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Cadernos de Estudos Africanos
versão impressa ISSN 1645-3794
Cadernos de Estudos Africanos no.35 Lisboa jan. 2018
https://doi.org/10.4000/cea.2794
ARTIGO ORIGINAL
Vivências e percepções acerca da educação em Moçambique: Olhares etnográficos em uma escola primária no bairro da Matola A[1]
Experiences and perceptions about education in Mozambique: Ethnographic insights in a primary school in the suburb of Matola A
Marina Di Napoli Pastore1; Denise Dias Barros2
1Programa de Pós-Graduação em Terapia Ocupacional, Universidade Federal de São Carlos, Casa das Áfricas - Núcleo Amanar, Rua Padre Justino, 60 - Butantã, São Paulo, Brasil, marinan.pastore@gmail.com
2Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP, Programa de Pós-Graduação em Terapia Ocupacional da UFSCar, Casa das Áfricas – Núcleo Amanar, Rua Padre Justino, 60 - Butantã, São Paulo, Brasil, ddbarros@usp.br
RESUMO
A educação em Moçambique carrega, ainda nos dias atuais, as marcas de um período histórico e das inúmeras questões sociopolíticas e econômicas vinculadas aos processos de colonização europeia. A partir de um trabalho etnográfico numa escola primária (1ª a 7ª classes) do bairro da Matola A, em Moçambique, foi possível estabelecer laços com as crianças, os professores e a comunidade, vivenciando o cotidiano escolar de cinco crianças entre os 7 e 13 anos de idade. Através da produção de relatos e passagens das experiências ao longo dos cinco meses em que a pesquisa ocorreu, as autoras trazem um panorama político da situação do país e do sistema de ensino, refletindo nas práticas escolares, e a interpretação das crianças, pais e professores sobre os processos formativos. Discute-se, também, a possibilidade de ampliação dos saberes envolvidos nos processos de ensino-aprendizagem, englobando múltiplos olhares e trocas de saberes para que a escola, enquanto lugar da infância, possa ser um lugar em que conhecimentos, culturas e fazeres sejam agregados e compartilhados por todos os atores sociais, com ênfase nas crianças, permitindo uma educação que as prepare para serem protagonistas dos seus mundos, num exercício de transformação de realidades.
Palavras-chave: Moçambique, pesquisa etnográfica, crianças, saberes infantis, educação, terapia ocupacional social
ABSTRACT
Education in Mozambique carries, even in the present day, the marks of a historical period and the numerous economic and socio-political issues linked to the processes of European colonization. From ethnographic work in elementary school (1st to 7th classes) in the neighborhood of Matola A in Mozambique, it was possible to establish ties with the children, teachers and the community, experiencing the daily school life of five children between 7 and 13 years of age. Through the production of reports and the experience over the five months when the research occurred, the authors bring a political panorama of the situation of the country and of the education system, and practices reflecting the interpretation of children, parents and teachers about formative processes. It discusses the possibility of expansion of knowledge involved in the teaching-learning process, encompassing multiple perspectives and exchanges of knowledge so that the school, as a place of childhood, can be a place where knowledge, cultures and practices are aggregated and shared by all social actors, with an emphasis on children, allowing an education that prepares them to be protagonists of their worlds, in an exercise of transforming realities.
Keywords: Mozambique, ethnographic research, children, children's knowledge, education, social occupational therapy
A conquista da independência moçambicana, em 1975, fez com que a educação passasse a integrar as prioridades do país, entendendo-a como “um direito humano e um instrumento primordial para a manutenção do bem-estar, da unidade nacional e para o desenvolvimento económico, social e político através da formação de cidadãos” (Macamo, 2015).
Em Moçambique, o Sistema Nacional de Educação (SNE) foi introduzido em 1983, iniciando a primeira classe do ensino básico a partir da reformulação de leis pós-guerra neste período. Desde então, o ciclo considerado básico (da 1ª à 7ª classe) é obrigatório para todas as crianças a partir dos 6 anos de idade (Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano, 2013).
O compromisso com a educação e a importância da escola na dimensão da vida da criança, considerada como o lugar da infância e de promoção de seu desenvolvimento (Governo de Moçambique, 1992; 2006; 2013), tem legitimado práticas que visem a ampliação e continuidade do ensino enquanto um processo que garante à sociedade estratégias de transformação e mudança para o crescimento econômico, político e sociocultural das comunidades.
De acordo com a Política Nacional de Educação do país, o ensino primário é prioritário, correspondendo à educação de base, como instituído pela Constituição da República de Moçambique, e sob responsabilidade do Governo. Algumas parcerias têm sido feitas, como no caso da UNICEF, no intuito de ampliar o alcance a mais moçambicanos, com o objetivo de “formar um cidadão capaz de se integrar na vida e aplicar os conhecimentos adquiridos em benefício próprio e da sua comunidade” (INDE, 2003, p. 16).
Segundo um artigo da UNICEF (2014), desde 2004, houve progresso impressionante na construção e acesso à escola e no recrutamento de professores. No entanto, ainda metade das crianças que iniciam o ensino primário não o termina, e há crescente preocupação com o nível de aprendizagem (“Nosso trabalho – educação”, secção Situação Actual, para. 1).
Calcula-se que 53% das crianças que ingressaram no ensino primário não o conseguem concluir, além de haver cerca de 775.000 crianças fora da escola (UNESCO, citado em UNICEF, 2014, para. 2).
Dentro dos objetivos da ONU e da UNICEF para a melhoria da qualidade de vida das crianças em África, a educação é um dos principais pilares para a mudança. A educação e o sistema escolar vêm sendo alvo de inúmeras mudanças no decorrer dos anos, sendo um dos motivos que levaram os moçambicanos à luta pela independência, buscando possibilidades de aberturas ao diálogo e de oportunidades outras, como transformações sociais. Porém, a realidade observada no cotidiano das crianças que frequentam as escolas está distante deste cenário, com um grande número de desistências marcando a realidade no país. Para além do alto índice de desistência encontrado nos documentos oficiais e nas preocupações do governo moçambicano, outras dificuldades acabam por compor o quadro da educação: falta de infraestruturas, elevado número de alunos por sala, insuficiente corpo de docentes qualificados, distância das escolas, entendimento por parte dos familiares, entre outros (UNICEF, 2014).
