O presente artigo tem por objetivo analisar e refletir sobre a presença do poder simbólico de Bourdieu (2011) na Cooperação Portuguesa Centralizada (CP)1.
A teoria de partida deste estudo é a estruturalista, seguindo, também, as suas variantes - pós-colonial e teorias da dependência (ver, por exemplo, Ashcroft, Griffiths, & Tiffin, 2007; Cornwall & Eade, 2010; Grosfoguel, 2009; Harber, 2014). Esta abordagem atribui um papel central às estruturas, veículos de “reprodução e repetição de relacionamentos sociais” (Cravinho, 2002, p. 178). Estes fenómenos geram desigualdades económicas estruturais e relações de dependência e de dominação, que marcam as relações Norte-Sul, criando um desenvolvimento desigual (Cravinho, 2002; Milando, 2005; Little & Green, 2009; Nogueira & Messari, 2005a e 2005b), destacando-se os fenómenos do colonialismo e da colonialidade, sendo este último proveniente do primeiro, mas possuindo um caráter mais duradouro (Quijano, 2009, p. 73).
Em vez de nos posicionarmos como observadores externos, consideramo-nos “amigos críticos”, uma vez que dois dos autores já colaboraram/colaboram com a CP, assumindo este artigo, em parte, um exercício de autorreflexão. O uso deste exercício enquanto estratégia metodológica segue os pressupostos da literatura (Coghlan & Brydon-Miller, 2014) e está em linha de outros estudos como, por exemplo, Castanheira, Barreto, F. Santos, M. I. Santos, e Silva (2018).
O presente artigo centra-se no período de 1999 a 2019 seguindo uma análise qualitativa a partir dos documentos: A Cooperação Portuguesa no Limiar do Século XXI - Documento de orientação estratégica (Resolução de Conselho de Ministros [RCM] n.º 43/99, de 18 de maio), Uma Visão Estratégica para a Cooperação Portuguesa (RCM n.º 196/2005, de 22 de dezembro), Conceito Estratégico da Cooperação Portuguesa 2014-2020 (RCM n.º 17/2014, de 7 de março) e a Resolução de Conselho de Ministros n.º 82/2010, de 4 de novembro. Este período temporal foi selecionado por ser um dos mais profícuos em termos de produção de documentos da CP e por se terem operado alterações importantes no que se refere à introdução de inovações à luz do contexto nacional e internacional em relação a conceitos/teorias, práticas e políticas nesta área.
O artigo está dividido em quatro partes: na primeira, realizamos uma breve contextualização da CP; segue-se uma exposição sobre o conceito de poder simbólico de Bourdieu; na terceira, procuramos refletir sobre a presença e a função da língua portuguesa como sistema de poder simbólico CP; na quarta são apresentadas breves considerações finais.
A Cooperação Portuguesa para o desenvolvimento
O significado de desenvolvimento é mutável e deve ser enquadrado no momento histórico em que se vive e nos pressupostos inerentes a quem invoca a palavra. Não podemos também descurar que a noção de desenvolvimento foi fortemente influenciada desde os séculos XVII e XVIII até ao presente pelo percurso histórico dos países ocidentais, industrializados e capitalistas (Cornwall & Eade, 2010; Harber, 2014; Unterhalter & McCowan, 2015).
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, com a consequente criação da Organização das Nações Unidas (1945), do Banco Mundial (1944), da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) (1961) e o início dos movimentos anticoloniais entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, a discussão sobre o desenvolvimento centrava-se nas diferenças entre os países desenvolvidos e os em desenvolvimento (Harber, 2014; King & McGrath, 2004; Shields, 2013). Os principais critérios utilizados para esta classificação eram o grau de industrialização da economia e a capacidade de assegurarem às populações condições mínimas de vida consideradas essenciais. Este facto levou a que os países mais ricos, considerados desenvolvidos, tivessem a responsabilidade de ajudar os mais pobres a se desenvolverem (Harber, 2014). Nesta altura, a principal preocupação era o desenvolvimento económico associado à industrialização da economia. Apesar da contestação entre a classificação de país desenvolvido e em desenvolvimento e/ou países do Norte e do Sul global, o conceito de desenvolvimento continua a perdurar e a estar presente no debate político e académico (Harber, 2014). Contudo, é importante ter em consideração que o conceito de desenvolvimento é polissémico e que, ao longo do tempo, se foi alterando e, consequentemente, as modalidades, os atores, os objetivos e o horizonte temporal da cooperação para o desenvolvimento (Harber, 2014; King & McGrath, 2004; Klees, 2010; Shields, 2013). Por esta razão devemos ter presente que a cooperação para o desenvolvimento é um setor controverso (ver, por exemplo, Klees, 2010; Milando, 2005), que envolve um número elevado de pessoas e de dinheiro (Harber, 2014).
