Neste texto analisaremos sumariamente o devir histórico e as contingências do sistema democrático e, em particular, as eleições de 7 de outubro de 2018 em São Tomé e Príncipe, procurando recensear pontos de reflexão sobre a sobrevivência da democracia num contexto micro-insular em África. Ao invés de equacionar a viabilidade da democracia representativa1 à luz de uma presumida idiossincrasia africana, sopesa-se a sintonia da evolução histórica e do apriorismo da superioridade da democracia enquanto regime de governação2 com as escolhas políticas dos são-tomenses, as quais, tendo por base princípios políticos ou meras motivações de contingência ou de conjuntura, não constituem necessariamente a razão3.
Neste texto não se invoca uma noção cristalizada de insularidade ou uma suposta idiossincrasia, nem se absolutiza uma noção normativa ou estrita de democracia4, assente na realização de eleições livres e nas liberdades individuais que as possibilitam e com elas se podem fortalecer. Sopesada a história e os condicionalismos da recente evolução política no arquipélago, intenta-se uma interpretação dos resultados eleitorais de outubro de 2018 e, bem assim, da performance dos órgãos institucionais enquanto garantes da democracia formal, esteio das liberdades cívicas e do espaço de decisão política dos cidadãos.
A incerteza sobre o devir histórico não é menor por se tratar de duas pequenas ilhas. Ao arrepio da eventual suposição sobranceira relativamente à mais fácil resolução dos problemas sociais, a micro-insularidade revela-se crescentemente complexa, fruto do avolumar desses problemas, da escassez de recursos, da deliquescência das instituições e, arriscaríamos dizer, da consequente facilidade de dominação de um meio insular. Também por isso, ao invés do que erroneamente se queira inferir das votações5, não sobram razões para otimismos quanto à preservação ou ao apego à democracia, desde logo pelas inúmeras dificuldades respeitantes às necessidades mais primárias, do que resulta a inexistência de tempo político para os sucessivos governos, em especial na ausência de ondas de adesão emocional a um big man ou a políticos carismáticos.
Noutros termos, apesar do curso de palavras emblemáticas em ocasiões solenes, permanece incerta a relação entre, por um lado, traços idiossincráticos eventualmente imputáveis à micro-insularidade, forçosamente facetada pela história e, em particular, pelas contingências do pós-independência, e, por outro, a tendência de evolução política no arquipélago, cuja adesão à democracia representativa poderia estar a diminuir, menos pela aventada inadaptação dos mecanismos constitucionais do que pela incapacidade de parar o acúmulo das dificuldades das pessoas ao cabo de sucessivas governações.
Entre as dificuldades, cite-se, para lá da custosa angariação da sobrevivência, a desregulação social e os imprevisíveis óbices a qualquer esperança, a desconfiança e a acrimónia que desembocam na interiorização de visões depreciativas dos são-tomenses sobre si mesmos e na conclusão da necessidade de uma regeneração pela imposição de um certo sentido de ordem por um “pulso forte”, personificado em tempos e moldes diferentes por Pinto da Costa ou Patrice Trovoada6.
Assim, importa avaliar a evolução política pelas ações tendentes à observância e à salvaguarda da democracia e, concretamente, pelos resultados das derradeiras eleições. Diga-se, conquanto seja difícil sopesá-lo cabalmente, talvez cumpra não descartar o chamado substrato cultural7, fruto dos moldes da vida coletiva pautada pela influência de instituições passadas, por exemplo, na noção de indivíduo, disjunta da baseada em laços imprescritíveis entre as pessoas que opera noutros contextos africanos. Em todo o caso, a distinção não é clara e tal substrato, apesar de moldado pela insularidade, não deriva de uma qualquer essência insular, mas da história que em 1975 abriu as portas para uma deriva inimaginável, até para os adeptos da independência.
Embora se relativize a importância de supostas idiossincrasias, não se menoriza o peso do contexto social na corrosão das instituições e, daí, da democracia representativa. Tal corrosão - politicamente bem mais relevante do que a influência diáfana de celebrados artefactos culturais - resulta evidente na dificuldade da administração da justiça, indesmentível quando estão em juízo os mandantes e, bem assim, os seus protegidos. Os escolhos na justiça não se resumem à difícil imparcialidade no juízo de causas próximas, antes se evidenciam na perniciosa subordinação dos juízes aos poderosos e na (eventual) instrumentalização impune do aparelho judicial para pendências civis e, sobretudo, para lutas políticas8.
Em suma, a micro-insularidade há de ser histórica (cf. Nascimento, 2017) e, da democracia, consideremos a vertente, porventura redutora, conquanto não menos decisiva, da livre escolha eleitoral9. Apesar de alvitres acerca de fórmulas adaptadas ou locais de democracia, a realização regular de eleições permitiu a alternância no poder desde 1991 e revelou-se importante quando a democracia esteve ameaçada pela concentração de poder nas mãos de Patrice Trovoada na esteira da conquista da maioria absoluta de deputados em 2014, da vitória de Evaristo Carvalho em 2016 e da subversão da Constituição do país. Sem tempo nem ocasião para ativismos ou lucubrações sobre fórmulas alternativas de democracia, os são-tomenses usaram as eleições para um veredito sobre a governação numa legislatura sem entropias que não as criadas pelo próprio governo.
Os derradeiros anos demonstraram a fragilidade da democracia perante uma ofensiva política que, sem a derrogar completamente, a esvaziava de conteúdo, como o atesta o banimento de órgãos de justiça na sequência de sentenças revertidas de forma atrabiliária, apenas porque pressupostamente pouco conformes a desejos de mandantes.
Apesar de restrições, por exemplo, ao pluralismo na imprensa10, as eleições de 2018 puseram, ao menos momentaneamente, fim a uma deriva autoritária. Não se estava perante uma restauração autoritária11, que, anos depois, sobrevém à vaga (ou à condicionalidade) democrática dos anos 90 em África12, a que, embora por pouco, se antecipou o intento de democratização de São Tomé e Príncipe. Aqui, as eleições de 2018 equivaliam à ratificação, ou não, de uma deriva autoritária decerto meticulosamente gizada e bem executada13 para a dominação na terra através da divisão dos ilhéus. Podemos, pois, falar de uma deriva autoritária14, percebida como tal por muitos que a viveram e, a dado passo, tiveram medo de falar dela e, até, de a nomear.
