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Cadernos de Estudos Africanos

versão impressa ISSN 1645-3794

Cadernos de Estudos Africanos  no.24 Lisboa jul./dez. 2012

 

Transnacionalidade e História de Vida: Uma mulher hindu de regresso a Maputo

Transnationality and life history: A Hindu woman back to Maputo

 

Rita Ávila Cachado*

*Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-IUL) Lisboa, Portugal

ritacachado@gmail.com

 

Resumo

A história contemporânea do lado oriental do continente africano está associada à história do lado ocidental do subcontinente indiano, através do comércio e da mobilidade social, num cruzamento geográfico, histórico e cultural.

Neste artigo, que segue uma tendência dos estudos transnacionais para a incorporação das histórias de vida, conta-se a história de uma mulher hindu que emigrou da Índia para Moçambique, de Moçambique para Portugal, de Portugal para o Reino Unido. Doze anos depois de ter deixado Moçambique, M. realizou uma viagem a Maputo onde reviu amigos e familiares. Se em Portugal e no Reino Unido o eixo africano da diáspora hindu-gujarati portuguesa parecia estar esquecido, a revisitação dos espaços e contextos sociais anteriormente vividos fez salientá-lo de novo.

Palavras-chave: transnacionalidade, história de vida, memória, Moçambique, hindus-gujaratis

 

Abstract

Contemporary history of East Africa is linked with the history of West South Asia through trade and through social mobility, in a geographic, historical and cultural linkage.

This paper follows a trend in transnational studies to incorporate life histories in order to thicken our knowledge. It recounts the story of a Hindu woman that migrated from India to Mozambique, from Mozambique to Portugal and from there to the United Kingdom. Twelve years after leaving Mozambique, M. went back to Maputo where she visited old friends and relatives. While M. was living in Portugal and in the UK, the African axis of the Portuguese Hindu-Gujarati diaspora seemed to have been forgotten; however, when she revisited places and social contexts where she had lived before, this axis was revived with old and new meanings.

Keywords: transnationality, life history, memory, Mozambique, Gujarati Hindus

 

Conheci M.[1] em 2001 na Quinta da Vitória, bairro de construção informal localizado perto do aeroporto internacional de Lisboa. Tinha emigrado recentemente de Moçambique para Portugal, em virtude das últimas cheias em Maputo, poucos meses depois de uma das suas filhas ter vindo também para Portugal, para o mesmo bairro. Outra filha, a mais velha, já vivia na Quinta da Vitória desde 1992, ano em que casou. M. é de origem indiana, mas todos os que travam conhecimento com ela notam os seus traços africanos. É muito dedicada à religião, e muitas vezes assiste o mahraj (grosso modo, oficiante de rituais)[2] em diversos tipos de rituais. Conheci-a no decurso da minha pesquisa sobre o período final do colonialismo português em Diu.

Ao fim de vários anos de contacto permanente com M., começou a parecer-me cada vez mais “urgente” escrever a sua história de vida. M. é daquelas pessoas a quem os antropólogos costumam chamar “informantes privilegiados”. Além de me fornecer constantes informações sobre os contextos e temáticas que estudei junto de várias famílias hindus em Portugal e no Reino Unido, colaborava, muitas vezes sem se aperceber, na minha aprendizagem da etnografia. Ajudou-me a colocar em perspetiva hipóteses que pareciam ajustadas de início, mas que com as suas histórias e ensinamentos se foram complicando e me levaram a repensar as formas como procurava dar sentido aos dados etnográficos. A mistura de trabalho e amizade complexificou aquela que inicialmente via como uma pesquisa de curta duração, transformando-a num conjunto de trabalhos sobre vários aspetos das comunidades hindus-gujaratis. O conjunto dos dados para dar a conhecer o percurso de vida de M. parte sobretudo de entrevistas realizadas com o fim de obter informações sobre o seu trajeto pessoal, e também de anotações no diário de campo que acompanharam a minha relação com ela nos últimos onze anos.

O pai de M. era tradutor de português-gujarate nas visitas dos administradores coloniais às aldeias de Diu (e não só) e foi autor de um precioso dicionário de transliteração entre as duas línguas para gujaratis que precisassem de saber português. M. nasceu em 1945 em Goghla, uma aldeia que pertencia ao território de Diu. Tem quatro irmãos. Os pais emigraram para Moçambique muito cedo e ela foi estudar para um colégio interno fora de Diu, ficando ao cuidado de uma tia quando regressava a Goghla de férias. Emigrou aos treze anos para Moçambique, tendo ali vivido a transição de Goa, Damão e Diu para a União Indiana, em dezembro de 1961.

Casou com quase trinta anos, em 1974, depois de alguns pedidos de casamento mal sucedidos. Esta situação salienta desde logo uma exceção à regra entre as raparigas indianas, que casavam cedo, em uniões preferencialmente pensadas pelos pais de ambos os noivos. Nesta medida, M. desafia duplamente a literatura clássica sobre as tendências familiares dos hindus em diáspora e, no seu mundo, desafia os pais, que a veem primeiro namorar e depois casar sem a sua autorização. Um relacionamento escorreito entre M. e os pais ficou desde logo hipotecado. O marido não tinha trabalho quando casaram. Tinha servido o exército português na guerra colonial. Antes e depois do casamento, M. trabalhou numa pequena loja de alfaiataria no centro de Maputo, a alfaiataria Bindu, localizada na Avenida Ho Chi Minh, numa zona de concentração residencial hindu. A loja é hoje uma sapataria gerida por um chinês. M. e o marido tiveram seis filhos, dos quais três morreram ainda bebés (dois meninos e uma menina), ficando com três filhas. M. teve os filhos todos “em escadinha”, como costuma dizer, e trabalhou sempre até ao último dia de gravidez, “custava muito”. Em 1974-1975 as lojas ficaram muito baratas, fáceis de vender e comprar e “os africanos tomaram conta de tudo”, disse, resumindo assim o processo de africanização.

As condições de vida começaram a piorar para os indianos. O marido foi colocado em Salamanga como padre (palavras suas) e foram viver para lá. Salamanga fica a uma hora de caminho depois de se passar o rio de barco para Catembe, a sul de Maputo. Desde o início do século XX que muitos hindus vão lá prestar devoção a um guru que apareceu no local vindo numa mala, no rio. Dizem diversos relatos que Matma Bapa era um “santo” que andava à procura de um sítio para ficar. Aportou em várias zonas costeiras, de norte a sul do país, mas gostou mais de Salamanga. Assim como apareceu, desapareceu, mas deixou muita devoção pelo caminho. Hoje em dia o templo de Salamanga é lugar de peregrinação para os hindus residentes em Moçambique. É “como Fátima” ouvi muitas vezes, pois aquilo que se pede ao “santo” será cumprido. O templo de Ram foi erigido em 1906. Para entrar no nicho onde está o altar de Matma Bapa há que baixar a cabeça. A representação do “santo” recebe dos devotos incenso, flores e cocos, tal como as demais divindades, mas a oferenda preferida são panos brancos de algodão para vesti-lo honradamente, como a um brâmane.