O primeiro documento oficial que menciona a CP em Portugal surge em 1999, intitulado A Cooperação Portuguesa no Limiar do Século XXI - Documento de orientação estratégica (RCM n.º 43/99, de 18 de maio), no qual a língua portuguesa é destacada como meio de prossecução da primeira prioridade setorial (“Formação, educação, cultura e património”), uma vez que “Portugal partilha com os PALOP e com o Brasil um meio de comunicação privilegiado, o português” (p. 2650). Neste sentido, a prioridade geográfica dos projetos da CP incide nos PALOP e em Timor-Leste (RCM n.º 196/2005, de 22 de dezembro, p. 7186; e RCM n.º 17/2014, de 7 de março, pp. 1764 e 1766), verificando-se um importante espaço ocupado pela lusofonia na CP, sendo a língua portuguesa um instrumento de escolaridade e formação (RCM n.º 196/2005, de 22 de dezembro, p. 7184).
Contudo, apenas em 2005, através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 196/2005, de 22 de dezembro, foi publicado o documento Uma Visão Estratégica para a Cooperação Portuguesa, o primeiro documento oficial a clarificar os objetivos da CP, definindo as áreas prioritárias de intervenção e os mecanismos para a prossecução dos objetivos. Esta estratégia introduziu também inovações à luz do contexto internacional em matéria de cooperação, tais como os clusters, que podem ser definidos como um conjunto de projetos com um enquadramento comum, na mesma área geográfica, embora executados por diferentes instituições (Faria, 2014; Oliveira & ACEP, 2012). Em 2010, é publicada a Resolução de Conselho de Ministros n.º 82/2010, de 4 de novembro, sobre a missão fundamental da CP; e, em 2014, o Conceito Estratégico da Cooperação Portuguesa 2014-2020 (RCM n.º 17/2014, de 7 de março), último documento oficial nesta matéria que refere continuarem a permanecer “válidos os principais princípios e prioridades estabelecidos no documento Uma Visão Estratégica da Cooperação Portuguesa […] nomeadamente no que diz respeito às prioridades geográficas”, acrescentando, no entanto, novas “áreas de intervenção, com destaque para o ambiente, crescimento verde e a energia, o setor privado e o desenvolvimento rural e mar”. No momento de escrita do presente artigo está prevista a publicação de uma nova Resolução do Conselho de Ministros nesta matéria.
A CP, nos últimos anos, pode ser caracterizada por colocar ênfase no apoio aos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa; por focar-se no setor das infraestruturas e serviços sociais; pela promoção da língua portuguesa; por não cumprir as metas assumidas internacionalmente, no que concerne, por exemplo, a disponibilizar 0,7% do Rendimento Nacional Bruto à Ajuda Pública ao Desenvolvimento; e por não ser transversal aos ciclos eleitorais de Portugal, dificultando o seu consenso, coerência, relevância e estabilidade institucional.
A CP tem-se transformado, tendo em conta os seus objetivos estratégicos (desde 2015), num meio de promoção e divulgação da língua portuguesa (RCM n.º 196/2005, de 22 de dezembro; e RCM n.º 17/2014, de 7 de março). Esta função de promoção/expansão da língua portuguesa, à qual a CP está oficialmente ligada, tornou-se mais evidente com a criação do Camões - Instituto da Cooperação e da Língua, I.P. (Camões - ICL), em 2012, através da fusão entre o Instituto Camões (Camões, I.P.), criado em 1992, e o Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento (IPAD), criado em 2003 (Camões-ICL, s.d.). Este novo instituto manteve a função primordial atribuída ao Instituto Camões - “promoção externa da língua e da cultura portuguesas” (DL n.º 21/2012, de 30 de janeiro) -, intenção assumida publicamente pelo vice-primeiro ministro à data, Paulo Portas (Oliveira & ACEP, 2013). Após esta fusão, Portugal passou a ser o único doador a colocar a cooperação para o desenvolvimento associada à promoção da língua (Ferreira, Cardoso, & Faria, 2015), sendo que, pelo menos aparentemente, a cooperação para o desenvolvimento de Portugal passa a estar como subsidiária da língua. Um exemplo desta predominância é facilmente verificado no acesso ao sítio institucional da internet do Camões - ICL, onde as questões da língua e da cultura têm destaque. O próprio nome, Camões, invariavelmente associado a Luís Vaz de Camões, poeta e autor de Os Lusíadas, que celebra os feitos marítimos e guerreiros de Portugal, indubitavelmente associado à língua portuguesa e ao imaginário dos “descobrimentos” que permitiu aos portugueses “dar novos mundos ao mundo”, reforçando o surgimento de relações de colonialidade cultural de caráter simbólico, aponta nesse sentido.