As eleições de 2018 poderiam ter permitido perpetuar a entrementes encetada subversão do Estado de direito democrático, tornando São Tomé e Príncipe num Estado de um direito qualquer, preterível e ajustado à vontade do mandante. Uma vitória eleitoral de Patrice Trovoada teria permitido alento e tempo para a consolidação a breve trecho de uma situação quase inamovível, tal a especulação plausível em face da facilidade com que, como de um sopro, se subverteu o Estado de direito. Neste artigo, procurar-se-á descrever a recente evolução política do arquipélago, ressaltando o trajeto de atores políticos com desígnios de recorte autoritário num cenário político onde avultam, como linhas de força, a deliquescência das instituições e as pulsões da rua. Focar-se-á a tentativa de construção de uma solução autoritária por Patrice Trovoada, primeiro-ministro entre 2014 e 2018 e chefe e patrono de um partido de um homem só, tentativa interrompida por uma derrota tangencial nas eleições de outubro de 2018.
Para o propósito deste texto, a descrição densa pareceu o melhor suporte para a compreensão e a explicação históricas - as que permitem um balanço crítico - da trajetória de conquista de poder e de um modo de governação, assente, por um lado, na hábil exploração do ressentimento e do desejo de reparação da injustiça e, por outro, no aproveitamento das debilidades institucionais, as mais das vezes substituídas por dependências pessoais e pela consequente informalidade dos processos decisórios.
A deriva do São Tomé e Príncipe independente
Com uma população a rondar os 70.000 indivíduos, o arquipélago tornou-se independente em 1975. Após a independência, a pequena elite independentista15 impôs um regime de partido único de vocação socialista como a concretização de uma independência dita “verdadeira”. Tal implicava continuar uma “luta”, até então retórica, mas que, a partir daí, se prolongava na procurada emancipação de imaginárias formas de neocolonialismo. Supostamente, este desígnio visava a mobilização em prol de um futuro melhor, mas, na prática, traduzia-se na demanda de obediência a quem, invocando embora os verdadeiros interesses do “povo”, governava de forma autoritária, cerceando as liberdades individuais em nome da unidade de propósitos dos são-tomenses. O poder do Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP) e do “líder”, Pinto da Costa, acabou transformado numa canga sobre o dia a dia de grande parte dos são-tomenses independentemente da condição social ou do estatuto político.
Estatizou-se a economia, mormente as roças produtoras de cacau, cuja mão de obra era constituída por ex-serviçais, décadas antes importados de outras colónias portuguesas, e pelos seus descendentes. Tal deveria ter alavancado maior justiça social, mas a economia colapsou, para o que contribuíram as iniquidades nas roças geridas por são-tomenses, a burocratização e, a outro nível, as dificuldades dos anos 80 agudamente sentidas no continente africano.
Esvanecido o inebriamento da independência, numa trajetória de empobrecimento e de crescentes privações, quando apenas florescia o mercado negro, não era fácil manter o poder em nome de um futuro ridente cada vez menos alcançável, tal a convicção disseminada e corroborada pela perceção da disparidade de condições de governantes e governados, disparidade em tudo avessa ao apregoado ideário socialista.
Uma fome inusitada em 1983-1984 levou o presidente Pinto da Costa a decidir-se pela abertura à iniciativa privada no domínio económico. Já no plano político, apesar da falência da ideologia e da corrosão da legitimidade16, não existiam movimentações sociais que o forçassem a uma liberalização17, nem mesmo dos ditos “renovadores”, obrigados a antepor a lealdade ao líder às contidas sugestões no sentido de abertura política sem pôr em causa o poder. Porém, anos depois da abertura na economia, Pinto da Costa teve o rasgo ou a intuição (ou, ainda, a sapiência de acolher a sugestão) de mudar o regime para uma democracia representativa. Anterior à vaga suscitada pela queda do muro de Berlim, este lance político, embora arrostando com a relutância de parte do aparelho partidário, concitou um amplo consenso num referendo ao projeto de Constituição decalcado da portuguesa, ainda que com adaptações atinentes ao reforço dos poderes presidenciais em matéria de relações externas, crivo crucial para a preservação do poder, e no tocante às possibilidades de dissolução da assembleia (cf. Sanches, 2015, p. 143).
Ao invés do sucedido em eleições noutros países convertidos à democracia, sob o lema redentor da “mudança”, o partido histórico da independência foi derrotado pelo Partido da Convergência Democrática - Grupo de Reflexão (PCD-GR), composto de elementos derrotados em 1975 e de sucessivos desafetos do MLSTP durante a quinzena de anos do putativo “socialismo” e de “partido único”. Miguel Trovoada, um dos elementos do pequeno grupo que arvorara o lema da independência e que, já primeiro-ministro, estivera preso, sendo depois exilado, seria recebido triunfalmente antes de vencer eleições presidenciais de 1991 para que não teve competidor, por desistência de outros dois candidatos18.
Afora ter apadrinhado a criação da Ação Democrática Independente (ADI)19, que concorreu às eleições de 1994, Miguel Trovoada adotou uma atitude de litigância com dois governos do PDC-GR, formados por apoiantes da sua eleição. Ao cabo dos dois mandatos, teve um lance tático de génio ao promover a candidatura de um seu “substituto”, Fradique de Menezes, um negociante que, certamente nunca tendo imaginado ser presidente, tinha a vantagem de se apresentar como um outsider da “política” erodida pelo contínuo de carências e pela pobreza avassaladora no arquipélago. Ainda com a memória do tempo do partido único bem viva entre os são-tomenses, a escolha foi certeira para travar o passo à eleição de Pinto da Costa.
Eleito em 2001, Fradique não se revelou tão manipulável quanto porventura dele se esperaria. Fradique também criou um partido de um homem só, o Movimento Democrático Força da Mudança - Partido Liberal (MDFM-PL). Fosse como fosse, prevaleceu o carácter errático da sua ação política, vazia de ideias, programa e objetivos. Patrice Trovoada, filho do ex-presidente, que começara por ser diretor da sua campanha eleitoral e ministro dos Negócios Estrangeiros do primeiro governo empossado por Fradique, dispôs-se a disputar a corrida presidencial em 2006, enquanto paulatinamente começava a crescer o apoio à ADI, de que se tornou secretário-geral em 2002 (cf. Santos, 2014, p. 218).