M. aprendeu a executar todos os rituais com o marido. Mais tarde, em Portugal e em Leicester, veio a ser respeitada pelos seus conhecimentos aprofundados em vários domínios da religião, dos preceitos rituais à cosmogonia, passando pela astrologia hindu. No início dos anos noventa, o marido morreu de doença prolongada e as condições de vida pioraram. As filhas tiveram de deixar os estudos relativamente cedo e todas começaram a trabalhar.

Em 1992 a filha mais velha casou com um homem hindu-gujarati que tinha emigrado para Portugal no início dos anos oitenta, no contexto das migrações mais intensas para Portugal, concomitante com o agravamento das condições de vida de M. e das filhas. Todas mantiveram passaporte português. Em Maputo, M. deu aulas de gujarate e de inglês aos alunos da comunidade hindu da cidade. No início dos anos 2000, a filha mais nova veio para Lisboa viver com a irmã, e cerca de um ano mais tarde, a outra irmã e a mãe vieram também para Lisboa. Mudaram de casa várias vezes, da Portela para Santo António dos Cavaleiros e de novo para a Portela. Na Portela, a família vivia numa habitação de construção informal alugada a outro agregado familiar que aguardava realojamento em habitação social. A instabilidade desta situação levou-as a mudar de casa várias vezes dentro do bairro. Durante dois anos viveram ainda em Santo António dos Cavaleiros, em apartamentos alugados, mas depois regressaram à Portela, a outra casa alugada a uma família por realojar.

Uma das irmãs casou no início de 2003 e teve uma filha. A outra tem também uma filha, mas sem casamento, o que preocupa a mãe. Em 2004, uma das irmãs foi viver para o Reino Unido, na cidade de Leicester, e mais tarde outra irmã e a mãe juntaram-se-lhe. Leicester tem um longo historial de presença sul-asiática. Muitas famílias hindus-gujaratis que emigraram de Portugal para o Reino Unido no início dos anos 2000 escolheram Leicester para viver. Outras já viviam em Wembley e Southall, nos arredores de Londres. Reading é outra cidade cada vez mais falada entre a população. Mas em meados dos anos 2000, Leicester assistiu a um acréscimo rápido de famílias vindas da Portela e de Santo António dos Cavaleiros. Para os que vieram da Portela, a razão prendeu-se com o facto de se sentirem cansados de esperar pelo realojamento ou por outra solução habitacional. A oferta de emprego e a sedimentação da comunidade religiosa em Leicester contribuíram em muito para darem esse passo. Foram estes os fatores que conduziram à terceira migração de M. e das duas filhas mais novas.

Ao chegar a Leicester, foi diagnosticado a M. cancro da mama. A doença deixou-a muito em baixo, provocando sentimentos de incerteza perante as opções de vida das filhas e dela própria, e levando-a a acelerar o cumprimento de desejos pessoais e familiares, de forma a poder “ir embora” descansada. Depois da operação e dos tratamentos, M. foi recuperando aos poucos a saúde e a vontade de viver, começando também a insistir no desejo de passar a velhice numa instituição religiosa “para não dar trabalho” à família.

Ao nível das condições de vida gerais em Leicester, a melhoria viria finalmente a verificar-se, mas no início elas eram piores do que em Lisboa, uma vez que tinham de partilhar um quarto que era alugado a uma família que por sua vez estava a alugar uma casa, verificando-se uma situação de sobrelotação habitacional. Deste modo, em prol do prestígio simbólico que o Reino Unido detém no contexto da diáspora hindu-gujarati, M. e as duas filhas mais novas sujeitaram-se a condições de vida iniciais semelhantes às que tinham encontrado nos países onde previamente viveram, menos valorizados pela diáspora.

Apesar das dificuldades iniciais vividas no Reino Unido, a verdade é que a oferta de emprego é melhor e mais diversificada; o acesso à habitação promovida pelo Estado tem listas de espera mas esta não ultrapassa um ano; para quem pretenda alugar a senhorios privados, a oferta é igualmente grande; finalmente, a oferta educativa e os transportes são eficazes. As filhas encontraram rapidamente emprego, embora a situação habitacional tenha tardado um pouco mais a estabilizar. Uma das filhas viu-se coagida a viver um período de cerca de seis meses numa casa partilhada com outras famílias que aguardavam uma casa de habitação municipal com rendas reduzidas e possibilidade de acesso a subsídios. A outra filha e a mãe viviam numa casa alugada a um senhorio. Desde a chegada ao Reino Unido até há cerca de três anos, M. hesitou entre viver com uma das filhas ou sozinha, uma vez que tinha esse direito social. Mas o prolongamento da residência em Leicester ensinou-lhe que a forte concentração residencial de famílias hindus na cidade, e especificamente no seu bairro, não corresponde diretamente a uma vida social intensa no seio da sua comunidade. É certo que a elevada concentração de templos na cidade e o grande número de habitantes hindus contribui em muito para o bem-estar social e cultural das famílias gujaratis residentes, mas a convivialidade não se estabelece no mesmo grau que em Lisboa ou Maputo. Como é repetido entre a população hindu proveniente de Portugal a residir no Reino Unido, “aqui ninguém tem tempo”. Assim, M. optou por viver com uma das filhas e seu marido. Desta forma, usufrui de companhia e está disponível para acompanhar as netas sempre que necessário.

Panos de fundo transnacionais

O contexto desta história de vida não pode ser entendido sem dar conta das redes transnacionais hindus e, mais concretamente, dos hindus que passaram por Moçambique e Portugal antes de emigrarem para o Reino Unido. A transnacionalidade constituiu-se nas últimas décadas como um conceito precioso na literatura sobre migrações. Inscrito por Basch, Schiller e Blanc em 1994, e desenvolvido criticamente por Nancy Foner (1997), desde então tem contribuído para descrever e analisar uma grande parte das populações migrantes. A perspetiva mais comum acentua as vantagens adaptativas nos países de destino relativamente às necessidades de melhoria das condições de vida nos países de origem como fator central na decisão de emigrar. Mas a tónica da transnacionalidade recai sobre os grupos que, além da instalação nos países de destino, mantêm redes ativas nos contextos nacionais de origem. Nos últimos vinte anos o conceito ganhou lugar cativo nos estudos de migrações, e as formas de ser sujeito transnacional, bem como os contornos daquilo a que se pode chamar uma população transnacional, foram sendo objeto de crescente complexidade analítica e conceptual.