A partir de um estudo etnográfico realizado ao longo de cinco meses numa escola de ensino primário na Matola, em Maputo, Moçambique, foi possível observar e dialogar com as crianças, os professores e os familiares sobre o papel da escola e as relações estabelecidas, as dificuldades encontradas, as trocas significativas e refletir, como é demonstrado no decorrer do artigo, as dissonâncias e aproximações das políticas escolares com as vivências e as estritas ligações com as heranças coloniais que permanecem no país ainda nos dias atuais. O artigo pretende, também, possibilitar um encontro com os saberes das crianças, enquanto atores sociais e produtoras de conhecimentos, que muitas vezes se encontram distanciados da formulação de teorias e práticas que as envolvem, reproduzindo formas colonizadoras de se trabalhar com as crianças e suas culturas.
As secções que seguem o texto trazem, num primeiro momento, um percurso do sistema de ensino moçambicano ao longo da história, a passagem pelo período colonial e a pós-independência, chegando aos estudos recentes sobre a educação e a situação do país a partir de dados levantados pelos órgãos oficiais e parceiros do Governo. A seguir, discute-se, a partir do estudo etnográfico, a vivência das crianças nos espaços da Escola Primária Completa Matola A, no período de fevereiro a julho de 2014. Por fim, o texto apresenta uma discussão sobre os saberes envolvidos no processo educacional que visam transformações das realidades existentes e de participação das crianças na educação, com considerações que, não pretendendo serem finais, permitam a integração de saberes e práticas múltiplas numa mediação sensível de mundos.
A escola em tempos outros: questões históricas do sistema educacional em Moçambique
Desde sua colonização, Moçambique teve seu território dividido segundo interesses econômicos e utilitários de Portugal. As relações humanas eram pautadas pela racialização, o que gerou situações extremas, como a escravização. A prática de classificação da população em indígenas e colonos fez parte dos processos históricos que marcaram a formação de Moçambique e precisam ser considerados quando se discute a formação social, enfaticamente no que diz respeito à educação e ao sistema de ensino no país (Cabaço, 2007).
Tal como a situação de seu território, a população também se encontrava dividida. Os colonizadores, a esta altura, propuseram ainda uma classificação entre as pessoas que ali residiam, separando quem era considerado “cidadão”, como os colonos e filhos dos colonos, dos considerados “indígenas”[2], que eram a parcela da população moçambicana e dos africanos negros.
O Estatuto do Indigenato trazia consigo questões que envolviam principalmente os costumes para definir a classificação quanto à “identidade indígena” ou não, fazendo surgir uma nova categoria classificatória: a dos assimilados. Segundo alguns autores (Cabaço, 2007; Hernandez, 2008; Zamparoni, 2000), compunham essa categoria os indivíduos que apresentassem determinados requisitos exigidos pelo governo português: abandonar os “usos e os costumes maternos”; conhecer a língua portuguesa de maneira avançada (leitura, fala e escrita); adotar a monogamia; trabalhar com uma profissão compatível com a visão portuguesa; não ter sido notado como refratário ao serviço militar nem dado como desertor.
Para usufruir desta “nova identidade”, era preciso solicitar um requerimento para a condição de assimilado, escrito de próprio punho, além de documentos suplementares a serem entregues: atestado de residência comprovado pelas autoridades administrativas, bem como abandono dos “usos e costumes” dos negros, e fluência em português; certificado de aprovação no exame de instrução primária de primeiro grau; certidão civil de casamento ou declaração de solteiro e afirmação de que adotaria a monogamia (Zamparoni, 2000).
A categoria de assimilado foi uma classificação colonial instituída com o intuito de separar os africanos e criar novas barreiras entre eles: aqueles que seguiam as tradições africanas eram considerados indígenas e não tinham acesso aos bens sociais, como escola, serviços assistenciais, empregos, saúde, entre outros; já aqueles que demonstrassem deixar sua cultura e tradições, aliando-se ao governo português, poderiam ter acesso a estes recursos. O título não era vitalício, podendo ser retirado a qualquer momento: caso fosse, por exemplo, provado que a pessoa continuasse a exercer suas práticas religiosas de matrizes africanas (Cabaço, 2007; Hernandez, 2008; Zamparoni, 2000).
Tais medidas caracterizavam os “indígenas” como um não-cidadão, alargando as fronteiras entre africanos e colonizadores, nas quais uma parcela de “direitos” eram ofertadas em forma de concessão. Dentre a população afetada encontrava-se a burguesia moçambicana, que, junto com a lei do indigenato e a categoria dos assimilados, acabou por perder os poucos direitos que usufruía, como o acesso das crianças (seus filhos) às escolas e aos serviços públicos.
As crianças partilharam da mesma categorização dos adultos, e podiam ter seu título de assimilado retirado a qualquer momento[3]. Nas escolas, deveriam seguir os bons costumes e portar-se como “bons católicos”. O ensino, dado em língua portuguesa, não contemplava nenhum aspecto da cultura moçambicana nem história da África, constituindo um dos principais objetivos da política de assimilação: trazer para o presente o que era considerado moderno pelo governo português, enquanto o tradicional deveria ser deixado de fora, como a religião, as línguas maternas, as tradições e rituais, por exemplo. Alguns poucos direitos eram oferecidos aos assimilados, como frequentar as escolas e estar num ambiente em que alguns colonos participavam.