Desde a independência o país experimentara sucessivas soluções salvíficas - independentemente dos contextos, traduzidas na adesão a personalidades que induziram a criação de partidos seus20 - que, no plano económico, tinham redundado em desilusão e na contínua erosão das instituições21. Ao cabo de dois decénios de democracia sobreveio a desilusão por força da continuação da precariedade, nalguns casos extrema, da condição de vida das pessoas. O cenário político diversificara-se, ao mesmo tempo que valores ideológicos e programas substantivos eram substituídos pela ascendência temporária de sucessivos chefes. Porém, por entre as inúmeras questiúnculas políticas, derivadas da luta pelo açambarcamento das oportunidades tidas como irrepetíveis, o arquipélago tornou-se uma referência como país com arraigadas liberdades, onde, ao invés do sucedido na era colonial e no regime de partido único, era assaz difícil travar a liberdade de expressão e, até, os excessos da “rua” relativamente aos “políticos”. Com efeito, a par da duplicidade dos que orbitavam nas esferas de poder e, bem assim, da rarefeita mediação política qualificada, o moralismo sumário e a linguagem desbragada da “rua” eram o reverso das suas cada vez maiores provações.
Os impasses resultantes do marasmo económico que também em democracia não se conseguiram resolver levaram alguns a questionar as virtudes da democracia ou a demandar a sua adaptação a uma (nunca definida) matriz cultural local22. Fosse como fosse, não só esta não foi posta em causa, como as eleições - seu último e decisivo fundamento e reduto - se foram realizando num ambiente aberto, competitivo e livre. Foi por essa via que Patrice Trovoada chegou ao poder.
A senda do poder
Apesar da rampa de lançamento comum em África - a de filho de presidente -, a trajetória de Patrice Trovoada até à conquista do poder é notável, desde logo por não aparentar ter a loquacidade de vários dos seus opositores. Também é certo que, dada a usura da palavra dos “políticos” por força do estendal de promessas por cumprir e do crescendo das clivagens económicas23, ele retirou ganhos da parcimónia das palavras. Seja como for, sobra a questão de saber porque é que os são-tomenses lhe creditaram boas intenções quando, por regra, apodam os políticos de ladrões24.
Face a outros políticos, Patrice Trovoada tem a vantagem de “ter mundo” - de ter lidado com poderosos - e de não ter laços na terra, onde raramente ou nunca vive quando não está no poder25 - o que lhe confere a faceta salvífica que os são-tomenses tendem a conferir a quem vem de fora26. Da ausência os ilhéus inferem que ele não precisa da terra para viver. Evidentemente, tal não elimina a hipótese de a terra lhe servir, como, decerto, serviu a outros políticos antes dele, hipótese que, enquanto foi encarado como um salvador, a “rua” rejeitava sem outro fundamento que o da adesão acrítica à sua pessoa.
Patrice Trovoada cultiva o distanciamento face aos seus concidadãos, entre os quais teve (e tem) fiéis ou clientes, alguns deles mantidos anos a fio27. A sua solidariedade ritual, pública, para com um dos seus numa ocasião difícil decerto não se desdobrará numa cumplicidade firmada no convívio comum na terra, nem na comunhão de destinos que a concretização de um projeto político de monta devia suscitar. Assim o sugere o facto de os contornos dos seus desígnios permanecerem imperscrutáveis para os seus seguidores, como o indiciam as decisões nunca antes sequer alvitradas - por exemplo, entrada no país da guarda pretoriana ruandesa, rompimento das relações com Taiwan, emissão de novas notas -, algumas conhecidas depois de concretizadas e concretizadas independentemente da necessária aprovação parlamentar prévia.
A ascensão ao poder foi um longo tirocínio que certamente contou com lealdades subterrâneas28, possivelmente até nos partidos opositores29. Algumas lealdades permaneceram insuspeitas porquanto datam de épocas em que a sua ascensão ao poder era inimaginável, desde logo por força da aversão à figura do pai, o principal visado no equivocado golpe de 1995. Não se pode arredar a hipótese de ter inspirado a contestação social fomentadora do descontentamento face a sucessivos governos. Naturalmente, não sendo atribuíveis a uma qualquer fidelidade inconfessada, essas contestações eram encaradas como resultado da idiossincrasia dos ativistas, a quem, de resto, não faltavam boas razões para contestar corrosivamente sucessivos governos.
Patrice Trovoada construiu uma clientela de indefetíveis, desde titulares de instituições estatais a spin doctors, incluindo ministros que, quedos e mudos largas temporadas, preservaram a disponibilidade para a assunção do cargo. Com efeito, um dos aspetos a realçar é a disponibilidade para retomar o desempenho político subalterno - e que assim permaneceria visto ser a ADI um partido do chefe onde não existia competitividade política - uma vez passado o pousio do afastamento do poder. Mesmo tendo presente a primazia da ação política em desfavor do pensamento crítico, surpreende que algumas personalidades abdicassem (se é que não continuam a fazê-lo) de inevitáveis convicções próprias por troca com uma fidelidade a toda a prova em nome de desígnios assaz vagos, erráticos, quando não imprevistos e nunca imaginados.
A imagem de homem poderoso, que a parcimónia de palavras não desmentia, resultou tanto da mobilização de meios quanto de um percurso político singular onde se foi insinuando como cada vez mais imprescindível. Depois do empurrão dos Trovoadas a Fradique de Menezes, enfrentou-o nas eleições de 2006. Aparentemente, era o único político a dispor-se a perder contra o quase inevitável vencedor, Fradique, menosprezado por muitos ilhéus que, todavia, não o afrontavam, eventualmente por não quererem perder para quem rebaixavam nas conversas maledicentes da rua. Ou, hipótese porventura mais fecunda, por lhes faltar horizonte para além dessa luta, o que, sabemo-lo hoje, não ocorria com Patrice Trovoada. Seja como for, importa perguntar porque é que o MLSTP não avançou com o apoio a algum militante em vez de objetivamente promover alguém30 que seria sempre - e isso era previsível - um adversário31? Só uma trajetória de perda e de desnorte político do MLSTP podia transformar o ressentimento contra Fradique e a inconfessada impotência em o derrotar em razões para o apoio à candidatura de Patrice Trovoada.
O erro do MLSTP foi vincado por um episódio prenunciador do que anos depois viria a estar politicamente em jogo, a saber, a predisposição para condutas atrabiliárias desde que garantida a impunidade. A campanha eleitoral de 2006 ficou marcada pela insólita invasão da Televisão São-Tomense (TVS) à hora da emissão do telejornal. Em resultado dessa invasão, os estúdios ficaram danificados. Tal foi a forma de protesto contra a alegada parcialidade da TVS a favor da campanha do presidente em exercício. Protagonizado por políticos com responsabilidades, Edgar Neves, da ADI, e Jorge Amado, do MLSTP, este ato de vandalismo passou sem consequências32.