Um dos debates mais ricos acerca da transnacionalidade diz respeito aos tipos de pertença e às variantes nas redes estabelecidas. A escala urbana ganha particular relevo neste debate, uma vez que os sujeitos transnacionais, além de se moverem entre países, vivem e movem-se entre cidades com ofertas cada vez mais específicas (Schiller & Çaglar, 2009, p. 178), desde os tipos de comércio às políticas urbanas ou à oferta local educativa, habitacional, cultural e religiosa. Schiller e Çaglar alertam para o facto de os estudos de migrações e transnacionalidade raramente equacionarem os atores sociais em causa como cidadãos residentes em cidades; nesse sentido, as autoras promovem um debate que acrescenta finalmente o referente urbano ao referente nacional, inscrevendo-o na equação da transnacionalidade (Schiller & Çaglar, 2011).

As abordagens antropológicas das populações sul-asiáticas em diáspora contribuem para esta literatura de diferentes maneiras. Existe já uma vasta produção no contexto anglo-saxónico, que retrata as migrações sul-asiáticas para os países do leste africano, anteriormente colónias britânicas, e posteriormente para a antiga metrópole. Esses estudos, embora se refiram sobretudo a processos de adaptação à sociedade de acolhimento (e.g. Ballard, 1994), retratam também os contextos urbanos onde as populações imigradas residem[3]. Como oportunamente refere Karen Olwig, as migrações dizem mais acerca do papel que os lugares, os destinos e os percursos ocupam na vida das pessoas do que acerca de processos de integração (Olwig, 2007, p. 21). Entre os sul-asiáticos, os hindus-gujaratis ocupam um lugar central nos estudos de diáspora e de transnacionalidade (Knott, 2000; Rutten & Patel, 2003; Vertovec & Wessendorf, 2005, entre outros), tanto devido à longevidade das suas migrações, como aos trajetos plurais entre o subcontinente indiano, a África Oriental e a Europa.

A grande maioria dos hindus residentes em Portugal apresenta percursos semelhantes aos que encontramos no contexto pós-colonial britânico, muito embora exibam particularidades decorrentes do contexto colonial português. A literatura sobre o contexto português é cada vez mais vasta, apesar de a sua inscrição na literatura internacional se ter vindo a verificar lentamente. Este corpo de trabalhos foi iniciado em 1990 por Susana Pereira Bastos, com um estudo encomendado pelo Laboratório Nacional de Engenharia Civil sobre o então bairro de construção informal Quinta da Holandesa (Bastos, 1990). Aí, Bastos descreve pela primeira vez a presença de hindus em Portugal, destacando algumas características no âmbito das práticas religiosas, mas analisando sobretudo a família e a casa, uma vez que o estudo procurava responder às necessidades de conhecimento de populações que iriam ser realojadas em breve. Bastos continuou a produzir a mais vasta obra sobre hindus em Portugal e em Moçambique, não esquecendo os outros polos da diáspora, ao longo dos últimos vinte anos. O trabalho de Jorge Malheiros (1996) retrata a instalação de populações de origem indiana na Área Metropolitana de Lisboa, registando pela primeira vez dados estatísticos sobre a população. Na década de 2000, a estes juntaram-se outros autores que vêm contribuindo igualmente para detalhar o conhecimento sobre as populações hindus em Portugal[4].

Muitas famílias hindus-gujaratis residentes em Portugal emigraram inicialmente de Diu (Gujarate, Índia) para a África Oriental ao longo da primeira metade do século XX. Mas a presença de indianos em Moçambique inscreve-se não só no contexto do colonialismo português na Índia (Goa, Damão e Diu) como também no contexto do colonialismo britânico (Leite, 1996), nomeadamente de cidades como Porbandar e Rajkot, só para mencionar as origens mais comuns, e é a partir do Gujarate britânico que partem maiores contingentes para todo o leste africano, Moçambique inclusivamente. Depois de 1975, quando da independência de Moçambique, o processo de africanização dos serviços e o agravamento da guerra civil provocaram, no médio prazo, uma nova corrente migratória. Uma parte das famílias voltou para a Índia, mas milhares escolheram a ex-metrópole para viver. Esta migração deu-se sobretudo no início dos anos 1980, havendo registos da chegada de famílias hindus a Portugal desde 1976. As famílias foram viver para áreas residenciais e seguiram padrões específicos no que toca ao acesso à habitação, tal como aconteceu no Reino Unido depois das independências dos países da África Oriental.

Em termos resumidos, distinguem-se três padrões de residencialidade inicial na Área Metropolitana de Lisboa. Por um lado, há os que foram viver para bairros de construção informal, nomeadamente o já referido bairro Quinta da Holandesa, e também o bairro Quinta da Vitória, na Portela de Sacavém. Por outro lado, regista-se uma grande concentração residencial em Santo António dos Cavaleiros (Loures, a norte de Lisboa), uma freguesia que oferecia, na zona suburbana contígua à capital, casas a baixo custo. Finalmente, existe um terceiro grupo de hindus-gujaratis que não obedece à concentração residencial, estando antes disperso por toda a Área Metropolitana de Lisboa. Podemos num primeiro relance diferenciar estes grupos quanto ao nível económico, ou quanto à pertença de casta, mas os estudos de pormenor põem em causa estas distinções generalizantes (Lourenço, 2009; Cachado, 2012).

Para lá da contextualização dos percursos migratórios dos hindus-gujaratis nas últimas décadas, importa referir que a associação entre a África Oriental e o subcontinente indiano é muito mais antiga do que este contexto migratório múltiplo e que vários estudos o têm referido e analisado. Desde pelo menos Kuper (1960), que estudou a população hindu em Natal, que as migrações e interações comerciais e culturais no Índico vêm sendo objeto de análise[5]. No âmbito da produção académica portuguesa, o contexto mais estudado tem sido o das relações comerciais. O estudo de Ávila e Alves (1993) analisa a integração dos comerciantes indianos em Portugal. Joana Pereira Leite, no campo da história económica, analisa as migrações do subcontinente indiano para Moçambique no quadro das relações comerciais que tiveram lugar no final do século XIX e início do século XX em toda a costa leste africana, com o Raj britânico a dirigir uma elevada mobilidade (Leite, 1996). Nuno Dias (2009) relativiza uma parte das conclusões retiradas pela produção académica anterior, sobretudo as dos trabalhos que analisam a migração a par das relações económicas. Tal como os demais autores, encontrou dificuldades estatísticas na análise das sucessivas migrações, mas através dessa lacuna na informação disponível verificou que não poderia tecer conclusões que permitissem apelidar as populações em causa como migrantes económicos tout court, ou especialmente propensos à mobilidade transnacional (Dias, 2009, p. 268).

