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Revista de Gestão dos Países de Língua Portuguesa

versão impressa ISSN 1645-4464

Rev. Portuguesa e Brasileira de Gestão vol.12 no.2 Lisboa jun. 2013

 

Tipologia de empreendedores em dinâmicas de reconversão de funções econômicas de cidades: Um estudo dos casos Tiradentes e Paraty

Typology of entrepreneurs involved in dynamic conversion of economic functions of cities: A study of Tiradentes and Paraty cases.

Tipología de los emprendedores en las dinámicas de conversión de las funciones económicas en las ciudades: Un estudio de los casos Tiradentes y Paraty

por Fátima Oliveira*, Anderson Sant’Anna** e Daniela Diniz***

*Doutorada em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Prof.ª Titular da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Brasil. E-mail: fbayma@fgv.br

**Doutorado em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Prof. da Fundação Dom Cabral (FDC) e da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Coordenador do Núcleo de Desenvolvimento de Liderança da FDC, Brasil. E-mail: anderson@fdc.org.br

***Mestre em Administração pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Pesquisadora do Núcleo de Desenvolvimento de Liderança da Fundação Dom Cabral. E-mail: danidiniz09@yahoo.com.br

 

RESUMO

O objetivo deste artigo é apresentar resultados de pesquisas que buscaram investigar o papel, os atributos e as formas de atuação de empreendedores em cidades que vivenciam processos de reconversão de suas funções econômicas orientados pela expansão da indústria do turismo, os casos das cidades brasileiras de Tiradentes e Paraty. A revisão teórica deste estudo explorou o conceito de reconversão de funções econômicas de cidades, a noção de «liderança empreendedora» e, sobretudo, tipologias de empreendedores, encerrando-se com estudos de Bourdieu (2010) acerca dos constructos habitus, capital e campo. Em termos metodológicos, a pesquisa pode ser caracterizada como de natureza qualitativa, utilizando o método de estudo de casos múltiplos, com a realização de entrevistas em profundidade, análise documental e observação direta. Como resultado foi possível observar a existência de diferentes tipos de empreendedores em ambas as cidades, os quais se distinguem por suas origens, estilos gerenciais e modo como lidam com aspetos coletivos, superando a premissa de homogeneidade entre empreendedores (Sarasvathy, 2004) e corroborando tipologia identificada por Sant’Anna et al. (2011). As análises revelam também o fortalecimento do papel de lideranças empreendedoras na dinâmica de reconversão investigada.

Palavras-chave: Reconversão de Funções Econômicas de Cidades, Tipologia de Empreendedores, Inter-Relação entre Empreendedores

 

ABSTRACT

The aim of this paper is to discuss the results of research that sought to investigate the role, attributes and ways of action of entrepreneurs in cities which undergo processes of conversion of economic functions, specifically the cases of Tiradentes and Paraty, two Brazilian cities. The framework review included research about the processes for the conversion of economic functions of cities, the notion of “entrepreneurial leadership”, especially types of entrepreneurs, ending up with studies of Bourdieu (2010). In terms of methodology, the research can be characterized as qualitative in nature, using the method of multiple case studies, with in-depth interviews, focus groups and document analysis. As a result, it was possible to observe the existence of different types of entrepreneurs in both cities, which are distinguished by their origins, management styles and the way they deal with the collective aspects, surpassing the assumption of homogeneity among entrepreneurs (Sarasvathy, 2004) and confirming the model typologies Sant'Anna et al. (2011). The analysis reveals the strengthening of the role of entrepreneurial leadership in developing cities.

Key words: Conversion of Economic Functions of Cities, Typology of Entrepreneurs, Inter-Relationship between Entrepreneurs

 

RESUMEN

El objetivo de este artículo es presentar los resultados de la investigación que pretendía investigar el papel, los atributos y los modos de acción de los emprendedores en las ciudades que se someten a la conversión de su expansión económica impulsada por la industria del turismo, los casos de las ciudades brasileñas de Tiradentes y Paraty. La revisión teórica de este estudio exploró el concepto de conversión de las funciones económicas de las ciudades, la noción de “liderazgo emprendedor” y sobre todo las tipologías de los emprendedores, para terminar com los estudios de Bourdieu (2010) en los conceptos de habitus, capital y campo. En cuanto a la metodología, la investigación puede ser caracterizada como de naturaleza cualitativa, utilizando el método de estudio de casos múltiples, con entrevistas en profundidad, análisis documental y observación directa. Como resultado se pudo observar la existência de diferentes tipos de emprendedores en ambas ciudades, que se distinguen por sus orígenes, estilos de gestión y cómo hacen frente a los aspectos colectivos, superando el supuesto de homogeneidad entre emprendedores (Sarasvathy, 2004) y corroborar tipología identificado por Sant’Anna et al. (2011). El análisis también revela el fortalecimiento del papel del liderazgo emprendedor en la dinámica de conversión investigada.