Nessas eleições, Patrice Trovoada obteve 38,5% dos votos, uma percentagem apreciável, talvez não devidamente sopesada porque displicentemente atribuída à rejeição inspirada por Fradique. Ao invés de adesões irruptivas relativamente a outras figuras, o movimento de suporte a Patrice Trovoada foi gradual, tendo, todavia, acabado por surpreender os do MLSTP, sobranceiramente fiados em que, na hora, os votos acabavam inevitavelmente por pender para o seu lado. Em sucessivas eleições, Patrice Trovoada foi amealhando apoio em razão do acúmulo de ressentimento contra os “políticos” em crescendo desde a independência. Nas ruas, nas vésperas das eleições de 2010, esse ressentimento era indisfarçável entre os mais jovens que repetiam que iam usar o voto como arma contra os “ladrões”33.
Se por ocasião dos primeiros lances políticos de Patrice Trovoada ainda se ouviram vozes a rejeitar que São Tomé e Príncipe fosse um “país do pai e do filho” - um dichote decerto ditado pela aversão a Miguel Trovoada e com que ainda se ensaiava dissociar o arquipélago de outras realidades africanas -, a desesperante involução do país ajudou à caminhada de Patrice Trovoada que, sem crivos ideologicamente excludentes, antes com critérios pragmáticos ou de oportunidade, se foi firmando também pelo reconhecimento do seu partido como força política e dele como ator relevante na composição de soluções governativas. Em fevereiro de 2008, Fradique34 convidou-o para a condução de um governo, decisão com que Fradique desconsiderou o primeiro-ministro, Tomé Vera Cruz, do seu próprio partido, o mais votado mas que não aprovou o orçamento. Assim, Patrice Trovoada, chefe do terceiro partido mais votado, tornou-se primeiro-ministro de um governo suportado por vários partidos, a saber, MDFM, PCD e ADI. É mister supor uma conexão causal diversa da sugerida pela cronologia, a saber, a de a rejeição do orçamento se ter sucedido a um conluio para derrubar Tomé Vera Cruz35. Em todo o caso, não tardou que o PCD fizesse cair o governo de Patrice Trovoada ao sair da coligação. Em junho, foi empossado um novo governo, composto por todos os partidos com exclusão da ADI. Esse governo chefiado por Rafael Branco (MLSTP/PSD) durou até às eleições de 2010, mas nada teria sido mais benéfico para a vitimização de Patrice Trovoada do que um governo da coligação encabeçada pelo MLSTP.
Às eleições de 1 de agosto de 2010, seguiu-se novo governo de Patrice Trovoada suportado por uma maioria relativa. Entrementes, em 2011, o antigo presidente do regime do partido único, Pinto da Costa, chegou à presidência por uma pequena margem sobre o candidato da ADI, Evaristo Carvalho. Como a pulsão sobrepujou a razão, não se cedeu à tentação de repetir a tática, contraproducente, de tentar isolar a ADI. Presumivelmente por inspiração de Pinto da Costa, o governo de Patrice Trovoada foi apeado por uma moção de censura em finais de 2012. No caso, a legalidade processual só podia desesperar ainda mais os desapossados que viam nas leis um instrumento, não da prossecução do bem comum, mas da perpetuação, mesmo se rotativa, dos mesmos de sempre no poder36 em prejuízo do grosso dos são-tomenses. Não espanta que, pressentindo a enchente da sua maré política, um deputado da ADI aludisse a violências sangrentas, se necessárias fossem, palavreado que escandalizava os deputados mas que encantava os desapossados das ruas, cuja decisão se decantava do desejo de desagravos e de vingança dos “políticos” que aí circulavam mas em carros de alta cilindrada. De alguma forma, a anunciada rutura da futura governação de Patrice Trovoada cativava pelas insinuadas facetas de um justicialismo, comummente esperado pelo “povo pequeno”37 das grandes figuras. O suposto propósito de reposição da justiça e da equidade não deixava de contar com a pose de antissistema dos das ruas.
Na sequência da citada moção de censura de finais de 2012, o sucedâneo governo de iniciativa presidencial foi chão fértil para ataques aos “políticos” assaz proveitosos para a ADI. Desde 2013, vários spin doctors aventavam que Pinto da Costa tencionava instaurar uma ditadura38, o que, sendo por demais improvável, decerto até para quem o enunciava, não deixava de correr como uma certeza39 e a benefício de Patrice Trovoada.
Ciente do apoio popular que concitava, após a queda do seu governo em 2012, Patrice Trovoada desafiou Pinto da Costa para umas eleições pessoalizadas40. A sua proposta era a de uma revisão constitucional para se adotar um regime presidencial. Ao cabo de um ano de um governo de transição, realizar-se-iam eleições, das quais se presumia e, decerto, seria vencedor. Em rigor, os resultados de 12 de outubro de 2014 só poderiam surpreender os mais desprevenidos. Mais do que a ADI - como os demais partidos, transformada num partido de um homem só -, foi Patrice que ganhou com maioria absoluta.
Em 2016, pela primeira vez, um presidente não conseguiu um segundo mandato. Em parte pela fragmentação no MLSTP, mas certamente também por ser tido como mentor do derrube do governo de Patrice Trovoada, obteve uma votação dececionante na primeira volta, abdicando de disputar a segunda volta. Em 2011, Evaristo de Carvalho perdera para Pinto da Costa, eleito por conta de um desejo de um “pulso forte” que restabelecesse uma certa ordem no quotidiano. Mas em 2016 Patrice fez eleger Evaristo Carvalho, que se tornara um incondicional dos Trovoadas, para presidente.
A posse, a 3 de setembro, de um presidente que, embora pretextando o contrário, se anunciara dependente do chefe do partido com uma maioria de mandatos parlamentares, tornou o primeiro-ministro Patrice Trovoada detentor de um poder tendencialmente absoluto, cuja construção começara muito antes.
O mandato de Patrice Trovoada revelou a atonia ou a incapacidade da sociedade - também por nenhum vulto ter sido capaz de corporizar o descontentamento - perante a subversão das leis e das instituições, cujos efeitos, até pelo histórico da sua paulatina deliquescência, poderão ser duradouros. Da mesma forma poderão ser duradouros os efeitos da cizânia. Hoje, ninguém asseverará crer nos atores institucionais - por exemplo, juízes -, pressupondo que estão politicamente motivados pagos ou, talvez até, a soldo, o que implicará um qualquer ganho indevido por parte de quem neles supostamente manda.
