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Cadernos de Estudos Africanos
versão impressa ISSN 1645-3794
Cadernos de Estudos Africanos no.37 Lisboa jun. 2019
ARTICLE
Reflexões sobre o Modelo de Desenvolvimento Rural e Cooperação no Corredor de Nacala
Reflections on the model of rural development and cooperation in the Nacala Corridor
Natacha Bruna
Observatório do Meio Rural, Rua Faustino Vanombe, 81, 1º andar, Bairro da Sommerschield, Maputo, Moçambique, natachabruna89@gmail.com
International Institute of Social Studies, Kortenaerkade 12, The Hague, The Netherlands, bruna@iss.nl
RESUMO
O principal objetivo deste trabalho é abordar criticamente o modelo de desenvolvimento rural existente em Moçambique com enfoque no Corredor de Nacala através da análise de dinâmicas, atores externos e internos, estratégias e políticas de desenvolvimento rural na região. Verificaram-se algumas tendências e implicações do modelo de desenvolvimento existente na região como usurpação de terras e apropriação de outros recursos naturais, resultantes em migrações involuntárias e deterioração da qualidade de vida e intensificação de níveis de pobreza das classes mais pobres, presença de alianças estratégicas que alimentam uma acumulação de riqueza de forma desproporcional entre as diferentes classes sociais, emergência de investimentos e cooperação de atores do Sul global com alianças estratégicas com atores do Norte global e uma resultante intensificação da dependência económica de Moçambique.
Palavras-chave: Corredor de Nacala, ProSAVANA, agronegócio, indústria extrativa, recursos naturais
ABSTRACT
The main objective of this paper is to critically address the existing rural development model in Mozambique focusing on the Nacala Corridor by analyzing the dynamics, external and internal actors, rural development strategies and policies in the region. Some trends and implications of the region’s development model were identified: land grabbing and appropriation of natural resources, resulting in involuntary migrations and deterioration of the quality of life and intensification of poverty levels of the poorer classes, presence of strategic alliances that disproportionately allow accumulation of wealth among different social classes, the emergence of investment and cooperation of actors from the Global South with strategic alliances with actors from the Global North and a resulting intensification of Mozambique’s economic dependence.
Keywords: Nacala Corridor, ProSAVANA, agribusiness, extractive industry, natural resources
Em Moçambique, o grande boom de penetração do capital no meio rural na última década coloca o país como um dos principais destinos de aquisição de terra no mundo e em África[1]. Moyo, Jha e Yeros (2013) chamam a este período “the new scramble for resources” e em particular dos recursos em África, que difere da era colonial por envolver especulação e a participação de atores “não ocidentais”.
A massiva penetração do capital em Moçambique exacerba a dependência da economia em recursos externos, em particular do Investimento Direto Estrangeiro (IDE). O modelo de crescimento económico verificado assenta na presença de grandes projetos, os quais determinam a evolução das variáveis macroeconómicas e sociais, como por exemplo a taxa de crescimento económico, a balança comercial e de pagamentos, o índice de desenvolvimento humano e pobreza. Paralelamente, verifica-se o envolvimento de elites políticas e económicas moçambicanas que desempenham papéis de facilitadores e intermediários, de entrada do investimento e aquisição de terra (Borras, Fig, & Suárez, 2011; Bruna, 2017; Fairbairn, 2011; Mosca, Bruna, & Mandamule, 2016).
As consequências da ação capitalista sobre o sector familiar remetem-nos para a necessidade de análise dos conceitos básicos da questão agrária, principalmente no que se refere a concentração de riqueza e expansão da pobreza, através da usurpação e capitalização do recurso terra. Ao analisar o contexto africano, alguns autores (Moyo, Jha, & Yeros, 2013; O’Laughlin, 1996, 2002) referem-se à adoção de uma multiplicidade de estratégias de modos de vida ou multi-ocupacionalidade, incluindo uma combinação de agricultura de sobrevivência com diferentes formas de emprego e outras atividades comerciais.
Adotando uma posição epistemológica de realismo crítico, este trabalho foi baseado em análises de dados primários qualitativos (através de entrevistas e observação direta em períodos não contínuos de trabalho de campo entre 2014 e 2018) e dados secundários quantitativos (dados macroeconómicos). O principal objetivo deste trabalho é o de abordar criticamente o modelo de desenvolvimento rural existente em Moçambique com enfoque no Corredor de Nacala através da análise das dinâmicas, atores externos e internos, estratégias e políticas de desenvolvimento rural na região. A análise inclui dinâmicas de investimento externo (agronegócio e mineração), cooperação e financeirização (enfoque no ProSAVANA) e alianças locais e externas presentes ao longo do Corredor. Adicionalmente, devido à grande participação de atores do Sul global ao longo do Corredor (Brasil, Índia, China e África do Sul) analisa-se também a aplicabilidade da classificação “cooperação Sul-Sul” existente entre alguns dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e Moçambique através da análise dos princípios característicos deste tipo de cooperação: colaboração, solidariedade e similaridade.
Devido à grande dimensão do Corredor e ao grande número de atores que nele operam, este trabalho tem como limitação o facto de não incluir todos os investimentos e programas de cooperação da região, mas sim um grupo mais restrito de investimentos com implicações mais visíveis e reconhecidas que, porém, permite uma análise lógica e coerente.
Breve enquadramento teórico
Nas últimas décadas, a economia moçambicana tem sido dinamizada maioritariamente pela penetração de capital externo nas zonas rurais. O modelo de desenvolvimento existente no Corredor de Nacala, incluindo os projetos piloto do ProSAVANA, investimentos no sector da agricultura e outros investimentos no âmbito da indústria extrativa, seguem a mesma tendência. Este facto remete-nos a recorrer a enquadramentos teóricos que incluam discussões sobre a questão agrária e as implicações em termos de estratificação do campesinato e intensificação da pobreza rural.
Este trabalho pretende usar a economia política como perspetiva de análise do problema em questão. A abordagem de Marx no contexto de acumulação primitiva de capital sublinha a separação dos camponeses dos meios de produção, em particular da terra, transformando-os, deste modo, em uma reserva de trabalho (Marx, 1889). A expropriação dos meios de produção referida por Marx remete-nos a relevantes discussões posteriores sobre a questão agrária, tendo como contribuintes Kautsky e Lenin, mas também autores mais recentes como Bernstein (1990) e Byres (1991).
Procurando explicar as mudanças que ocorrem no campesinato como resultado da ação capitalista, Byres (1991, p. 9) refere que a questão agrária se caracteriza pela existência de obstáculos ao desencadeamento das forças capazes de gerar desenvolvimento económico no campo, tanto dentro como fora da agricultura. Alguns autores adicionam ao debate o facto de a ação capitalista destruir a autossuficiência do campesinato na medida em que este se torna cada vez mais dependente do rendimento para aquisição de bens de consumo básico (Banaji, 1976; Felício, 2014; Fernandes, Welch, & Gonçalves, 2014).