As relações comerciais desenvolvidas no secular cruzamento do Índico fazem no entanto salientar outras dimensões, entre as quais se destacam os cruzamentos étnicos. Se os sinais exteriores de “africanidade” são evidentes numa parte das populações de origem asiática presentes no continente africano, eles são contudo raramente equacionados na literatura. Já no que toca à presença africana na Índia, apesar de escassamente analisada, conta com contributos importantes, como os de Edward Alpers (2000) e Beheroze Shroff (2008). Os autores referem a invisibilidade da presença de africanos na Ásia do Sul na literatura e analisam-na, embora não tanto as posteriores deslocações, de novo para África, depois para a Europa, no contexto da diáspora sul-asiática. Importa notar que estes cruzamentos étnicos não se fazem apenas num sentido. A longevidade das relações entre os dois lados do Índico conduziu a situações variadas, entre as quais a emigração da Índia para o leste africano de sul-asiáticos de ascendência africana, seguindo afinal a tendência diaspórica. Ou seja, assim como muitos africanos emigraram ao longo dos séculos para a Índia, e aí se cruzaram, as migrações da costa ocidental da Índia para a costa oriental africana refletiram necessariamente esses cruzamentos. Em diversos romances, V. S. Naipaul (e.g. 1979) retrata esta mistura e seus contornos de interação cultural. Também Marta Jardim observa o suposto racismo inerente ao hinduísmo, pondo-o em causa, trazendo precisamente para análise os contextos familiares hindus em Moçambique (2006, pp. 96-98). Mas o interesse da literatura académica pelas populações mistas, de origem familiar africana, com naturalidade indiana e emigrando no contexto da diáspora para o leste africano, é ainda limitado face à visibilidade da presença africana na Índia em geral.

Uma das populações mais focadas na literatura dedicada à presença africana na Índia são os sidis, uma casta de pescadores de origem africana, presentes na costa ocidental do subcontinente indiano e que se encontram também em Diu, embora não constituam a única população de origem africana na Índia. Entrando brevemente no trabalho de campo etnográfico, importa aqui referir que a expressão “mistos” é utilizada por famílias onde a presença de ambos elementos – africano e asiático – é assumida sem qualquer complexidade identitária. Ao contrário, aqueles para quem a presença de traços africanos na família provoca incómodos, tendem a não utilizar a expressão “mistos”, nem qualquer outra, porque não é assumida (não propriamente ocultada mas apenas não assumida/presente). Existem assim outras castas de pescadores e de estivadores com longo historial de cruzamento do Índico. No caso em apreço neste artigo, estamos perante uma família karva. No entanto, não trazemos para este artigo um debate sobre a alteração de estatutos de casta e das próprias castas em contexto de diáspora. O que pode ser interessante referir é que a família em causa refere-se aos karva como uma casta de navegadores, reivindicando um estatuto diferente do de pescadores ou de estivadores.

Transnacionalidade e história de vida

Uma das formas mais eficazes de conhecer os meandros da diáspora hindu-gujarati é através das histórias de vida singulares ou familiares, já que as famílias transnacionais têm laços nos vários polos da diáspora. As sucessivas migrações decorrem, para além do clássico factor da vontade de melhorar as condições de vida, de situações específicas nos países de onde os emigrantes partem. A história recente do cruzamento do Índico e da mobilidade transnacional múltipla decorrente é composta por um conjunto de episódios nas vidas das famílias que saíram da Índia para África e de lá para as ex-metrópoles, episódios esses que correspondem a momentos de tensão política ou social nos contextos nacionais onde elas viveram.

Estas famílias podem ser apelidadas de transnacionais não só pelos trajetos e pelas pertenças entre vários países, mas também porque decorreram grandes transformações ao longo das suas vidas, como é o caso da passagem de regimes coloniais para pós-coloniais. Ou seja, viveram processos de independência, com uma parte da família num país e outra parte noutro, situações que acarretam um conjunto de mudanças, desde a ambiguidade da nacionalidade dos que, como os de origem sul-asiática, não são nem colonos das metrópoles nem autóctones dos países recém tornados independentes, até à instabilidade política dos países recém formados, por vezes em guerra, como foi o caso de Moçambique. No curto a médio prazo após as independências, muitas famílias optaram por viver nas ex-metrópoles, onde encontraram condições de vida melhores. No caso dos que emigraram para Portugal nos anos 1980, a decisão de voltar a emigrar chegou no final dos anos 1990. Muitos seguiram a tendência alargada da diáspora hindu-gujarati para o Reino Unido. Como já aflorado anteriormente, as motivações para esta nova vaga migratória passam pelas redes familiares estabelecidas em várias cidades britânicas, pelo poder simbólico de viver no Reino Unido baseado na sedimentação das comunidades religiosas (Bastos, 2005), pela qualidade do ensino superior, e finalmente pelas vantagens sociais (notavelmente superiores às do sistema social português).

A opção metodológica pelas histórias de vida familiares para melhor contar estes processos complexos de transnacionalidade não é nova, mas não é muito comum. Destacaria aqui os trabalhos de Gijbert Oonk (2009) e de Karen Olwig (2007). Estes autores têm-se dedicado ao estudo das diásporas através das histórias de vida. Oonk tem estudado a diáspora sul-asiática (Oonk, 2007), com particular destaque para os percursos prolongados na costa leste africana. Recentemente publicou um livro ilustrado sobre a história de uma família de origem indiana, com um percurso estável enquanto comerciantes e com grande influência económica sobre muitas outras famílias sul-asiáticas no leste africano. Olwig, por seu lado, trabalha com famílias caribenhas que migraram várias vezes e acompanha sobretudo três famílias nos seus percursos. Na sua abordagem, salienta que as relações familiares desempenham um papel central nas redes migratórias (Olwig, 2007, p. 12), mais do que esperado tendo em conta os percursos individuais de mobilidade social ascendente dos migrantes. Mas além das famílias, a autora destaca a importância dos lugares de instalação, temporária ou permanente, onde as aldeias e cidades jogam papéis mais decisivos do que os países (Olwig, 2007, p. 15). Nesse sentido, Olwig está próxima de Schiller e Çaglar (2009) na inclusão dos referentes urbanos na equação da transnacionalidade, deixando os processos identitários relacionados com os países no plano mais conjuntural. E as histórias de vida surgem como enfoque ideal para análises detalhadas sem perder de vista os panos de fundo nacionais. Através de uma história de vida e da viagem de regresso ao país onde a nossa protagonista viveu mais anos, contamos contribuir para uma literatura renovada sobre as migrações transnacionais. Neste artigo seguimos a proposta metodológica dos autores acima referidos, através de uma história de vida familiar partindo, neste caso, de um sujeito. Assim sendo, importa determo-nos brevemente nas vantagens e nuances desta metodologia.