A deriva autoritária
Até 2014 prevalecera entre os políticos e outras proeminentes figuras de distintas afinidades ideológicas e sociais a lógica da espera pelas oportunidades que, cedo ou tarde, chegariam a todos eles e às respetivas clientelas. Ora, o propósito de rutura de Patrice Trovoada visava não apenas a perpetuação no poder, mas a desestruturação da oposição. Em consonância com o espírito belicoso patenteado na Assembleia pelos seus arautos, que tinham prometido sangue, encetou-se uma governação assente na exclusão, mormente após a eleição de Evaristo de Carvalho. Progressivamente, a governação tornou-se um fator de incerteza e de medo.
Em maio de 2017 chegaram militares ruandeses sem que, até à véspera, a sua missão fosse conhecida ou estivesse autorizada por qualquer acordo validado na Assembleia41, com o que se violava a legalidade constitucional. Alegadamente, chegavam para dar instrução, mas a uma guarda pretoriana de Trovoada, um sinal da desconfiança deste relativamente aos militares e aos demais concidadãos que eram intimidados pela intrusiva presença dos “seguranças” no espaço público.
Em inícios de 2018 constituiu-se um Tribunal Constitucional (TC), cuja inexistência até então fora suprida pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) chamado a desempenhar esse papel ad hoc. Ao TC competia funcionar como tribunal eleitoral. A urgência de criação de um TC colocou-se após a presidência do STJ mudar para um juiz independente de Patrice Trovoada. Era por demais plausível que a criação de um TC visasse garantir sentenças favoráveis em eventuais demandas no tocante à contagem de votos (Nascimento, 2018a).
Aprovada uma lei inconstitucional reguladora do processo de eleição dos juízes do TC, seguiu-se uma eleição conflituosa de um TC de fação, por fim lograda de permeio com atuação da polícia de intervenção, que culminou um processo ilegal e inconstitucional validado por um presidente por quem a rua entrementes desafeta perdia o já escasso respeito que por ele tinha, apodando-o de “pau mandado”42. Após audiências com este, representantes de partidos da oposição disseram ter ouvido, a propósito das medidas inconstitucionais, a alegação de que se estava sob a “mudança”, pelo que tudo era permitido43.
Os derradeiros tempos da legislatura assistiram não só à derrogação da Constituição como à decapitação da justiça independente. A uma sentença do STJ sobre a posse da fábrica de cervejas Rosema, pressupostamente contrária a inconfessados interesses do governo - de outra forma não se entenderia que este enviasse a polícia para obstar à execução da sentença -, seguiu-se o banimento dos juízes desafetos do STJ e a posterior criação de um STJ de exceção com juízes nomeados pela maioria da ADI. Qual efeito da estrita obediência, a maioria de deputados não deu nota do mínimo incómodo com o possível atropelo institucional subjacente a esta medida tomada de supetão44. Mesmo se eventualmente escorada numa enviesada leitura da letra da lei, a medida não deixava de violar o princípio basilar da separação de poderes. Partidos e instituições clamaram que estava em causa a democracia e o Estado de direito (democrático). Em vão.
Mudados os ventos, aflorava nova divisão entre a “rua” e alguns políticos próximos de Trovoada, manifesta a propósito de itens da governação, entre eles, a amiudada ausência do primeiro-ministro do país. Pessoas diferenciadas defendiam tal anormalidade, pretextando que as oposições não queriam senão impedir o “homem de trabalhar pelo país”, quando elas mesmas não podiam crer no que diziam. Na falta de duplicidade, o medo suscitava raciocínios distorcidos, por exemplo, o de que Patrice Trovoada perseguia a concretização de intentos ditatoriais, mas por via democrática. Que tal asserção ilógica compusesse uma impossibilidade - nalgum momento, um putativo ditador, mesmo se eleito, abandona os trilhos da lei e da democracia -, pouco importava, porquanto o medo pesava mais do que qualquer ponderação. Aliás, talvez o medo não pesasse pouco nas eleições de 2018, às quais a sociedade são-tomense chegou dividida, sem esperança e partilhando receios de vários desenlaces possíveis.
O “ar irrespirável” e a resiliência dos ilhéus
Sem embargo da observância de direitos políticos - mormente do de manifestação da mole revoltada, mas inoperante, desde logo por falta de liderança45 -, o governo introduziu uma dinâmica de desconfiança, conflitualidade e de medo. Em contraponto à observância das liberdades na rua e na internet, que, apesar das ameaças de punição46, não conseguiu silenciar, afrontou as liberdades, incluindo as prerrogativas dos deputados, intentando a sua intimidação através do propósito de os fazer revistar à porta do Parlamento numa operação policial assistida pelos militares ruandeses.
O ano de 2018 começou com uma manifestação a 9 de janeiro, que, suportada pelos partidos da oposição, juntou três mil pessoas47. Animada, entre outras razões, pela declaração de nulidade por inconstitucionalidade dos atos do presidente da República - uma sentença do STJ que supostamente não poderia deixar de produzir efeitos, mas que seria inútil -, essa significativa manifestação não causou, longe disso, nenhum abalo telúrico. Era bem mais relevante do que a anteriormente intentada manifestação de jovens que mobilizara mais polícias do que manifestantes, mas não teve sequência nem consequências. Num ambiente crispado como o desses dias, é de supor que a manifestação - politicamente conveniente porque antevista como inócua - se manteve ordeira por força do musculado aparato policial que a emoldurava. Afinal, realizada contra a posse do TC de fação, que se constituiria dias depois, esgotou-se em si mesma.
A raiva levava ilhéus a invetivar Patrice Trovoada48 com o epíteto de “gabonês”, no que poderá ressoar a antiga desqualificação dos antigos escravizados “gabão” ou a rejeição da submissão a padrões políticos pressentidos como opressivos. A mudança da hora para a hora dita do Gabão e a visita do filho de Bongo, presidente do Gabão e amigo pessoal de Patrice Trovoada, praticamente a seguir à de Marcelo Rebelo de Sousa, foram sentidas como sinais de uma indesejada direção política, que, todavia, não se travava com epítetos. Expressões erradas de sentimentos porventura fundados, epítetos desta índole apenas acirravam a cizânia.
Vigorava um estado de exceção disfarçado, onde prevaleciam a delação e a desconfiança. Nos órgãos de comunicação, em vez do contraditório prevalecia a “bufaria”49, receando-se que esta se estendesse à sociabilidade, mormente com a prometida introdução de escutas para auxiliar a investigação e, também, para mudar os hábitos do dia a dia, tal o fito que Patrice Trovoada considerava uma exigência da sociedade50.
