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Psicologia, Saúde & Doenças

versão impressa ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.25 no.1 Lisboa abr. 2024  Epub 31-Mar-2024

https://doi.org/10.15309/24psd250110 

Artigo

Desenvolvimento escala do impacto do cancro da mama nos companheiros: estudo psicométrico

Development of breast cancer impact on companions scale: psychometric study

1Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Fernando Pessoa, Porto, Portugal

2FP-B2S, Universidade Fernando Pessoa, Porto, Portugal

3Centro Hospitalar Universitário de São João, Porto, Portugal


Resumo

A conceção de programas de promoção do bem-estar para companheiros de mulheres diagnosticadas com cancro da mama implica a existência de instrumentos de medida específicos, que considerem os domínios efetivamente relevantes para esta população. O objetivo deste estudo exploratório foi construir e validar uma escala para avaliar o impacto do diagnóstico e tratamento do cancro da mama nos companheiros. Uma amostra de conveniência de 84 companheiros de mulheres que tiveram diagnóstico de cancro da mama respondeu ao questionário desenvolvido no presente estudo, questionário sociodemográfico, Escala de qualidade de vida do familiar/cuidador do doente oncológico (CQOLC) e versão portuguesa da Hospital Anxiety and Depression Scale (HADS). Foi desenvolvida a Escala de Avaliação do Impacto do Cancro da Mama nos Companheiros (EAICMC), com 24 itens, organizados em três fatores. A EAICMC revelou boa fiabilidade (α = 0,82). A correlação item-total e item-subescalas comprovou a sua aceitável validade interna convergente/discriminante e a distribuição das respostas pelos seus itens demonstrou que possui uma razoável sensibilidade. A correlação entre os scores obtidos na EAICMC, HADS e CQOLC confirmou a validade externa da escala. Trata-se de um instrumento bem aceite e que poderá ser útil para a prática clínica.

Palavras-Chave: Cancro da mama; Qualidade de vida; Companheiros; Escala

Abstract

The design of wellbeing promotion programs for the partners of women diagnosed with breast cancer requires the existence of specific measuring instruments that take into account the domains that are actually relevant to this population. The aim of this exploratory study was to construct and validate a scale to assess the impact of breast cancer diagnosis and treatment on partners. A convenience sample of 84 partners of women diagnosed with breast cancer answered the questionnaire developed in this study, a sociodemographic questionnaire, the Cancer Patient Family/Caregiver Quality of Life Scale (CQOLC) and the Portuguese version of the Hospital Anxiety and Depression Scale (HADS). The Assessment of the Impact of Breast Cancer on Companions Scale (EAICMC) was developed, with 24 items, organized into three factors. The EAICMC showed good reliability (α=0.82). The item-total and item-subscale correlation proved its acceptable convergent/discriminant internal validity and the distribution of responses across its items showed that it has reasonable sensitivity. The correlation between the scores obtained on the EAICMC, HADS and CQOLC confirmed the scale's external validity. It is a well-accepted instrument that could be useful in clinical practice.

Keywords: Breast cancer; Quality of life; Companions; Scale

O cancro da mama é a doença mais comum e com maior taxa de mortalidade quando comparada com outras neoplasias malignas (Barton et al., 2018). Segundo a World Health Organization [WHO] (2023), existem mais de 2,3 milhões de casos de cancro da mama que ocorrem a cada ano, o que o torna o cancro mais comum entre os adultos.

Na mulher, o cancro da mama tem um impacto negativo em várias dimensões - física, psicológica e interpessoal (Carrol et al., 2016; Syme at al., 2013). As consequências físicas referem-se aos efeitos adversos resultantes de quimioterapia, radioterapia e ainda hormonoterapia, que podem refletir-se na fadiga, falta de sensibilidade na mama e menopausa induzida pela falta de estrogénios devido à hormonoterapia, diminuindo desta forma a lubrificação vaginal e diminuição do desejo sexual (Schover et al., 2014; Vieira et al., 2014). As dificuldades intrapsíquicas geralmente incluem um sentimento de perda de feminilidade, imagem corporal negativa e um sentimento de falta de atratividade sexual como resultado de cirurgia de mama devido a mutilação, cicatrizes, forma assimétrica e/ou alterações sensoriais (Kedde et al., 2013; Leila et al., 2016). A mama da mulher desempenha um papel multifuncional que, para além de ser um símbolo feminino, é também uma fonte de nutrição para os filhos e um órgão sensual num relacionamento íntimo (Akpor et al., 2023).