Para as crianças “indígenas” as escolas ofertadas de ensino gratuito eram insuficientes, sendo as existentes regidas por missões católicas. Segundo Selimane (2012), os objetivos da educação colonial eram ligados a um propósito discriminatório, bem como os propósitos da colonização: a educação possuía um cunho rácico e marginalizante, com currículos distintos entre os filhos dos colonos e as demais crianças moçambicanas, na qual os moçambicanos deviam ser “civilizados” e a educação devia, sobretudo, estar voltada para a formação em trabalhos manuais, legitimada por um discurso que afirmava que os indígenas, mais habituados ao clima, poderiam ser educados só na medida e na exigência do trabalho muscular, perpetuando a opressão e discriminação aos mesmos (Basílio, 2010; Castiano, Ngoenha & Berthoud, 2005).
Em sua pesquisa doutoral, José Luís Cabaço traz trechos sobre a sua infância e modos de viver em Moçambique no regime colonial e com o Estatuto do Indigenato. O trecho abaixo reflete uma situação em que a escola, no lugar de ser um espaço de reflexão sobre sua cultura e sociedade, acabava por ser um lugar de alienação e reafirmação do poder colonial e do governo português.
colonizado da própria história e da tradição sociocultural para o fazer assumir os valores, os comportamentos e a história de Portugal. O sistema educacional era unificado a todo o império pelo modelo em vigor na metrópole. Na escola primária, em Moçambique, estudava-se (eu estudei), até meados da década de 1960, em textos que se referiam à vida rural em Portugal, sua vegetação e fauna, sua paisagem, seus “usos e costumes”. Era a tentativa de alienação física do espaço sociocultural e da natureza que cercava a criança das colônias. As disciplinas de História e Geografia, física humana e econômica, que se prolongavam por todo o ensino médio, referiam-se à história e à geografia de Portugal, visando a comprometer deliberadamente o universo da imaginação e mitificar a metrópole. O passado de África remontava às “descobertas”! O sistema colonial se repetia: a história de Moçambique começava com a “resistência heróica dos nossos antepassados lusitanos” à ocupação do Império Romano, como em Dakar e em Argel se aprendia sobre a história de “nos ancêtres, les Gaulois” (Cabaço, 2007, p. 158).
Tal situação fez surgir no país uma onda de reivindicações, que começaram a se espalhar entre os moçambicanos. Dentre elas, o acesso à educação se configurava como um dos principais aspectos a ser alcançado por todos os moçambicanos – antes privilégio apenas dos colonos e uma parte mínima dos assimilados (Afonso & Martelo, s.d.; Cabaço, 2007).
Entre 1964 e 1975, Moçambique passou por uma guerra de libertação, contra o colonialismo português. Com o fim da guerra e a conquista da independência nacional, a educação passou a ser uma das prioridades do novo governo. Foram adotadas disciplinas com conteúdos, referenciais e objetivos que dialogassem com a realidade moçambicana, no intuito de democratizar e ampliar o acesso à educação, pautados na organização das instituições políticas do Estado e de sistemas educacionais que visassem a reconstrução do território e simbologia nacional (Macamo, 2015).
Uma organização escolar que contivesse conteúdos africanos na formulação era uma das demandas encontradas: era preciso que sua história fosse resgatada, bem como sua cultura e suas sociedades, culminando com a ampliação de conhecimento sobre o país e fazendo parte da construção da nova identidade moçambicana (Basílio, 2010). A criança deveria estar na escola e, neste entendimento, a escola tornava-se, assim, “uma das instituições decisivas de construção da moçambicaneidade fundada na igualdade dos direitos e na formação para a cidadania e para o trabalho” (Basílio, 2010, p. 94).
Com o período da guerra civil (1976-1992), a educação passou novamente por uma reforma: através do III Congresso da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), foi anunciada a necessidade de formação de um “Homem Novo”, com conteúdos voltados a uma educação de base socialista e democrática, mas que apesar de suas modificações, teve influência dos processos educacionais vivenciados no período colonial, principalmente nos sistemas de organização do ensino – regido por disciplinas que seguiam os currículos portugueses e não se fazia uma discussão acerca das culturas da população e das multiculturalidades existentes, como atenção às etnias e às línguas maternas. O Estado foi considerado incapaz, apesar dos esforços, em garantir o acesso a todas as crianças à educação, além das faltas, reprovações e desistências de um número significativo de crianças (Castiano et al., 2005; Mugime & Leite, 2015, p. 78).
Em 1983, mesmo com a guerra civil assolando o país, a educação continuava a ser prerrogativa do governo moçambicano. Em 1983, com a introdução da SNE[4] foram definidas as bases e diretivas do sistema educativo, revisadas em 1992[5], incorporando as mudanças adotadas com a nova Constituição da República, assinada no acordo de paz em 1992 (Selimane, 2012) e acrescentando na educação aspectos relevantes para a ampliação e alcance do ensino, como, por exemplo, a perspectiva da multiculturalidade presente no ensino e de uma ligação estreita entre escola e comunidade, com valorização e desenvolvimento das línguas nacionais e a oferta de um ensino que garanta a igualdade de oportunidades aos cidadãos (Mugime & Leite, 2015, p. 91).
Como estratégia global, o governo moçambicano adotou, em 1995, a Política Nacional de Educação, definiu a educação básica (crianças a partir de 6 anos) e a alfabetização e educação de adultos como prioridades e expandiu o número de escolas (a maioria havia sido devastada durante o período da guerra civil).
Ao longo dos anos, algumas reformas vêm sendo feitas no intuito de melhoria do ensino, como a última ocorrida em 2006-2010; porém, ainda hoje há grande percentual de crianças que não terminam o ensino básico, além do número alto de abandono dentro da educação básica (Macamo, 2015).
Segundo a UNICEF (2014), apesar de a construção de escolas ter aumentado nos últimos anos, quase metade das escolas existentes em Moçambique ainda se encontram em condições precárias, com pouca ou nenhuma infraestrutura. O número de professores ainda permanece muito baixo, com uma média nacional de 63 alunos a cada professor em sala, o que acaba por ocasionar um baixo aproveitamento durante o período das aulas pelas crianças.