Palabras-clave: Conversión de las Funciones Económicas de las Ciudades, Tipología de los Emprendedores, Interrelación entre Emprendedores

 

O aproveitamento do patrimônio histórico, cultural e natural de uma cidade como estratégia para o seu desenvolvimento constitui tema de estudo relativamente recente (Harvey, 1996; Borja e Castells, 1997). A ampliação de tal interesse deve-se, em particular, a experiências de cidades que, a partir da década de 1980, promoveram ações de valorização de seu patrimônio, com vista a torná-las atrativas do ponto de vista de empresarial. Como consequência, essas localidades têm experimentado transformações em várias dimensões: espacial, social, econômica, urbana e política. Tais processos têm sido conceituados sob diferentes rótulos, incluindo expressões como regeneração, reestruturação e reconversão de funções econômicas.

Ponto comum entre essas diferentes expressões é, no entanto, a tendência de planejamento estratégico de cidades, associada a noções como «cidade-empresa» (Borja e Castells, 1997), «cidade empreendedora» (Hall, 1996), «cidade-espetáculo» (Sánchez, 2003), «cidade-global» (Sessen, 1999), dentre outras similares, que, conforme destaca Luchiari (2005), acabaram por enfraquecer o planejamento regional como empreendimento do Estado, fortalecendo perspetivas mais aderentes e favoráveis aos empreendimentos empresariais.

Entretanto, é fundamental uma compreensão mais sistêmica – e crítica – dos efeitos dos processos de reconversão em variáveis que extrapolem as intervenções físicas nas cidades, enfatizando seus impactos sobre a interação entre os atores sociais e na alteração dos tipos de empreendimentos locais. Mesmo porque, conforme salienta Jacobs (2011, p. 488), as cidades devem ser entendidas como «organismos repletos de inter-relações não examinadas, mas obviamente intrincadas». Assim, os estudos devem incluir considerações sobre os impactos das dinâmicas de reconversão na vida urbana, na vivência dos diversos protagonistas anônimos e nas interações sociais.

Entre os agentes locais que podem influenciar o processo de reconversão de uma cidade (empresários, comunidade, poder público), constata-se que as lideranças empreendedoras, no contexto das «cidades-empresas» tendem a desempenhar papel protagônico em tais dinâmicas, como já indicado por Harvey (1996). Portanto, o presente estudo deu ênfase aos empreendedores locais (donos de pousadas, restaurantes, lojas) das localidades alvo do estudo, sem desconsiderar, todavia, a perspetiva de outros atores envolvidos e ou submetidos a tais processos.

Nesse contexto, o estudo que subsidiou a elaboração deste artigo teve como propósito central investigar o papel, os atributos e as formas de atuação de empreendedores locais em cidades que vivenciam processos de reconversão de suas funções econômicas, nos casos, em específico, orientados pela expansão da indústria do turismo. Como objetivos específicos, buscou-se: caracterizar o processo de reconversão de funções econômicas das cidades-alvo, evidenciando-se possíveis contradições; identificar, caracterizar e comparar os tipos de empreendedores presentes nas cidades de Tiradentes e de Paraty; analisar de que forma tais empreendedores atuam e se inter-relacionam nas dinâmicas de reconversão.

Em termos teóricos, os levantamentos empíricos de dados que subsidiaram os resultados deste artigo contemplaram a revisão de literatura sobre o constructo Reconversão de Funções Econômicas de Cidades e sobre o Empreendedorismo. Por fim, foi incorporada revisão das noções de habitus, campo e capital, conforme propostos por Bourdieu (1990, 2010), as quais foram utilizadas para a análise da interação entre os empreendedores locais, nas cidades investigadas.