O envolvimento dos companheiros das pacientes com cancro da mama tem-se tornado cada vez mais evidente (Zimmermann, 2015) e alguns estudos já têm focado as consequências psicológicas do cancro da mama nos companheiros e nos restantes membros da família (Congard et al., 2019; Miaja et al., 2017; Northouse et al., 1991). Progressivamente, tem sido possível considerar o cancro da mama como uma doença do casal (Northouse et al., 1991), que se concebe no contexto da relação (Kayser et al., 2007). A literatura indica que os companheiros de mulheres diagnosticadas com cancro da mama podem sentir ansiedade, medo e dificuldade de adaptação à evolução da imagem corporal de suas parceiras; esses fatores podem afetar sua própria qualidade de vida e também a satisfação sexual (Rowland & Metcalfe, 2004). Estudos anteriores descobriram que a depressão e a ansiedade estão intimamente relacionadas com a qualidade de vida e com a satisfação sexual dos parceiros de mulheres com cancro de mama (Rowland & Metcalfe, 2004).

O cancro da mama pode representar também um fardo financeiro e psicossocial significativo também para o companheiro, família e rede social alargada da mulher (Akpor et al., 2023). Esta doença geralmente implica a mudança de papéis do cônjuge, fazendo com que os companheiros das mulheres com cancro da mama assumam as responsabilidades que anteriormente não assumiam (Akpor et al., 2023). O desespero e a incerteza sobre o futuro, aliados ao medo da solidão, foram mencionados como dificuldades vivenciados por estes companheiros (Li et al., 2013). Todas estas questões sugerem uma especial atenção, de modo a suportar as necessidades dos companheiros de mulheres com cancro da mama e ainda a importância de regular os níveis de stress sentidos através de intervenções psicológicas (Morgan et al., 2011). Apenas nas últimas duas décadas, investigadores na área da psico-oncologia começaram a enfatizar a necessidade de analisar esta doença em contexto familiar, mais especificamente no relacionamento conjugal (Braun et al., 2007; Carlson et al., 2000; Manne & Badr, 2008). Trata-se de um domínio de estudo ainda pouco explorado, sendo que os poucos estudos existentes avaliam os companheiros de mulheres com cancro da mama através de instrumentos de avaliação psicológicos genéricos destinados à população em geral (Hayati et al., 2022; Lawrence et al., 2008; Vizeshfar et al., 2023). Há, pois, necessidade de criar e validar instrumentos específicos para avaliar esta população de forma a se poder intervir nas dificuldades sentidas durante e após a doença. Deste modo, o presente estudo de natureza exploratória transversal, tem como objetivo principal a realização de um estudo piloto com vista à construção de uma escala de avaliação do impacto do cancro da mama nos companheiros de utentes que foram diagnosticadas e realizaram tratamento para o cancro da mama e ao estudo das suas qualidades psicométricas (validade, fidelidade e sensibilidade).

Método

Participantes

Os participantes foram 84 companheiros masculinos de doentes do sexo feminino do Centro da Mama do Centro Hospitalar Universitário de São João (CHUSJ; Porto, Portugal) a quem havia sido diagnosticado cancro da mama há menos de 5 anos e que terminaram os tratamentos há, pelo menos, 3 meses. Os participantes tinham idades compreendidas entre os 29 e os 73 anos (M = 50,1; DP = 8,62). A grande maioria era casada (n = 65; 77,4%). Em termos de níveis de educação, a maioria possuía o ensino secundário (do 10º ao 12º ano) (n = 30; 35,7%) ou 3ºciclo do ensino básico (7º a 9º ano) (n =22; 26,2%), seguido por possuir 1ºciclo do ensino superior/ licenciatura (n =15; 17,9%). Quanto à situação profissional, a maioria dos participantes encontrava-se a exercer a sua atividade laboral (n = 74; 88,1%) e grande parte classificava a sua situação económica entre satisfatória (n= 41; 48,8%) e remediada (n = 33; 39,3%). Relativamente ao agregado familiar, a maioria dos participantes tinha famílias constituídas por 3 (n = 25; 34,2%) ou 4 (n= 30; 41,1%) membros. Dos 84 participantes, a maioria referia não ter tido ou não estar a receber atualmente acompanhamento psicológico e/ou psiquiátrico (n = 72; 85,7%).