Em junho, praticamente ao mesmo tempo em que falava da futura aquisição de equipamento de escutas telefónicas, o governo anunciava o desmantelamento de uma tentativa de assassinato do primeiro-ministro, cuja verosimilhança quedou logo diminuída pela rejeição das provas carreadas pelo tribunal de primeira instância. Já em agosto, a TVS mostrava imagens de alegadas provas de um novo complô, desmantelado a 4, golpe que, contando com mercenários estrangeiros detidos, visava, uma vez mais, a eliminação física do primeiro-ministro51.
Enquanto isso, crescia a violência. Já em vésperas das eleições, a morte de um jovem de Monte Café às mãos da polícia gerou revolta, tendo o comando policial na Trindade e o hospital sido protegidos por contingentes policiais que visavam conter a ira de populares. O corpo seria enterrado de noite e os presumíveis autores imediatamente pronunciados52. As eleições impunham tal medida.
Ao cabo de décadas, ao passo que o progressivo esvaziamento e a desestruturação tinham tornado o Estado informal e inepto, o poder estava personalizado (Castells, 2002, p. 123). Como que invertendo um embrionário grau de mediação institucional nos derradeiros anos do colonialismo, o processo de deliquescência institucional e de correlata personalização do poder é anterior a 1990. Depois, a personalização do poder político prosseguiu com a democracia, sucedendo-se os patronos dominantes. Ao mesmo tempo que se destruía o Estado, mantinha-se o seu aparato formal, preenchendo-se os vários órgãos com clientes ou apaniguados. Porém, foi durante o governo de Patrice Trovoada que a apropriação de todos os órgãos de poder por uma rede de fiéis encimada por uma figura se extremou. Assinale-se a baldeação de quadros de topo de outros partidos para a esfera da sua influência durante a sua governação.
Chegadas as eleições, perguntar-se-ia o que pesaria mais, se o medo de um Estado musculado que formalmente garantia certos direitos, se a sensação difusa de que o país importara a “tradição africana” de violência que só poderia ser tolhida pela reposição da legalidade. Noutros termos, obviamente Patrice Trovoada não podia ser responsabilizado pela morte do economista Jorge Santos53 mas, para uma fração da sociedade, um clima de crescente disrupção e de violência impune por parte de alguns que lhe eram próximos não podia deixar de ser sentido como uma ameaça de uma futura violência irrestrita e infrene, realidade bem mais tangível do que as inventonas de atentados contra o primeiro-ministro.
A pretexto da falta de verbas, as eleições autárquicas tinham sido adiadas para 2018 e acopladas às legislativas, o que já sucedera em anteriores ocasiões. Sem embargo, o manejo do calendário eleitoral pode ser relacionado com o intuito de somar vitórias por efeito de empatia, o que já funcionara em 2014, e, presumivelmente, com o intuito de protelar eleições porventura sinalizadoras de dissidências um ano antes das legislativas de 2018, o que aumentaria as dificuldades da governação e de repetição da maioria absoluta. Não se dirá que a eventual intuição relativa à necessidade de evitar expor fissuras no bloco de poder não estivesse certa...
Acerca dos prováveis resultados, aventar-se-ia que o então primeiro-ministro ganhava ou... ganhava, prognóstico que antecipava o possível efeito de arrastamento do exercício do poder - efeito comprovado pela votação obtida pela ADI - por contraposição ao presumido esfacelamento da oposição, que, ademais, não apresentava nenhum vulto politicamente arrebatador. Tal prognóstico contemplava igualmente a hipótese de eventual manipulação dos resultados, se necessária fosse, para sustentar a vitória do governante, tal a inferência decorrente dos atropelos às disposições constitucionais pelos quais se criara um TC de fação, na circunstância, tribunal eleitoral.
A dinâmica conflitual introduzida pela governação na sociedade reduzia a hipótese de repetição de uma votação assente na esperança existente em 2010 e renovada em 2014. Depois de a confrontação ter chegado à intervenção da polícia no Parlamento, só a maioria absoluta era uma vitória, que, contudo, parecia incerta, como o indiciou o inesperado dizer do presidente, “o povo põe, o povo tira”. A reprodução desta coloquialidade da terra destoava da até então incondicional obediência ao primeiro-ministro.
O ar tornara-se “irrespirável” até para militantes da ADI. Dados vários fatores - subversão e instrumentalização das instituições, controlo dos meios de comunicação social tornados órgãos de propaganda, capacidade de mobilização com base em operações de marketing, medo instalado e curso de uma narrativa irrebatível acerca do chefe -, as eleições deveriam ser encaradas como a possibilidade de o povo protestar e de se livrar de um, se assim considerado, potencial ditador. Em alternativa a esta possível hipótese, o poder podia exercer um efeito de arrastamento favorável a Patrice Trovoada, o que ficou comprovado pela votação que este obteve54.
Estava em causa a democracia55. Embora sem figuras galvanizadoras que mobilizassem a população em torno de uma alternativa política, partidos da oposição coligaram-se para não se desperdiçarem votos. Dramatizadas pela bipolarização e pela afirmação da imperiosa necessidade de uma maioria absoluta - o que pode ter feito recuar o “banho”56 -, as eleições terão sido determinadas pela emotividade.
Quebrados pela metade, os votos traduziram uma relativa aceitação da governação ou, talvez, a descrença na melhoria advinda da alternância no poder. Aliás, legítimas habilidades de circunstância ajudaram Patrice Trovoada a (quase) alcançar a vitória. A criação por trânsfugas do MLSTP de um partido correspondente a uma afinidade local57 no sul de São Tomé, em Caué, o Movimento de Cidadãos Independentes de São Tomé e Príncipe, resultou em ganhos de deputados, de outro modo difíceis de conseguir para a ADI, mas que certamente alinhariam com Patrice Trovoada se tal tivesse proporcionado a maioria absoluta58.
Embora por uma margem estreita - pouco consonante com os queixumes generalizados, incluindo até de correligionários, entre quem, todavia, pode ter lavrado o receio da revanche, indício de que, uma vez instalada, a dinâmica de medo é de difícil remoção -, os resultados penderam para a rejeição de Patrice Trovoada.