Autores moçambicanos, como Castiano et al. (2005), sugerem que as escolas e as organizações de ensino devem passar pela “africanização” ou modernização da educação, entendendo que as escolas são capazes de transformar as culturas e saberes locais em conhecimento. É preciso ouvir as crianças, professores, pais e pessoas envolvidas nas comunidades, resgatando não só a memória, mas integrando as crianças nos processos de educação e ensino aos quais pertencem.
“Estudar é bom, mas brincar é melhor”: perspectivas e dinâmicas escolares a partir da etnografia
Este estudo partiu de uma pesquisa sobre as dinâmicas de socialização das crianças na comunidade moçambicana da Matola A, tendo foco no cotidiano das mesmas. Compreendendo que a escola fazia parte deste dia-a-dia e das atividades significativas, o recorte aqui foi dado a partir da vivência em momentos junto às crianças no horário escolar.
Esta escola foi escolhida por ter professores e crianças conhecidos em experiência anterior, facilitando o acesso e a observação participante, além de ser a única escola que se encontrava dentro do bairro, e a que continha o maior número de crianças da comunidade matriculadas. Participaram do estudo cinco crianças diretamente, num processo de seleção que conteve alguns requisitos: ter feito parte do trabalho desenvolvido numa ONG do bairro no ano de 2012; ter entre 7 e 13 anos (idade escolar) e estar entre a 1ª e 7ª classe; ter a aceitação das crianças para participação no dia-a-dia delas e, depois, dos pais; frequentar a escola em questão. As primeiras cinco crianças que demonstraram interesse em participar da pesquisa e respondiam aos requisitos foram as escolhidas a participar do estudo. Outro fato importante foi a aceitação do diretor e dos professores da escola, decorrente de uma reunião sobre os motivos da pesquisa e participação.
A escola era, segundo o diretor do local, uma das únicas do bairro. Segundo o mesmo, a escola ocupava o bairro desde a época da independência moçambicana, mas, com o elevado número de crianças, foi preciso buscar um novo local, e desde 2000 a escola se encontra no local atual. No ano do estudo, em 2014, a escola contava com 4.182 alunos, 55 professores, 1 diretor, 1 diretora pedagógica, 2 secretárias. Eram, então, 66 turmas de ensino primário distribuídas em quatro horários diferentes, com classes da 1ª à 7ª série, cada uma com cerca de 65-70 crianças.
Buscando uma vivência próxima à realidade das crianças e seus modos de ser e estar presentes nos locais que habitam e participam, suas relações, espaços sociais e papéis estabelecidos, o estudo ocorreu durante os cinco meses que seguiram de fevereiro a julho de 2014, com idas regulares e diárias a uma das escolas primárias completas existentes no bairro. A etnografia foi pensada enquanto metodologia da pesquisa, no intuito de dar voz, olhares e foco às experiências e pontos de vista das crianças perante seus processos escolares. Para tal, foram utilizadas algumas técnicas em paralelo, como observação participante, na qual as aulas foram assistidas junto com as crianças, participando das tarefas, provas, exercícios requeridos pelos professores; conversas informais durante os momentos de distração, como os intervalos e percursos até a escola; descrição densa dos fatos do dia e utilização de fotografias.
A pesquisa etnográfica realizada exigiu um trabalho relacional entre as pessoas envolvidas, fossem estas pesquisadores, crianças e colaboradores, permitindo que a relação com o outro fosse possível através dos encontros, dos momentos partilhados, das trocas estabelecidas, desconstruindo momentos pré-concebidos desse processo e viabilizando uma compreensão teórico-prática através das experiências, constituindo reflexões específicas que serão discutidas a seguir.
As vivências assumiram, na forma de cenas narradas no texto, o esforço de reconstituição e descrição dos momentos significativos e de reflexão das situações. As cenas dão destaque a algumas das vivências estabelecidas durante o trabalho de campo, trazidas de acordo com as experiências, momentos e conversas estabelecidas, tanto de maneira formal como informal, enquanto espaços de dialogias de mundos possíveis, o que só foi possível através do encontro com as crianças: Januar, de 11 anos; Adelaide, de 13 anos; Gina, de 7 anos; Félix, de 13 anos; e Benito, de 10 anos.
Januar e a escola: um espaço comum
Às vezes, Januar chegava na escola atrasado: sua aula começava às 6h30, mas morava muito longe, chegando por volta das 7 horas. Algumas vezes, quando conseguia acordar antes, chegava no horário. Não gostava de se atrasar. Dos 73 alunos em sua sala, todos já haviam repetido a 5ª classe ao menos uma vez. A maior dificuldade era não saber ler. Januar, além de ter dificuldades na leitura, tinha medo de errar, e então não tirava suas dúvidas com o professor. Embora com dificuldades, Januar sabia o que seria ao crescer: viraria professor, mas diferente daqueles com que já teve contato, ensinaria as outras crianças para que não tivessem medo de apanhar (prática ainda muito utilizada nas escolas). Para Januar, professor que batia era aquele que não sabia ensinar. O que mais gostava na escola era quando tinha possibilidade de aprender, afirmando que se tornaria alguém que sabia das coisas[6].
A realidade de Januar era compartilhada por muitas crianças ali: moravam distante, o caminho era feito a pé, e quando chovia, por mais que algumas ruas alagassem, as crianças chegavam para a aula, mesmo que atrasadas. Além do percurso, a dificuldade na leitura também era partilhada pelas crianças: na sala de Januar, havia crianças de 11 a 16 anos, que repetiram de 1 a 6 vezes o mesmo ano. Na sala, apenas um professor ministrava todas as matérias, sempre em português.
A dificuldade que Januar tinha era dividida também pelo professor: sozinho na sala, com mais de 73 alunos, encontrava dificuldades em como atender a todos. Muitas vezes, ao precisar explicar algo, fazia-o em changana[7], afirmando que assim as crianças entenderiam. Ao ser questionado do porquê não ministrar a aula toda assim, afirmou que não podia: segundo a Lei nº 6/2009, o ensino era obrigatório em português, o que dificultava o acesso e entendimento das crianças, restringindo as potencialidades da escola.