Por sua vez, analisando dinâmicas em África, Moyo et al. (2013) referem-se ao aprofundamento da multi-ocupacionalidade e/ou da semi-proletarização do campesinato nos últimos 30 anos, na medida em que os agregados familiares se engajam em mais de uma atividade económica para além da agricultura de subsistência.
No contexto de transformação do campesinato é relevante abordar as questões ligadas à diferenciação de classes dentro do campesinato através das contribuições de Lenin em relação às desigualdades e à propriedade. Lenin (1982, p. 131) argumentou que os antagonismos de interesses criam vantagens para uns e desvantagens para outros. Portanto, ao invés de diminuir os níveis de desigualdade dentro do processo de desenvolvimento, criarão crescentes diferenças económicas, resultando, deste modo, em classes distintas dentro do campesinato: (1) trabalhadores rurais sem posse de terra e que são “livres” para vender força de trabalho; (2) camponeses pobres ou camponeses de pequena escala; (3) camponeses médios que têm uma quantidade suficiente de terra para subsistência; e (4) camponeses ricos que possuem área cultivada, produzem excedentes e contratam força de trabalho.
Os contributos de Lenin ainda são uma ferramenta útil no processo de caracterização da diferenciação do campesinato, embora algo simplista quando focado em contextos ou realidades mais recentes e mais complexas, especialmente no caso de Moçambique, onde o campesinato é caracterizado pela diversificação de estratégias de subsistência resultante de um processo de adaptação e resistência às diferentes fases históricas do país (O’Laughlin, 1996, 2002).
Fernandes (2008) relaciona a questão agrária com as conflitualidades à volta da terra como resultado da expropriação do campesinato. Este autor aponta como possíveis resultados da formação do capitalismo as conflitualidades, na medida em que estas transformam territórios, paisagens, comunidades, empresas, sistemas de produção, modos de vida através dos diferentes modelos de desenvolvimento promovidos pelos capitalistas.
Metodologia e métodos
Para a construção dos argumentos do corrente trabalho, assumiu-se uma posição epistemológica de realismo crítico na medida em que a pesquisa corrente, para além de solicitar factos e as observações empíricas para responder à questão de pesquisa, necessita também de recorrer a análises mais aprofundadas para compreender a complexidade de interações e das relações de poder (Bhaskar, 1975; Downward & Mearman, 2006; Wynn & Williams, 2012; Yeung, 1997). O realismo crítico foi primeiramente abordado por Bhaskar (1975) como uma posição epistemológica que se classifica entre o positivismo e o interpretativismo. Esta posição capacita o pesquisador/a de ferramentas para fornecer explicações causais mais detalhadas de um determinado fenómeno com base em interpretações de atores relevantes assim como nas estruturas e mecanismos que interagem na produção dos fenómenos em questão (Wynn & Williams, 2012, p. 788).
O realismo crítico está emergindo como um paradigma filosófico viável para a realização de pesquisas em ciências sociais, e tem sido proposto como uma alternativa aos paradigmas mais prevalentes do positivismo e do interpretativismo… Sob o realismo crítico, uma explicação causal para um dado fenômeno é inferida pela identificação explicita dos meios pelos quais as entidades estruturais e as condições contextuais interagem e geram um dado conjunto de eventos (Wynn & Williams, 2012, p. 787).
Em linha com a posição epistemológica, recolheram-se dados quantitativos e qualitativos. A pesquisa baseou-se em dados quantitativos secundários recolhidos diretamente nas instituições públicas ou em websites oficiais das respetivas instituições. Estes serviram de complemento e sustentação da análise qualitativa.
A recolha de dados qualitativos foi feita na base de métodos de observação, análise documental e entrevistas semiestruturadas realizadas em momentos distintos: (1) fevereiro e março de 2014; (2) novembro de 2014; (3) abril de 2015; (4) junho de 2016; e (5) setembro de 2018. Foram visitados os distritos de Ribaué, Malema, Gurúè, Monapo, Muecate, Ile, Namarroi e Meconta, com objetivo de entrevistar atores envolvidos no âmbito da implementação do ProSAVANA, assim como compreender a dinâmica das atividades decorrentes ao longo do Corredor. As entrevistas e as visitas ao campo também tiveram como objetivo analisar a dinâmica dos investimentos, em especial do agronegócio, ao longo do Corredor de Nacala e suas consequências a nível de conflitos e usurpação de terras.
Ao longo destes períodos foram realizadas entrevistas aos seguintes atores: (1) representantes do governo provincial, distrital e local das duas províncias visitadas (Zambézia e Nampula); (2) representantes do sector privado (empresas de agronegócio); (3) líderes comunitários; (4) camponeses; (5) trabalhadores das empresas de agronegócio; (6) representantes e membros da UNAC; e (7) representantes e membros de organizações da sociedade civil e movimentos sociais.
Os dados qualitativos foram processados através da documentação de todo o processo de entrevistas e notas de campo, a fim de acompanhar e construir uma estrutura lógica dos dados coletados. Esse processo permitiu eficiência no processo analítico e na identificação de padrões, explicações e causas relevantes, e responder às questões de pesquisa. Trabalhando de forma complementar, os dados qualitativos foram analisados através do rastreamento de processos.
Abordado por George e Bennett (2005), o rastreamento de processos visa acompanhar os elos entre as causas e os resultados observados. Além disso,
em processo de rastreamento, o pesquisador examina histórias, documentos de arquivo, transcrições de entrevistas e outras fontes para ver se o processo causal que uma teoria tem como hipótese ou implicação em um caso, é de facto evidente na sequência e valores das variáveis intervenientes no mesmo (George & Bennett, 2005, p. 6).
Mais especificamente, este método de análise de dados qualitativos foi ajustado à pesquisa, na medida em que permitiu identificar inferências causais com uma dimensão temporal de eventos.
Para validação, além de comparar as principais descobertas com estudos similares e relevantes, outras questões devem ser levadas em consideração. Miles e Huberman (1994) mostram que o desenho e a verificação das conclusões fazem parte do modelo interativo de análise de dados, incluindo o processo cíclico de retorno e retroalimentação da fase de coleta. Segundo Collier (2011), essa ferramenta é fundamental para descrever fenómenos políticos e sociais, bem como para avaliar as causas, alavancando a análise e as conclusões de dados quantitativos.