Em termos metodológicos, a pesquisa que subsidiou os resultados deste estudo pode ser caracterizada como um estudo de caso, de natureza qualitativa (Eisenhardt, 1989; Yin, 2005), compreendendo entrevistas semiestruturadas e em profundidade, análise documental e observação direta com representantes de diferentes campos (empreendedores, representantes de entidades da sociedade civil, lideranças governamentais, dentre outros), com destaque para os empreendedores locais, conforme já evidenciado.

Quanto às unidades de pesquisa, foram consideradas duas cidades históricas brasileiras – Tiradentes (Estado de Minas Gerais) e Paraty (Estado do Rio de Janeiro), as quais representam, casos emblemáticos de dinâmicas de reconversão de funções econômicas impulsionadas pela mesma atividade econômica: o turismo, permitindo a identificação de tipos distintos de empreendedores, análise comparativa e validação, em Paraty, e da tipologia de empreendedores identificada, em Tiradentes.

No que tange à sua relevância, a pesquisa justifica-se, em termos teóricos, ao ampliar os estudos sobre processos de reconversão de funções econômicas de cidades, correlacionando-os à literatura sobre «Liderança e Empreendedorismo». Além disso, este estudo pode contribuir para aprimorar a compreensão acerca das tipologias de empreendedores, tendo em vista que, somente mais recentemente, as pesquisas sobre o tema têm chamado a atenção para as variações existentes entre eles (Sarasvathy, 2004).

Ainda em relação aos avanços teóricos, não se pode deixar de fazer menção à inserção do arcabouço teórico de Bourdieu (1990, 2010), o qual possibilitou uma compreensão mais ampla das inter-relações e estratégias utilizadas por diferentes empreendedores nas comunidades alvo do estudo.

Em termos práticos, o estudo justificou-se ao contribuir com subsídios para o desenvolvimento de medidas direcionadas a processos de reconversão de funções econômicas de cidades. Por fim, espera-se que seus resultados possam propiciar novos insights para a formulação de políticas de fomento ao empreendedorismo, assim como a ações direcionadas à (re-)qualificação desses importantes atores, reconhecendo suas especificidades: os pequenos empreendedores.

Referencial teórico

  • Noção de reconversão de funções econômicas de cidades

Debates produzidos no meio acadêmico têm alertado para a importância de se analisar cidades submetidas a processos de requalificação de funções econômicas. Ao mesmo tempo têm estimulado reflexões sobre implicações dessas transformações sobre os atores sociais locais, bem como no potencial de desenvolvimento dessas localidades. Tal interesse pode ter-se dado pela experiência de cidades em diferentes países em processos de revalorização de seus patrimônios arquitetônicos, culturais e humanos, com implicações nos indicadores socioeconômicos locais. Tais processos assumem diferentes nomenclaturas na literatura, tais como requalificação, reestruturação e reconversão de funções econômicas – expressão adotada neste artigo (Harvey, 1996; Borja e Castells, 1997).

Um ponto comum entre essas diferentes expressões é o fato de se basearem em tendências contemporâneas de «planejamento estratégico» de cidades, refletidas em noções como cidade-espetáculo (Sánchez, 2003) e cidade-empresa (Vainer, 2000), em que se pressupõe a cidade como negócio, buscando-se torná-la competitiva por meio de investimentos em marketing urbano, promoção e infraestrutura local.

Para diferentes autores, tais estratégias acabam por enfraquecer o planejamento regional como empreendimento exclusivo do Estado, fortalecendo o papel dos empreendimentos privados no desenvolvimento de cidades (Harvey, 1996; Borja e Castells, 1997; Bentley, 2005). Tal movimento evidencia-se, sob tal perspetiva, na difusão de um discurso ideológico que preconiza o papel «modernizante» das cidades, sinalizando competir a elas se prepararem para as «novas» forças da economia global, servindo como suporte físico aos fluxos econômicos e à atuação das empresas (Ferreira, 2007, p. 115).

Orientados por tais tendências, autores como Sassen (1999), Borja e Castells (1997) se especializaram no estudo – e consultoria – dessa «nova modalidade de planejamento urbano», amplamente inspirada nas teorias de gestão empresarial, mais afins às demandas das cidades que se pretendem competitivas.