As histórias de vida em geral e as familiares em particular são uma aposta metodológica com longa tradição nas ciências sociais. Não cabe aqui fazer uma resenha da história do método nem enumerar as suas vantagens e desvantagens[6], mas tão só notar algumas potencialidades especificamente importantes para o caso que será apresentado, destacando alguns contributos que consolidam esta opção.

As convenções clássicas que nos convocam para a importância da relação estreita entre histórias de vida e história social (Halbwachs, 1925; Thompson, 1978; Bertaux & Bertaux-Wiaume, 1980; Pujadas, 1992) sublinham a complementaridade entre ambas; ou seja, se as histórias de vida nos podem ensinar sobre as conjunturas sociais nas quais se inserem os indivíduos e as famílias estudados, para compreender uma história de vida em particular é preciso compreender o contexto histórico social envolvente (Bourdieu, 1989). Relativamente ao caso apresentado neste artigo, cabe dizer que se começou precisamente, em trabalhos anteriores, por procurar compreender os processos históricos e sociais mais amplos. A partir dessa compreensão, uma etnografia continuada deu lugar e voz a uma história de vida, que acabaria por condensar o percurso de transnacionalidade de uma população, com pontos nodais nos processos de mudança acelerada.

A literatura que se dedica a esta metodologia destaca as formas de exposição das histórias de vida. Até ao alerta sobre a ilusão biográfica de Bourdieu, muitos autores confiavam nos relatos na primeira pessoa como melhor forma de contar as histórias de vida. Embora reconhecendo a subjetividade inerente à metodologia, defendiam que, por dar voz direta aos interlocutores, ela permitia ao investigador passar para segundo plano na interpretação e deixar os relatos falarem por si próprios. Esta ilusão não retira mérito a trabalhos como os de Oscar Lewis (1959, 1970) e de Shostak (1993 [1981]), o primeiro sobre famílias mexicanas e porto-riquenhas das classes desfavorecidas e o segundo sobre Nisa, uma mulher !Kung.

Neste artigo são utilizados vários termos de forma aparentemente aleatória, de história de família a percurso de vida, passando por relato de vida. Isto verifica-se em virtude de ter recorrido a vários tipos de registo para expor uma história de vida transnacional. Por um lado, não foi apenas uma mulher que foi entrevistada para escrever a sua história. A etnografia subjacente a este artigo refere-se a toda a sua família e aos seus vizinhos nos diferentes locais de residência. Apesar de ter juntado muitos relatos de vários seus familiares, não estamos porém em posição de fazer uma história de família tout court. A história em causa diz muito mais respeito a M. do que a qualquer outro elemento da sua família. Para a exposição desta tive em atenção a cautela de Paul Thompson (1978): queremos apresentar testemunhos e argumentar por uma interpretação histórica, ou preferimos abordar a história através da biografia? Podemos, consoante os casos, utilizar apenas uma entrevista, coligir várias histórias, fazer uma análise narrativa a partir de um testemunho ou tratar os dados orais no sentido de construir um argumento sobre padrões de comportamento ou eventos do passado (Thompson, 1978, pp. 266-276). Trago aqui o percurso de vida de M. para o analisar depois no seu contexto histórico e social. A nossa personagem central percorre os diferentes tempos como quem visita uma exposição numa atitude distraída, ou seja, as obras presentes na exposição são importantes mas, sem o visitante que pensa, lembra e destaca cada peça, dizem pouco.

Para perceber melhor este percurso, importa falar sobre o polo da diáspora onde M. viveu mais tempo, trazendo por isso para aqui a viagem que realizei com M. em julho de 2011. Apresento pois de seguida uma etnografia recente, em que M. revisita o país onde passou a maior parte da vida, Moçambique. Esta última viagem traz novos elementos a uma vivência de transnacionalidade que parecia sólida e em tudo semelhante a outras vivências de diáspora.

Um regresso a Maputo

Em 2011, a estabilidade sentida por M. faz com que se decida a revisitar a família e amigos em Maputo, doze anos depois de ter deixado a cidade. Moçambique foi o país onde viveu mais tempo, quarenta anos. Surpreendentemente, nesta viagem realçam-se as características africanas que M. parecia por vezes querer esconder nos outros países em que viveu. A insistência em trazer produtos africanos de volta a casa demonstra como, afinal, a sua africanidade escondida sob a capa de uma religiosidade acentuada, nem sempre se mantém ausente da sua identidade transnacional. Mas a viagem e, sobretudo, alguns episódios, ilustram melhor esta dinâmica, bem como a valorização que M. faz das situações por que passa.

Ao chegar a Maputo, depois da espera pela bagagem e do carimbo no passaporte, as malas grandes tiveram de passar pelo raio-X. “De quem são estas malas? Isto no mínimo vai para uma multa de cinco mil meticais”. Esta abordagem inicial implicou uma explicação sobre o conteúdo das malas. Na verdade, as malas dos viajantes hindus a um dos países da diáspora vão quase sempre recheadas de oferendas a familiares. No caso de M., que viveu tantos anos em Maputo e que não visitava a cidade havia treze anos, essa necessidade era ainda mais acentuada. Por isso, M. levava toalhas de mesa de Portugal, saris de Leicester, entre outras lembranças mais pequenas da Europa para os amigos e familiares que iria visitar nas três semanas seguintes. Apesar do nosso esforço, tivemos de pagar uma multa porque eram “coisas de mais, não podem vir com tanta ‘mercadoria’”.

À nossa espera estavam R., irmã de M. e nossa anfitriã, e J. e D., sua esposa, em cuja casa iríamos também ficar hospedadas, mas ao saber que viviam num quarto andar, M. declinou o convite destes, uma vez que tem dificuldade em andar e subir escadas. R. é uma conversadora nata. Tem sempre coisas para contar, por gosto ou necessidade. Descreve, levanta hipóteses, especula, inquire, relembra. Mesmo grande parte do seu trabalho diário de professora universitária consiste em falar, pessoalmente e ao telefone. Com ela não há momentos mortos e com cada história se aprende mais. R. é casada com um moçambicano, nem hindu nem de origem indiana, por isso a estada em sua casa revelou, por si só, os meandros das famílias mistas. Através das conversas, onde muitas vezes entravam também o marido e o filho mais velho, salientou-se a sua perspetiva e a sua experiência.