Com o passar dos dias, o professor tentou algumas táticas de leitura com Januar, individualmente, e em aulas de reforço, mesmo fora de seu horário de trabalho. Durante uma conversa, contou sobre seu processo de formação: quando estudante, o ensino era dado em português, e do mesmo jeito era agora, enquanto professor. Acreditava que as crianças aprenderiam mais se fosse em changana e se as aulas e o processo de aprendizagem fossem por oralidade, sem que a escrita fosse obrigatória; porém, acreditava também que isso não as formaria quanto ao previsto no plano do Governo e não as prepararia para um outro futuro. Em conversa sobre desistências, Januar e o professor tinham a mesma opinião: de que adianta obrigar as crianças a ir à escola se a maioria não consegue acompanhar?
A questão da língua e sua obrigatoriedade em ser o português, língua do colonizador, diz sobre duas coisas: sobre a hierarquia colonial que ainda faz parte do sistema escolar moçambicano, e sobre sua influência no processo de ensino-aprendizagem. Um dos principais motivos de desistência e/ou abandono escolar é a questão da língua, sendo um problema ainda nos primeiros anos de escolaridade, pois, segundo Macamo (2015), é comum as crianças, ao entrarem na escola, falarem uma língua materna diferente da língua do ensino escolar, fazendo com que, ao contrário do que discutem Castiano et al. (2005), as habilidades e competências adquiridas pelas crianças em convívio com sua comunidade não sejam aproveitadas durante a escola. Como pensamos, então, um ensino que agregue as multiculturalidades e que valorize a africanização, como discutem os autores, se na prática há uma exclusão das línguas maternas e saberes múltiplos, como os trazidos pelas crianças, definidos e preconizados dentro dos sistemas educacionais moçambicanos?
Quem sabe mais? Aprender e ensinar segundo Adelaide
Alguns professores faltavam com frequência. Adelaide, que estava na 7ª classe, referia esse fato como sendo algo habitual, mas que dificultava seu aprendizado nas matérias que tinha na escola. Ela questionou o fato de alguns professores baterem nas crianças – prática que acabava sendo recorrente e, em algumas vezes, validada por muitos familiares num entendimento de que se colocava disciplina nas crianças, como era no caso da família de Adelaide. Tratava-se, como percebido e conhecido através de diálogos com os mais velhos, de uma prática antiga e que foi vivida por várias gerações. As mães diziam que seus professores também lhes batiam. “Aqui é normal isso”, afirmou Margarida, mãe de Adelaide. Para Adelaide, não era bom os professores baterem, afirmando que “não é certo, preferia que não batessem. Não deviam bater, pode dar problema. Você bate nas crianças e podem se aleijar... Eu mesma já me aleijei”, e então contou da vez que, por ter errado uma resposta, um dos professores a bateu com o apagador de lousa sobre a mão: “assim oh (e mostrou a posição de sua mão – palma voltada para cima – e fez gesto de como o professor lhe bateu). Ficou vermelha. Como dói! Tenho medo, não respondo mais nada, só quando me chamam”.
A conversa seguiu, e Adelaide afirmou que, na escola, apenas um professor não batia, e ela o considerava um bom professor. Ao ser questionada sobre qual professor ela mais gostava, Adelaide afirmou que era o que ministrava a disciplina de Ciências Naturais, e o que menos gostava era o de Matemática; porém, as duas disciplinas eram dadas pelo mesmo professor. Para Adelaide, isso se dava porque, em Ciências Naturais, por ser sua área de formação, ele conseguia ensinar as crianças, já em Matemática não, fazendo uso da força e de violência em alguns momentos.
Segundo o relatório elaborado pelo Instituto Nacional do Desenvolvimento da Educação e pelo Ministério da Educação, o Plano Curricular no Ensino Básico, de 2003, era uma realidade que existia e que ainda perpetua no país, como pôde ser observado e constatado durante a pesquisa de campo que, em todos os níveis escolares, há falta de professores qualificados para as classes e disciplinas que lecionam: “1/4 dos professores do EP1 não possui formação específica e a maioria recebeu apenas seis anos de escolarização e um ano de formação profissional” (2003, p. 15).
Torna-se necessário discutir o acesso ao sistema educacional e o uso da violência que os moçambicanos vivenciam desde o período colonial. Os diversos tipos de violências (física, psicológica e simbólica) fizeram parte do processo pedagógico de muitas crianças, adolescentes e adultos, reforçadas pelo uso de uma relação pautada no autoritarismo e em relações hierárquicas. Anos depois, por sua vez, muitas dessas crianças e adolescentes tornaram-se professores, repercutindo uma apropriação de técnicas aceitas e reproduzidas pela sociedade de um estado pós-guerra, legitimado como ato/herança cultural pertencente àquela sociedade (Baloi, 2011).
A escola para Adelaide, e para muitas das crianças, era um lugar em que era preciso estar, mas não necessariamente em que gostava de estar. Adelaide sabia reconhecer as potencialidades dos professores e do que aprendia, ou não, e o modo como a violência, utilizada como campo de medição de forças autoritárias, agia em momentos em que o diálogo não era possível. As crianças falam, compreendem e atribuem significados a determinadas ações, produzindo modos de captar o mundo ao qual pertencem, seja na comunidade, seja na escola. Ensinar e aprender deveriam ser, também, modos de transformar o mundo a partir de leituras sensíveis desses mundos (Freire, 1989).