Como resposta às novas demandas, evidencia-se a necessidade de reflexões mais amplas e críticas quanto às implicações dos processos de transformação sobre diferentes dimensões: econômicas, sociais, políticas, institucionais, culturais e espaciais. Neste sentido, propõe-se que as cidades sejam entendidas e investigadas como «organismos repletos de inter-relações não examinadas, mas obviamente intrincadas» (Jacobs, 2011, p. 488), trazendo à tona a importância de se escutar e aprender, não apenas a partir de modelos e consensos predefinidos, mas a partir do cotidiano, de consensos livres, estabelecidos a partir do envolvimento democrático e participativo dos atores afetados.

Sugere-se, nessa direção, uma compreensão mais profunda da vida urbana, da vivência de seus diversos protagonistas anônimos, dos vários níveis de conectividade entre os vizinhos, da história e da diversidade (Jacobs, 2011).

Tais premissas nortearam a realização deste estudo. Sob essa linha de raciocínio, a próxima seção discute a liderança e o pressuposto de variação entre empreendedores.

  • A liderança no contexto do empreendedorismo

Estudos recentes sobre empreendedorismo registram preocupações com impactos da atuação do empreendedor para além das fronteiras organizacionais, assim como o entendimento de como se organiza a dinâmica de forças que lhe confere poder (Yammarino et al., 2001).

Em geral, o pensamento sobre o empreendedorismo pode ser visualizado por meio de dois extremos. De um lado, a visão dos empreendedores como elementos quase míticos, que, por suas competências singulares, estariam aptos a aproveitar oportunidades que outros não conseguiriam vislumbrar (Collins e Moore, 1964; Hull et al., 1980; Miner, 2000). De outro lado, há autores que defendem que forças externas criam oportunidades para novos empreendimentos, os quais seriam idealizados ao acaso por pessoas e não por virtudes particulares, cujo exemplo mais influente encontra-se na visão da «Ecologia Populacional das Organizações» (Hannan e Freeman, 1984).

Se os primeiros estudos sobre empreendedorismo distinguiam os empreendedores como um grupo especial, aos poucos se tornou aparente que mesmo os empreendedores, como categoria, apresentam variações entre si. Em decorrência, estudos mais contemporâneos têm retomado sua atenção para a variação entre empreendedores e seus estilos de gestão (Filley e Aldag, 1978; Cooper et al., 1997; Sarasvathy, 2004). Sarasvathy (2004) chega, inclusive, a defender que a perspetiva de homogeneidade pode prejudicar os esforços para se compreender melhor o fenômeno.

Entretanto, constatou-se que a literatura clássica sobre o tema não possui diversidade de estudos que abordem categorias ou tipos de empreendedores (Lafuent e Salas, 1989; Cooper et al., 1997; Sant’Anna et al., 2011). A tipologia mais antiga - de fato uma dicotomia – é de Smith, desenvolvida na década de 1960, cuja influência perdura até hoje.

Smith (1967) identificou dois tipos de empreendedores: os artesãos e os oportunistas. O primeiro caracteriza-se por ser filho de operários e ter treinamento técnico. Trata-se de profissional dedicado à excelência na tarefa que desempenha, geralmente não atribuindo ênfase ao crescimento do negócio. Já o oportunista normalmente tem curso superior em áreas como a administração – mas raramente em áreas técnicas – e busca, intensamente, a expansão da empresa, assim como lucros crescentes.

Décadas subsequentes trouxeram novas tipologias, mas parece ter persistido a tensão entre crescimento e lucro, de um lado, e foco em excelência na produção, de outro. Cooper et al. (1997), por exemplo, identificaram duas categorias de empreendedores (os artesanais e os administrativos), as quais se diferenciam da tipologia proposta por Smith (1967), porém manteve-se a dicotomia entre foco na produção ou no crescimento (Cooper et al., 1997).

Independentemente dos esforços de se estabelecer novas tipologias de empreendedores, alguns estudiosos redescobriram o conceito de bricolage, forjado pelo antropólogo francês Lévi-Strauss (1966). Compreendendo-se bricolage, em essência, como a arte de dar um jeito ou improvisar com o que se tem à mão, empreendedores que praticam bricolage parecem criar algo do nada, com métodos informais e criatividade para a solução de problemas (Baker e Nelson, 2005).