Modelo de desenvolvimento rural em Moçambique: enfoque no Corredor de Nacala
Questões gerais de caracterização do desenvolvimento rural em Moçambique
A dinâmica dos preços internacionais de commodities, em particular de alimentos, resultou no aumento de investimentos transnacionais virados ao agronegócio e outras áreas viradas ao mercado externo, como por exemplo a indústria extrativa (Borras et al., 2011; Okada, 2015). É neste contexto que se assiste a uma tendência de penetração do capital em Moçambique e, em particular, no Corredor de Nacala, área com alto potencial produtivo agrícola. O capital referido aparece em forma de multinacionais que alavancam a procura de terra de modo a concretizar os seus objetivos. De acordo com o Land Matrix, Moçambique constituiu, desde o ano de 2000, um dos principais destinos de aquisição de terra no mundo, sendo o sétimo país no mundo e o terceiro em África, com mais de 2,5 milhões de hectares adquiridos nas últimas décadas[2]. Similarmente a outros países africanos, este facto pode justificar-se pelo baixo custo dos fatores de produção, nomeadamente mão de obra e terra ou, por outro lado, devido à posição geoestratégica de Moçambique relativamente aos mercados asiáticos.
Sendo assim, a economia de Moçambique tem verificado transformações em variáveis macroeconómicas (estrutura de exportações, estrutura dos sectores contribuintes do PIB, entre outros) resultantes da entrada de grande volume de Investimento Direto Estrangeiro (IDE), que totalizou, de acordo com o Banco de Moçambique (vários anos), pouco mais de 32 mil milhões de USD no período compreendido entre 2001 e 2017, apenas para o investimento direto estrangeiro. Este volume de investimento apresenta grande concentração[3] nos sectores agrícola e extrativo (recursos minerais e energia), representando em conjunto mais 50% do investimento aprovado de acordo com os dados do CPI.
Para abordar o modelo de desenvolvimento do Corredor de Nacala de forma particular, é necessário que haja uma contextualização e compreensão da dinâmica de crescimento e desenvolvimento económico em Moçambique nas últimas décadas[4]. O modelo de desenvolvimento em Moçambique é baseado em grandes fluxos de entrada de IDE assim como donativos, refletindo a dependência crónica do país na exportação de commodities como uma continuação do modelo colonial. Atualmente, Moçambique constitui um importador líquido de alimentos, bens de consumo e de capital, sendo que grande parte das suas exportações pertencem a grandes projetos com acumulação no exterior. É notável a influência dos grandes projetos nos diferentes indicadores macroeconómicos, desde altas taxas de crescimento e superavits na Balança de Pagamentos. No entanto, o crescimento económico registado e louvado a nível internacional não se tem traduzido na melhoria do índice de desenvolvimento humano (180ª posição em 189 países avaliados, com uma classificação de 0,437, indicando baixo desenvolvimento humano sem melhorias significativas ao longo dos anos[5]) ou numa diminuição significativa da pobreza de acordo com o último inquérito do Instituto Nacional de Estatística (INE, 2016), mais de 46% da população está a viver na pobreza. O número de pessoas que vive na pobreza aumentou para 11,8 milhões, em comparação com o inquérito anterior de 2009.
Como resultado destas dinâmicas atuais, mas também do percurso histórico, político e económico de Moçambique, e em forma de resumo, Monjane e Bruna (2018) identificam três grandes clusters ao analisar a dinâmica do sector rural e agrícola em Moçambique: (1) a existência de uma política neoliberal de desenvolvimento rural e agrícola fracassada, acompanhada do colapso da agroindústria e níveis mais baixos de emprego rural, bem como a estagnação dos níveis de eficiência e competitividade do sector e a incorporação adversa do camponês; (2) um conjunto de opções políticas agrícolas de desenvolvimento que estão aparentemente dentro de um discurso de regime “social-democrata”, mas se materializam através de um regime autoritário de caráter populista que permite ao partido governante consolidar a relação patriarcal com a população, outrora construído pela imagem de uma força revolucionária e libertadora do país; (3) a existência de forças e estímulos externos originários das instituições de Bretton Woods, investidores externos, das organizações humanitárias e de outros atores da comunidade internacional, desde a adoção do programa de reabilitação económica após o declínio do regime socialista até à recente onda de investimento direto estrangeiro que transformou Moçambique em fornecedor de bens primários (commodities agrícolas e minerais).
Transversalmente, o governo de Moçambique é conhecido como promotor de práticas de usurpação de terras por acolher grandes investimentos estrangeiros através de concessões de terra, com o objetivo de gerar produção, receita fiscal, reduzir a pobreza, aumentar o emprego e aumentar a segurança alimentar (Borras et al., 2011; Clements & Fernandes, 2013). O processo de obtenção de terras em Moçambique é muitas vezes facilitado pelas elites políticas ao nível do governo central[6], com o apoio de intermediários a nível do governo local e líderes comunitários[7], que são, para além dos próprios investidores, os maiores beneficiários destes acordos.
Adicionalmente, nas últimas décadas, as políticas públicas dos BRICS (em particular Brasil, Índia, China e África do Sul) tiveram como objetivo a adoção de alianças e cooperação Sul-Sul, estabelecendo como importantes parceiros os países africanos lusófonos. Com suporte do Estado brasileiro as multinacionais extrativas impulsionaram e expandiram o seu investimento (Nogueira et al., 2016).
O Corredor de Nacala, alvo de vários investimentos dos BRICS, detém uma localização estratégica que responde aos interesses iniciais referidos. O Corredor engloba três províncias de bastante potencial agrícola, faz a ligação entre a província de Tete (com todo o seu potencial de carvão mineral e outros minérios) e o porto de águas profundas de Nacala e encontra-se próximo à província de Cabo Delgado (com potencial de gás e petróleo).
Figura 1
O estudo focará algumas das principais vertentes do modelo de desenvolvimento existente ao longo do Corredor: financeirização e políticas de desenvolvimento rural (com foco no ProSAVANA); dinâmicas do agronegócio e ocupação de terras; desenvolvimento da indústria extrativa e suas implicações; papel das elites, alianças e cooperação. Para uma melhor compreensão das interações e intersecções, o sector de infraestruturas de suporte é transversalmente analisado.
Financeirização e expropriação de terras: ProSAVANA e os projetos-piloto
Como demonstra Ikegami (2015), o governo japonês manifestou, na última década, um grande interesse em Moçambique, tendo como principais áreas de investimento o gás natural, carvão, madeira e refinaria de alumínio. Neste âmbito, alinhado ao Plano Estratégico para o Desenvolvimento do Sector Agrário (PEDSA), surge o programa triangular ProSAVANA, o qual constitui a principal política pública de modelo de desenvolvimento da agricultura para o Corredor de Nacala.