O que anima é brincar: Gina e o estar na 2ª classe
Gina estava na 2ª classe e ia para a escola todos os dias. O que mais gostava era da hora da “formação” (momento em que as crianças se reuniam em filas no pátio, antes do início das aulas, e recebiam recados dos professores e, depois, faziam brincadeiras antes de começar as aulas). Durante as aulas, as brincadeiras não paravam: apostavam corrida para ver quem acabava a lição antes. Entre correrias e alguns gritos, a professora chamava a atenção das crianças, fazendo com que se calassem. Passado pouco tempo, Gina começou a brincar de novo, afirmando que não gostava da escola, como ilustra a cena[8] seguinte: “Não gosto da escola, cansa muito! Prefiro a explicação[9]. É mais rápida e cansa menos. Posso ver bonecos e brincar logo. Não preciso só falar português. Posso desenhar. Ih, como anima desenho! Eu gosto de brincar. Aqui gosto da hora do lanche”. No lanche, as crianças dividiam tudo o que tinham, sem que fosse preciso pedir. Quando tinha dinheiro, Gina comprava duas bolachas, e dizia: “Essa é pra mim, essa outra hei de dar para quem não trouxe, né? Não é bom ficar a ver os outros comendo. Quando não trago, sempre me dão também”.
Neste dia, a professora, ao final da aula, ensinou a fazer barcos de papéis. Alguns poucos aprenderam, outros não. Gina foi um deles. Sentou ao lado de quem sabia e tentou aprender. Em determinado momento, ela gritou “já sei!” E ela então foi falando “pode vir aqui, hei de te ajudar” para as crianças... E então falou, em tom exclamativo e vibrante, “viu, eu posso aprender e ensinar na escola!”.
Gina ressignificava o espaço escolar: era um lugar em que o brincar prevalecia, e o estar junto com as demais crianças era o protagonista dali. Para aprender, era preciso brincar: não havia outro jeito de conseguir sua atenção nem de fazer com que o que era transmitido, de maneira verticalizada, fizesse sentido. Brincar, no espaço escolar, era também um modo de pertencer: era brincando que Gina e as demais crianças participavam da aula, se faziam presentes, dividiam momentos e saberes, e apreendiam o que era passado. Em muitos momentos, a matéria (Português ou Matemática) era dada através de canções, jogos ou desenhos.
Para Gina, a escola era o espaço do encontro: de poder estar com as outras crianças, de partilhar o lanche, de transcrever aquilo que lhe fazia sentido, de discordar do que não lhe fazia, e de dividir momentos em comum. A cena que relatou a concepção do barco de papel diz sobre isso: trazer à tona o saber fazer das crianças e o protagonismo infantil no fazer. Jurdi, Brunello e Honda (2004, p. 27) discutem que “apropriando-se de um determinado saber, o indivíduo cria possibilidades de intervir e agir no ambiente, transformando-o”. A escola reflete, ou deveria refletir, o lugar do fazer-com, em que as diferenças, possibilidades e potencialidades fossem entendidas como parte do processo de uma educação em que as crianças se apropriam do mundo ao qual pertencem, significando e pertencendo ao seu processo de ensino.
“Sei escrever eu! Só não posso ler”: Félix e as dinâmicas escolares
Félix e seus amigos estavam na 5ª classe e tinham dificuldades na escrita e na leitura: copiavam o que era escrito no quadro, mas não sabiam ler o que dizia. Essa situação era a mesma com muitas crianças de sua classe. Félix ainda saía de seu lugar e ia para frente da lousa copiar, mas muitas vezes seu plano fracassava, pois apagavam o quadro antes dele terminar a cópia. Certa vez, a professora passou um ditado. Um questionamento surgiu: como seria, já que muitos não sabiam escrever sem fazer a cópia? A professora insistiu mesmo assim. Félix e os meninos sentaram ao lado de quem sabia escrever, copiando o que eles haviam escrito durante o ditado. Ao terminar, Félix disse “Não saber ler... Ah, dá confusão! Quando esses que sabem não estão, ah, fico a sofrer”.
Ao final do ditado, a sala se dispersa, então a professora ameaça: “ou lê ou sai”. Félix fica assustado e então vai para frente da sala; ia driblando a professora e trocando de lugar para que sua vez não chegasse. Era o modo de ele estar na aula sem precisar passar vergonha, como ele mesmo explicou. A professora então completa: “bater não posso, mas tá aqui seu lugar: ficar ajoelhado pode. É justo ter gente que vem, se esforça, enquanto outros tão a brincar? 5ª classe repete, e aí nem vai pra exame, esse é o bom. Sabiam vocês? Agora leiam em voz baixa o que escreveram, e não é pra pedir ajudar”. Após ouvir, Félix exclama: “não é pra pedir ajuda?! Nós não sabemos ler!”, mas nenhum dos três professores presentes na sala o ouviu. Félix então decide que ia desenhar, afirmando que “a escola não ajuda. Se não sabe ler, fica sem fazer nada. Hei de desenhar, assim passa o tempo mais rápido”.
A escola aparecia para Félix como dois momentos distintos: a parte em que encontrava os amigos e brincava com eles, e também como uma obrigação a ser cumprida, em que aquele não era o lugar em que queria estar, mas que era preciso ficar. As aulas e os modos como eram ministradas não respeitavam as diferenças e ritmos entre as crianças, não reconhecendo ou atentando aos diferentes processos de aprendizagem, partilhando de uma lógica de homogeneização entre elas.
Santos (2010) discute a necessidade de compreensão de uma educação das e para as crianças que possa ser mais do que um sistema, um coletivo educativo que valorize a diversidade, em que seja necessário romper com os processos do autoritarismo, da submissão, do medo, da exclusão, da homogeneização, da anulação, entre outros, que acabam por silenciar as crianças, deixando-as de fora de um processo de ensino que permita a conscientização do mundo ao qual pertencem.
Para o Instituto Nacional do Desenvolvimento da Educação e o Ministério da Educação (2003), as formas avaliativas acabavam por ser sumativas, ou seja, desempenhavam apenas a função seletiva das crianças, não trazendo suas dinâmicas, modos de fazer e potencialidades criativas distintas, como os desenhos de Félix por exemplo, que pudessem somar aos seus processos, fazendo com que a escola fosse, de fato, um lugar que pertence às crianças e os percursos fossem trilhados em conjunto.