Com o avanço dos estudos envolvendo novos conceitos e perspetivas, como a de bricolage, ficou ainda mais evidente a noção de que os empreendedores apresentam variações entre si e que essas diferenças têm importantes implicações conceituais e práticas. Pesquisas sinalizaram também que o contexto social, no qual os empreendedores se inserem exerce influência em seus desempenhos, ao mesmo tempo em que tais atores influenciam o ambiente no qual estão imersos (Davidson, 2004; Hindle, 2010).

Pesquisa recente, que incorpora tais noções, foi levada a cabo por Sant’Anna et al. (2011). Os autores identificaram uma tipologia de empreendedores a partir de pesquisa realizada junto à pequena comunidade histórica de Tiradentes (Brasil), com as categorias listadas no quadro seguinte.

 

 

De acordo com os autores, os Empreendedores Tradicionais possuem como principal capital a «tradição», porém podem-se distinguir, pela forma como manifestam tal característica, duas subcategorias: os Remanescentes e os Pioneiros. Enquanto os primeiros valorizam o «nome de família, os bens de raiz», os Pioneiros dão mais ênfase aos aspetos «culturais, à erudição».

Os Empreendedores Tradicionais Remanescentes são, geralmente, pequenos comerciantes e empreendedores individuais nascidos na região, os quais já possuíam negócios no local antes do boom econômico propiciado à cidade pelo florescimento da indústria local do turismo. Geralmente, possuem forte ligação com a cidade, ao mesmo tempo apresentam-se pouco representativos em termos econômicos. Além disso, o baixo nível de escolaridade desse grupamento de empreendedores e o pequeno porte de seus negócios dificultam uma concorrência mais equilibrada com os demais tipos de empreendedores.

Já os Tradicionais Pioneiros são precursores na criação de empreendimentos direcionados a um público mais sofisticado que «aprecia os bens culturais». O principal capital desse grupo é a sua bagagem cultural e a vinculação de seus negócios a projetos pessoais. Ao contrário dos Remanescentes, os Empreendedores Pioneiros buscam se diferenciar pelo fato de terem nascido em grandes centros, inclusive internacionais, ou, apesar de nascidos na cidade, terem vivenciado experiências em outros contextos sócio-econômicos e culturais.

Os Empreendedores Modernos também podem ser visualizados em duas categorias (os Profissionais e os Negociais), embora se assemelhem no que se refere à valorização da qualificação formal e de valores que extrapolem o atributo «tradição».

Os Empreendedores Modernos Profissionais são, no geral, profissionais liberais ou ex-gestores de grandes empresas, que deixaram os grandes centros para morar em pequenas cidades, em busca de melhor qualidade de vida. Como atributos deste grupo merecem destaque os discursos e posturas associados a conceitos de responsabilidade social empresarial. Nessa direção, tendem a demonstrar maior preocupação com as questões que afetam toda a cidade. Por outro lado, os Empreendedores Negociais, embora também valorizem a qualificação formal, se diferenciam pela busca prioritária pelo lucro e, assim, tendem a preocupar-se mais com o desempenho de seus negócios que com as questões mais coletivas.

Finalmente, os Empreendedores Pós-Modernos se distinguem em dois grupos: os Vanguardistas e os Camaleões. Os primeiros são donos de ateliers de arte, pintores e outros artistas, que se caracterizam por atributos como «criação», «novo», «independência», «contestação», «desprendimento» e por «estilos de vida peculiares». Já os Empreendedores Camaleões são, geralmente, trabalhadores vindos dos grandes centros e cidadãos da cidade que perceberam, no processo de transformação local, oportunidades de «fazerem a vida». Com recursos financeiros mais escassos, constituem seus negócios na base da improvisação. Boa parte deles está inserida na economia informal.

Considerando-se que diferentes tipos de empreendedores se articulam no processo de requalificação econômica de cidades, foi incorporado à fundamentação teórica constructos de Bourdieu (1990, 2009, 2010), conforme dispostos na seção seguinte.

  • Inter-relação entre tipos de empreendedores: uma análise com base na perspetiva de Bordieu

Para compreender articulações entre diferentes atores sociais, sobretudo a tipologia de empreendedores identificada por Sant’Anna et al. (2011), tomou-se como referência a obra de Bourdieu, principalmente as noções de habitus, campo e capital. Essa linha de pesquisa pode, ademais, contribuir para um melhor entendimento sobre a maneira com que agentes disputam, se distinguem e estabelecem alianças para a posse dos capitais distribuídos num espaço social.

