menor percentual de alterações negativas no senso de autonomia seja um reflexo da preservação da cognição. Já o senso de controle, 33,58% relatou algum grau de discordância com a afirmação “Eu sinto que não tenho controle sobre o que acontece comigo”.
A prevalência de depressão na amostra, segundo o escore total de SD (> 6 sintomas) foi semelhante ao estimado pelo estudo de metanálise de Zenebe et al. (2021), encontrando-se dentro do intervalo de confiança descrito pelos autores. Ao observar cada sintoma específico, foram encontradas prevalências mais altas de sintomas tais como “Prefere ficar em casa’’ (59,23%), “Deixou muito de seus interesses’’ (40,05%) e “sente que a vida está vazia’’(30,38%). A literatura tem sugerido que o endosso de pessoas idosas a tais afirmações não necessariamente indica a presença de depressão. Segundo as teorias dos afetos, o rebaixamento na experiência de afetos positivos pode ocorrer como resultado de condições de baixa estimulação social e ambiental, culminando na caracterização definida como "Depleção" (Gallo et al., 1994) ou de predomínio de anedonia (Abrams & Mehta, 2019). Os afetos positivos (tais como interesse, satisfação ou alegria) são altamente reativos a fatores externos, diferentemente dos afetos negativos (como aborrecimento, tristeza ou culpa), mais sensíveis a percepções de estados internos (tais como dor, autoavaliações negativas de desempenho, ocorrência de perdas em geral ou morte de pessoas próximas) (Barranquero & Ausín, 2019).
Ao distribuir a presente amostra entre idosos com e sem dependência segundo o escore total da escala de Lawton & Brody (1969), observou-se diferença estatística quanto ao número de sintomas depressivos que individualmente se mostraram mais prevalentes entre os idosos dependentes. O sintoma que apresentou maior prevalência em indivíduos com dependência para AIVD foi “(não se) sentir-se feliz a maior parte do tempo” (82,86%) comparado com 8,35% para a população não dependente da presente amostra. Os pesquisadores Alvarenga et al., (2012) propuseram uma subdivisão dos sintomas rastreados pela GDS de acordo com os sentimentos traduzidos em cada afirmação. Em especial, esse sintoma de alta prevalência é correspondente a ausência de afetos positivos (felicidade, interesse, motivação) e probabilidade ser 5,5 vezes maiores em idosos com dependência. Tal evidência sugere que a dependência para AIVDs pode impactar de forma especial a probabilidade de usufruir das oportunidades sociais e ambientais, impactando até a participação ativa na sociedade.
Dada a natureza e as demandas requeridas na realização das AIVDs e de suas associações com SD, o presente estudo buscou ir além da descrição de prevalência ou dos escores totais provenientes dessas escalas. Os resultados geraram evidências de que as diferentes manifestações do fenômeno da dependência são associadas a diferenças sociodemográficas, aspectos subjetivos de avaliação sobre a saúde, autonomia e controle e experiências emocionais específicas.
O primeiro aspecto sobre a manifestação da dependência foi representado pela formação de quatro clusters ou subgrupos no relato das dependências. A ordenação dos clusters (1,2,3 e 4) refletiu o aumento no número e no tipo de dependências para as AIVDs. Contrariando estereótipos negativos sobre o processo de envelhecimento, o cluster 1, formado pelo maior percentual da amostra, apresentou as menores médias no relato de dependência e maior prevalência de autoavaliação positiva da saúde. Sua composição reflete as boas condições funcionais dos idosos que vivem na comunidade para AIVDs e a possibilidade de se viver a velhice de forma independente e com manutenção do bem-estar (Gomes et al., 2021). O cluster 2, ainda que também tenha apresentado baixas médias no relato de dependências, distinguiu-se do cluster 1 pelos valores médios indicativos de comprometimentos no desempenho da AIVD “Tarefas domésticas” e prevalência de autoavaliação negativa de saúde maior do que a do cluster 1.
O cluster 3 apresentou dependências em três (“Uso de transporte”, “Fazer compras” e “Tarefas domésticas”) das sete AI pesquisadas. Essas atividades foram as mesmas identificadas como as mais prevalentes na amostra total do estudo. Esse cluster revelou a maior prevalência de mulheres (86,57%) e de autoavaliação negativa de saúde (59,70%). Por sua vez, o cluster 4, caracterizou-se por apresentar as maiores médias de dependência para todas as AI em relação aos demais clusters. Também reuniu a maior prevalência de idosos que residem com outras pessoas (95,24%). Predominou entre esses a autoavaliação de saúde negativa, assim como maior prevalência de percepções negativas de controle pessoal e de sintomas depressivos. A prevalência de depressão segundo escore total da GDS-15 foi maior entre os clusters 3 e 4 (31,34% para 34,88%) em relação ao cluster 1 e 2 (que não se diferenciam significativamente nesse aspecto).