Como resultado da cooperação entre os governos de Moçambique, Japão e Brasil, o ProSAVANA tem como objetivo o desenvolvimento agrícola da savana em Moçambique, em particular o Corredor de Nacala. A área de estudo compreende uma extensão de 107.002 km2, que representa aproximadamente 13,4% do território moçambicano, abrangendo três províncias (Nampula, Niassa e Zambézia) e no total dezanove distritos. Habitam nesta área aproximadamente 4.287.415 pessoas, as quais representam sensivelmente 17% da população, pois é sabido que as províncias de Nampula e Zambézia são as mais populosas do país.
O programa é constituído por três principais projetos (MASA, 2015): (1) ProSAVANA-PI com objetivo de melhoria da capacidade de pesquisa e transferência de tecnologia; (2) ProSAVANA-PEM para criação de modelos de desenvolvimento agrícola comunitários com melhoria do serviço de extensão agrária; e (3) ProSAVANA-PD. O Plano Diretor (PD) deste programa, publicado em março de 2015, é um documento que contém todos os princípios orientadores e pilares em que o programa se sustenta para o desenvolvimento agrário do Corredor de Nacala, incluindo as atividades no âmbito dos projetos PI e PEM.
O ProSAVANA foi considerado por muitos autores (Clements & Fernandes, 2013; Fingermann, 2013; Funada, 2013; Mosca & Bruna, 2015; Shankland & Gonçalves, 2016) assim como por organizações da sociedade civil (OSC) dos três países como uma possível réplica do PRODECER[8], não só pelas similaridades estruturais e conceituais, como também pelos atores envolvidos (Brasil e Japão). Embora existam resistências em assumir esta similaridade por parte dos governos, esta expressão foi oficialmente usada pelo ministro da Agricultura de Moçambique, José Pacheco, em dezembro de 2012 (Funada, 2013) e foi inicialmente uma insistência da JICA em incorporar as experiências do Cerrado em Moçambique (Ikegami, 2015). Estes dois factos sustentam as preocupações e questionamentos das OSC em relação à transferência dos impactos negativos registados no Brasil para Moçambique.
Os impactos negativos do PRODECER foram abordados por diferentes autores. Funada (2013) por exemplo, aborda as questões ligadas à conservação da biodiversidade, poluição e a invasão de monoculturas de rendimento e, principalmente, sublinha as questões ligadas à perda de terras. Por sua vez, Clements e Fernandes (2013) indicaram aspetos como desflorestação, deslocamento de produtores rurais e comunidades indígenas e contaminação da água devido à intensificação do uso de químicos. Em resumo, Clements e Fernandes (2013) referem que o Brasil, através do ProSAVANA, possivelmente exportará para Moçambique um modelo de desenvolvimento rural com insucesso no que se refere à promoção de segurança alimentar e sustentabilidade.
Neste contexto, Okada (2015) refere que, apesar de os discursos públicos em volta do ProSAVANA incluírem referências sobre desenvolvimento nacional ou segurança alimentar global, na realidade as estratégias do ProSAVANA estão inclinadas a servir elites políticas locais e agronegócios estrangeiros, deixando de lado os grupos sociais mais vulneráveis. O trecho seguinte, retirado de um comunicado de duas OSC, confirma essas abordagens:
Famílias camponesas das comunidades rurais do Corredor de Nacala vivem sob permanente ameaça de invasão e expulsão de suas áreas. A usurpação de terras dos camponeses neste corredor logístico de escoamento de carvão mineral de Moatize, cuja linha férrea é operada e controlada pela empresa brasileira Vale e japonesa Mitsui, agravou-se depois do lançamento do ProSavana, em Abril de 2011, da Nova Aliança para a Segurança Alimentar e Nutricional em África, em 2013, e da Companhia de Desenvolvimento do Vale do Rio Lúrio, em 2014 (CajuPaNa & ADECRU, 2016, p. 1).
Verificam-se algumas evidências da exportação deste modelo para Moçam-bique no âmbito das primeiras atividades realizadas ao longo do Corredor como parte do ProSAVANA-PD. O PD teve como um dos projetos-piloto o financiamento agrícola a pequenas e médias empresas denominadas Quick Impact Projects (QIP) através da empresa público-privada GAPI - Sociedade de Investimentos. Estes financiamentos tiveram implicações relacionadas com o acesso à terra e conflitos em volta da mesma. O caso da empresa Matharia Empreendimentos mostra como um financiamento do ProSAVANA despoletou um conflito de terras entre a empresa e a população local. Agregados familiares que viviam nas tais áreas por um período superior a 10 anos foram expulsos e deslocados para dar lugar às atividades da empresa. Sublinhe-se que tal período de tempo, de acordo com os direitos consuetudinários em Moçambique, dá plenos direitos de propriedade a estes agregados.
No entanto, segundo as entrevistas realizadas e visitas às respetivas áreas, verificou-se que esta comunidade foi expropriada sem nenhuma ação corretiva do governo local ou provincial. Apontam-se, como principais implicações do processo de expropriação de terras e reassentamentos, o aumento do risco de insegurança alimentar e a intensificação do nível de pobreza devido à perda de terras para a prática da agricultura tanto de subsistência como para comercialização.
Investimento externo em forma de agronegócio: conflitos e usurpação de terras
Tem-se verificado ao longo do Corredor a implantação de investimentos que respondem às atividades e objetivos propostos pelo programa ProSAVANA, mas que assumem não estar ligados ao mesmo. Empresas de capital estrangeiro, ou parcialmente moçambicanas, têm-se estabelecido ao longo do Corredor com inclinação para o fomento e/ou produção de soja, milho e/ou culturas consideradas prioritárias pelo PD, como por exemplo: (1) Mozaco e o Grupo Espírito Santo, com capital português, adquirindo mais de 2 mil hectares; (2) Alfa Agricultura, com capital sul-africano, adquirindo aproximadamente 1.000 hectares; (3) AgroMoz, que constitui uma joint venture entre o grupo Américo Amorim de Portugal, Intelec Holdings, com ligações a Salimo Abdula e ao ex-presidente Armando Guebuza, e à companhia brasileira Pinesso, os quais adquiriram mais de 3 mil hectares; (4) tendo adquirido mais de 20 mil hectares a Hoyo-Hoyo, empresa moçambicana pertencente ao grupo português Quifel Resources; (5) Rei do Agro, estabelecida pelo grupo de capital americano Aslan Global Management, adquiriu 2,5 mil hectares.