Material

Questionário sociodemográfico e clínico. Criado exclusivamente para o presente estudo com vista a obter informações sociodemográficas e clínicas sobre os participantes.

Escala de Qualidade de Vida do Familiar/Cuidador do Doente Oncológico (CQOLC). Escala desenvolvida por Weitzner et al. (1999) e adaptada para a cultura e idioma portugueses por Santos et al. (2003), tendo como objetivo avaliar as implicações emocionais da doença oncológica nos seus familiares/cuidadores. A CQOLC é uma escala de autopreenchimento, constituída por 33 afirmações e as respostas são apresentadas numa escala tipo Likert cotadas entre 0 e 4. A CQOLC apresenta, no presente estudo, um coeficiente de consistência interna global de 0,90, dentro dos parâmetros considerados como uma boa consistência interna. Em todas as dimensões encontravam-se valores considerados bons para as subescalas de sobrecarga emocional (α=0,92), perturbações ligadas ao cuidado (α=0,81) e implicações pessoais do cuidado (α=0,89) e aceitável para a subescala de adaptação positiva (α=0,66) considerado aceitável.

Escala de Ansiedade e Depressão Clínica (HADS). Desenvolvida por Zigmond e Snaith (1983), foi projetada para auxiliar o clínico a identificar os componentes emocionais da doença física como um dispositivo de triagem para ansiedade e depressão em ambiente hospitalar geral e adaptada à população portuguesa por Pais-Ribeiro et al. (2007). A HADS compreende em duas subescalas, uma que mede a ansiedade e outra que mede a depressão. Cada item é respondido com categoria de resposta de 4 pontos (0 - 3). A HADS apresenta, no presente estudo, valores considerados bons para a subescala de ansiedade (α=0,87) e para a subescala da depressão (α=0,86).

Escala de Avaliação do Impacto do Cancro da Mama nos Companheiros (EAICMC). A EAICMC, a qual se pretende validar no presente estudo, foi desenvolvida para avaliar o impacto da doença nos companheiros de mulheres diagnosticadas com cancro da mama. É uma escala constituída por três subescalas: Impacto da Responsabilidade, Impacto Invisível e Impacto Positivo. Para esta escala foi oferecida uma escala de resposta tipo Likert com 5 opções de resposta cotadas de 0 (“Nunca”) a 4 (“Sempre”). A pontuação mínima é 0 pontos e pontuação máxima de 96 pontos.

Procedimento

Para a realização deste estudo foi construído um instrumento com o objetivo de avaliar o impacto da doença nos companheiros das mulheres diagnosticadas com cancro da mama. Para tal, foi realizada uma revisão da literatura sobre a temática de modo a compreender os aspetos mais impactados no companheiro pela doença da mulher (Cecilio et al., 2012; Maleki et al., 2022). Foi realizada uma revisão de alguns instrumentos de avaliação, nomeadamente, a Body Image Scale for Breast Cancer Survivors, (Biederman et al., 2020); a Cancer-Related Communication Between Female Patients and Male Partners Scale (CRCP) (Kornblitha et al., 2006); e a versão portuguesa da Psychological Adaption Scale (Neto et al., 2021). Foram, ainda, observadas consultas de psicologia no Centro da Mama do Centro Hospitalar Universitário de São João (CHUSJ), assim como consultas de enfermagem pré-cirurgia mamária para compreender alguns medos da mulher doente e companheiro durante o processo. Foi realizada uma entrevista aberta com a psicóloga do centro da mama, enfermeira chefe do Centro de Mama e com o Diretor do mesmo, para recolher informações junto de profissionais especializados no tratamento do cancro da mama sobre aqueles que consideram ser os aspetos mais afetados na vida do companheiro aquando da doença oncológica da mulher. As entrevistas com profissionais de uma equipa multidisciplinar, com as diferentes funções que assumem com os companheiros, parecem ser informantes privilegiados sobre estes impactos. Com toda a informação recolhida foi construído um questionário que designamos por Escala de Avaliação do Impacto do Cancro da Mama nos Companheiros.