Na casa havia criados e isso representou para mim, enquanto investigadora, a aprendizagem de uma nova linguagem. Eram três criados, uma delas, Dona S., havia vinte anos, por isso M. já a conhecia e fizeram uma festa quando se reviram. Na casa estavam ainda o filho mais velho de R., a sua nora e o seu neto de nove meses.

Logo no primeiro dia, R. revelou o argumento principal da sua versão da história aqui em destaque, que passa pela questão do racismo. Premissas principais: R. e M. são de uma família bastante misturada. M. é hindu e muito devota. Casou com um brâmane. Mas as feições e o cabelo encaracolado não desapareceram com a religião. R. refere que quando há insultos a alguém da família, recebem insultos racistas. É verdade que M. demorou alguns anos a confiar-me a sua ascendência mista sem constrangimentos, mas nunca falou em racismo ou outros preconceitos relacionados. “Sofri muito”, isso sim, sempre repetiu ao recordar as suas diferentes adaptações no processo migratório.

À chegada organizou-se a entrega das encomendas, que prosseguiu de modo geral ao longo dos primeiros dias. As ofertas foram-se redistribuindo porque M. se foi lembrando de mais pessoas além das previstas inicialmente. A tarefa é mais complexa do que parece à primeira vista. A cada embrulho é dado o nome da pessoa a entregar; depois, face à necessidade de refazer as ofertas, por vezes os embrulhos são repartidos em presentes mais pequenos; finalmente, é necessário fazer uma lista da ordem de entrega, que por sua vez será também refeita de acordo com a sucessão das visitas. Além dos presentes, há também algumas pequenas encomendas que outras pessoas pediram para entregar[7].

No dia seguinte à chegada, M. estava aborrecida. Cansada, parecendo mais velha do que é, não podia andar muito, nem tinha os números de telefone de todas as amigas. “Parece que ninguém sabe que estou aqui”. Apesar de ser ainda o segundo dia, a expetativa de rever as amigas era muito grande. E logo nessa tarde começaram os encontros. O primeiro foi com N., filho de C., uma amiga de M. com quem esta chegou a viver uma temporada. N. é gerente dos carregamentos de telemóvel, que aqui se fazem, por norma, nas ruas. Rapazes novos de colete com a marca da operadora vendem cartões de vinte, cinquenta, cem, às vezes seiscentos meticais, que têm um código para introduzir no telemóvel e assim carregar o saldo. M. e N. estavam muito contentes por se encontrarem. Trocaram números de telefone. Já era um princípio para encontrar os contactos de outras amigas. Ainda nessa tarde, passámos na loja Electrobrinde, onde entregámos a pequena encomenda que o patrão de uma das filhas de M. enviara para o tio. Seguiu-se outra loja, onde M. se encontrou com T. Era uma loja de roupa que fazia lembrar as antigas lojas de roupa de Lisboa, com um grande balcão em U e prateleiras até ao teto. Cabides com os modelos mais atuais, e variedade para todas as idades. Nessa noite M. começou a pensar em compras. Três semanas pareciam-lhe pouco tempo, por isso tinha urgência em saber onde eram os mercados e as feiras. E disse: “O que é especial aqui? Capulanas, pau-preto, tenho de dar voltas, ver novidades”. A mala é o centro da viagem. Depois de esvaziada dos presentes, vai sendo recheada com prendas para o regresso a casa.

Um dia, depois do jantar, as duas irmãs estavam dispostas a conversar para lá das habituais conversas familiares. Perguntei sobre as castas, não por curiosidade, uma vez que já sabia a que casta pertencia M., mas para tentar perceber a sua perspetiva. As explicações sobre as castas são quase sempre pessoais e dependem muito da experiência de cada família, já para não dizer de cada pessoa. Neste caso, a mistura entre indianos, africanos e asiáticos conta na balança dos argumentos, mas também conta a idade de quem fala. É raro um jovem mostrar juízos de valor sobre outras castas. Pode refutar o sistema de castas e, por isso, por norma, frente a quem não tem casta, evita desenvolver considerações sobre as outras castas. Os mais velhos tendem a apontar-se mais uns aos outros, mesmo quando concordam pouco com o sistema. Têm menos resistência a ceder ao juízo de valor, que pode incidir sobre uma determinada casta onde as pessoas não praticam aquilo que dizem que praticam, como por exemplo relativamente aos hábitos alimentares, ou aquela casta onde eram de uma maneira na Índia, mas aqui como têm negócios já são doutra. O pai de R. e de M. era karva, casta de Goghla de “pescadores e marinheiros”, mas o que interessa, para elas, é a religião e não a casta. No Reino Unido, muitos casam fora da casta, dizem, inclusivamente com castas consideradas de baixo estatuto.

Numa noite, R. e M. falaram-me sobre uma grande festa que tem lugar em Goghla, no dia do Raksha Bandan. O Raksha Bandan (laço de proteção) é mais conhecido por ser o dia em que se comemora o parentesco classificatório entre “irmãos”. As mulheres oferecem uma pulseira aos amigos homens, que simboliza o elo de irmãos entre não irmãos de sangue. Este é o “dia grande” do calendário hindu para os karva. Cada chora (que segundo elas é uma espécie de bairro que corresponde mais ou menos à linhagem familiar, gotra) tem a sua bandeira, que nesse dia é deitada ao mar, com um coco. M. lembra-se bem desta festa em pequenina. A tia dela mandava-a usar uma jóia da mãe na ocasião. Quando foi à Índia há uns anos atrás, calhou ser o mês de Sravan (mês do calendário hindu que compreende mais rituais) e também assistiu. O Raksha Bandan tem lugar na lua cheia do mês de Sravan. Por isso, e por causa do ritual específico do lançamento do coco ao mar, este dia também é chamado, como especificou M., Narieri Punam (lua de coco).

R. e M. contaram mais coisas dos marinheiros. Quando morrem no mar deita-se o corpo à água – como acontece em muitos outros contextos culturais – e depois faz-se um funeral hindu com pira funerária, em que o corpo é representado por uma escultura tosca com forma humana, fabricada a partir de um tronco de bananeira. Os olhos da pessoa são feitos com conchas.

Todos os dias havia novas visitas a realizar. M. falava demasiadas vezes na “última vez” que via as pessoas. Considerava esta viagem como uma visita necessária às pessoas que a ajudaram e a quem ajudou nos anos em que viveu em Maputo, antes de “partir” – “ninguém sabe qual é [o]dia, mas essa doença…” Apesar dos sessenta e cinco anos, M. tem sempre presente o cancro que venceu, as tremuras atuais, os nervos, os esquecimentos, a falta de mobilidade que às vezes se acentua.