Esta (con)fusão entre os dois institutos foi alvo de críticas (Faria, 2014; Ferreira et al., 2015; Oliveira & ACEP, 2012) sendo a promoção da língua portuguesa considerada um dos aspetos mais negativos da CP na avaliação realizada pelo Comité de Apoio ao Desenvolvimento da OCDE, em 2010 (OCDE, 2010). Este facto é apontado, porque o objetivo da promoção da língua como um fim em si mesmo não é considerado um “development objective” (OCDE, 2010), uma vez que esta estratégia não é suficiente para fortalecer as capacidades humanas e institucionais inerentes à cooperação para o desenvolvimento.
O conceito de poder simbólico de Bourdieu
Para o presente artigo, tendo em consideração que aborda a língua portuguesa enquanto sistema de poder simbólico na CP, importa referir que, para Bourdieu (2011, p. 4), o poder simbólico é “esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”.
Para este autor, o poder simbólico é exercido por sistemas simbólicos - arte, religião e língua - “instrumentos de conhecimento e de comunicação”, que são estruturas estruturantes. Seguindo uma lógica durkheimiana, Bourdieu (2011, p. 6) encontra uma função social nestes sistemas - uma função de integração social e de reprodução da ordem social.
Na construção da sua teoria, Bourdieu insere o conceito de dominação numa lógica marxista e engeliana, afirmando que “a cultura dominante contribui para a integração real da classe dominante”, sendo a integração social dos indivíduos e culturas num posicionamento mais frágil, uma integração fictícia. Observa-se, então, uma legitimação da cultura dominante e o posicionamento das restantes culturas “pela sua distância em relação à cultura dominante” (Bourdieu, 2011, 2014, p. 7).
Deste modo, para além da sua função social, os sistemas simbólicos possuem uma função política, enquanto instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, verificando-se uma violência simbólica, conceito que Bourdieu (2014, p. 223) define como “formas de constrangimento que assentam em acordos não conscientes entre as estruturas objetivas e as estruturas mentais”, cujo monopólio é detido pelo Estado (Bourdieu, 2014). Para completar a sua síntese sociológica, Bourdieu refere a expressão weberiana “domesticação dos dominados” (Bourdieu, 2011, pp. 7-8).
O poder simbólico revela-se, assim, como “uma forma transformada […], transfigurada e legitimada, de outras formas de poder […] capaz de produzir efeitos reais sem dispêndio aparente de energia” (Bourdieu, 2011, pp. 11-12).
Importa ainda salientar que, segundo Bourdieu (2013, p. 134), e no que concerne às relações de dominação linguística, estas têm uma lógica específica, não procurando uma “dominação estritamente económica”. Enquanto sistema simbólico, a língua desenvolve-se graças a condições institucionais de codificação e imposição generalizadas (Saussure, 1960, citado em Bourdieu, 2008, p. 31). Segundo Bourdieu (2008, p. 31), a língua garante, num grupo, “o mínimo de comunicação que é a condição da produção econômica e mesmo da dominação simbólica”, principalmente se se tratar de uma língua oficial, produto de uma dominação política e condição de dominação linguística.
A presença do poder simbólico na Cooperação Portuguesa: a língua portuguesa
Como referido anteriormente, na política externa portuguesa a língua reveste-se de uma importância estratégica basilar, sendo considerada um valor fundamental e promovida pelos projetos de educação no âmbito da CP (RCM n.º 196/2005, de 22 de dezembro, p. 7181; e Despacho n.º 25931/2009, de 26 de novembro).