Em primeiro lugar, para realizar esta investigação, foi solicitada a autorização dos autores das escalas a serem utilizadas (CQOLC; HADS). Depois de obter as devidas autorizações, foi solicitada a aprovação do projeto à Comissão de Ética do CHUSJ, que emitiu um parecer favorável. Posteriormente, foi iniciado o contato com as pacientes por meio de uma psicóloga do Centro da Mama. O convite para participar foi feito quando às pacientes que se dirigiam ao atendimento para consultas de rotina de forma a evitar deslocações desnecessárias. O convite à participação no estudo era realizado através das pacientes, solicitando-lhes que levassem os questionários para os seus companheiros preencher e para os devolverem numa próxima consulta, uma vez que, maioritariamente, os companheiros numa fase pós tratamentos já não acompanham as doentes às consultas ao hospital.

Presencialmente foi entregue às pacientes uma folha de rosto com informações sobre o estudo, os seus objetivos e procedimentos e foram esclarecidas quaisquer dúvidas sobre o mesmo. Foi ainda entregue um documento de consentimento informado escrito, que foi assinado pelos companheiros, onde era assegurada a privacidade e confidencialidade. Seguia, ainda, juntamente com os documentos, os questionários e um envelope selado para os colocar após o preenchimento, esclarecendo-se que quaisquer questões relativas ao estudo poderiam ser colocadas através do endereço de correio eletrónico que se encontra no documento informativo previamente fornecido. Os dados foram recolhidos desde fevereiro a maio de 2023. Após o preenchimento, os questionários eram devolvidos num próximo agendamento no hospital, sendo entregues no Centro de Mama. Ocasionalmente, alguns companheiros acompanharam as pacientes ao hospital, sendo aí informados sobre o estudo e convidados a nele participar, respondendo ao questionário num gabinete. O preenchimento dos questionários demorava aproximadamente 15 minutos a cada participante.

Na análise dos dados, com o objetivo de alcançar os objetivos propostos, foram realizadas as seguintes análises estatísticas: coeficiente de alfa de Cronbach para avaliação da fidelidade da EAICMC, correlação de Pearson item-total e item-subescalas para avaliar a validade interna convergente/discriminante, análise em componentes principais (foi realizada primeiramente a análise do valor Kaiser-Meyer-Olkin e o teste de esferecidade de Bartlett) para o estudo da validade interna do instrumento, correlação com outros instrumentos para testar a validade externa convergente-discriminante. Para avaliar a sensibilidade analisou-se se existiam diferenças estatisticamente significativas entre participantes com distintos níveis de escolaridade, situação económica e procura de acompanhamento psicológico/psiquiátrico anterior, recorrendo-se ao Teste U de Mann-Whitney e a ANOVA. Por fim, o tratamento estatístico dos dados foi realizado por meio do Statistical Package for the Social Sciences (SPSS Inc), versão 29. Os dados foram primeiramente submetidos a análise descritiva. Foram, ainda, realizadas análises diferenciais utilizando-se estatística não paramétrica, dadas as características da amostra e os objetivos delineados.

Resultados

Com o objetivo de testar a sensibilidade do instrumento, apresenta-se no Quadro 1 a análise descritiva dos scores obtidos nos itens.

Os valores encontrados nos itens da escala de avaliação do impacto da doença nos companheiros das mulheres com cancro da mama apresentam a média e mediana praticamente sobreponíveis, o que sugere uma distribuição normal dos resultados. As respostas aos itens distribuem-se entre os extremos da escala (valor mínimo- 0 e valor máximo- 4) para quase todos os itens, à exceção dos itens número 13, 14, 16, 17, 18 e 19.

Analisou-se o alfa de Cronbach para a escala total e para as três subescalas, obtendo-se um alfa de Cronbach total de 0,82, representando uma boa consistência interna. O alfa de Cronbach da Subescala de Impacto Positivo foi de 0,71; o alfa de Cronbach da Subescala de Impacto da Responsabilidade foi de 0,73 e o alfa de Cronbach da subescala de Impacto Invisível foi de 0,73, apresentando uma fidelidade aceitável. Os resultados da correlação item-total e item-subescalas corrigidas para sobreposição encontram-se descritas no Quadro 2.

Todos os itens encontram-se correlacionados de forma significativa com a pontuação total do instrumento. Essa correlação é fraca a moderada, sendo que os valores mais baixos verificam-se nos itens relativos à subescala impacto positivo. Uma vez que a eliminação de qualquer um dos itens não é possível de melhorar a consistência interna da escala e que esta é boa, decidiu-se pela manutenção de todos os itens.

