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Cadernos de Estudos Africanos

versão impressa ISSN 1645-3794

Cadernos de Estudos Africanos  no.40 Lisboa dez. 2020  Epub 14-Mar-2022

https://doi.org/10.4000/cea.5243 

Artigos Originais

Políticas Agrícolas e Usurpação de Terras em Moçambique Independente. Resistências, movimentos sociais, papel do Estado

Agricultural policies and land grabbing in independent Mozambique. Resistances, social movements, role of the state

i Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Avenida Prof. Morais Rego, Recife, Brasil

2ii Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Centro de Estudos Internacionais (CEI-IUL), Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal, labronicus@gmail.com


Resumo

Depois de ter analisado a essência das políticas agrícolas adotadas em Moçambique desde a sua independência (1975), esta pesquisa trata de como novas formas de resistência por parte das comunidades rurais se desenvolveram a partir dos meados da década de 2000. Tais formas de resistência levaram frequentemente ao sucesso dos incipientes movimentos sociais rurais moçambicanos, inclusivamente graças à ação de associações de cunho nacional que têm vindo apoiando as comunidades locais nas suas lutas contra a usurpação de terras. Desta forma, o papel do governo, quer a nível central, quer a nível descentralizado, incluindo as autoridades tradicionais, revelou todos os seus limites, passando a ser mero executor e mediador das vontades dos grandes grupos estrangeiros que queriam apoderar-se das terras férteis moçambicanas.

Palavras-chave: comunidades locais; governo; investidores estrangeiros; lutas

Abstract

After having analysed the essence of agricultural policies adopted in Mozambique since independence (1975), this research tries to understand how new forms of resistance by rural communities developed from the mid-2000s. Such forms of resistance often led to the success of the incipient Mozambican rural social movements, also thanks to the action of national associations that have been supporting local communities in their struggles against land grabbing. The role of the government, both at the central and at the decentralized level, including the traditional authorities, revealed all its limits, becoming a mere executor and mediator of the willing of great foreign groups which aimed at catching hold of Mozambican fertile lands.

Keywords: local communities; government; foreign investors; struggles

Esta pesquisa desenvolve uma análise sobre as políticas agrícolas levadas a cabo em Moçambique, realçando em particular o papel da autoridade pública, central e local, assim como as recentes formas de resistência das comunidades rurais diante de projetos de grande vulto por parte de várias empresas estrangeiras (Mosca, 2011).

A ideia central é que em nenhum momento o Estado soube interpretar as caraterísticas sociais e culturais do mundo rural, nem na altura socialista, nem ao longo da abertura liberal, nem nos últimos anos, com a “crise alimentar” de 2007-2008, quando os investidores estrangeiros mostraram um inédito interesse pelas terras férteis moçambicanas.

A implementação de políticas inadequadas, geralmente dependentes de opções externas, fez com que o Estado moçambicano se transformasse em algo parecido a um executor de estratégias externas, sobretudo depois do início da “corrida para a terra”1, com mediações sempre feitas em detrimento das comunidades locais abrangidas pelos investimentos externos. Tal processo envolveu as próprias autoridades locais e as formas extrajudiciais de mediação dos conflitos, tornando os chefes tradicionais (“régulos”) em larga medida executores, cúmplices ou meros espetadores das vontades governamentais. Muito significativo é o exemplo reportado por Mandamule, segundo o qual um dos régulos por ela entrevistados admitiu ter assinado as atas de atribuição de terras a investidores estrangeiros sem nunca ter sido envolvido neste processo, juntamente com a comunidade que administra, principalmente para evitar o “barulho” que poderia decorrer duma sua rejeição, respeitando assim a autoridade constituída (Mandamule, 2017a).

Numa primeira fase, as terras foram entregues aos investidores estrangeiros devido a vários fatores, um dos quais foi a fraca capacidade de resistência e organização coletiva por parte das comunidades locais diante deste processo de usurpação de terras; em seguida, aproximadamente ao longo dos últimos cinco anos, as comunidades começaram a ser mais conscientes, inclusivamente graças ao apoio de associações de cunho nacional comprometidas em criar redes de resistência abertamente anticapitalistas, difundindo uma nova mentalidade junto ao mundo rural, ou pelo menos às regiões abrangidas pelos ditos investimentos.

A pesquisa usou uma abordagem qualitativa, assente na análise histórica das políticas de desenvolvimento rural em Moçambique e nas formas de protesto mais recentes, com a ajuda de entrevistas semiestruturadas junto a alguns informantes-chave que protagonizaram tais lutas, em diversos cantos do país. Tais informantes são membros ativos de associações que lideraram as lutas de resistência contra os processos de privatização da terra em Moçambique, no sul e no centro do país. O quadro que tais fontes ofereceram, juntamente com as dinâmicas socioeconómicas atuais, tornaram esta pesquisa uma primeira etapa para uma compreensão mais apurada dos fenómenos em estudo, que futuras investigações poderão esclarecer e aprofundar.

Breve enquadramento histórico e teórico

A questão agrária sempre constituiu um elemento fundamental da economia e das sociedades africanas. A partir do início do século XX as potências coloniais europeias ocuparam de forma mais estável o território deste continente, usando a agricultura como um dos meios privilegiados de enriquecimento da metrópole. Entretanto, a agricultura e suas práticas serviram não apenas como base do sistema produtivo colonial, mas também como pano de fundo para inculcar crenças e hábitos julgados mais adequados num contexto de inserção da economia africana num mercado mundial (Hippert, 2018). Embora com diferenças consideráveis consoante o Estado colonizador, o tipo de organização prevalecente foi a grande propriedade fundiária virada para a exportação de commodities, mesmo depois de 1945, quando o impulso para políticas “desenvolvimentistas” se fez mais evidente. Neste âmbito, os Estados coloniais - com a exceção de um Portugal em larga medida dependente da mão de obra formalmente livre que assinava contratos de emprego, mas na realidade se encontrava numa condição semiescrava, como demonstra o trabalho forçado nas roças de S. Tomé (Bussotti & Martins, 2019; Jerónimo, 2010) ou nas concessões de companhias agrícolas locais - realizaram significativos investimentos no setor estratégico da agricultura, chegando a cobrir 45% do total gasto no meio rural, ao passo que os privados preferiram direcionar seus recursos para o mais rentável campo minerário (Austin, 2015).