Uma das principais ideias de Bourdieu (1990, 1996, 2009, 2010) é a de que atores sociais, dotados de habitus (atributos) similares ou distintos se inter-relacionam no interior de um espaço social, onde se desenrolam conflitos e alianças em busca da posse de capitais valiosos. Tal colocação traz a tona três conceitos propostos pelo autor: habitus, campo e capital.

Bourdieu (1990) define o habitus como um sistema de disposições e princípios duráveis que pode funcionar como «estruturas estruturantes», i.e., como esquemas geradores e organizadores de ações coletivas e individuais. Desse modo, o habitus é um sistema de disposições que os indivíduos adquirem no processo de socialização, ou seja, são modos de agir, fazer, sentir e pensar interiorizados pelos indivíduos como resultado das condições de sua existência. Contudo, não é uma imposição; na verdade, fornece ao agente uma orientação de comportamento (Bourdieu, 1990, 1996; Bourdieu e Ortiz, 1994). Bourdieu (2008) ainda trata o habitus como fator de distinção, produto da posição e da trajetória social dos indivíduos. Assim, cada classe corresponde a um habitus diferente.

O campo, por sua vez, é um espaço dinâmico constituído de posições distintas ocupadas por atores sociais e determinadas pelo volume de capital detido por eles. É conceituado também como ambiente onde se desenrolam lutas e alianças entre agentes em busca da manutenção ou transformação do estado vigente de forças (Bourdieu, 1990; Peci, 2003).

Como a posse de capital tende a ser desigual, existem, no interior do campo, diversos grupos caracterizados por estilos de vida diferentes. Assim, o campo vive em conflito, onde os grupos dominantes buscam manter seus privilégios e os demais tentam alterar a distribuição de capital vigente. Não obstante, é possível observar também a formação de alianças entre atores em busca de espaço e poder (Misoczky, 2003).

Por fim, o capital é a principal forma de poder e de distinção no interior de um campo, sendo, simultaneamente, instrumento e objeto de disputa. Bourdieu (1990) pressupõe a existência de três tipos de capital (econômico, cultural e simbólico) (Bonnewitz, 2005; Bourdieu, 1990). O conceito de capital econômico de Bourdieu é similar à definição de Marx: recursos associados aos fatores de produção (terra) e aos ativos econômicos, como os bens materiais. O capital cultural, por sua vez, corresponde ao conjunto de conhecimentos e qualificações intelectuais transmitidas pela família e pelas instituições escolares durante a vida do indivíduo. Por fim, o capital simbólico está relacionado com a acumulação de prestígio e reconhecimento social pelo indivíduo ou grupo que preservam sob seus domínios os recursos considerados essenciais num determinado campo (Thiry-Cherques, 2006).

As diferenças existentes no interior de um campo, sobretudo em termos de capital, geram a divisão do espaço em «classes sociais» ou «posições de classe», as quais estão associadas a uma cultura específica (ou a um habitus). Ao optarem por um estilo de vida, os indivíduos acabam se auto classificando em relação a uma classe social (Bourdieu, 1990), como bem evidencia a tipologia obtida por Sant’Anna et al. (2011).

Metodologia de pesquisa

Em termos metodológicos, a investigação que subsidiou os resultados apresentados neste artigo pode ser caracterizada como um estudo de casos, de natureza qualitativa (Greenwood, 1973; Eisenhardt, 1989; Yin, 2005). Tal metodologia consiste na análise exaustiva de um ou de poucos objetos empíricos, sejam eles situações, pessoas, organizações ou comunidades, circunstâncias em que se encontram e a natureza dos fenômenos que os compõem. É indicado quando o fenômeno em estudo é complexo, contemporâneo e insere-se num contexto real, como é o caso da presente pesquisa que investigou «tipos de empreendedores em processos de reconversão de funções econômicas de cidades» (Greenwood, 1973; Eisenhardt, 1989).

O estudo de casos, por sua vez, possibilita ao investigador identificar os fatores que estimulam a ocorrência de um evento, bem como compreender a interação que se estabelece entre tais variáveis. Assim, se torna possível visualizar o caso pesquisado como uma rede de inter-relações na complexidade em que ela se apresenta (Greenwood, 1973).