Uma atitude que se pauta em medos e preconceitos faz com que a educação permaneça “atada ao universo de conteúdos, em sua maioria saberes fragmentados e cada vez mais especializados e virtualizados, impedindo o acesso da educação ao compartilhamento com as áreas de conhecimento que apostam no sujeito como ser pensante e sensível” (Casa Redonda, Encontro de aprendizes, 2013, para. 9). É preciso retomar o sensível e o poder criativo das crianças nos ambientes nos quais participam.
Brincar sempre anima mais, não dói e não nos batem: Benito e as aberturas da escola
Beni estava na 6ª classe. A maioria de seus professores faltava, e as crianças usavam o espaço das aulas para brincarem. Era comum as meninas brincarem de roda e os meninos de bola, ou de colocarem panos e capulana[10] ao redor do rosto e passarem nas salas chamando a atenção das demais crianças. Quando os professores faltavam, as crianças não eram avisadas e nem liberadas para irem para casa, e permaneciam na escola até o horário final. Algumas saíam depois de brincarem muito tempo, como foi o caso de Beni numa sexta-feira em que a última aula era de educação física, mas as crianças sabiam que esse professor não apareceria. Questionadas como elas sabiam e se não era melhor confirmarmos, afirmaram que não era preciso: “esse professor nunca vem. Nós nunca tivemos educação física na vida! Ele vem, assina o caderno e vai embora. Às vezes fica até às 14h, depois se vai”.
As crianças reclamavam de outros professores: “Estás a ver aquela ali? Essa finge que dá aula. Entra na sala, coloca a pasta na mesa e sai, fica a beber cerveja. Antes era boa professora, agora já não dá mais aulas. Todos sabem! É por isso que preferimos brincar”, disseram as crianças, completando “vir à escola é isso: torcer para o professor não vir, assim podemos brincar muito. Não sabemos ler direito, quando tentamos, nos batem. Por isso brincar anima mais”.
Para muitas famílias, a escola era o espaço em que a criança deveria estar, mas ao serem questionadas sobre sua finalidade, era difícil definir o papel da escola e da educação na vida cotidiana; ao mesmo tempo que, para as crianças, era divertido haver falta de professores pois o espaço e o tempo eram destinados ao brincar, entendido por elas como uma das únicas funções da escola.
O bater aparecia mais uma vez e fazia parte do dia-a-dia da rotina escolar. Alguns pais não concordavam com isso, como era o caso de Virgínia, mãe de Beni, que já havia ido à escola avisar ao professor que não era permitido que ele ou outro professor batesse em seu filho, pois, segundo ela, bater não é educar.
Ao entendermos a educação como processo de formação humana, deve-se considerá-la como um trabalho educativo que, segundo Saviani (2005, p. 13), é um “ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens”. Surge a necessidade de humanizar os processos escolares e permitir que as crianças participem ativamente de sua formação. Com os professores, o caminho deve ser o mesmo: produzir uma formação que faça sentido, tanto para os que aprendem, como para os que ensinam, em saberes partilhados e múltiplos.
Uma percepção importante foi que o brincar desaparecia ao longo das classes, embora aparecesse nos momentos em que os professores estavam ausentes. O brincar enquanto parte integrante dos processos das crianças na escola traz consigo uma interrogação que deve ser observada: há uma oposição entre brincar e aprender, ou uma complementaridade entre eles? O brincar, enquanto linguagem infantil, traz à cena e ao debate as culturas as quais as crianças permeiam, participam e interagem, e permite, na escola, apropriações pelas crianças sobre o que é transmitido, significado e simbolizado.
Há a necessidade de uma revisão do sistema educacional como um todo, como trazido nessas reflexões, em que a presença de uma atitude compreensiva do mundo das crianças, em que o respeito ao seu universo de conhecimento é indispensável para que a educação as tome como integrantes e participantes ativas na construção da sociedade à qual pertencem.
Ensinar e aprender: aproximações com os múltiplos saberes
As barreiras para uma educação que queira ser acessível, igualitária e ativa na participação e desenvolvimento infantil, como pretende o governo moçambicano, ainda persistem: o espaço físico e a estrutura escolar insuficientes ou inexistentes; a disposição das aulas e as disciplinas lecionadas; a ausência de professores, bem como o despreparo de alguns; o uso da violência física como forma de educação; o uso obrigatório da língua portuguesa, o que dificulta a compreensão do conteúdo e do próprio desenvolvimento escolar; a falta de materiais, entre outros aspectos (Basílio, 2010; Costa, 2009; Pastore, 2015).
Moçambique é um país com mais de 20 milhões de habitantes, no qual a maioria comunica-se em línguas nacionais, como o changana e o rhonga. Os falantes de português no censo de 2007, considerando-o como segunda língua, constituíam 8,8% dos habitantes do país, enquanto 11,4% da população tem o changana como língua materna mais frequente. Na escola (e apenas nela), a maioria das crianças acabava utilizando o português como uma língua oficial imposta pelo plano de educação do país (Costa, 2009; INE, 2007; Medeiros, 2007).
Paulo Freire (1989) discute a necessidade de os educadores (sejam estes professores, assistentes ou diretores) entenderem que a presença de atitude compreensiva do mundo do educando e do respeito ao universo de conhecimento é indispensável para que a educação tome a criança como integrante importante na construção da sociedade à qual pertence.
A escola em Moçambique, nos dias atuais, embora traga o entendimento de que a educação é obrigatória e igualitária dentro de ambiente de garantia de direitos e em que a integridade das crianças seja preservada com base no que diz a legislação moçambicana[11] e textos oficiais, ainda é um dispositivo que potencializa práticas excludentes, como o ensino ofertado em língua estrangeira (português), a distinção por idade e classes, o uso das palmatórias, entre outros, além de não comportar grande parte da população de crianças do país. Este tipo de compreensão descentrada nos indivíduos e que exclui a importância do ser individual e coletivo, singular e plural, acaba por reduzir a potência da escola enquanto transformadora do mundo e da realidade (Cruz, 2005; Pereira, 2013b).