As respostas das comunidades locais foram relativamente homogéneas ao longo da ocupação colonial europeia, contestando, tanto quanto possível, um modelo de desenvolvimento rural que as excluía, condenando-as a um papel de meros produtores para mercados externos mediante o trabalho forçado ou algo de muito parecido. Só para trazer dois exemplos emblemáticos em momentos diferentes da trajetória colonial, em 1905-1907 na África Oriental Alemã os Maji Maji protagonizaram uma revolta com base numa agenda definida pelos camponeses locais, aquando do início das grandes plantações de algodão por parte do colono (Iliffe, 1967). Em 1952, desta vez no Quénia britânico, os Mau Mau organizaram uma enorme rebelião, em larga medida levada a cabo pela etnia Kikuyu, em que a questão agrária teve um papel decisivo (Kariuki, 1975).

No Médio Congo Francês (hoje conhecido como Congo Brazzaville) uma linha de relativa continuidade da exploração da mão de obra basicamente rural ou destinada a construir grandes infraestruturas ferroviárias caraterizou a sua história, desde 1918 até 1968, ou seja, até após a independência, conseguida em 1960. Juntamente com o “equilíbrio do terror”, formas abertas de rebelião alternaram com mais comuns fugas para os territórios vizinhos (Keese, 2017).

Nas colónias portuguesas, e principalmente em Moçambique, o poder de controlo e exploração da terra era confiado a grandes companhias, tais como a Companhia de Moçambique (no centro do país, nomeadamente Manica e Sofala), a Companhia do Niassa e a Companhia da Zambézia, pelo menos até 1942 (Dibben & Wood, 2016). Entretanto, o regime de trabalho agrícola continuou a configurar-se como trabalho forçado, quer em Moçambique quer, como acima assinalado, mediante o “desterro” para S. Tomé, praticamente até à independência.

De forma geral, portanto, a organização largamente prevalecente da economia rural africana continuou até aos anos 1960 (1980 na África Ocidental) como “commercialization via cash cropping” (Delgado, 1995, p. 4) ou, usando termos da teoria da dependência, consoante um modelo económico “extravertido” (Amin, 1973).

Foi este o modelo contra o qual os maiores líderes africanos, com uma elevada dose de idealismo e otimismo, procuraram alternativas, que foram encontradas em formas diferenciadas de socialismo rural. Individualidades como Senghor ou Nyerere implementaram políticas agrícolas de cunho socialista, mas tendo como pano de fundo a sociedade africana tradicional (Ujamaa na Tanzânia), enquanto Nkrumah, Sekou Touré e Keita tentaram aplicar formas mais ortodoxas de marxismo-leninismo (Kofi, 1981). De qualquer maneira, as duas tendências confluíram em opções práticas comuns, a saber terra coletiva e igualitarismo.

Na África lusófona o mais coerente ideólogo anticolonialista que enfatizou a importância da questão agrária foi Amílcar Cabral, ajudado nisso pela sua formação, assim como pela sua experiência profissional (Galli, 1986). As monoculturas não só pressupunham a exploração da mão de obra local, como deterioravam os terrenos; a questão rural foi portanto identificada, em larga medida, com a própria questão do desenvolvimento por parte de Cabral (Iliffe, 1967).

Cabral representa uma exceção, no panorama africano lusófono e, em certa medida, africano tout court. Os outros líderes das lutas de libertação na África lusófona faziam parte da elite urbanizada daqueles países, com - em muitos casos - mais experiência no estrangeiro do que no próprio território que pretendiam libertar. Foi assim no caso do médico Agostinho Neto, em Angola, do sociólogo e antropólogo Eduardo Mondlane em Moçambique, do cabo-verdiano Pedro Pires, que passou a sua juventude a estudar Ciências na Universidade de Lisboa, e de muitos outros. Esta falta de conhecimento da questão agrária por parte dos “libertadores” levou a adotar modelos desatualizados e inapropriados para as realidades nacionais de recente independência, geralmente importados da ideologia socialista. Em Angola, por exemplo, a terra foi considerada como bem público, com o resultado de inibir a iniciativa privada ou familiar, aumentando as terras vagas e as migrações internas, sobretudo para Luanda (Souza Pain, 2007). E na própria Guiné-Bissau independente os maiores esforços se concentraram na implementação de políticas para o desenvolvimento industrial, não conseguindo a elite que tinha levado à independência ir além “da sua alienação a um poder político exclusivista, embora da aparência popular, portanto populista” (Cardoso, 2004, p. 2).

Em todos os PALOP, depois do falhanço de políticas de desenvolvimento rural centradas na coletivização da terra, procedeu-se a uma viragem bastante radical, que passou pela adesão ao ajustamento estrutural, seguida pelo desenvolvimento sustentável (“revolução verde”) (Delgado, 1995) e, na última década, a ocupação das terras melhores por parte de novos investidores estrangeiros.

No contexto moçambicano também a elite que desencadeou a luta de libertação tinha um evidente marco urbano e modernizante. Eduardo Mondlane tinha absorvido os princípios liberais e democráticos da sociedade americana, ao passo que os ideólogos mestiços ou originários de Goa que influenciaram Samora Machel, tais como Marcelino dos Santos e Sérgio Vieira, Óscar Monteiro e Aquino de Bragança, convencidamente filo-soviéticos, partilhavam uma visão modernizante e mais centrada na indústria (e nos operários) do que na agricultura (e nos camponeses) e, dentro desta última, na agricultura de tipo comunitário, em detrimento dos pequenos e médios camponeses. Foi por isso que houve - como se procurará demonstrar no ponto seguinte - uma constante falta de priorização do setor rural no Moçambique socialista, que levou a um agravamento das condições de vida daquelas populações (Mosca, 2017).

Moçambique atravessou as várias fases de políticas agrícolas acima descritas para o contexto africano no geral, mantendo a ambiguidade da terra como bem público, mas constituindo um dos alvos privilegiados, a nível africano, dos investimentos externos no meio rural, dando assim origem a formas de resistência em larga medida inéditas no seu meio rural.

O quadro teórico que sustenta este estudo deve ser procurado nas análises da teoria da dependência, acima citadas (Amin, 1973), complementadas por leituras mais modernas, relativas ao último período em questão, que inicia com a “crise” de 2007-2008 e que traz o aprofundamento de políticas neocoloniais de apropriação de terras. Entretanto, esta nova forma de neocolonialismo ligado à questão agrária africana põe em estreita conexão interesses de investidores estrangeiros (não só ocidentais, mas também asiáticos) com os de sujeitos locais, principalmente institucionais. Tal leitura é proposta, por exemplo, por Batterbury e Anum Ndi (2018). Na opinião destes autores, o continente africano se tornou alvo de políticas de apropriação de terras a partir da década de 2000. Entretanto, eles enfatizam o facto de não apenas as grandes multinacionais estrangeiras, mas também os governos locais terem protagonizado tais processos, em detrimento dos pequenos camponeses (sobretudo de sexo feminino) e das comunidades rurais locais, sem mecanismos transparentes e justos de compensação. Este posicionamento se enquadra perfeitamente na realidade moçambicana, muito mais do que outros de autores que continuam a destacar o papel das multinacionais ocidentais, negligenciando ou não atribuindo tamanha importância às forças locais (Tai Babatola, 2014). Pelo contrário, com referência à realidade moçambicana, vários pesquisadores têm enfatizado a importância do Estado na questão da apropriação da terra, apesar de esta ser formalmente pública (Bussotti, 2019; Monjane, 2020); assim como a maximização da entrada de capitais estrangeiros sem condicionalismos políticos, com evidente ligação entre eles e o processo de acumulação do capital nacional, em detrimento da força de trabalho que, sobretudo no meio rural, continua sendo paga abaixo dos seus efetivos custos sociais (Castel-Branco, 2014).