A escolha dos casos em pesquisa qualitativa é uma decisão importante, pois pode impactar a relevância dos resultados do estudo. Portanto, essa escolha não deve ser aleatória, mas intencional, orientada para a riqueza com que o fenômeno se apresenta (Eisenhardt, 1989; Yin, 2005). Com base nessas premissas, optou-se pela realização da pesquisa empírica em duas cidades históricas brasileiras que vivenciaram processos de reconversão de função econômica, Tiradentes (Estado de Minas Gerais) e Paraty (Estado do Rio de Janeiro). Além de representarem casos emblemáticos de dinâmicas de reconversão, ambos os processos foram impulsionados pela mesma atividade econômica – o Turismo –, fato que contribuiu para uma comparação efetiva entre tipos de empreendedores encontrados em cada localidade, permitindo avanços nas pesquisas do campo (Yin, 2005).

Quanto à estratégia de coleta de dados, o estudo iniciou-se pela análise de documentos históricos com o objetivo de compreender os contextos de Tiradentes e de Paraty. Em seguida, no caso Tiradentes, foram realizadas cinco visitas in loco a cidade, no ano de 2010 e 2011. Além de observação direta, foram realizadas quarenta entrevistas semiestruturadas e em profundidade com empreendedores locais (donos de pousadas, restaurantes, lojas), representantes do Poder Público e indivíduos de associações e da comunidade. Nesta mesma linha, foi realizada a coleta de dados em Paraty. Foram conduzidas duas visitas a cidade em 2011 e realizadas 23 entrevistas com os sujeitos da pesquisa.

Para a seleção dos entrevistados, três premissas foram consideradas: conhecimento da história das cidades; envolvimento em empreendimentos diversos que acompanharam tal dinâmica; possibilidades quanto a heterogeneidade de visões acerca do processo em análise. O roteiro de entrevistas utilizado nos dois casos incluiu questões sobre a trajetória pessoal dos respondentes; suas visões acerca do processo de requalificação da cidade; os principais agentes envolvidos, sobretudo os empreendedores; suas características e formas de atuação.

Ressalta-se que a utilização combinada de várias fontes de evidências – entrevistas, documentos e observação – possibilitou o confronto das informações obtidas com base em cada fonte, conferindo maior confiabilidade aos resultados da pesquisa (Greenwood, 1973; Eisenhardt, 1989; Yin, 2005).

Para o tratamento dos dados obtidos, utilizou-se o método de análise de conteúdo. Essa metodologia consiste no uso de técnicas de sistematização, interpretação e descrição do conteúdo das informações, a fim de compreender melhor o discurso e extrair os detalhes mais importantes. Com isso, foi possível examinar as várias dimensões dos relatos dos entrevistados e construir inferências com base neles (Godoy, 1995; Bauer e Gaskell, 2002).

Complementarmente à análise manual dos relatos obtidos, empreendeu-se análise por meio do software de tratamento qualitativo de dados N-vivo 8.0, seguindo o processo de codificação e categorização, conforme indicado por Flick (2009). Como resultado desse processo emergiram categorias, as quais se constituíram em importantes achados de pesquisa, especificamente, ao evidenciarem pares antitéticos, tais como «centro-histórico» versus «periferia» e «nativos» versus «forasteiros».

Cabe salientar que a análise dos dados foi procedida em duas fases: análise intracaso, examinando, em separado, os dados e categorias obtidos em cada cidade; análise cruzada, por meio de análise comparativa entre os casos, objetivo central deste artigo. Com resultante foi possível capturar padrões, confirmando a relevância de certos elementos para a literatura, além de identificar diferenças na forma como o fenômeno se apresenta em cada cidade (Yin, 2005).

Apresentação e análise dos dados

  • Os casos estudados: processos de requalificação de funções econômicas de Tiradentes (MG) e de Paraty (RJ)

A análise das trajetórias de Tiradentes e de Paraty, desde suas descobertas até os dias atuais, revelou similaridades entre seus processos históricos. O descobrimento e rápido desenvolvimento de ambas estão diretamente vinculados à extração de ouro no período colonial brasileiro, bem como a decadência desta atividade até ao esquecimento vivenciado por essas cidades, por longo tempo. Outros pontos comuns são o patrimônio arquitetônico preservado de Tiradentes e de Paraty e as suas vocações culturais, permitindo-lhes serem, mais tarde, (re-)valorizadas pela arte e pela presença de forte turismo cultural (Sant’Anna et al., 2011; Oliveira et al., 2011).