De acordo com Uma Visão Estratégica para a Cooperação Portuguesa (RCM n.º 196/2005, de 22 de dezembro, p. 7181), a língua portuguesa constitui uma vantagem estratégica no âmbito da cooperação para o desenvolvimento nos países de língua oficial portuguesa.
Considerando que as políticas de planificação linguísticas se traduzem na “manutenção do status quo do dominador” (Calvet, 2007, citado em Bastos, 2015, p. 269), na luta simbólica específica pela ordenação simbólica do mundo, podemos considerar que a “lusofonia” enquanto conceito2 exerce um papel de destaque, enquanto a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) surge como entidade política que a promove (Sousa, 2006).
Neste contexto, importa salientar que a língua portuguesa é considerada um meio ou alavanca do desenvolvimento económico, social e cultural no espaço lusófono (RCM n.º 196/2005, de 22 de dezembro, p. 7185; RCM n.º 17/2014, de 7 de março, p. 1767), verificando-se uma procura de poder efetivo, nomeadamente o económico, a par da perpetuação de poder simbólico (Bourdieu, 2011; Quijano, 1992, 2009), sendo a língua uma componente de soft power (Palma, 2006), conceito definido por Nye (2004, p. x) como “a capacidade de alcançar o que se pretende pela atração em detrimento da coerção ou de pagamentos”, sendo “proveniente da atratividade da cultura, ideologias e políticas de um país”. Nos projetos de CP, a língua portuguesa é a língua priorizada em detrimento de outras línguas, mesmo línguas maternas ou faladas pela maioria da população, porque, ao contrário destas, o português é considerado uma “língua global” (Reto, 2012) e possui base de apoio legal e político (Melo-Pfeifer & Pinto, 2018).
No âmbito da CP, a língua, para além de ser alvo de políticas de promoção, surge como um objetivo em si mesmo - “a expansão da língua portuguesa” - e fator de “persistência de certos mitos (“a língua portuguesa é a nossa pátria”; “os amigos e os inimigos de Portugal distinguem-se pelo uso e pelo apoio demonstrado à utilização do português”)” (Pereira, 2005, pp. 9-11).
Enquanto componente crucial dos projetos da CP, a língua portuguesa como elemento de poder simbólico foi imposta inicialmente por estruturas de colonialismo, ou seja, pelas condições institucionais específicas referidas por Saussure (1960, citado em Bourdieu, 2008, p. 31), mencionadas anteriormente. Embora estas estruturas tenham sido desintegradas, com o final do colonialismo enquanto sistema, elas abriram espaço ao surgimento de relações de colonialidade cultural, mais duradouras e de caráter simbólico, perpetuando a dominação colonial (Quijano, 1992, 2009). No entender de Quijano (2014): “la ‘cultura de los dominantes’ es también ‘la cultura de los dominados’” (pp. 672- 673). Esta ideia é reforçada por Vanessa Andreotti, quando evoca os estudos de Spivak nos quais esta se refere à “violência epistémica do colonialismo” (citado em Andreotti, 2014, p. 61), violência que afeta quer o colonizador, quer o colonizado - o colonizador, não permitindo que este se torne consciente da sua situação de dominação, e o colonizado, criando neste o desejo de ser “civilizado” de forma a participar do desenvolvimento que reconhece no colonizador3. Santos (2009) expressa esta mesma ideia ao referir que “a epistemologia ocidental dominante foi construída na base das necessidades de dominação colonial e assenta na ideia de um pensamento abissal” (p. 13), entre o que é científico, o que é evoluído, enfim, o que é desenvolvido (“o lado de cá da linha”), e o seu contrário, o que não é científico, o que é atrasado, o que não é desenvolvido e tem de o ser (“o lado de lá da linha”). Este pensamento, segundo o autor, “continua a vigorar hoje, muito para além do fim do colonialismo político” (Santos, 2009, pp. 13-14).
A questão linguística não está imune a esta “violência epistémica” ou a este “pensamento abissal”. Basta recordar “a proibição do uso de línguas próprias em espaços públicos” (Santos, 2009, p. 29) no período colonial ou o quão desprezado foi o crioulo “durante a longa noite colonial” (Carlos Lopes, 1988, citado em Laranjeiro & Filipe, 2012). Embaló (2008) refere-se a esta situação, utilizando conceitos que já nos são familiares:
a partir dos anos vinte do século XX ele [o kriol] começou a ser estigmatizado e a sua utilização acabou por ser interdita pelas autoridades coloniais, o mesmo acontecendo com as línguas das comunidades etnolinguísticas. O kriol passou a ser visto como uma língua de “não civilizado” e aquele que falasse português era considerado “civilizado” (Embaló, 2008, p. 103).