O quadro teórico baseado em abordagens neocoloniais, com atores estrangeiros diversificados, aliados a instituições locais com controlo direto nas terras do país é o que foi utilizado neste artigo para compreender os mecanismos de apropriação fundiária ocorridos ao longo da última década em Moçambique, procurando mostrar como a posse da terra por parte do Estado não significa necessariamente uma defesa dos interesses públicos em volta da questão agrária.

O período socialista: um início difícil

Moçambique sempre teve uma grande disponibilidade em terra fértil, geralmente pouco aproveitada. De um total de 80 milhões de hectares, cerca de 36 são considerados aráveis. Na altura socialista, logo após a independência, a questão do “campesinato” foi abordada de forma muito ideológica, com base nas doutrinas de Mao e de Lenine, com uma insuficiente análise do contexto económico e sobretudo cultural local (O’Laughlin, 1995). Assim, as políticas agrícolas se orientaram para a promoção de cooperativas de produção e sobretudo “the establishment of a large state farm sector” (“o estabelecimento de um grande setor de propriedades estatais”) (Kloeck-Jenson, 1998, p. 239), mediante o sistema das aldeias comunais e machambas estatais. Os pequenos e sobretudo médios produtores foram hostilizados, temendo uma sua transformação em capitalistas (Mosca, 2011). “Os camponeses eram considerados individualistas em sistemas políticos assentes no paradigma colectivista” (Mosca, 2017, p. 72).

Este programa de coletivização e estatização da terra foi delineado no III Congresso da Frelimo em 1977 (e depois na Lei da Terra de 1979), abrindo de imediato uma ambiguidade de fundo que depois acompanhará todas as políticas agrárias do país, até hoje. Por um lado, deu-se prioridade às culturas viradas para a satisfação das necessidades alimentares familiares, mas por outro não se quis descurar as produções de exportação, tais como caju, chá, algodão e cana-de-açúcar (Vunjahne & Adriano, 2015).

O Programa de 77 constituiu a lógica consequência das premissas ideológicas e normativas assentes na Constituição de 1975, onde o art.º 39 rezava que a agricultura era a base do desenvolvimento nacional, e que o Estado ia incentivar as formas mais avançadas (ou seja, coletivas) de produção. A partir dessas premissas, o processo de coletivização, na altura celebrado por muitos observadores, nacionais e internacionais, como uma das pontas mais progressivas do socialismo africano, tornou-se o instrumento mais brutal de ataque ao campesinato, ignorando “as características únicas dos sistemas produtivos camponeses e seus saberes” (Vunjahne & Adriano, 2015, p. 11). À confirmação disso vale a pena recordar que 90% do investimento na agricultura entre 1978 e 1983 foi destinado ao setor estatal, demonstrando assim a adesão praticamente nula dos camponeses ao programa de cooperativas implementado pelo governo (Mackintosh & Wuyts, 1988), bloqueando as possibilidades de transformação da agricultura moçambicana (Wuyts, 1985). Só a partir de 1983, com o alastramento da guerra para todo o país, o governo iniciou a distribuição de terras férteis aos camponeses, como no caso do vale do rio Limpopo (Gaza, sul de Moçambique), quer para procurar ultrapassar o falhanço financeiro e produtivo das empresas estatais, quer para ter aliados num mundo rural cada vez mais hostil à Frelimo (Mosca, 2017).

Políticas agrícolas falhadas, associadas à guerra civil de 16 anos, levaram a destruições consideráveis no meio rural. Foi calculado que quer o sistema de irrigação, quer a produção alimentar registaram decrementos na ordem dos dois terços nos primeiros 15 anos de independência (Vunjanhe & Adriano, 2015).

Fora das destruições provocadas pela guerra, porém, uma ambiguidade de fundo nunca foi resolvida por parte do governo socialista: optar por incentivar a agricultura de subsistência, mas ao mesmo tempo grandes extensões de culturas de exportação (como a de algodão de 400.000 hectares no centro do país). Este modelo, em palavras muito simples, “does not work” (Smart & Hanlon, 2014, p. 1). Consoante suas pesquisas, levadas a cabo não apenas em Moçambique, mas também em Zimbabué, Smart e Hanlon concluem que apoiar a agricultura de subsistência (ou seja, camponeses e camponesas que gerem menos de 1 hectare) vai continuar a resultar na difusão da pobreza rural, ao passo que os grandes cultivos de commodities para exportação apresentam outros problemas, acima de tudo o empobrecimento dos solos e a proletarização dos camponeses. O desafio, portanto, de acordo com os casos de sucesso de médios agricultores no centro do país (cerca de 68.000), seria apostar nesta dimensão para, por um lado, ter empresas minimamente sólidas e, por outro, criar emprego para os mais jovens (o que uma machamba de 1 hectare não consegue fazer).

Os pontos a seguir irão desenvolver este aspeto, realçando que a ambiguidade de fundo que “does not work” não está necessariamente relacionada com o modelo político adotado. Como Smart e Hanlon sublinham, mesmo na altura socialista, e mesmo antes da grave crise derivada da guerra assim como da seca de 1981, “a few of the state farms were becoming productive” (“algumas das fazendas estatais estavam a tornar-se produtivas”), comprovando que a grande dimensão resulta de difícil gestão (Smart & Hanlon, 2014, p. 5).

As políticas agrícolas da viragem liberal

Antes da viragem constitucional de 1990 e a assinatura dos acordos de paz em Roma em 1992, as medidas de ajustamento estrutural abrangeram também o setor rural. A partir desta época, o marco de políticas cada vez mais orientadas por vontades externas (Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, países ocidentais) se tornou mais evidente. Além do fecho e consequente privatização das empresas estatais, o que mais mudou foi a lógica da intervenção: se as políticas socialistas tinham procurado um equilíbrio entre satisfação das necessidades alimentares internas com produções de tipo comercial e medidas de ajustamento estrutural, o que se quis privilegiar foi o cultivo destinado à exportação, à semelhança daquilo que acontecia na altura colonial. Não faltaram críticas a tais políticas que levaram a um empobrecimento generalizado dos camponeses e do próprio meio rural, como as contínuas acusações do jornalista Carlos Cardoso repetidamente denunciaram (Fauvet & Mosse, 2003).