Adicionalmente, verifica-se a tendência de emergência de investimentos em plantações florestais ao longo e em zonas transversais ao Corredor, como por exemplo: Portucel Moçambique (173 mil hectares na Zambézia sem consulta comunitária e sem reassentamentos) e Green Resources/Chikweti (mais de 180 mil hectares no total ao longo do Corredor, com várias reclamações em relação ao processo de indemnização e compensação das famílias). Este conjunto de empresas, tanto as de plantações florestais como as mencionadas anteriormente, esteve direta ou indiretamente relacionado com conflitos de terra e, por conseguinte, usurpação de terras ao longo do Corredor de Nacala (UNAC & GRAIN, 2015). O termo “usurpação de terras” implica a perda de controle sobre a terra das populações rurais, em que no processo de aquisição da mesma tenha havido o desvio da legislação (incluindo a de reassentamentos) e em particular o desrespeito dos direitos consuetudinários. Nos casos acima descritos, pelo menos um destes foi verificado.
Consequentemente, em conjunto, verificou-se uma massiva deslocação involuntária de um grande número de famílias ao longo do Corredor e zonas transversais. No caso da Portucel Moçambique, até ao ano de 2017, mais de 2.000 agregados familiares viram suas terras ocupadas pela empresa[9], e grande parte deles não passaram por nenhum processo de reassentamento nem de compensação/indemnização suficiente para manutenção ou melhoria da qualidade de vida (Bruna, 2017). A empresa Hoyo Hoyo expropriou cerca de 836 famílias no distrito de Gurué que tiveram que ser retiradas das áreas que hoje pertencem à empresa para áreas circunvizinhas, com claros desvios à implementação da Lei de Terras (Mandamule & Bruna, 2017). A implementação de um outro investimento na fronteira entre o distrito do Gurué e o distrito de Malema, AgroMoz, resultou na deslocação forçada de aproximadamente 1.000 famílias sem a realização de consulta comunitária (Mandamule & Bruna, 2017). Um outro investimento que adquiriu aproximadamente o mesmo número de hectares no distrito de Malema, a Mozaco, também forçou a deslocação de cerca de 1.000 famílias (UNAC & GRAIN, 2015). O que significa que grande parte dos agregados familiares ou perderam suas terras, ficando assim privados de exercer a prática de agricultura de subsistência e transformando-se em mão de obra barata para tais investimentos, ou foram reassentados em locais com menor acesso a recursos como fontes de água, solos férteis e serviços públicos (educação, saúde e transportes).
Indústria extrativa: boom de investimento, redistribuição e conflitos de terra
A dinamização do Corredor de Nacala como um corredor logístico surge maioritariamente em resposta aos investimentos de extração de carvão em Tete. De acordo com Selemane (2010), o renascimento da exploração de carvão mineral em Moçambique começou em 2007, quando uma das maiores empresas de extração de carvão do mundo assinou um contrato de exploração com o Governo, a Companhia Vale do Rio Doce, com sua filial local, a Vale Moçambique.
Posteriormente, muitas outras grandes empresas, como a Riversdale e a Rio Tinto, começaram a operar neste sector causando transformações sociais e económicas em regiões distintas da província de Tete, sendo posteriormente considerado um dos mais importantes polos de desenvolvimento regional de Moçambique. Aproximadamente 600 milhões de USD foram investidos em Moatize (Província de Tete) apenas em 2009, para que as multinacionais de mineração iniciassem a exploração e extração de carvão.
Como resultado destes investimentos, surgem as aquisições de terras em grande escala que, consequentemente, levaram à deslocação e reassentamento dos agregados familiares residentes nas áreas com potencial de carvão para outras áreas. Vários estudos (Büscher, 2014; Jone, 2014; Mosca & Selemane, 2011; Selemane, 2010, entre outros) comprovam que a população reassentada sofreu transformações desafiadoras dos seus meios de subsistência, como a falta de acesso a mercados, maiores custos de transporte e menor rendimento agrícola. Até hoje, a insegurança alimentar continua a ser um problema para as comunidades reassentadas.
Apesar de um dos principais discursos do governo moçambicano relativamente à acomodação de elevados fluxos de IDE e ao aumento do emprego local, verificou-se que a Vale Moçambique e a Rio Tinto empregaram diretamente 7.500 trabalhadores desde 2008 (Kirshner & Power, 2015, p. 68), incluindo estrangeiros e pessoal administrativo, que não foram recrutados localmente. O reassentamento significou menores probabilidades de serem empregados, uma vez que as áreas de reassentamento estavam localizadas longe da área de extração.
De acordo com Büscher (2014), a comunidade reassentada nesta nova área, chamada Cateme, sofreu transformações desafiadoras da sua subsistência, como a falta de acesso a mercados e outras instalações, maiores custos de transporte e menor produção agrícola. Muitos estudos (Feijó, 2016; Jone, 2014; Selemane, 2010) enfocando Tete, mostram as mesmas tendências em relação às mudanças nos meios de subsistência dos camponeses: acesso a áreas com menor fertilidade; redução da produção de alimentos e culturas de rendimento para subsistência; diminuição do acesso a mercados rurais e serviços públicos; e instabilidade social, como aumento do número de protestos: bloqueios ferroviários, greves, tumultos violentos após o processo de reassentamento envolvendo camponeses e não camponeses.
O cenário verificado na indústria de mineração em relação aos reassentamentos mostrou que o governo de Moçambique foi incapaz de garantir a aplicação da lei e a imparcialidade durante todo o processo de reassentamento, a fim de fornecer segurança de posse de terra para os camponeses afetados. Consequentemente, a capacidade de produção de alimentos ou culturas de rendimento para fins de subsistência e comercialização ficou diminuída, embora uma pequena percentagem beneficiou-se ao longo do processo de negociação e aquisição de terras (líderes locais e outras formas de elite rural).
Por outro lado, a nível macroeconómico verificou-se, em média, uma alavancagem nas exportações do país como consequência da comercialização do carvão mineral no mercado internacional. A exportação do carvão teve início em 2011, valorizada em aproximadamente 21,2 milhões de USD, no entanto, atingiu em 2016 os 719,2 milhões, tornando-se assim no produto mais exportado de Moçambique depois do alumínio.
Alianças e elites políticas
Diferentes estudos (Besseling, 2013; Bruna, 2017; Chivangue & Cortez, 2015; Harrison, 2010; Mosca, Abbas, & Bruna, 2016; Mosca, Mandamule, & Bruna, 2016) abordam o envolvimento de governantes em posição privilegiada pelo acesso a informações importantes (áreas com potencial agrícola ou mineiro)[10] ou pela influência na legislação. Por exemplo, Besseling (2013) afirma que os ex-presidentes Armando Guebuza e Joaquim Chissano, entre outros membros do partido Frelimo, influenciam a indústria do gás e que Armando Guebuza detém ligações, interesses e participação na empresa Intelec Holdings (com ações na SASOL, empresa exploradora de gás) e na Insitec[11]. Neste contexto, Castel-Branco (2008, p. 44) afirma:
Investidores nacionais, particularmente os que investem em grandes projectos, ou pedem empréstimos bancários (o que é registado como empréstimos e não como IDN), ou investem com “capital político”, isto é, com a sua capacidade de controlar o acesso a recursos naturais (água, terra, recursos minerais), influenciar decisões, organizações, instituições (incluindo políticas, leis e pacotes de incentivos fiscais e outros), antecipar projectos de infra-estruturas associados à exploração de recursos naturais, e de “facilitar” o acesso dos investidores estrangeiros aos recursos naturais. Esta é uma forma específica e concreta de acumulação capitalista primitiva em Moçambique […] A acumulação primitiva não começa com poupança mas com o controlo sobre os recursos, o Estado e o trabalho, e das rendas que provêm desse controlo (Marx 1983 e Fine & Saad-Filho 2004). No caso moçambicano, este processo de reestruturação da propriedade dos recursos e do trabalho é acompanhado com a aliança e dependência das novas classes capitalistas nacionais com o grande capital estrangeiro.
