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Revista Portuguesa de Ciências do Desporto
versão impressa ISSN 1645-0523
Rev. Port. Cien. Desp. v.5 n.3 Porto set. 2005
Editorial
Educação cívica, liberdade e humanidade
Jorge Olímpio Bento
Creio ser consensual a afirmação da necessidade de reinventar tanto a esfera pública (a do Estado em particular e a da sociedade em geral) como a privada (esta a cargo da consciência e da actuação de cada um de nós). São muitos os pretextos para esta formulação e são igualmente diversas as formas e perspectivas de abordagem do assunto. Por isso as reflexões, que se seguem, não reivindicam exclusividade e abrangência; querem ser apenas um contributo.
1. Da educação cívica
O enorme descrédito que atinge hoje o regime democrático impõe que se erija em questão central a educação cívica, entendida esta no sentido de preparação para a cidadania, para (con)viver de maneira política, social e moralmente responsável.
Em primeiro lugar ela deverá prevenir a crescente e letal influência exercida pela ignorância e pelo populismo, cujo predomínio constitui o mais grave problema da democracia. Por isso a educação cívica assume-se como uma competência para a comunicação argumentada. Para pôr cobro à incapacidade para expressar exigências ou para compreender as que são formuladas pelos outros, para argumentar a favor das posições próprias e para refutar os argumentos e ardis alheios, para ultrapassar a carência de compreensão dos direitos e deveres impostos pela vida em sociedade e para contrariar a acção retrógrada e patológica de tribos, lobies e corporações de interesses ilegítimos. São os cidadãos ignorantes, todos com direito a opinião e a voto, quem sustenta os populistas e demagogos que prometem o paraíso e o bacalhau a pataco e arranjam bodes expiatórios para todas as crises e frustrações.
Em segundo lugar a educação cívica leva em conta a máxima de Aristóteles, de que ninguém pode chegar a governar sem ter sido antes governado. Isto é, todos temos que adquirir o sentido da equidade e responsabilidade, aprender a obedecer a leis e a praticar os valores partilhados. Até porque a trave mestra da democracia consiste em que nela não haja especialistas em mandar e especialistas em obedecer, mas sim em que todos os cidadãos sejam aptos para desempenhar os dois papéis. Por isso será cívica a educação que optimize os cidadãos, que os forme como príncipes inter pares, inculcando neles tanto a condição de mando como a de obediência, tanto a de objecto das leis como a de sujeito delas. Sendo os meios que justificam os fins, a democracia só tem justificação se for servida por este tipo de cidadãos.
Para tanto a educação cívica deve cuidar de contribuir para a realização do direito fundamental de qualquer pessoa, qual seja o de ser dotada dos meios intelectuais necessários ao exercício da deliberação, isto é, da liberdade. Ora isto assenta na formação de caracteres humanos capazes de persuadir e de se abrir à persuasão, de perceber e apreciar a força das razões e recusar a razão da força, de participar em projectos e celebrar acordos e transacções, de ser racional e razoável a reconhecer o mesmo estatuto aos outros. Trata-se, enfim, de formar um cidadão habilitado a confirmar aquilo que ontologicamente é: um ser de pensamento, de palavra, comunicação e acção.
Isto inclui a educação para a tolerância. Não para aceitar e valorar tudo por igual, mas para respeitar os caminhos plurais que segue o humano, balizados pelo marco da declaração dos direitos humanos. Está, pois, posta de lado a tolerância perante aquilo que sabota a cultura humanista e democrática ou perante todas as opiniões e posições. O direito à diferença não pode ser convertido em dever para os outros, ou seja, não é curial impor-lhes como norma desvios tolerados mas não justificados. Nem o fanatismo nem o relativismo podem merecer uma atitude convivencial. O primeiro porque tem subjacente a rejeição do diferente, com medo de ser contagiado e desmentido por ele. (Nietzsche definiu-o, de modo luminoso e certeiro, como sendo a única força de vontade de que são capazes os fracos). O segundo porque se esfalfa a tentar justificar o postulado falso, logo injustificável, de que todas as culturas merecem igual apreço. É certo que se pode aprender alguma coisa com cada uma, mas não são todas igualmente compatíveis com os valores, princípios e direitos humanos e universais. De resto, o alvo central da educação é precisamente o de capacitar os cidadãos a valorar e classificar, a preferir e optar, a escolher e excluir o que exalta ou amesquinha a nossa humanidade.
2. Liberdade e humanidade
Estamos condenados à liberdade, sentenciou Sartre, o que nos obriga a uma constante interrogação sobre o uso que fazemos dela, porque não somos livres de ser livres. Nós e os outros, eu e tu.
Com efeito o que nos define como humanos não são os instintos ou o património genético; é sim, diz Fernando Savater (in: A coragem de escolher), a nossa capacidade de decidir e inventar acções que transformem a realidade (...) e a nós mesmos. Essa disposição, chamada liberdade, é a nossa condenação e também o fundamento do que consideramos a nossa dignidade racional.
Por outras palavras, a liberdade isto é, a possibilidade, competência e coragem de escolher entre o bom e o mau, o melhor e o pior, o belo e o medonho, a verdade e o erro, a humanidade e a inumanidade, a recta razão e a falta dela, a justiça e a iniquidade, a honra e a desonra, o prazer e o sofrimento, a democracia e a tirania, a cidadania e a fuga aos deveres cívicos atravessa a nossa existência, porquanto o problema da escolha é o grande problema da vida inteira. Pelo facto de nascermos humanos estamos determinados pela tarefa interminável de ter que escolher constantemente os meios juntamente com os fins. Sabendo avisa Erich Fromm que não devemos confiar em que alguém nos salve, mas conhecer bem o facto de que as escolhas erradas nos tornam incapazes de nos salvarmos.
Escolher hoje a humanidade diz Fernando Savater é optar por um projecto de autolimitação no que se refere ao que podemos fazer, de simpatia solidária perante o sofrimento dos semelhantes e de respeito perante a dimensão não manejável que o humano deve conservar para o humano.
Juntemo-nos a Savater e façamos nossa a sua proclamação: Que o humano reconheça o humano, em parte por natureza e em parte por fraternidade simbólica ( ), que o humano procure a humanidade sob a pluralidade das suas manifestações, que os homens cresçam e vivam entre humanos, sempre valiosos uns para os outros
Assumamos a nossa quota-parte neste empreendimento! Com esse fim renovemos o compromisso com o humano e contribuamos para que o desporto seja cada vez mais um produto da inteligência e do labor cognitivo, científico e racional e, por consequência, uma das obras-primas que celebram a liberdade humana!