Uma das ruas mais visitadas ao longo de toda a estada foi uma rua onde vivem muitas famílias de origem indiana (mas onde já viveram muitas mais), que corresponde a uma parte da Avenida Ho Chi Minh. M. trabalhou aqui na alfaiataria Bindu, como já referido. Os empregados não sabiam da história recente da loja, apenas que mudou de dono várias vezes. A loja já não tinha os armários antigos, mas M. reconheceu-a ainda assim: “entra-se e o balcão é à direita”, disse, antes de descobrir a loja certa. “Atrás era a zona dos tecidos”. Não havia muitos metros de cada tecido, poucos mais do que o necessário para cobrir cartões, dos quais o tecido pendia cerca de dois palmos, para dar a ideia à clientela de que era bastante. M. e o marido trabalharam na loja até 1976.

Um dos principais templos da comunidade hindu fica muito perto da antiga loja, na Avenida da Guerra Popular, uma perpendicular à Avenida Ho Chi Minh que desce para o rio. O templo é recente mas a escola da comunidade tem sessenta e poucos anos, a idade de M., e os primeiros passos da comunidade remontam a 1932. A visita à escola foi particularmente emocionante para M. Ao entrar no edifício onde funciona a sala de aulas, M. viu Prayaben, sua antiga colega, a dar uma aula de gujarate a crianças entre os cinco e os oito anos. Cumprimentaram-se calorosamente. Perguntaram pela saúde uma da outra, pelos filhos, como corriam as coisas na escola. Depois chegou Xiina, que foi igualmente professora e agora é secretária da associação. Passámos ao edifício seguinte, atravessando um pátio. Ali estava Paulino, moçambicano. Trabalha na comunidade há mais de vinte anos e disse a brincar que já era meio hindu. Paulino e M. riram-se com o reencontro, abraçaram-se e falaram de coisas triviais. Chegou também Baraben, que trabalha igualmente para a comunidade. Gere o material e ajuda nas limpezas. Conhece bem a antiga professora e as duas mulheres cumprimentaram-se e puseram a conversa sobre a comunidade em dia. O templo propriamente dito fica atrás do edifício central de apoio à comunidade. À entrada há um placar referindo quem contribuiu para a sua edificação, o que é constante nos templos hindus. A sala principal do templo terá uns quinhentos metros quadrados. Aí, M. encontrou muitas pessoas que não via desde que saíra de Moçambique e ficou feliz – “agora já estou contente, como já vi as pessoas”. Foram muitas, entre antigos alunos de gujarate, amigos e amigas, familiares distantes. Uns já sabiam que ela estava em Maputo, mas para outros foi uma surpresa encontrá-la. Perguntaram-lhe pelas filhas e quantos netos já tinha.

Um dia ao pequeno-almoço, o marido da irmã de M. também estava presente. Na conversa dessa manhã aprendi mais sobre os preconceitos locais, a propósito da palavra “monhé”, que a nora de R. disse ser um diminutivo de muçulmano e que era usado apenas relativamente aos muçulmanos, à partida. Os portugueses é que chamam monhés aos muçulmanos e outros de origem indiana. A expressão insultuosa para os indianos até há uns tempos atrás era Balavas Piripiri Mangus, uma expressão muito longa para insulto. Balavas vem de dal, a sopa de lentilhas confecionada quotidianamente pelos indianos; Piripiri é evidente, e Mangus (não explicaram) virá de mangustão? As designações com carácter insultuoso que serviam para diferenciar os indianos uns dos outros eram “monhés” e “banianes”, muçulmanos e indianos comerciantes, embora também haja banianes muçulmanos.

Depois do mata-bicho de sábado, M. foi finalmente a um mercado de artesanato, que fica ao lado da fortaleza, junto ao mar. Ao chegar fomos abordadas por profissionais do regateio. O mercado tem novidades e produtos clássicos turísticos para todos os gostos. Além de curiosa por saber os preços do pau-preto e do marfim e respetiva autenticidade, M. interessou-se pelas capulanas. Há-as da Suazilândia, do Quénia, do norte de Moçambique, com padrões grandes e pequenos, com quadrados. M. regressou a este mercado três vezes durante a sua estadia e visitou quase todos os dias lojas para comprar capulanas e outras lembranças de Moçambique. O artesanato moçambicano é mais importante do que por exemplo as iguarias, que apenas se encontram em Maputo. É certo que M. comprou vários sacos de caju torrado, mas o seu maior investimento foi no artesanato moçambicano. Ainda assim, a ida ao mercado central foi uma festa. Há uma grande extensão de bancas apertadas cheias de legumes e fruta e, em duas ou três bancas, as delícias procuradas por M., que são o caju torrado, tinziwa e mel puro de Quelimane. O primeiro não se encontra facilmente em Portugal. Tinziwa parecem amendoins com a casca de dentro rosada, mas são maiores, esponjosos e ligeiramente amargos. Eram o pedido especial da filha mais velha de M., porque não se encontram em Portugal. O mel puro de Quelimane era para a outra filha. Cada frasco tinha dentro um bocadinho de favo. A senhora que lhe vendeu o mel e o caju reconheceu-a e fez-lhe uma festa, mas não estava disposta a baixar os preços e só permitiu um desconto de vinte meticais em quatrocentos e cinquenta. Demos uma volta pela zona do mercado dedicada ao artesanato. Aí encontrámos um senhor que conhecia bem M., e ficaram os dois a conversar um bom bocado. Mais umas bancas e chegámos a outra mercadoria procurada, o marfim. M. e R. reprovaram os preços adiantados pelo vendedor. Quando vivia em Maputo, M. visitava este mercado quotidianamente. Além do artesanato e dos produtos locais, vendem-se legumes e frutas frescas, carne e peixe, e há também lojas com artigos de higiene.

Numa noite, à semelhança do que ocorreu noutras conversas que tínhamos tido em Leicester, M. falou da sua vontade de ir para um lar “para não dar trabalho”, até porque a partir de determinada altura, se as filhas trabalharem, não dará para ficar sozinha em casa, a precisar de cuidados que não lhe podem dispensar. Por isso é preciso ser poupada – ter uma “latinha” (mealheiro) para “poupar cinquenta, cinquenta” (libras) de cada vez. A irmã não concordou, e vê-se aqui uma diferença grande entre quem vive na Europa e quem vive em Moçambique, para quem é muito difícil aceitar que se “depositem” os mais velhos nos lares – por muito bons que estes sejam, incluindo médico em permanência e enfermeiros especializados. Mas importa lembrar que no Reino Unido é preciso ser muito abastado para ter empregados domésticos a tempo inteiro, ao contrário do que acontece em Moçambique.