Ao nível local, percebe-se que as alianças entre os investidores e elites locais (representantes de governos locais e líderes comunitários) não são de forma alguma favoráveis aos trabalhadores rurais e camponeses, pois permitem desvios à legislação (em termos de cálculos de indemnizações e outras questões ligadas à compensação às famílias) e intensificam os níveis de estratificação rural. Fairbairn (2011) aborda o papel das elites locais/distritais em Moçambique, argumentando que elas se posicionariam como intermediários em aquisições de terras estrangeiras ou se apropriariam das terras em resposta à alta demanda externa de terras.
No caso da Portucel Moçambique, verificou-se, ao longo do trabalho de campo, uma concentração de benefícios para os líderes comunitários (oportunidade de emprego permanente, aumento do número de machambas, aumento da produção agrícola para comercialização, acesso a mercados, casas melhoradas e acesso a bens como motorizadas e bicicletas). No entanto, a grande maioria dos agregados encontrava-se em situação de perda de terras, diminuição da produção agrícola e caso tivesse oportunidade de emprego, seria sazonal ou pontual. De acordo com o levantamento junto aos camponeses, em média a produção agrícola diminuiu para cinco das oito principais culturas produzidas na região (amendoim, feijão, mandioca, milho e arroz), manteve-se para batata-doce e mapira, e aumentou em proporção menor para soja (Bruna, 2017).
Face ao elevado interesse em investir no Corredor de Nacala como resultado da integração económica de sectores de elevado potencial económico (indústria extrativa, agricultura e infraestruturas), adicionado à localização geoestratégica do Porto de Nacala, a procura de terras para a implementação de investimentos em ambos sectores tem sido elevada. Neste cenário, criam-se alianças entre o capital (externo e interno) juntamente com os governos locais e líderes comunitários, como forma de facilitar o processo de obtenção de terras pelos investidores estrangeiros.
Cooperação, alianças externas e interesses económicos em volta do Corredor de Nacala: infraestruturas de suporte ao capital estrangeiro
No contexto do surgimento dos BRICS e os discursos em volta das potencialidades de cooperação entre atores Sul-Sul, verificaram-se grandes entradas de investimento brasileiro, indiano, chinês e sul-africano ao longo do Corredor, incluindo para a indústria de mineração em Tete especificamente para a extração de carvão mineral. No entanto, verifica-se uma cooperação entre os BRICS e alguns países do Norte global como o Japão. Por exemplo, a empresa brasileira Vale Moçambique recentemente vendeu 15% das ações à empresa japonesa Mitsui & Co, a qual também participa no corredor de desenvolvimento estratégico (Corredor de Nacala), que inclui uma linha férrea de Moatize (Tete), através do Malawi, terminando num terminal de carvão no Porto de Nacala. Adicionalmente, a Agência Japonesa de Cooperação Internacional (JICA) está financiando muitos quilómetros de construção e reabilitação de estradas em todo o Corredor de Nacala, altamente integrado à reabilitação e construção das ferrovias conectando o Porto de Nacala, financiado pela Vale Moçambique e Mitsui & Co. Adicionalmente, países como Portugal e Dinamarca financiam programas relacionados com a construção de infraestruturas, incluindo pontes e estradas.
Coincidente com a região de implementação do ProSAVANA (que também envolve a JICA como protagonista), o Corredor de Nacala tem sido alvo de construção de algumas das infraestruturas de apoio dos principais megaprojetos, incluindo aeroportos, portos e até reabilitações rodoviárias, as quais estão a ser lideradas por construtoras brasileiras.
O Governo acredita que o ProSAVANA e os investimentos ao longo do Corredor sejam um ponto de viragem para o sector da agricultura e seus respetivos níveis de produtividade em Moçambique através da intensificação da agricultura e o aumento do uso de fertilizantes. Coincidentemente, na mesma região, a Vale Moçambique estudou a possibilidade de adquirir uma mina de fosfato em Monapo (Evate) que poderia potencialmente alimentar a demanda de fertilizantes ao longo do Corredor[12].
Portanto, tendências recentes mostram que ao futuro do Corredor de Nacala reserva-se uma exploração integrada do território em resposta aos planos do governo moçambicano que estão, diretamente, alinhados aos interesses dos investidores e cooperação internacional, que inclui desenvolvimento do agronegócio (monoculturas de exportação, plantações florestais, entre outros), indústria extrativa (carvão mineral, areias pesadas, energia e outros) e infraestruturas (em particular vias de comunicação para escoamento de produtos agrícolas e minerais).
Okada (2015) refere que a estratégia do Japão, considerado um país “resource-poor, finance-rich” investindo em países “resource-rich, finance-poor”, baseia-se no esquema de ajuda ao desenvolvimento (ODA) com objetivo de facilitar e legitimar a exportação do investimento japonês que reproduz estruturas dependentes nas economias recetoras. Sendo o Japão um dos países mais dependentes da importação de alimentos (Okada, 2015), o país opta por investir em países ricos em recursos.
De acordo com Nogueira et al. (2016) a empresa brasileira Vale Moçambique, que atualmente explora o carvão mineral na província de Tete, financiou o primeiro zoneamento do potencial agrícola de diferentes regiões em Moçambique no âmbito do planeamento do ProSAVANA antes de este ser lançado. Verifica-se também o envolvimento da empresa japonesa Mitsui como parceira da Vale Moçambique no âmbito da reconstrução da linha férrea. Foi reconhecido que ambos projetos (Vale Moçambique e ProSAVANA) beneficiariam da linha férrea a ser construída que liga Tete ao Porto de Nacala, não só pela profundidade do Porto (permitindo o manuseamento de grandes tonelagens) como também pela proximidade do mercado asiático (Nogueira et al., 2016).