A validade interna convergente-discriminante dos itens foi avaliada pela análise da correlação do item com a dimensão a que pertence com as correlações com as dimensões item escala a que não pertence. Verificou-se uma boa convergência visto que os valores de correlação de item escala a que pertence são acima de 0,30, à exceção do item 19, tal como proposto por Almeida e Freire (2008). A correlação item-subescala corrigida para sobreposição é maior com a subescala a que pertence do que as restantes, o que significa que tem boa validade interna convergente discriminante, a única exceção diz respeito ao item número 19, mas não é substancialmente mais baixo. A validade de construto foi avaliada através da organização fatorial dos itens, no sentido de conhecer a forma como os itens se organizam. Procedeu-se à análise em componentes principais.

Quadro 1 Análise descritiva da EAICMC 

Itens Min Max M Mediana DP
Comecei a gerir mais responsabilidades com a doença da minha companheira 0 4 2,49 3,00 1,017
As tarefas de casa passaram a ser feitas por mim 0 4 2,26 2,00 0,814
Tive de assumir o papel da minha companheira com os nossos filhos 0 4 1,75 2,00 1,205
A doença da minha companheira afetou a minha vida profissional. 0 4 1,26 1,00 1,098
Tive que deixar de trabalhar para acompanhar a minha companheira neste processo 0 4 1,19 1,00 1,329
Tive dificuldades financeiras durante o processo de doença da minha companheira 0 4 1,05 1,00 1,168
Sinto que não reconhecem o impacto que teve a experiência do cancro da minha companheira sobre a minha vida 0 4 1,93 2,00 1,218
O cancro da minha companheira trouxe problemas de fertilidade 0 4 0,84 0,00 1,462
Já existiam problemas de fertilidade, que foram dificultados com o diagnóstico de cancro de mama 0 4 0,32 0,00 0,952
Preciso de ajuda para ter uma família devido aos problemas de fertilidade 0 4 0,20 0,00 0,805
Após o diagnóstico de cancro da mama houve diminuição do desejo sexual 0 4 1,62 2,00 1,358
Após o diagnóstico de cancro da mama houve diminuição na frequência de relações sexuais 0 4 2,28 2,00 1,182
Após o diagnóstico de cancro da mama tive dificuldades em manter uma ereção 0 3 0,76 0,00 0,995
Após o diagnóstico de cancro da mama tive dificuldades em ter um orgasmo 0 3 0,60 0,00 0,890
Senti dificuldades em ter satisfação sexual 0 4 0,78 0,00 1,048
Senti menos atração sexual em resultado da doença/tratamento 0 3 0,47 0,00 0,831
Senti-me incomodado com a imagem da minha companheira 0 3 0,35 0,00 0,674
Senti a minha companheira menos atraente fisicamente devido à doença e ao tratamento 0 3 0,33 0,00 0,07
Senti dificuldades em olhar para o corpo da minha companheira 0 2 0,23 0,00 0,531
Foco-me mais em coisas que são importantes 0 4 2,54 3,00 1,152
Fiz mudanças positivas na minha vida 0 4 2,00 2,00 1,173
Cresci como pessoa 0 4 3,00 3,00 1,231
Percebo o quanto a vida é importante 0 4 4,00 4,00 0,962
O relacionamento com a minha companheira melhorou 0 4 3,00 3,00 1,167
Impacto Positivo 0,00 20,00 13,6 14,00 3,88126
Impacto da Responsabilidade 1,00 20,00 8,96 8,00 3,87800
Impacto Invisível 0,00 38,00 11,69 10,00 8,26281

Primeiramente foi avaliado o valor Kaiser-Meyer-Olkin (KMO = 0,663), que indicou uma adequação razoável do tamanho da amostra para uma análise fatorial exploratória e o teste de esferecidade de Bartlett (χ2 = 808,213, p ≤ 0,001). Estes valores foram considerados adequados, permitindo-nos prosseguir para a análise fatorial. mPara identificar as dimensões foi utilizada a análise de componentes principais, sem qualquer rotação, obtendo-se três componentes. O valor obtido da variância explicada foi de 44,81%. Todos os itens apresentam uma carga fatorial aceitável, sem ultrapassar o limite sugestivo de eliminação por ser redundante, e os itens organizam-se, na sua generalidade nos fatores (subescalas) (Quadro 3), em que teoricamente seria expectável pertencerem (sendo as únicas exceções os itens número 4 e 19).