Entretanto, foi apenas depois do evidente fracasso de tais políticas que o governo moçambicano procurou corrigir e implementar formas diferentes de pensar o desenvolvimento rural.

Tais formas, porém, resultaram em novos fracassos, devido à falta de uma visão orgânica do desenvolvimento rural e a uma política que não passou de meras palavras de ordem, a maioria de tipo eleitoral. Associado a isso deve ser considerado o facto de o investimento direto estrangeiro (IDE) ter sido direcionado, de 1990 até 2005, em larga medida (1,7 mil milhões de dólares) para a indústria (a partir da Mozal, o primeiro megaprojeto a ser implementado depois dos acordos de paz), em detrimento da agricultura (322 milhões de dólares) (Matos, 2005).

Os programas implementados a partir da década de 2000 refletiram a ambiguidade acima assinalada, procurando responder à contingência da crise alimentar mediante a salvaguarda de pequenos produtores, destinados à pobreza e à insegurança alimentar; e ao “desenvolvimento” mediante grandes plantações de exportação. Foi justamente neste período que começou a concretizar-se o novo modelo neocolonial de relações fundiárias, em Moçambique assim como em muitos outros países africanos, e que se acentuou ainda mais ao longo da última década.

Uma série de programas (por vezes com sobreposições) foram assim lançados, todos eles com êxito negativo. PROAGRI, Revolução Verde, biocombustíveis, finalmente grandes investimentos virados para a exportação de commodities, tais como ProSavana, silvicultura e Sustenta. Todos eles, porém, sem enfrentar a questão de fundo: as políticas públicas deviam privilegiar as produções locais, ajudando-as a se fortalecerem, garantindo no mínimo a segurança alimentar, ou a terra devia ser um veículo para incrementar os rendimentos mediante exportações? O governo moçambicano nunca mostrou capacidade política nem técnica para efetuar uma opção clara. Assim, o xadrez da propriedade da terra no país mudou radicalmente. Leis e procedimentos de atribuição da terra foram constantemente violados ou contornados, contando com uma ambiguidade de fundo: por um lado, o discurso político enaltecia o facto de a terra ser pública, pertencendo ainda ao Estado, mas por outro um tal discurso “esquerdista” foi usado para que o Estado - por exemplo mediante simulacros de envolvimento das comunidades na tomada de decisões, com consultas comunitárias de fachada - se apoderasse de tais terrenos, entregando-os a investidores estrangeiros e transformando a maioria dos pequenos camponeses locais em assalariados das companhias parceiras do governo. Em suma, a mobilidade social que o Estado promoveu em relação aos pequenos camponeses foi no sentido contrário ao desejado: não os ajudou a se transformarem em agricultores médios, capazes de dar vazão quer às necessidades de segurança alimentar, quer à exportação de produtos de rendimento alimentares, mas os proletarizou, retirando-lhes a pouca segurança alimentar que possuíam graças aos seus pequenos cultivos.

Um tal processo foi levado a cabo contando com a passividade de larga parte das populações rurais, assim como com o monopólio do uso da força por parte das autoridades governamentais, exercido quer de forma preventiva, quer a posteriori (como no caso das plantações de açúcar no distrito da Manhiça, sul de Moçambique, de que se dirá mais à frente). Um estudo de terreno levado a cabo pela ONG Justiça Ambiental (JA!) e pela União Nacional de Camponeses (UNAC) revelou que:

as comunidades não foram ouvidas nem respeitadas em matéria de resolução de conflitos. Em alguns casos os investidores não chegaram a ter contacto directo com as comunidades, utilizaram o régulo como vínculo intermediário entre os investidores e as comunidades. (JA! & UNAC, 2011, p. 36)

Assim, mesmo os canais extrajudiciais, informais ou tradicionais de resolução de conflitos, previstos pela lei moçambicana (art.º 24 de Lei da Terra n.º 19/97 e Lei 4/92 relativa aos tribunais comunitários) foram em larga medida usados para satisfazer as necessidades do governo central e periférico, que se tornou, por seu turno, instrumento privilegiado de implementação do apoderamento da terra por parte dos investidores estrangeiros, muito mais do que instância de mediação de conflitos (JA! & UNAC, 2011).

O dilema com que o governo moçambicano, assim como muitos outros governos africanos, se deparou desde o início da década de 2000 e ainda mais a partir da “crise alimentar” de 2007-2008, foi muito bem resumido por um economista:

por um lado, o desejo e a necessidade imperiosa de aumentar a produtividade e os rendimentos agrícolas em África de forma muito substancial e rapidamente; e, por outro lado, a necessidade de encontrar as formas sociais, culturais, económicas e tecnologicamente mais adequadas e sustentáveis para o fazer. (Castel-Branco, 2008, p. 1).

De forma geral, Moçambique optou por uma tentativa de aceleração brusca da produção agrícola, tendência que se acentuou a partir de 2007-2008.

O programa PROAGRI, implementado ainda na época do presidente Chissano (que governou até 2004) consistiu de três fases: na primeira, que vai de 1994 até 1999, foram desenhados o Pré-programa e o PROAGRI I, com foco no “desenvolvimento institucional” e na privatização do setor açucareiro (RM/MA, 2011). Na segunda (1999-2006) se procurou definir melhor o quadro legislativo e sobretudo a sua regulamentação, com reestruturação do Ministério da Agricultura, e na última foi implementado o PROAGRI II, com projetos de desenvolvimento local e programas de diversificação agrícola, em consonância com o Programa de Redução da Pobreza Absoluta (PARPA I, 2000-2004) (RM/MA, 2011). Entretanto, “os diversos programas de incentivo à modernização agrícola da década de 2000 a 2010, como o PROAGRI (Programa Nacional de Desenvolvimento Agrário) e o PARPA (Plano de Ação para a Redução da Pobreza Absoluta), não foram capazes de promover aumentos significativos de produtividade” (Guarinzoli & Guarinzoli, 2015, p. 121). Mesmo se analisadas do ponto de vista meramente quantitativo e económico, tais políticas resultaram num falhanço. A produtividade - que se pretendia incentivar - continuou baixa (entre um quinto e metade da produtividade mundial) (Guarinzoli & Guarinzoli, 2015, p. 121), ao passo que não foram levadas avante políticas de crédito específicas para o setor rural, de maneira que Moçambique ficou, no fim da experiência do PROAGRI, extremamente atrasado deste ponto de vista. Em 2010 a percentagem de crédito para atividades agrícolas era de 24%, diante de países como Brasil com 97,81%, África do Sul com 182%, Namíbia com 48,43% e por aí fora (World Bank, 2011), representando isso um dos maiores entraves para o desenvolvimento sustentável do setor em Moçambique.