Implicações do modelo de desenvolvimento rural do Corredor de Nacala
Como foi verificado, as alianças (de agentes externos) estratégicas procuram proporcionar benefícios multilaterais, excluindo principalmente as classes mais baixas que representam a maior parte da população rural, como se tem verificado em casos específicos do Corredor. Estas alianças são estratégicas para todos os parceiros estrangeiros envolvidos pois têm o papel de exercer um efeito multiplicador das mais-valias das empresas, como é o caso da exploração de fosfatos pela Vale Moçambique, com procura garantida de fertilizantes no âmbito das empresas de agronegócio do ProSAVANA. Neste contexto Garcia e Kato (2016) referem:
Isso torna o Corredor de Nacala, no nosso entendimento, área privilegiada para identificar e analisar a sinergia entre os investimentos e as iniciativas implementadas pelas empresas brasileiras, em particular do setor de mineração e agropecuário, e as políticas de cooperação. Os investimentos e a cooperação convergem para ampliar e favorecer a consolidação de cadeias globais de valores minerais e agropecuários, interligadas aos mercados internacionais. Moçambique se insere, assim, na órbita do capital transnacional (incluindo o brasileiro) como território para maior acumulação global (Garcia & Kato, 2016, p. 82).
Questiona-se, portanto, se estes interesses coincidem com os interesses dos moçambicanos e se os mesmos promovem um crescimento e desenvolvimento sustentável para a economia moçambicana e bem-estar dos seus habitantes como o promovem nas economias de origem dos parceiros de cooperação e investidores. Portanto, o desenvolvimento agrário e rural irá coincidir com o modelo de desenvolvimento desenhado pelo investidor, caracterizado por uma ação capitalista de origem estrangeira com intencionalidades viradas ao resource seeking, muitas vezes em alianças com elites políticas.
Sendo assim, este modelo suporta a acumulação primitiva de capital virado a necessidades do mercado internacional, sustentado por um modelo de aquisição de terras que não respeita os direitos consuetudinários, que marginaliza as necessidades e aspirações dos camponeses e promove maiores níveis de vulnerabilidade das comunidades. Esta situação resulta num aumento de desigualdades económicas e sociais e de conflitualidades.
Adicionalmente, os níveis mais baixos de industrialização suportados pelo modelo extrativista das empresas de mineração em Tete como também dos investimentos de agronegócio ao longo do Corredor fornecem matérias-primas aos mercados asiáticos emergentes não permitem a criação de emprego num nível significativo. Deste modo, este conjunto de investimentos não fornece condições para criação de emprego dos camponeses expropriados, portanto, verifica-se uma crescente rural surplus population, ou seja, um conjunto de pessoas sem terra (ou com menos terra) e desempregadas (ou com oportunidades escassas de emprego).
Neste contexto, Castel-Branco (2014) refere que, embora Moçambique tenha crescido aproximadamente 7,5% por ano, é ineficaz na redução da pobreza e no fornecimento de uma base social e económica mais ampla para o desenvolvimento. Este crescimento é principalmente sustentado pela entrada de recursos externos no país, em particular do Investimento Direto Estrangeiro em forma de megaprojetos. Este conjunto de investimentos e projetos em agricultura, indústria extrativa e infraestruturas ao longo do Corredor tende a beneficiar apenas uma restrita elite rural, verificando-se, portanto, um desenvolvimento não inclusivo. Assim, apenas as classes que têm relações diretas e vantajosas com o capital se beneficiam, o que resulta numa intensificação da diferenciação de classes dentro do campesinato.
Questionabilidade dos princípios de cooperação Sul-Sul
Devido à massiva presença de atores e investidores pertencentes ao grupo dos BRICS ao longo do Corredor, e também transversalmente, é importante analisar os princípios que supostamente guiam este tipo de cooperação entre países do Sul global. Sendo assim, esta secção pretende questionar até que ponto os princípios de cooperação Sul-Sul estão presentes na materialização dos investimentos e projetos ao longo do Corredor e de que forma esta está ligada a atores do Norte global.
Para melhor compreender os discursos à volta da chamada cooperação Sul-Sul, explora-se de forma sumarizada os conceitos e princípios da mesma. De acordo com o UNDP (2016) existem três importantes características que distinguem a cooperação Sul-Sul da cooperação Norte-Sul: (1) a nível conceitual e de princípios a cooperação Sul-Sul baseia-se em solidariedade e guia-se por princípios de soberania nacional, envolvendo interesses comuns e benefícios mútuos; (2) em termos de modalidade de cooperação, este tipo de cooperação não envolve transferências unilaterais (como donativos), mas sim baseia-se em trocas comerciais, de investimento, de tecnologia e até migração; e (3) mais importante, este tipo de cooperação deve ser baseado numa relação horizontal e inclusiva.
A Comissão das Nações Unidas para a África (UNECA, 2013) apresenta várias “diretrizes” sobre a cooperação África-BRICS em relação ao engajamento do continente com este conjunto de países e como África pode aumentar o crescimento económico, o emprego e a transformação estrutural através desse engajamento. Seu foco principal é reduzir a pobreza por meio da criação de emprego e maximizar a oportunidade por meio da assistência ao desenvolvimento fornecida pelos BRICS. Importa referir que Moçambique, estando integrado nos Millennium Development Goals, tem como principais objetivos a diminuição dos níveis de pobreza, o aumento dos níveis de alfabetização, questões de género e outros grupos vulneráveis, luta contra epidemias e sustentabilidade ambiental.
A cooperação Sul-Sul inclui também programas triangulares (UNDP, 2016) tal como se percebe na cooperação Brasil-Japão-Moçambique no que se refere ao ProSAVANA. Adicionalmente, o texto procura salientar aspetos ligados em particular às relações existentes entre Brasil e Moçambique ao longo do Corredor, procurando refletir sobre a autenticidade desta considerada cooperação Sul-Sul. As implicações e características deste programa de cooperação foram descritas anteriormente e certamente verifica-se que não só diverge do conjunto de prioridades da região como também pressupõe implicações negativas ao desenvolvimento rural.
Olhando para a emergente procura e aquisição de terra por alguns atores BRICS ao longo do Corredor, nota-se que esta promoveu a redistribuição de recursos naturais (incluindo terras para fins agrícolas) que reformulou a posse de meios de produção e a capacidade de criação de riqueza a favor dos investidores. Pelo facto de estes serem intensivos em capital e sem o desenvolvimento de industrialização, esta cooperação não proporcionou emprego rural suficiente e, consequentemente, altos níveis de desemprego rural são verificados. Embora Moçambique tenha atingido altos níveis de crescimento económico, as implicações da implantação destes investimentos divergem dos objetivos prioritários de Moçambique referidos anteriormente. Portanto, está longe de ser considerada uma questão de benefício mútuo e solidariedade.