A formação e comparação entre os clusters permitiu identificar que a dependência para “tarefas domésticas” esteve presente nos clusters 2, 3 e 4 simultaneamente, esses três grupos apresentam percentuais maiores de idosos que residem com outras pessoas e maiores prevalência de autoavaliação negativa de saúde em relação ao cluster 1.
A dependência gera a necessidade de ajustamento emocional que acontece por meio dos recursos psicológicos, condições de saúde e ambiente disponíveis para o indivíduo, por isso a experiência emocional apresenta um padrão heterogêneo, expresso pela presença de diferentes sintomas depressivos. Por este motivo, observar a associação de cada sintoma com os clusters formados permite ampliar a compreensão do impacto funcional na saúde mental de idosos.
No Cluster 2, a dependência começa a ser relatada de forma mais pronunciada para as “tarefas domésticas”, os sintomas depressivos mais prevalentes foram “(não) sente-se feliz a maior parte do tempo” e o rebaixamento do nível de energia - “(não) sente-se cheio de energia”. Possivelmente, dadas das demais características do cluster - sociodemográficas, de saúde e controle e autonomia - essa configuração de sintomas refira-se a manifestações de “depleção”, como defendido por Gallo et al. (1994) e outros (Abrams & Metha, 2019; Carstensen et al., 2003).
O sintoma “(Não) sente-se feliz a maior parte do tempo” foi significativamente prevalente nos clusters 2 e 3, representando possivelmente baixas oportunidades de experiências positivas ou diminuição dos afetos positivos. Esse sintoma se relacionou individualmente com o relato de dependência para realização de “tarefas domésticas”. Essa dependência, possivelmente impacta a experiência diária no domicílio, principalmente entre as mulheres, que, pela vigência de normas socioculturais de gênero, atribuem essa atividade a elas. Necessitar de auxílio na realização dessa atividade pode espelhar a perda de papel social e familiar para essa coorte (Melo et al., 2007).
No cluster 3, o agravo nas condições de dependência revelou também a prevalência significativa de rebaixamento nos afetos positivos dado pelo sintoma “(não) sente-se feliz a maior parte do tempo”, porém acompanhado do sintoma “prefere ficar em casa do que fazer coisas novas”. Tal configuração sugere que essa manifestação de dependências, especialmente ligadas a tarefas realizadas fora do domicílio (como compras e uso de transporte) podem representar uma experiência emocional indicativa de risco para quadros de isolamento social.
Por sua vez, o cluster 4 que reúne pessoas idosas com maior número e tipos variados de dependência em AIVDs, reúne uma configuração de prevalência de sintomas indicativos de quadros depressivos clinicamente identificáveis, indicadas pela presença da desesperança “sente que sua situação é sem saída”, e pela apresentação dos sintomas indicativos de anedonia: “deixou muitos dos seus interesses e atividades”, “Prefere ficar em casa do que fazer coisas novas” e “(não) se sente cheio de energia”.
A variação nas configurações da experiência emocional entre as manifestações de dependências para AI trazem importantes implicações para os diferentes níveis de atenção em saúde e bem-estar de pessoas idosas. De acordo com a intensidade e tipo de dependência foram identificadas probabilidades de comprometimentos psicossociais e de saúde mental crescentes, com manifestações típicas de quadros de “Depleção”/anedonia, isolamento social e depressão clínica. Reconhecer os aspectos de funcionalidade que estão conectados com sintomas depressivos possibilita desenvolver ações clínicas e públicas para a prevenção de agravos quanto ao isolamento social e a piora dos sintomas referidos. Políticas de promoção da saúde podem favorecer a qualidade de vida e possibilidades de viver bem a velhice.
Dentre as limitações à generalização das evidências, destacam-se particularidades metodológicas importantes adotadas. Trata-se de dados de um estudo de seguimento com perdas amostrais, e por ser composto por idosos residentes na comunidade sem comprometimentos cognitivos, tende a ser mais independente para a realização de AB que podem culminar na maior presença de depressão (Zenebe et al., 2021).
Futuros trabalhos poderão também utilizar de estratégias analíticas mais complexas no intuito de confirmar e complementar os resultados das análises de regressão realizadas. Poderão, também, incluir amostras clínicas e estudos de intervenção para o refinamento da descrição das experiências emocionais no contexto da dependência e no levantamento de evidências de eficácia de abordagens centradas nos mecanismos psicológicos e sociais que geram vulnerabilidades para “depleção”/anedonia, isolamento social e depressão clínica.