A Revolução Verde procurou replicar um modelo em voga na Índia e na América Latina entre os anos 60 e 70. Moçambique adotou os princípios da Revolução Verde em 2007, e em 2008 estes foram complementados pelo PAPA 2008-2001 (Plano de Acção para Produção de Alimentos). O PAPA foi centrado na distribuição de sementes melhoradas aos pequenos agricultores, mas negligenciando a distribuição de insumos e fertilizantes (RM/MA, 2011). Entretanto, esta linha política se inscreve numa convicção mais geral, baseada no credo neoliberal e neocolonial de falta de intervenção por parte do Estado, segundo as indicações do Banco Mundial e dos doadores ocidentais. Estudos sólidos demonstram que uma tal opção - diferente daquilo que foi feito (com sucesso) no Zimbabué e no Malawi - levou ao resultado de que um número muito reduzido de agricultores moçambicanos conseguiu sair da linha da pobreza e entrar numa agricultura comercial, abandonando a de subsistência (Hanlon & Smart, 2008).

Nesta vasta gama de programas e projetos, que é impossível aqui enumerar por completo, o facto de o governo ter tido “quatro ou cinco dezenas de estratégias de dimensão nacional”, influenciadas pelas várias políticas, também diferenciadas e por vezes divergentes entre os vários doadores, constituiu uma das razões do falhanço da Revolução Verde em Moçambique (Hanlon & Smart, 2008, p. 20). Depois de três anos (portanto em 2010), segundo um relatório produzido pela Inspeção Geral das Finanças e a sociedade Eurosis, a Revolução Verde não tinha trazido resultados significativos, com uma agricultura de subsistência a representar ainda 97% dos cinco milhões de terra cultivada no país, uma produtividade muito baixa, devido a fatores como uma rede comercial extremamente fraca, falta de serviços básicos, difícil acesso ao crédito e práticas nocivas como queimadas descontroladas (Revolução Verde, 2010).

Biocombustíveis, silvicultura e “corrida para a terra” diante dos protestos sociais

A partir da ascensão do Guebuza, em 2004, que coincidiu com um renovado interesse por parte dos investidores internacionais no solo moçambicano, a questão agrícola sofreu uma repentina transformação: a terra tornou-se apetecível devido a vários fatores, todos eles convergentes com a necessidade de uma exploração mais intensiva da mesma. Deixando de lado os interesses no âmbito da energia (carvão, gás, petróleo) e das pedras preciosas (diamantes, mas sobretudo ouro e rubis), foram três os momentos e os fatores que impulsionaram a “corrida para a terra” a partir dos meados da década de 2000: biocombustíveis, silvicultura e megaprojetos, acima de tudo o ProSavana. Este conjunto de interesses levou Moçambique a ser o quinto país no mundo em concessão de terra para investimentos estrangeiros, com 99 projetos concluídos e 2,2 milhões de hectares ocupados (Wise, 2015). Desta vez, a ambiguidade estava a ser dissolvida. Tendo consciência de que o setor familiar que se pretendeu apoiar não deu os resultados esperados, o governo moçambicano respondeu positivamente às pressões dos investidores internacionais, apostando nas grandes extensões de terra destinadas à exportação. Depois de um período entre incredulidade e passividade, em que muita terra foi concessionada, as comunidades locais começaram a reagir, desenvolvendo formas avançadas de resistência e protesto. Foi em larga medidas graças a tais protestos que o ProSavana foi declarado oficialmente fechado ao longo de 2020 (Silva, 2020).

Foi também graças a este desfecho que o momento marcante para a abertura desta nova fase de engajamento e protesto contra as políticas neocoloniais acima recordadas foi o ProSavana, que é demasiado conhecido para que tenha de ser tratado aqui (ver, entre outros, Catsossa, 2017; Suárez & Borras, 2010). O que vale a pena realçar é que o ProSavana foi um “batismo de fogo” para algumas associações nacionais emergentes (como a ADECRU), compactando uma frente anticapitalista formada por mais de 40 organizações, com alianças internacionais com movimentos como La Via Campesina, que deram um cunho inédito aos movimentos sociais rurais de Moçambique.

Se a escolha política do governo desta vez foi clara, a pauta que impulsionou a formação de ligações e redes de resistência também foi clara: a ameaça comum que os novos investimentos estavam trazendo era constituída do risco de os camponeses e as comunidades tiverem de ceder a terra para o cultivo de commodities para exportação, perdendo o pouco de segurança alimentar que tinham e tornando-se assalariados das grandes companhias estrangeiras.

Os biocombustíveis constituíram a primeira iniciativa no âmbito agrícola em que o neo-eleito presidente Guebuza se envolveu diretamente. Já na campanha eleitoral de 2004 o tema dos biocombustíveis representou uma das marcas da proposta de Guebuza. O trabalho de procura de investidores começou a concretizar-se por volta de 2007, quando Guebuza fechou um acordo com o governo brasileiro, nomeadamente com o presidente Lula, em Brasília, destinado a incentivar investimentos brasileiros neste específico setor, em especial etanol e biodiesel (Brasil e Moçambique, 2007). Segundo refere o então ministro da Energia, Salvador Namburete, em 2007 o governo moçambicano recebeu pedidos para ocupar mais de cinco milhões de hectares de terra para o cultivo de biocombustíveis. As iniciativas mais significativas levadas a termo foram as da portuguesa Galp Energia, que assinou um acordo com o governo moçambicano para produção de óleo vegetal e biocombustíveis em Buzi (Sofala), e sobretudo o projeto Pro-Cana, no distrito da Manhiça (província de Maputo), por um valor de 345 milhões de euros, ocupando 30 mil hectares. Ao mesmo tempo, o governo moçambicano assinou, ainda em 2007, um contrato de 360 milhões de euros para o cultivo de plantas de uso energético com a Companhia de Indústria Mineira da África Central, com sede em Londres, comprometendo-se a produzir 120 milhões de litros de etanol e de fertilizantes por ano (Moçambique: Guebuza defende, 2008). Em 2007-2008 o cultivo de plantas para uso energético alcançou quase 7% da terra arável de todo o país, com vastas áreas de monoculturas de exportação e acelerados processos de expropriação de terras aos camponeses locais.