Os pesos fatoriais são superiores a 0,40 para todos os itens, com exceção do item 19. Globalmente a escala encontra-se organizada em 3 fatores, Impacto Invisível (item 6 a 19), Impacto Positivo (item 20 a 24) e Impacto da Responsabilidade (item 1 a 5), que explicam 44,81% da variância Optou-se por não realizar uma análise fatorial confirmatória por ser um instrumento construído a partir da experiência dos profissionais de uma equipa multidisciplinar, não tendo partido de um modelo concetual explicativo, nem de nenhum estudo prévio sobre instrumentos que sugerisse a dimensionalidade do instrumento. Para avaliar a validade externa convergente/discriminante foi analisada a relação entre as subescalas da EAICMC e as subescalas do CQOLC e HADS (Quadro 4).

Quadro 2 Correlação item-escala total corrigida para sobreposição (n = 84) 

Itens Total Impacto Positivo Impacto da Responsabilidade Impacto Invisível
Comecei a gerir mais responsabilidades com a doença da minha companheira 0,39 0,20 0,51 0,26
As tarefas de casa passaram a ser feitas por mim 0,21 0,02 0,47 0,09
Tive de assumir o papel da minha companheira com os nossos filhos 0,41 0,17 0,52 0,28
A doença da minha companheira afetou a minha vida profissional. 0,34 -0,08 0,56 0,32
Tive que deixar de trabalhar para acompanhar a minha companheira neste processo 0,37 0,14 0,46 0,31
Tive dificuldades financeiras durante o processo de doença da minha companheira 0,34 -0,05 0,32 0,37
Sinto que não reconhecem o impacto que teve a experiência do cancro da minha companheira sobre a minha vida 0,50 0,17 0,40 0,45
O cancro da minha companheira trouxe problemas de fertilidade 0,54 0,01 0,30 0,56
Já existiam problemas de fertilidade, que foram dificultados com o diagnóstico de cancro de mama 0,47 0,02 0,21 0,51
Preciso de ajuda para ter uma família devido aos problemas de fertilidade 0,46 0,14 0,34 0,42
Após o diagnóstico de cancro da mama houve diminuição do desejo sexual 0,47 0,02 0,29 0,53
Após o diagnóstico de cancro da mama houve diminuição na frequência de relações sexuais 0,42 -0,12 0,28 0,47
Após o diagnóstico de cancro da mama tive dificuldades em manter uma ereção 0,66 0,09 0,28 0,71
Após o diagnóstico de cancro da mama tive dificuldades em ter um orgasmo 0,64 0,07 0,20 0,73
Senti dificuldades em ter satisfação sexual 0,54 0,01 0,17 0,69
Senti menos atração sexual em resultado da doença/tratamento 0,44 -0,05 0,18 0,59
Senti-me incomodado com a imagem da minha companheira 0,35 0,05 0,14 0,39
Senti a minha companheira menos atraente fisicamente devido à doença e ao tratamento 0,36 0,02 0,24 0,40
Senti dificuldades em olhar para o corpo da minha companheira 0,22 0,22 0,04 0,18
Foco-me mais em coisas que são importantes 0,24 0,45 0,15 0,07
Fiz mudanças positivas na minha vida 0,10 0,48 0,07 -0,03
Cresci como pessoa 0,28 0,60 0,12 0,13
Percebo o quanto a vida é importante 0,04 0,50 -0,05 -0,06
O relacionamento com a minha companheira melhorou 0,00 0,33 0,07 -0,09

A análise dos dados revelou existir relação estatisticamente significativa entre as subescalas do instrumento com as subescalas da HADS e CQOLC. Contudo, apenas a subescala do impacto positivo não tem uma relação estatisticamente significativa com as subescalas das perturbações ligadas ao cuidado e implicações pessoais da CQOLC e CQOLC total, nem com as subescalas da HADS, tal como seria espectável.

A sensibilidade foi estudada através da análise das diferenças ou associação das pontuações obtidas na EAICMC em função das variáveis clínicas (procura de acompanhamento psicológico/psiquiátrico anterior). Não há diferenças estatisticamente significativas entre companheiros que procuraram acompanhamento psicológico/psiquiátrico e os que não procuraram este acompanhamento quanto às subescalas de Impacto Invisível (U = 150,500; p > 0,05) e Impacto Positivo (U = 410,500; p > 0,05), mas existem diferenças estatisticamente significativas (U = 152,500; p < 0,05) entre quem procurou e quem não procurou acompanhamento psicológico/psiquiátrico quanto à subescala de Impacto da Responsabilidade (M = 12,10; DP = 3,63/ M=8,48; DP = 3,71).