O dia mais esperado de toda a viagem era o dia de ir a Salamanga, onde M. viveu com o marido e as filhas por cerca de dez anos, e onde o marido oficiava as cerimónias religiosas e M. o ajudava. Salamanga fica a uma hora de caminho depois de atravessar o rio em ferryboat. M. marcou uma cerimónia em honra do marido e dos seus pais, já falecidos. Convidou familiares e amigos e alugou uma carrinha com motorista. Nos dias que antecederam a jornada, a irmã e uma amiga fizeram as compras para o almoço que seria servido depois dos rituais. A carrinha alugada para levar quinze pessoas partiu antes do amanhecer. O barco começou a atravessar o rio às seis e quarenta. O sol nasceu então. A travessia foi curta, em menos de quinze minutos estávamos em Catembe.

Até Salamanga, foi uma hora de caminho. O templo de Salamanga, Ram Mandir, é espaçoso. O altar mais visitado é o dedicado a Matma Bapa, a divindade que apareceu em Salamanga numa mala de viagem, na viragem do século XIX para o XX, tendo escolhido aquele lugar depois de passar pela Ilha de Moçambique e por Inhambane. Para cumprir a cerimónia, M. e a irmã sentaram-se junto ao mahraj, bem como um rapaz filho de uma amiga, a representar um filho, uma vez que este grau de parentesco é essencial para a cerimónia e M. não tem filhos homens. Atrás ficaram os primos. O altar da cerimónia foi montado à esquerda da figueira sagrada, do lado sul, como manda o preceito. Nesta parte do ritual, M. teve finalmente oportunidade de honrar os seus falecidos pais de acordo com o preceito religioso, o que era muito importante para ela. A segunda parte do ritual realizou-se dentro de um pequeno templo dedicado à deusa Ambe, onde se acendeu o fogo sagrado. Terminada a cerimónia, os participantes foram ao rio deitar os restos do ritual.

O almoço acabou apenas por volta das quatro da tarde e era preciso apanhar o barco das cinco e meia. M. mantinha-se indiferente à pressa em regressar, conversando com as pessoas que não via havia mais de dez anos. Protestou quando foi arrancada da conversa, estava a contar histórias pessoais de quando ali vivia e era preciso voltar já?!

M. vai parecendo sentir-se mais sozinha. Nos últimos dias antes do regresso ainda houve tempo para últimas compras, últimas visitas. Torna-se evidente que M. viveu estas semanas não apenas como uma viagem ao seu passado, como inicialmente imaginara, mas como uma última viagem.

Notas finais

A etnografia exposta neste artigo pretendeu trazer para o debate a situação concreta de uma família de origem indiana que, à semelhança de milhares de outras famílias, realizou um percurso transnacional múltiplo. Em quase tudo, a história da família em foco ecoa as de outras famílias gujaratis. Atravessando vários países e correspondentes processos políticos e sociais, optaram por emigrar mais que uma vez.

Na literatura sobre a diáspora hindu-gujarati, o polo migratório de Moçambique surge para explicar o contexto económico e histórico que levou a novas migrações, e surge ainda como contexto de adaptações culturais. Os discursos no terreno em Portugal e no Reino Unido raramente valorizam a permanência em Moçambique. Este é referido como o país donde se saiu porque as condições de vida eram insuficientes, entre outras razões. As referências a Moçambique aproximam-se quando muito do saudosismo da infância. No entanto, esta questão tem sido pouco explorada na literatura sobre a diáspora hindu-gujarati, e foi por isso nosso objetivo abordá-la aqui, através de uma história de vida particular.

A viagem de M. a Maputo fez despertar emoções que se evidenciaram claramente no reencontro com familiares e amigos, mas permitiu também vivenciar e verbalizar o lado “africano” desta família, de uma forma aberta e descomplexada, ao contrário do que acontece nos destinos migratórios europeus, Portugal e Reino Unido, onde a aparência africana é ignorada, se não mesmo censurada, em prol das referências à religião professada.

A viagem salienta ainda outra coisa, por hipótese mais passível de contribuir para o debate sobre a transnacionalidade. O regresso de M. a Maputo, após doze anos de ausência, sublinha a importância que as cidades, mais do que os países, assumem na vida de uma família migrante. Apesar dos seus sessenta e muitos anos, M. passou os dias a visitar e a receber visitas e convites de familiares que souberam da sua viagem. Afinal, foram quarenta anos a viver em Moçambique. E o seu caso não é único. Muitas famílias hindus-gujaratis portuguesas viveram mais de uma geração em Moçambique. Não obstante os seus discursos reforçarem sistematicamente a importância dos novos destinos migratórios em detrimento dos precedentes, as viagens de regresso dão pistas renovadas para conhecer melhor os caminhos densos da transnacionalidade.

 

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Recebido 15 de maio de 2012; Aceite para publicação 26 de outubro de 2012

 

Notas

[1]   Optei por selecionar uma inicial para os nomes das pessoas que surgem ao longo deste texto, apesar de todas elas terem conhecimento do meu trabalho e das intenções de publicação. Esta questão foi colocada várias vezes no terreno e obtive sempre permissão para utilizar os verdadeiros nomes. Ainda assim, opta-se neste texto por salvaguardar a identidade das pessoas mencionadas.

[2]   Esta e outras designações em gujarate são aqui apresentadas de acordo com o fonema e não com uma forma de transliteração formal.

[3]   Knott (1986), sobre sul-asiáticos em Leeds; Vertovec (2000) sobre Balham e Tooting; Andrews (1995) e Singh (2006) sobre Leicester; Ashutosh (2008) sobre sul-asiáticos em Chicago.

[4]   Sem pretensões de exaustividade, destacaria os trabalhos de Cachado (2004, 2008, 2012), Lourenço (2007, 2009, 2010) e Roxo (2010).

[5]   Ver Antunes (2001) para o caso especificamente português e Pearson (2001) para uma análise histórica mais geral.

[6]   Para isso, destacaria Clifford (1978), Thompson (2000 [1978]), Pujadas (1992), Bertaux (1997), Atkinson (1998).

[7]   Até há cerca de dez para quinze anos, a importância das encomendas nas bagagens dos hindus era muito maior do que atualmente. A globalização dos consumos aliada a um rápido desenvolvimento económico da Índia e, mais recentemente, de Moçambique, contribui para que os consumidores encontrem nos diferentes países a maior parte dos produtos pretendidos. Como referem muitas vezes os informantes: “Agora há de tudo em todo o lado”.

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