Nos últimos anos, estudos[12] que envolvem a preocupação escolar para além do seu currículo disciplinar vêm ganhando espaço e recolocam um discurso que extrapola a linearidade, em que a incorporação dos saberes infantis e o brincar enquanto método de ensino-aprendizagem se façam presentes e possam, através de práticas afirmativas, colocar a criança como protagonista do seu processo, em que uma prática pedagógica que afirme a presença das culturas infantis e dos saberes locais, múltiplos, se reabre enquanto possibilidade de construção de um novo olhar para as crianças e para os caminhos que a escola pretende seguir (Casa Redonda, 2013).
As experiências vividas pelas crianças nos seus espaços de significação e pertencimento, como a escola, com suas regras e valores próprios de funcionamento, reforçados por um espaço de criação conjunta e sentimento de partilha geram a necessidade de criar e manter um “espaço interativo comum e de brincar juntas, em que as crianças instituem sua própria ordem social” (Ferreira, 2004, pp. 48-49).
Ao questionar de que maneira a escola se encontra, e como passamos a ver tal ambiente apenas em questão de direitos da criança, pautados nos documentos oficiais como a Convenção sobre os Direitos da Criança, da UNICEF (1990) e a Carta Africana sobre os Direitos e Bem-Estar da Criança (ratificada por Moçambique em 1998), buscamos como objetivo o direito à educação, enquanto direito constitucional, que assegura a erradicação do analfabetismo, a educação básica e acesso à formação profissional, mas sem nos atentarmos ao modo como acontece o estar na escola e se essa prática é uma busca diária em que a lógica do pensamento seja o empoderamento da criança, e que o espaço educativo, coletivo, seja um lugar que valorize as diferenças e o respeito, favorecendo a diversidade e a participação num todo.
Se voltarmos o olhar para como a educação está sistematizada, para além de leis e direitos, buscaremos práticas que rompem com os estereótipos dos processos passados e atuais, e que se tornem uma transformação da realidade concreta, enquanto compromisso fundamental para percepção de si e do mundo (Freire, 1989; Santos, 2010). O percurso das crianças, em que o sensível pode ser captado através do ato do brincar, tal como linguagem universal infantil e saber próprio, encontra-se contrário ao caminho das atuais manifestações ditas universais, acessíveis e contemplatórias que o ensino-aprendizagem e a educação englobam em si (Casa Redonda, 2013).
Considerações finais
O processo de educação deve acontecer nos encontros, em que haja a possibilidade de acesso aos conhecimentos diversos que as crianças carregam consigo e entre pares, fazendo com que a apropriação do mundo humano seja parte do seu processo democrático de aprendizagem, em que possam ser criados espaços de transformação, significação, sentido e pertencimento.
Os espaços refletiam, em seus mais diferentes aspectos, lugares em que as crianças estavam, fosse por vontade própria, por desejo dos pais ou por obrigação do Governo, mas traziam em si espaços de expressividade e integração entre crianças e entre elas e os adultos em que a socialização se dava, na contramão do que a maioria dos professores instituía, através das brincadeiras, do desenho, da pintura, das conversas em changana, da divisão dos alimentos no momento da entrada ou no intervalo entre aulas.
A etnografia permitiu a visibilidade deste cenário, trazendo para a discussão o diálogo com questões que não cabem em um currículo ou sistema educacional colonizador, bancário (Freire, 1987), mas que abre espaço para que saberes socioculturais integrem o currículo, em que o envolvimento da comunidade se torna como uma das principais importâncias no processo de ensino-aprendizagem, formando um lugar de interação entre crianças, famílias e comunidade.
Como prática de liberdade (Freire, 1987), deve-se pensar as relações dialógicas, em que a horizontalidade esteja presente, e que as crianças e suas individualidades sejam respeitadas enquanto atores sociais e colaboradores, a partir de uma relação com o outro e com o mundo. Enquanto espaço de formação, torna-se necessário que a escola adote dinâmicas que façam com que as crianças estejam integradas e que produzam significados e compartilhem conhecimentos, em que o brincar e o lúdico, enquanto saberes próprios, possibilitem a interpretação dos mundos e das experiências transformadoras, em que culturas, sociedades e história integrem o leque de saberes e práticas múltiplas, a partir de uma assimilação sensível de mediação de mundos.
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Recebido: 7 de março de 2017
Aceite: 11 de abril de 2018
Notas
[1] O artigo foi produzido com a contribuição e desenvolvimento de ambas autoras no processo de escrita e reflexão. É originário de dissertação de mestrado intitulada “Sim! Sou criança eu”: dinâmicas de socialização e universos infantis em uma comunidade moçambicana.
[2] O Regime Provisório para a Concessão de Terrenos do Estado na Província de Moçambique, de 1909, definia indígena como sendo “o indivíduo de cor, natural da Província e nela residente que, pelo seu desenvolvimento moral e intelectual não se afaste do comum da sua raça”, e, após algum tempo, acrescentando que “indígena” era também o que, “tendo os caracteres físicos dessas raças, não possa provar descendência diferente” (Zamparoni, 2000).
[3] Assim como os demais africanos, eram supervisionadas pelo governo português.
[4] Lei 4/83, de 23 de março.
[5] Lei 6/92, de 6 de maio.
[6] Trecho retirado das anotações de cadernos de campo, 2014.
[7] Língua moçambicana falada pelas crianças da Matola.
[8] Cena retirada das anotações de caderno de campo, 2014.
[9] Termo que se equivale ao reforço, pós-aula.
[10] Tecido típico moçambicano.
[11] Lei 6/92. I Série – número 19. Governo da República de Moçambique.
[12] Benjamin, 1994; Borba, 2007; Cruz, 2005; Freire, 1987; Hortélio, 2017; Kishimoto, 1994; Levinsky, 2008; Morin, 2000; Pereira, 2016; Pereira, 2013a.