Após a independência, podemos verificar como a língua portuguesa é incluída na “cultura dos dominados” e gera tensões no trabalho de Paulo Freire e da sua equipa na Guiné-Bissau nos primeiros anos após a independência (Freire, 1984, 2008), tendo consequências até à atualidade, levando mesmo à evocação da memória de Amílcar Cabral, sem a situar num tempo histórico, para legitimar as posições tomadas (Morgado, Santos, & Silva, 2016). Após 1975, o crioulo expandiu-se por todo o país e afirmou-se como língua de identidade nacional, sendo, no entanto, sentidas, ainda na atualidade, as implicações decorrentes da política linguística colonial, por exemplo, na manutenção da língua portuguesa como única língua oficial.
Neste processo, e em vários momentos e com diferentes intensidades, a CP desempenhou um papel importante (Mateus & Pereira, 2005; Silva, 2016). Anteriormente, afirmou-se que a língua era um instrumento utilizado na implementação de projetos da CP. No entanto, pode concluir-se que esta é uma via de dois sentidos, ou seja, que a CP é um veículo de promoção e afirmação da língua portuguesa numa escala global, dado o seu objetivo estratégico “[…] consolidar e reforçar a Comunidade de Países de Língua Oficial Portuguesa (CPLP) e a sua afirmação no sistema internacional” (RCM n.º 43/99, de 18 de maio, p. 2649).
Enquanto atores/instrumentos de reprodução do poder simbólico da língua portuguesa no âmbito da CP, podem destacar-se: o Camões - Instituto da Cooperação e da Língua, I.P. (Camões - ICL), organismo coordenador da cooperação para o desenvolvimento, que possui como uma das suas mais destacadas funções a promoção da língua portuguesa (Decreto-Lei [DL] n.º 21/2012, de 30 de janeiro); a comunicação social como “veículo privilegiado para defesa e divulgação da língua portuguesa”, nomeadamente através de acordos assinados entre Portugal e os PALOP para cooperação nesta área, destacando-se os assinados com Angola e Moçambique (RCM n.º 43/99, de 18 de maio, p. 2639); e o Fundo da Língua Portuguesa, criado em 2008, com a função de “promover a língua portuguesa enquanto instrumento de prossecução dos objetivos do milénio” (DL n.º 248/2008, de 31 de dezembro, p. 9211).
Considerações finais
A cooperação portuguesa centralizada, enquanto vertente fundamental da política externa de Portugal, sempre deu um especial destaque à língua portuguesa - por um lado, enquanto instrumento de aplicação de projetos, nomeadamente na área da educação; por outro lado, como língua a ser promovida no espaço dos países de língua oficial portuguesa (RCM n.º 43/99, de 18 de maio; RCM n.º 196/2005, de 22 de dezembro; RCM n.º 17/2014, de 7 de março). Neste contexto, e como mostra esta reflexão, a língua, enquanto estratégia de soft power da cooperação portuguesa centralizada, e consequentemente do Estado português, cria um enviesamento aos objetivos inerentes ao que é aceite como cooperação para o desenvolvimento, surgindo como um sistema de poder simbólico (Bourdieu, 2003, 2008, 2011) que perpetua relações de colonialidade (Quijano, 1992, 2009, 2014) e de violência epistémica (Spivak, citado em Andreotti, 2014, p. 61). A atual conjuntura da cooperação portuguesa centralizada, com o Camões - ICL como organismo que coordena e articula a política externa de Portugal nas áreas da cooperação internacional, promoção da língua e cultura portuguesas, reforça esta perspetiva.
Apesar de o presente artigo explorar a língua enquanto sistema de poder simbólico, Bourdieu (2011) destaca também a arte e a religião, aspetos que estão fora do alcance deste artigo, mas que requerem investigação posterior. Neste sentido, seria interessante, numa futura investigação, explorar estes dois aspetos, tendo em consideração, no que respeita à religião, por exemplo, o papel que as organizações nacionais de cariz social ou religioso desempenham no âmbito de projetos/programas da cooperação portuguesa centralizada.