Quem mais participou nesta primeira “corrida para a terra” foram os países europeus, além de Brasil e Estados Unidos, devido a uma diretiva da UE de 2009, em que - até 2020 - os Estados membros deviam usar pelo menos 10% de carburante com baixo nível de CO₂, limitando a dependência do petróleo (UE, 2009). A jatrofa (purgueira, Jatropha curcas) foi de imediato identificada como a planta que melhor respondia a tais exigências, tanto que, dos 4 milhões de terra cultivados para biocombustíveis em África até 2011, 2,8 eram de jatrofa (Koffi, 2012). Entretanto quando, poucos anos depois, devido essencialmente aos conflitos de terra que a jatrofa estava trazendo em África, esta planta foi desclassificada e excluída das energias renováveis, o investimento nela caiu repentinamente, deixando solos empobrecidos, camponeses outrora independentes na condição de desempregados, tendo perdido o emprego como assalariados, além do desperdício de investimentos milionários que podiam ser direcionados para o cultivo de plantas de uso alimentar.

Os resultados foram coerentes com um modelo de desenvolvimento agrário totalmente extravertido e não autocentrado (Amin, 1973), de tipo neocolonial. Já em 2011, a apenas cinco anos do início da implementação da campanha, a jatrofa, que devia resolver muitos dos problemas de abastecimento energético do país, “secou antes mesmo que pudesse florescer” (Beck, 2011). Dos 438.000 hectares que deviam ser destinados à plantação desta oleaginosa, apenas 10.000 foram cultivados (equivalente a 3%), para serem rapidamente abandonados.

Assim como, com grande pompa, os biocombustíveis - e sobretudo a jatrofa - tinham sido anunciados por Guebuza, rapidamente desapareceram das notícias da imprensa moçambicana. Neste caso, os protestos nem chegaram a se fazer sentir na opinião pública, pois o fracasso da jatrofa em Moçambique foi tão repentino que a deceção ultrapassou a raiva.

Quase que ao mesmo tempo, porém, um novo capítulo se abriu: a silvicultura, em especial os eucaliptos. É a partir deste tipo de cultivo que - em paralelo com o ProSavana - reações significativas de resistência se desencadearam.

A opção do governo liderado por Guebuza foi muito clara: se, na altura colonial, só tinham sido concessionados cerca de 20.000 hectares para plantação de eucaliptos, entre 2004 e 2009 as concessões chegaram a 1 milhão de hectares, dos quais 73% de território florestal (Hanlon, 2011). Manica, Zambézia, Nampula e Niassa foram as províncias de maior concentração de investimentos estrangeiros em eucalipto, com o envolvimento sobretudo de empresas portuguesas, suecas e norueguesas (Hanlon, 2011).

No sul do país, os investimentos nos biocombustíveis concentraram-se particularmente na cana sacarina para produção de açúcar e etanol. O projeto Pro-Cana, concentrado na vila de Thiovene (distrito de Massingir) resultou de um investimento relativo a 30.000 hectares. Porém, a empresa inglesa Sable Mining, controlada pela CAME, desistiu, a licença foi retirada e entregue à sul-africana TSB Sugar em finais de 2011 (Bambo, 2011). Na Manhiça a empresa Maragra transformou o território outrora destinado à produção de hortícolas e outros géneros alimentícios numa monocultura de açúcar, despertando os protestos das comunidades locais (Mandamule, 2017b).

Resistências contemporâneas no meio rural em Moçambique

A análise dos movimentos de protesto contra os eucaliptos e contra a cana sacarina revela resultados em parte diferentes, configurando quadros diversificados de resistência, por parte das comunidades abrangidas, diante das pressões à volta da terra. No caso dos eucaliptos, as lutas de resistência quase sempre conseguiram alcançar resultados significativos, bloqueando o investimento ou obrigando o investidor (e o governo, sempre do lado deste) a negociar condições melhores para as comunidades. No caso da cana-de-açúcar, por exemplo na Manhiça, o resultado é que grande parte daquele território vive hoje refém da Maragra, que desenvolveu uma monocultura, tornando os antigos camponeses dependentes por inteiro da indústria do açúcar. É provável que fatores tais como o tipo de investimento, o poder do Estado (mais do que o seu posicionamento, muito parecido nos dois casos) entre sul (muito forte) e centro (relativamente fraco), a cultura política das comunidades interessadas (filo-governamental no sul, com mais propensão para a oposição no centro) e o período em que os investimentos foram levados a cabo tenham tido uma influência considerável no desfecho diferente das lutas protagonizadas pelas comunidades rurais nos dois casos aqui abordados.

O caso da Portucel

Entre os vários grupos locais e informais que procuraram resistir aos investimentos no setor agrícola e na silvicultura ao longo dos últimos anos, o movimento social que se desenvolveu na província da Manica é um dos mais significativos.

Aqui, a Portucel Moçambique implementou um dos maiores investimentos no setor. A Portucel é uma empresa registada em Moçambique e pertence hoje a The Navigator Company (ex-grupo Portucel/Soporcel), de capitais maioritariamente portugueses. Entre 2009 e 2011 foram concedidos dois DUAT à Portucel, um na Zambézia (173 mil ha), outro em Manica (183 mil ha). O programa total de plantação de eucaliptos pela Portucel é de 356.000 hectares até 2026, com um investimento total de 2,3 mil milhões de dólares, com financiamento da International Finance Corporation, membro do Banco Mundial. Tais concessões, com os relativos investimentos previstos, chamaram a atenção das comunidades locais, uma vez que se tratava de áreas “with significant population and agricultural potential” (“com uma população e um potencial agrícola significativos”) (Hanlon, 2011, p. 29).

O DUAT, consoante fontes locais, confirmadas pela ADECRU2, foi concedido antes de completar a consulta comunitária, demonstrando o total alinhamento do governo (neste caso distrital) com as vontades da Portucel. Os distritos envolvidos no investimento da Portucel são Gondola, Manica, Mussorize, Barue e Sussundenga, na província de Manica, e Mulevala, Ilé e Namarroi, na província da Zambézia. A Portucel - segundo alguns autores (Machoco, Cabanelas & Overbeek, 2016) - protagonizou uma série de evidentes violações dos direitos humanos mais básicos para adquirir a terra dos camponeses. Isso foi feito com base na lei da terra e contornando grosseiramente os procedimentos de consulta comunitária ali previstos. Em suma, o importante foi produzir uma “acta”, entregue ao governo provincial e depois ao governo central, assim como à própria Portucel, demonstrando que os procedimentos tinham sido respeitados. Diferentemente da época socialista, em que o governo - embora com a influência dos países que àquela ideologia faziam referência - procurou implementar políticas próprias, nesta fase neoliberal e neocolonial as instituições públicas foram reduzidas a meras executoras de projetos alheios, desinteressando-se por completo das consequências dos mesmos junto às populações.