Os discursos sobre benefício mútuo e solidariedade implicam o reconhecimento das necessidades de cada um dos países. Deste modo, as estratégias de desenvolvimento devem responder às necessidades e prioridades de ambos os países, o que não acontece no processo de negociação de contratos do Governo e megaprojetos. Estes últimos obtêm excessivos benefícios fiscais a custo do aumento de programas sociais para a população local, como por exemplo: (1) reduções fiscais de 25% na Vale de Moçambique; (2) Isenções a SASOL (IVA e importações). Este facto responde claramente a interesses unilaterais das grandes multinacionais e não às necessidades internas do país, as quais não incluem o desenvolvimento de uma indústria extrativa mas sim o aumento da produção alimentar e o melhoramento dos serviços públicos, a educação e a saúde.
Adiciona-se à análise o suporte financeiro ao sector de infraestruturas, proporcionado não só pelos BRICS, mas também por alguns países do Norte global como o Japão. Estes recursos são estrategicamente direcionados ao suporte de reabilitação e/ou construção de infraestruturas que respondem diretamente aos interesses dos seus respetivos investimentos principalmente relacionados com o escoamento de commodities para exportação pelo Porto de Nacala.
Por outro lado, a economia de Moçambique aumentou a sua dependência externa não apenas de empréstimos e doações, como também em relação à dinâmica do comércio internacional na medida em que Moçambique entrou em um esquema de fornecedor de matérias primas com vista à industrialização de outros países (em particular BRICS) sem que haja desenvolvimento da industrialização nacional.
Considerações finais
O crescimento da economia moçambicana tem estado bastante dependente da entrada de capital estrangeiro, com um enfoque no IDE, com ações capitalistas de acumulação primitiva de capital, que é feita maioritária ou totalmente no exterior, sem apresentar melhorias na qualidade de vida para a maioria da população. O envolvimento de elites políticas é feito como forma de facilitar a entrada e atividade destes investimentos em particular na aquisição de terras.
No entanto, o crescimento económico registado e louvado a nível internacional não se tem traduzido na melhoria do índice de desenvolvimento humano ou numa diminuição significativa da pobreza. Conforme referido por Lenin (1982, p. 131) num contexto de capitalismo e relações capitalistas, estes antagonismos de interesses implicam vantagens para alguns e desvantagens para outros e criam novas classes de população rural como resultado da desigualdade de propriedade. Portanto, ao invés de diminuir os níveis de desigualdade dentro do processo de desenvolvimento, o modelo verificado em Moçambique e no Corredor de Nacala induz ao aumento das diferenças não só entre as classes de camponeses (ricos, médios, pobres e sem terra), como também noutros domínios da sociedade.
Através da análise das dinâmicas específicas do Corredor de Nacala, verificaram-se algumas tendências e implicações do modelo de desenvolvimento existente na região: (1) land grabbing e apropriação de outros recursos naturais, permitindo assim acumulação primitiva de capital de agentes estrangeiros e elites; (2) migrações involuntárias, deterioração da qualidade de vida e intensificação de níveis de pobreza das classes mais pobres, em particular dos camponeses; (3) intensificação da estratificação rural pela disparidade de ganhos e benefícios por classe; (4) presença de alianças estratégicas que alimentam essa acumulação de riqueza de forma desproporcional entre as diferentes classes sociais; (5) emergência de investimentos e cooperação de atores do Sul global com alianças estratégicas com atores do Norte global, que embora tenham um discurso de promover formas alternativas de desenvolvimento, constituem não mais que uma continuação do modelo dos atores do Norte global, que se baseia na exploração de recursos com relações de poder e ganhos desequilibrados; (6) intensificação da dependência económica de Moçambique na medida em que se aprofunda o papel do país como fornecedor de matérias primas que alimentam a industrialização de outros países, sem alimentar o desenvolvimento da indústria nacional.
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Recebido: 30 de setembro de 2016
Aceite: 02 de janeiro de 2018
Notas
[1] Land Matrix: https://landmatrix.org/en/
[2] https://landmatrix.org/en/get-the-idea/web-transnational-deals/ (consultado a 22 de novembro de 2018).
[3] Mosca, Abbas e Bruna (2013) constatam que aproximadamente 90% do valor dos investimentos aprovados concentra-se em, aproximadamente, 6,7% dos projetos de investimento.
[4] Para uma melhor compreensão das conclusões seguintes, consultar Mosca, Abbas e Bruna (2013, 2016) e Castel-Branco (2008).
[5] UNDP: http://hdr.undp.org/sites/all/themes/hdr_theme/country-notes/MOZ.pdf (consultado a 22 de novembro de 2018).
[6] Para uma melhor compreensão do envolvimento de elites na obtenção de terras, ver Chivangue e Cortez (2015). Dá-se como exemplo as ligações existentes entre o ex-presidente da República Armando Guebuza, através da Intelec (Bruna, 2017; Chivangue & Cortez, 2015; Nogueira et al., 2016), e uma das maiores empresas (de capital brasileiro) produtora de soja envolvida em conflitos de terra e deslocações forçadas no Corredor de Nacala (Mandamule & Bruna, 2017).
[7] Um conjunto de entrevistas às comunidades afetadas por diferentes investimentos ao longo do Corredor de Nacala indica o envolvimento de líderes comunitários e membros do governo local nos processos de aquisição de terra.
[8] De acordo com o site http://www.campo.com.br/proceder/, consultado a 27 de setembro de 2016, PRODECER (Programa de Cooperação Nipo-Brasileira para o Desenvolvimento dos Cerrados) “teve início em um comunicado conjunto assinado pelo primeiro-ministro japonês Kakuei Tanaka, e pelo então presidente do Brasil, Ernesto Geisel, em setembro de 1974, que estabelecia a relação entre os dois países sobre o desenvolvimento agrícola, com objetivos de (1) estimular o aumento da produção de alimentos; (2) contribuir para o desenvolvimento regional do país; (3) aumentar a oferta de alimentos no mundo; e (4) desenvolver a região do Cerrado.”
[9] Relatórios cedidos pela empresa no ano de 2017.
[10] O serviço de partilha de informação nº 1/2013 do Centro de Integridade Pública (CIP, 2013) lista um conjunto de nomes de distribuição de licenças de prospeção e pesquisa mineira sem transparência, resultante do acesso privilegiado de informação sobre a localização dos recursos naturais em Moçambique no seio das elites, incluindo locais no Corredor de Nacala e áreas próximas.
[11] Para mais informações, ver www.intelecholdings.com
[12] https://macauhub.com.mo/pt/2012/06/11/portugues-vale-mocambique-inicia-estudos-para-explorar-fosfatos-no-monapo/ e https://portugaldigital.com.br/brasileira-vale-estuda-reservas-de-fosfatos-em-nampula/