Mais relevante, comprovaram a inequívoca importância das eleições e, afinal, da tão depreciada democracia representativa, ocidental, como gratuita e diletantemente se a usa apodar. Todavia, e prudentemente, não se dirá que para a maioria dos ilhéus a questão do regime e de quem manda não seria irrelevante se tivessem minimamente asseguradas necessidades básicas, segurança e previsibilidade nas suas vidas.
O incêndio do jipe, a deserção e a alternância no poder
Às primeiras horas do escrutínio dos votos, quando o futuro do arquipélago se decidia pela diferença de um deputado, não faltou um apagão por falta de eletricidade. Mesmo se rotineiro, um apagão na hora da contagem de votos e com a oposição à frente lançava a suspeição59. Não era claro se houvera, ou não, fraude, mas compreende-se a suspeita quanto à possível viciação dos resultados, porquanto a ADI prontamente pretextou que a recontagem de votos em Água-Grande, distrito da capital, lhe garantia um deputado. Porém, se atribuído a um partido da oposição, permitia a esta guindar-se ao poder (ADI, 25, e Movimento de Caué, 2, perfaziam 27 mandatos, excedidos pelos 28, 23 do MLSTP e 5 da formação PCD/MDFM/UDD). A reivindicação da ADI de mais um deputado pode ser entendida como uma experimentação da possibilidade de alterar os resultados. No ver da “rua”, fora para a eventualidade de ter de dirimir a contento pleitos eleitorais que ilegalmente se criara um TC de fação.
Foi por estas circunstâncias e, também, pela afinidade com a irmã, ministra da Justiça, que se presumiram as intenções da juíza Natacha Amado Vaz. A destruição do seu jipe durante a manifestação teve um tom de resposta ao teste da tomada de pulso do ambiente social pela ADI. Na realidade, quem quer que recontasse votos era potencialmente suspeito de cumplicidade numa fraude em prol do governo. Quiçá injustamente, lavrou a suspeita de que a juíza Natacha estaria a transformar os votos nulos em votos da ADI, o que ela enfaticamente negou. Para a oposição, tal validação era ilegal, sem embargo de, pelas suas contas, nem isso bastar para a ADI eleger o deputado em falta para obter a maioria absoluta em coligação com Movimento de Caué.
Fosse como fosse, alguns jovens pretextaram defender a vontade ditada nas urnas. Durante o protesto, os manifestantes incendiaram o jipe da juíza Natacha, um episódio algo inesperado, não à luz da violência crescente desde há anos, mas pela passividade das forças policiais que, ostensivamente presentes noutras atuações preventivas, pareceram ressentir-se da ausência de mando.
O incêndio do jipe poderá ter sido uma das chaves do rumo dos eventos após as eleições. Só a posteriori as forças policiais intervieram, mas o comedimento pautou a sua atuação. A desajeitada proibição, pela Polícia Nacional, de manifestações enquanto durasse a contagem final dos votos e durante 72 horas após a publicação dos resultados denotou desnorte. A Polícia foi publicamente desautorizada por exorbitar poderes, não tendo sido secundada por qualquer governante. Embora contido, como que se manteve um estado de vigilância, enquanto o apuramento se arrastava - parecendo incompreensível a demora da contagem de menos de cem mil votos - sob escrutínio internacional que, num primeiro momento, também foi considerado suspeito e conivente com a propalada adulteração dos votos.
Talvez a contestação nas ruas não tivesse pesado não fosse a antevisão da deserção de Patrice Trovoada, um dado politicamente relevante por desmoralizador dos correligionários. Todavia, também é difícil asseverar que a tergiversação e a contemporização, evidenciadas aquando das anteriores denegações atrabiliárias de fundamentos do Estado de direito, chegariam à viciação dos resultados, sendo de admitir que, mesmo se residuais, imperativos de ordem moral poderiam obstar a fraudes, as quais, se concretizadas, minariam de forma drástica o valor das eleições como último reduto - e prova - da democracia no arquipélago. Ora, a premonição do abandono do chefe, saído a 12 de outubro60, antes da confirmação dos resultados, desferiu uma machadada na eventual predisposição para falsear resultados ou para ações repressivas. Em razão do abandono do chefe - se não antes imaginado, decerto prontamente percebido como inevitável e duradouro -, as hostes claudicaram, a fidelidade deslassou e a belicosidade cedeu lugar à contemporização61. Dir-se-ia até que só o pressentido abandono do chefe permitiu a manifestação e a ocorrência de violências, porquanto, sem ele, ninguém quis arriscar decisões que poderiam cindir ainda mais os são-tomenses62.
A 11 de outubro, Patrice Trovoada lamentou que a justiça ainda não tivesse acusado os suspeitos do último dos alegados atentados contra si, acrescentando que “a situação de risco se mantém”63. Poucos terão reparado nesta afirmação que, substantivamente oca, se destinaria a justificar a saída do país a 12. Os seus clientes tiveram de começar a pensar em sobreviver sem ele, enquanto alguns mais fiéis ou dependentes, tomando o seu desejo por uma inevitabilidade, começaram a prognosticar a queda do futuro governo da oposição e, decerto, a antever a volta do patrono.
O país quedou sem governo, não por qualquer caos criado nas ruas, mas por, ao lastro de décadas de progressiva deliquescência das instituições, se somar a ausência do chefe. Patrice Trovoada saiu do país, alijando sem mais as suas obrigações, mas mantendo - oficialmente em parte incerta - as prerrogativas de primeiro-ministro. O governo só seria demitido pelo Presidente aquando da tomada de posse da nova Assembleia ocorrida a 22 de novembro.
A aparente solidez da união contra Patrice Trovoada levou à alternância no poder. Se, no passado, os sortilégios na recomposição das alianças para efeitos eleitorais, tributários da liquefação ideológica e da vacuidade programática, resultavam incongruentes e desacreditavam a ação política - abrindo espaço a crenças em soluções providenciais -, o governo saído das eleições polarizou, ao menos momentaneamente, a esperança num desempenho competente que, na falta de outra medida, a vox populi avaliará pela inexistência de negociatas e pelo cumprimento de promessas relativas a itens básicos. Afinal, e ainda mais do que no passado, a nenhum governo restaria qualquer tempo, um bem precioso na política mas que só os governos ditatoriais conseguem criar.
O dramatismo das eleições colocou o governo de Jorge Bom Jesus - fruto da coligação de todos os partidos da oposição, encabeçada pelo MLSTP - no fio da navalha. Como ação imediata, repôs-se a ordem constitucional64. O governo ficou obrigado a ser exemplar, exigência agravada pelo facto de o comum das pessoas ter como certo que nenhuma das instituições, mormente a judicial, é independente. No imediato, impõe-se-lhe uma governação transparente, que, avessa ao arbítrio, reintroduza a decência e a ética nas relações políticas e cívicas. Outra conduta desmentiria a valia de um Estado de direito democrático, prezado pelos são-tomenses65 conforme se comprovou nas eleições pelas quais a maioria deles esperou com paciência.