Outra modalidade com que desta vez a Portucel adquiriu os terrenos em Manica foi mediante negociação direta com as famílias (cerca de 1779), para que estas lhe cedessem os respetivos DUAT (Acordos celebrados, 2017).

Entretanto, na província da Manica, sobretudo em Gondola e Sussundenga, a resistência das comunidades contra o investimento de eucaliptos foi bem organizada e deu resultados significativos. Juntamente com as comunidades locais, a ADECRU levou a cabo um trabalho muito profundo de formação e informação sobre direitos da terra, direitos humanos e direitos das comunidades rurais junto às instituições, tanto que o próprio governo provincial teve de mudar em parte de postura para com a Portucel, e esta foi obrigada a acionar mecanismos de diálogo com a sociedade civil local para procurar ultrapassar os constrangimentos que estavam bloqueando o investimento.

A Portucel sempre atuou no sentido de evitar o confronto com organizações complexas e bem estruturadas: primeiro, como já recordado, negociando a cedência dos DUAT família por família, depois constituindo um conselho consultivo - liderado pela ONG Action Aid - “para fomentar o diálogo e a participação das partes interessadas no desenvolvimento do projecto da empresa” (Conselho consultivo, 2018, p. 1), com o único objetivo de reduzir o conflito social.

A situação em que hoje o investimento da Portucel em Manica se encontra não está completamente clara, mas o que é evidente é a grande dificuldade em levar avante o projeto programado, graças à crescente consciência social das comunidades locais. Assim como são patentes as sequelas deixadas junto à população local de um investimento que previa a proletarização de pequenos agricultores, mas que nem nesta perspetiva deu certo. Com efeito, um grupo de credores, constituído pelas empresas SMOPS, FAAN e EMC anunciou recentemente que ia apresentar uma queixa por processo-crime em Portugal contra The Navigator Company, que teria amadurecido um débito de mais de 50 milhões de dólares (Carta de Moçambique, 2019). Izak Hotzhausen, presidente da SMOPS, assim descreve a situação atual das populações abrangidas em Manica e Zambézia pelo investimento da Portucel: foram feitas “falsas promessas às comunidades”, prometendo “às pessoas cerca de 7000 oportunidades de emprego que nunca se concretizaram”, estimando que os camponeses locais envolvidos são cerca de 40.000 (Carta de Moçambique, 2019). As comunidades locais decidiram juntar-se ao processo-crime contra a Portucel, associando-se às três empresas fornecedoras de serviços com os avultados créditos recordados acima.3

O caso da Maragra

Diferentemente daquilo que pode ser considerado - embora com todo o cuidado possível - como um caso de sucesso resultante das lutas conscientes das comunidades locais, em aliança com associações de dimensão nacional, o exemplo do açúcar na Manhiça constitui, provavelmente, uma referência contrária, em que os investidores conseguiram apoderar-se da terra e, com a decisiva ajuda das instituições locais, levaram a bom termo o seu projeto.

A tradição do cultivo de açúcar no sul de Moçambique, e nomeadamente no vale do Incomáti, é antiga. Depois dos primeiros passos em 1913 por parte de um escocês, que fundou a Incomati Estates, um cultivo de uma certa intensidade deu-se apenas a partir dos anos 1950 do século passado, com um grupo de empresários portugueses que comprou a Incomati Estates, levando a sua capacidade de produção horária a 100 toneladas (Sutton, 2014). A Maragra (Marracuene Agrícola Açucareira) foi fundada em finais dos anos 1960 pela família Petiz, iniciando a produção em1970 (Sutton, 2014). Em 1972 o açúcar representava 11% das exportações de Moçambique, depois da castanha de caju e do algodão, e a fábrica produzia 321.000 toneladas por ano. Em 1992 a produção era de apenas 13.000 toneladas, ao passo que hoje o setor açucareiro é composto por quatro empresas: Maragra, pertencente à Illovo Açúcar, a primeira produtora africana desta matéria-prima; Açucareira de Xinavane e Açucareira de Moçambique, pertencentes à Tongaat Hulett Açúcar; e a Companhia de Sena, controlada pela francesa Tereos International, mediante a brasileira Açúcar Guarani (Sutton, 2014). Dados de 2011 indicam que quase 50.000 hectares são cultivados, em Moçambique, com cana-de-açúcar, para uma produção de 400.000 toneladas, das quais 238.000 exportadas, empregando quase 40.000 trabalhadores (Sutton, 2014).

A Maragra produz cerca de 100.000 toneladas por ano, um pouco mais de 20% da produção total do setor. Das quase 5.000 pessoas empregadas, a larga maioria (quase 4.000) tem contratos sazonais. O volume de vendas é de cerca de 20 milhões de dólares (Sutton, 2014). Na tentativa de aumentar sua produção, a Maragra procurou estabelecer um acordo com os produtores locais, transformando cerca de 40.000 hectares numa enorme monocultura de açúcar. Foi nesta altura, em anos muito recentes, a partir de 2008, que se registaram protestos e manifestações de rua.

Segundo conta Rebeca, uma das coordenadoras do Fórum das Mulheres Rurais, que vive na vila da Manhiça, onde decorreu a entrevista com ela para efeitos desta pesquisa, em setembro de 2018, um dos problemas que os abrangidos tiveram com a Maragra foi a falta de informação, que não chegou completa: os panfletos que “convidavam” os camponeses a mudarem a sua cultura alimentar para o açúcar estavam escritos em língua inglesa, e isso dificultou os seus cálculos, uma vez que ninguém sabia dar-lhes o preço certo de venda de uma tonelada de açúcar à Maragra. Uma vez que as autoridades locais também não ajudaram de nenhuma forma, o Fórum das Mulheres Rurais apoiou a luta das camponesas e camponeses contra esta forma de exploração, ocupando a EN1, a principal artéria de comunicação norte-sul do país. Rebeca conta que a Força de Intervenção Rápida (FIR) interveio para retirar as pessoas da EN1, que levaram chambocadas (incluindo a própria Rebeca). O mesmo cenário repetiu-se em 2017, quando, em agosto, os manifestantes se queixaram da disparidade salarial entre os que trabalham diretamente para a açucareira (como visto, muito poucos) e os que apenas fornecem a matéria-prima e são pagos consoante a quantidade de produto que conseguem entregar à Maragra. Apesar de tais ações “de resistência”, Rebeca admitiu que, de 2008 até hoje, a capacidade de mobilização reduziu-se, identificando a causa desta dificuldade no facto de o governo nunca ter apoiado os interesses das comunidades rurais, trabalhando sempre em prol da empresa, mesmo com o uso da força pública.