Quadro 3 Análise fatorial em componentes principais 

Itens Impacto Invisível Impacto Positivo Impacto da Responsabilidade
Comecei a gerir mais responsabilidades com a doença da minha companheira 0,364 0,299 0,444
As tarefas de casa passaram a ser feitas por mim 0,170 0,275 0,438
Tive de assumir o papel da minha companheira com os nossos filhos 0,379 0,293 0,424
A doença da minha companheira afetou a minha vida profissional. 0,444 -0,120 0,440
Tive que deixar de trabalhar para acompanhar a minha companheira neste processo 0,410 0,049 0,471
Tive dificuldades financeiras durante o processo de doença da minha companheira 0,501 -0,184 0,359
Sinto que não reconhecem o impacto que teve a experiência do cancro da minha companheira sobre a minha vida 0,558 0,145 0,285
O cancro da minha companheira trouxe problemas de fertilidade 0,657 -0,018 0,098
Já existiam problemas de fertilidade, que foram dificultados com o diagnóstico de cancro de mama 0,589 -0,099 0,032
Preciso de ajuda para ter uma família devido aos problemas de fertilidade 0,558 -0,093 0,360
Após o diagnóstico de cancro da mama houve diminuição do desejo sexual 0,587 0,071 -0,210
Após o diagnóstico de cancro da mama houve diminuição na frequência de relações sexuais 0,563 -0,050 -0,059
Após o diagnóstico de cancro da mama tive dificuldades em manter uma ereção 0,799 0,024 -0,158
Após o diagnóstico de cancro da mama tive dificuldades em ter um orgasmo 0,797 -0,007 -0,187
Senti dificuldades em ter satisfação sexual 0,746 -0,083 -0,387
Senti menos atração sexual em resultado da doença/tratamento 0,663 -0,217 -0,347
Senti-me incomodado com a imagem da minha companheira 0,447 0,004 -0,378
Senti a minha companheira menos atraente fisicamente devido à doença e ao tratamento 0,489 -0,038 -0,398
Senti dificuldades em olhar para o corpo da minha companheira 0,235 0,239 -0,506
Foco-me mais em coisas que são importantes 0,084 0,719 0,121
Fiz mudanças positivas na minha vida -0,037 0,690 -0,100
Cresci como pessoa 0,131 0,742 -0,127
Percebo o quanto a vida é importante -0,084 0,609 -0,301
O relacionamento com a minha companheira melhorou -0,098 0,431 -0,024

Quadro 4 Correlação com outros instrumentos - EAICMC 

Impacto Positivo Impacto da Responsabilidade Impacto Invisível
CQOLC sobrecarga emocional r = 0,24* r = 0,050** r = 0,39**
CQOLC perturbações ligadas ao cuidado r = 0,011 r = 0,437** r = 0,532**
CQOLC implicações pessoais do cuidado r = 0,187 r = 0,491** r = 0,561**
CQOLC adaptação positiva r = -0,433** r = -0,016 r = 0,062**
CQOLC total r = 0,082 r = 0,489** r = 0,892**
HADS Ansiedade r = 0,214 r = 0,496** r = 0,401**
HADS Depressão r = 0,121 r = 0,426** r = 0,536**

Nota. * p<0,05. ** p<0,01.

Discussão

O objetivo geral do presente estudo centrou-se na construção e estudo das qualidades psicométricas de uma escala de avaliação do impacto da doença nos companheiros de mulheres diagnosticadas com cancro da mama. A partir da revisão da literatura, da análise de instrumentos de avaliação e de entrevistas realizadas a profissionais de saúde foi construído um questionário constituído por 24 itens. Com o objetivo de testar a sensibilidade do instrumento, procedeu-se à análise descritiva dos scores obtidos nos itens. A análise descritiva mostrou que, para a escala globalmente considerada, os valores mínimos foram 0 e os valores máximos foram 4, à exceção dos itens 13, 14, 16, 17, 18 e 19 com pontuações máximas entre 2 e 3. Isto sugere que a escala revela ser globalmente sensível, porém os participantes parecem apresentar dificuldades em assumir aspetos do impacto invisível, nomeadamente, no que toca à sexualidade e imagem corporal da sua esposa. A experiência clínica sugere que pode haver dificuldade em reconhecer os impactos a nível da sexualidade e a nível da aceitação de um novo corpo da sua mulher, levando estes companheiros a acreditar que devem aprovar as transformações que ocorrem durante o processo da doença.