Num quadro de dificuldades financeiras, de degradação de serviços e na impossibilidade de prover de pronto bens básicos, resta ao governo a solidariedade moral com a esmagadora maioria dos ilhéus que pouco ou nada tem e, menos ainda, esperança. Noutros termos, importaria incutir nos vínculos políticos uma noção de confiança derivada da irmandade e da necessidade de convivência pacífica, tudo escorado no fortalecimento das instituições que garantem a liberdade dos homens.
Os resultados sugerem uma clivagem, quiçá mais aparente ou mutante do que decantada ou de princípios, porquanto, dada a volatilidade do ambiente político - as fidelidades partidárias são lassas e as ideológicas quase inexistentes, propiciando a movimentação de indivíduos na direção de outras forças políticas -, o suporte eleitoral da ADI poderá desfazer-se se o “chefe” se tornar (ou parecer) definitivamente ausente. Mas poderá recompor-se se entrementes se perspetivar um regresso do “chefe”.
Ao invés do alvitre de que Patrice Trovoada se desqualificou irremediavelmente pela fuga, demonstrando não estar à altura do cargo, diria que o abandono da função não o desqualifica para futuros tirocínios políticos por, afinal, a qualificação em política e, em particular, em São Tomé e Príncipe ter pouco a ver com ponderações racionais sobre factos da história, incluindo da recente. Se a evolução política e social se mostrar propícia, não será impossível a Patrice Trovoada arriscar uma candidatura presidencial. Em futuras eleições, poderá reaparecer como salvador e até ser eleito por ressentimento. Se o futuro político de Trovoada se mantiver relevante, é porque, num Estado de direito democrático política e institucionalmente deslassado, a sociedade terá continuado mergulhada num défice de esperança.
Sem embargo da titânica luta dos ilhéus pela afirmação da sua dignidade num quotidiano pejado de incomensuráveis escolhos, dada a vulnerabilidade da sociedade insular, não se tentarão muitos ilhéus a aderir de novo a quem, chegado de fora e com signos de poder e riqueza, acene com uma mirífica promessa de uma melhoria mínima das condições de vida, por exemplo, através da cooptação para a respetiva clientela? Maior dúvida será a de saber por quanto tempo prevalecerá o atual quadro político…
Por fim, vozes africanas, democracia africana ou… tão-somente democracia?
As eleições puseram a nu a vanidade de muitas lucubrações sobre a viabilidade da democracia no meio são-tomense. Com fundamento variável, algumas menções a uma democracia de feição local66 ou “africana”67 emanam de genuínas inquietações políticas, ao passo que outras advêm de modismos ou de particulares sentidos de oportunidade68, caso, por exemplo, de tentativas de ganho de votos. Adiante-se, estas tentativas são risíveis e inúteis porque a determinação do voto tem pouco a ver com a dita feição da democracia. No limite, arriscaríamos dizer que, se aos desapossados dissesse respeito, a determinação do voto teria pouco a ver até com a natureza do regime…
Seja como for, a democracia representativa, dita redutora por algum ativismo propenso a idealizar o mundo e as ações, não deixou de ser crucial para os ilhéus. Os eventos recentes colidem com a argumentação acerca da necessária especificidade da democracia são-tomense, cujos défices, em termos simplistas, radicam antes na incapacidade de nomear os poderosos que instrumentalizam a lei e de prevenir ou coibir práticas corrosivas das instituições, das leis e da regulação social do bem comum.
É certo que, desde há anos, se assiste a uma renovação do autoritarismo em África, e não só, ao mesmo tempo que se passou a duvidar de que a democracia seja o melhor regime para assegurar a boa governação69 ou o crescimento económico, para já não referir a coesão e a justiça social70. Apesar de décadas de observância formal dos mecanismos democráticos, quantos são-tomenses não estariam rendidos à ideia de que a boa governação era a do “pulso forte”, almejando que esta se revelasse justiceira ao punir os privilégios indevidos... até que a governação atrabiliária de Trovoada veio mostrar a importância da democracia, mesmo se reduzida a eleições competitivas e livres? Relembre-se que nas eleições a sociedade se cindiu.
Em parte, a benevolência para com o “pulso forte” resulta de há muito não se vincarem princípios políticos e éticos, uma falha por vezes explicada por imperativos da governação. Este espaço de um forçoso (e movediço) pragmatismo pode também ser um cadinho das derivas ditatoriais amparadas em virtudes ilusórias que, por vezes, população e governantes julgam ver nessas derivas. Por isso, não raro a “democracia africana” acaba reduzida a uma das várias modalidades do “pulso forte” ou a uma deriva autoritária.
Logo, a par da denodada aposta no fortalecimento das instituições que garantem os direitos dos cidadãos, talvez seja imperiosa a inequívoca afirmação de princípios, a estender à regulação dos desempenhos institucionais - por onde, aliás, deveria começar - para se poder lidar com a agrura e a acrimónia inevitavelmente resultantes das privações que, há décadas, avassalam a sociedade são-tomense.
Para parte dos ilhéus as eleições de 2018 decidiam entre a paragem ou a continuação da deriva autoritária. No caso, a equação era complicada pela circunstância de Patrice Trovoada nunca ter enjeitado a democracia71, mesmo se a governação se pautou por sucessivos atropelos à lei e, por fim, pela subversão do Estado de direito democrático - formalmente mantido como parte da sua subversão -, que só não foi completa pela realização de eleições. Estas comportavam uma escolha dilemática, assaz diversa das lucubrações sobre a aplicabilidade da democracia.
Pela primeira vez desde a implantação da democracia, umas eleições decidiam da respetiva sobrevivência72. A governação de 2014 a 2018, pautada pela surpreendente facilidade com que se desmorona um edifício constitucional, devia tornar os opinion makers e estudiosos mais cônscios da necessidade de sopesarem o valor de lemas criativos mas desajustados das realidades. Num tal contexto não será desarrazoado advogar uma supostamente exigente, mas, afinal, vaga e indefinida democratização da sociedade para além da observância das leis e da realização de eleições? Embora possa parecer banal, não será de saudar a realização de eleições livres e a paz política e social quando sobre a terra se abatia um horizonte de medo e de violência?