Outro ponto que Rebeca questiona reside nas consultas comunitárias: mais uma vez, elas constituem um calcanhar de Aquiles, uma vez que são meramente formais e que muitas vezes as autoridades locais evitam envolver (ou até impedem de assistir a) sujeitos coletivos constituídos e presentes no território, tais como o Fórum das Mulheres Rurais.

No sentido geral, a história da Maragra é uma história de sucesso, diferentemente daquilo que está acontecendo com a Portucel. Entretanto, este sucesso - em termos produtivos, de faturação, de lucro, etc. - tem consequências não positivas: acima de tudo, os salários são muito baixos para a larga maioria dos trabalhadores sazonais (Rebeca falou em cerca de 3.000 meticais/mês, aproximadamente 50 dólares).

A conversão do vale do Incomáti para a produção da monocultura da cana-de-açúcar aumentou a vulnerabilidade das famílias às alterações de preços nos mercados internacionais de produtos, não só para o açúcar mas também para os alimentos básicos. (O’Laughlin & Ibraimo, 2013, p. 2)

Existem questões ambientais relevantes, tais como o empobrecimento do solo ou o esgotamento do recurso hídrico ignoradas pelos vários sujeitos envolvidos, mas que representam um risco muito sério para todo o vale do Incomáti.

Conclusões

Esta pesquisa procurou analisar o papel do Estado e dos movimentos sociais rurais em Moçambique, desde a independência e com particular destaque para os dias hodiernos, tendo como pano de fundo teórico a leitura de processos de usurpação de terras por parte de empresas estrangeiras como elemento fundamental do neocolonialismo em devir. Foi claro, do estudo feito, que, se o Estado socialista teve enormes dificuldades em encarar os elementos culturais, além dos económicos, que estão na base da sociedade rural moçambicana, entretanto tentou também solucionar a questão relativa à segurança alimentar das comunidades locais, impulsionando também alguns grandes investimentos estatais nas commodities. Uma tal ambiguidade permaneceu mesmo depois da abertura à economia liberal, e só foi dissolvida (diríamos aqui “negativamente”) com as novas políticas agrícolas implementadas por Guebuza, coincidentes com a “corrida para a terra” por parte dos grandes investidores estrangeiros, a partir dos meados da década de 2000.

Com esta viragem, o papel do Estado se tornou cada vez mais “servil” em relação aos desejos dos grandes grupos internacionais que tencionavam levar a cabo investimentos no setor dos biocombustíveis, commodities e silvicultura, provocando assim a reação e a organização das comunidades locais em frentes de luta por vezes conscientemente anticapitalistas, que com fortunas alternadas procuraram contrastar uma clara tendência à usurpação das terras para a sua conversão em monoculturas.

Entretanto, a questão a que é preciso responder nestas conclusões é a seguinte: por que, em alguns casos (como o da Portucel ou do próprio ProSavana) os movimentos sociais rurais conseguiram resultados importantes, ao passo que, em outros (Maragra, no sul do país) as manifestações protagonizadas não deram o resultado esperado pelas comunidades locais?

É fácil calcular que não existe uma resposta certa. Entretanto, é possível formular algumas hipóteses que, quem sabe, poderão servir de futuras pistas de investigação:

Fator geopolítico: o sul do país é tradicionalmente controlado pela Frelimo, pelo que seria difícil imaginar que a vontade do governo, que coincide com a dos investidores, acabe não sendo respeitada;

O primeiro fator faz com que o governo possa usar a força sem grandes receios no sul, como tem acontecido com as manifestações contra a Maragra em âmbito rural, mas também em Maputo e Matola em 2008 e 2010;

Ainda neste diapasão, a Frelimo tem uma rede de consensos no sul (sobretudo entre Maputo-Província e Gaza, justamente onde se encontra a sede da Maragra) que torna mais difícil - para os movimentos sociais - penetrar nas malhas de tais teias de relações, tornando assim mais fácil isolar quem protesta;

Fator económico: a Maragra, como visto acima, representa cerca de 20% do total da produção de açúcar do país, e uma das poucas realidades empresariais rentáveis. O risco de perder a sua contribuição seria demasiado grande para uma economia que está cada vez mais em dificuldade;

Fator histórico: a Maragra está instalada na Manhiça há muito tempo, diferentemente da Portucel, pelo que as duas empresas, provavelmente, são percebidas como, respetivamente, própria do território e estranha. Daqui uma possível postura em parte diferente, embora, mesmo no caso da Maragra, os protestos não tenham faltado;

Fator social: provavelmente, as organizações da sociedade civil no sul e no centro e norte do país têm um marco diferente: no sul elas ainda estão a ser controladas pela Frelimo, e os poucos sujeitos realmente independentes se deparam com dificuldades enormes para afirmar a sua presença e as suas razões: o testemunho de Rebeca foi sintomático deste ponto de vista; no centro e no norte os movimentos sociais são mais antigos e, sobretudo, mais contundentes, acostumados a confrontar-se frontalmente com a Frelimo e o governo, pelo que a sua rede de consensos e a sua espessura são mais sólidas e conseguem penetrar mais facilmente no tecido social local.

É certo que o meio rural moçambicano, como o de quase todos os outros países africanos, está enfrentando grandes mudanças, e que as populações locais estão cada vez mais preparadas para fazer valer seus interesses e direitos mediante várias formas de resistência, sem que por isso seja ainda muito claro o rumo, em termos de desenvolvimento, que tais comunidades pretendem trilhar.

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1 “Corrida para a terra” é a tradução da expressão inglesa “race for land”, que foi utilizada sobretudo a partir das políticas da China e, em parte, da Índia e de outros países asiáticos em relação às terras africanas. Tal propensão se deu essencialmente a partir dos anos de 2007-2008, quando o conjunto do aumento populacional e incremento dos preços das commodities originou um inédito interesse de muitos investidores estrangeiros pelas terras sobretudo africanas (Demissie, 2015; Van Dijk, 2016).

2 Entrevista com Jeremias Vunjahne, Maputo, junho e julho de 2018.

3 A Portucel desmentiu esta notícia, como se pode ver lendo A Carta de Moçambique de 21 de março de 2019: https://cartamz.com/index.php/economia-e-negocios/item/1383-navigator-rejeita-existencia-de-dividas-da-portucel-mocambique-e-admite-avancar-para-tribunal

Recebido: 01 de Julho de 2020; Aceito: 26 de Outubro de 2020

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