Os valores das médias e medianas para a escala total e para as três subescalas mostraram que são muito próximas, o que é revelador de uma distribuição simétrica, abonatória da sensibilidade do instrumento. Os resultados encontrados sugerem que o instrumento apresenta uma fidelidade boa, com um coeficiente de alfa de Cronbach acima do recomendado, de acordo com os critérios propostos por Pestana e Gageiro (2008) e Pais-Ribeiro (2010). Em relação aos coeficientes obtidos nas 3 dimensões, verifica-se o coeficiente de Impacto Invisível é bom e o Impacto da Responsabilidade e Impacto Positivo são aceitáveis, de acordo com os valores propostos por Pestana e Gageiro (2008). A análise da correlação corrigida para sobreposição entre os itens e as subescalas dos instrumentos revela que esta é sempre mais elevada entre os itens e a subescala a que pertence com exceção do item número 19, o que confirma a existência de uma boa validade convergente discriminante. Para avaliar a validade externa convergente/discriminante foi analisada a relação das subescalas da EAICMC com as subescalas do CQOLC e HADS, que revelou existir relação estatisticamente significativa entre as subescalas do instrumento com as subescalas do CQOLC e HADS. Apenas a subescala de Impacto Positivo não tem relação estatisticamente significativa com as subescalas Perturbação Ligadas ao Cuidado, Implicações Pessoais e CQOLC Total, nem com as subescalas da HADS. Os companheiros que procuraram acompanhamento psicológico/psiquiátrico não se distinguem dos restantes quanto às subescalas de Impacto Invisível e Impacto Positivo, no entanto apresentam maior Impacto da Responsabilidade. De facto, a experiência clínica demonstra que os companheiros que sentem mais impacto nas responsabilidades que surgem durante o processo de diagnóstico e tratamento de cancro da mama das suas companheiras, optam por procurar acompanhamento psicológico para conseguir ultrapassar as dificuldades sentidas.

No presente estudo, a análise fatorial exploratória sugere que a EAICMC organiza-se em 3 componentes, que explicam menos de 50% da variância. Sugere-se a elaboração de estudos futuros com uma amostra de maior dimensão, incluindo uma análise fatorial confirmatória. A correlação item-total e item subescalas suporta a validade interna convergente/discriminante do instrumento, assim como a correlação deste com a HADS e CQOLC. Os participantes, na administração presencial, demoraram cerca de 15 minutos, pelo que o instrumento demonstrou ser breve, não demonstrando sobrecarga (burden), para além de que com 24 itens permite avaliar a gravidade, extensão e prevalência dos impactos do cancro da mama nos companheiros das mulheres diagnosticadas com a doença (economia), tendo em consideração as diversas dimensões. O instrumento foi ainda bem recebido pelos participantes, sem desconfiança, o que de acordo com Pais-Ribeiro (2010) significa que apresenta boa aceitabilidade.

A definição dos itens a integrar no questionário foi realizada a partir de pesquisa bibliográfica, análise de instrumentos utilizados para avaliação da população alvo e entrevistas realizadas a profissionais de saúde que assumem o papel de informantes chave no serviço em que trabalham. Não houve possibilidade de realização de entrevistas iniciais com os companheiros dados os constrangimentos pessoais destes e organizacionais. No entanto, será importante que, em estudos futuros, essas entrevistas possam ser realizadas com vista a enriquecer as questões colocadas no instrumento. Para além disso, o estudo realizado apresenta uma amostra de reduzida dimensão, podendo afirmar que seria pertinente alargar o estudo a outros centros hospitalares para perceber se estes domínios são afetados ou se há novos domínios importantes a integrar.

Desta forma, o instrumento apresenta boas qualidades psicométricas e clinimétricas, demonstrando ser um bom instrumento de triagem para avaliação e intervenção nesta população e que poderá ser aplicado em contexto clínico.

Contribuição dos autores

Diana Marinho: Concetualização; Análise formal; Investigação; Redação do projeto original.

Isabel Silva: Conceptualização, Análise Formal; Investigação; Metodologia; Validação; Redação - Revisão e Edição.

Raquel Guimarães: Conceptualização; Investigação.

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Recebido: 05 de Novembro de 2023; Aceito: 19 de Dezembro de 2023

Autor de Correspondência: Diana Marinho (38635@ufp.edu.pt)

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