No caso de Tiradentes foi possível identificar quatro estágios de desenvolvimento. Um primeiro, caracterizado pela expansão e declínio da economia aurífera (até o Séc. XX). Um segundo que vai da redescoberta da cidade pelo «Movimento Modernista» brasileiro, nos anos 1920, até por volta da década de 1960. Um terceiro, marcado pela intensificação do processo de revitalização urbanística de seu centro histórico, que se estende de meados dos anos 1960 até a década de 1990. E, finalmente, o estágio atual, fundamentado no Turismo.

Em linhas gerais, o primeiro estágio de Tiradentes pode ser caracterizado pela extração exaustiva de metais preciosos pelos portugueses no interior do Brasil, contribuindo para o desenvolvimento das regiões no entorno como suporte a tal atividade. A descoberta de quantidade crescente de ouro, no final do Séc. XVII, estimulou o aumento de pessoas que se encaminharam para Minas Gerais, contribuindo para a criação de inúmeras vilas, dentre elas, a Vila de São José (1718), que em anos posteriores se transformaria em Tiradentes (Frota, 2005).

Após extração exaustiva do ouro, as regiões no entorno começam a sofrer com os impactos do esgotamento das minas. Com isso, Tiradentes vivencia um processo de esvaziamento econômico e populacional, após meados do Séc. XIX. Paradoxalmente, tal abandono contribuiu para a preservação do seu patrimônio histórico, chamando a atenção, na década de 1920, de artistas do Movimento Modernista brasileiro, que viam no barroco e no patrimônio das cidades históricas elementos importantes para forjarem-se a arte (Frota, 2005).

Incentivada por esse movimento, a cidade inicia um processo de revitalização de seu centro histórico, que se intensifica na década de 1960, por meio da mobilização da comunidade por diversas lideranças individuais e governamentais. Além da restauração de seu patrimônio, a modernização das estradas e ferrovia possibilitou uma melhor comunicação com outras cidades de Minas Gerais e acesso à região, impulsionando a atividade turística (Frota, 2005).

A partir dessas iniciativas, o Turismo se configura como a principal fonte de renda de Tiradentes, sendo que a economia da cidade baseia-se, praticamente, na atividade turística, seja na prestação de serviços de alimentação e de hospedagem, seja na produção e comércio de artigos artesanais. Atualmente, o setor de serviços corresponde a 63% do Produto Interno Bruto (PIB) da cidade, seguido do segmento industrial, que representa 33%. Por fim, as atividades vinculadas à Agropecuária correspondem a apenas 4% do PIB interno. Em termos demográficos, Tiradentes conta com 6961 habitantes, conforme dados do IBGE (2012).

Assim como Tiradentes, Paraty teve os primeiros anos de desenvolvimento associados à atividade aurífera no interior do Brasil. Não obstante, o processo histórico de Paraty pode ser delimitado em três períodos principais: urbanização de Paraty – rota de acesso ao ouro (da constituição da cidade até o Séc. XVIII); esquecimento de Paraty – abertura de novos caminhos para as Minas (Séc. XVIII até o Séc. XX); e ressurgimento e início do ciclo do Turismo cultural (a partir do Séc. XX) (Oliveira et al., 2011; História, 2011).

Por volta de 1500, época em que o sistema de capitanias foi implantado no Brasil por Portugal, a região onde se localiza Paraty se constituiu no principal ponto de entrada para os que buscavam o interior do País à procura de ouro. Assim, a cidade tornou-se importante entreposto comercial, por meio do qual entrava e saía grande parte das mercadorias do país. O desenvolvimento de Paraty deveu-se, portanto, à sua posição estratégica e a seu porto marítimo, que chegou a ser o segundo mais importante do Brasil (Jornal de Paraty, 2011).

A atividade extrativa do ouro foi responsável, por quase dois séculos, de desenvolvimento. Entretanto, em 1870, Paraty entra num período de declínio devido à abertura de um caminho ferroviário entre Rio de Janeiro e São Paulo, gerando redução do movimento do porto da cidade. Além disso, a abolição da escravatura, em 1888, gerou intenso êxodo de mão-de-obra (Jornal de Paraty, 2011). Esse período de esquecimento perdurou até a segunda metade do Séc. XX, ficando Paraty acessível somente por mar (Oliveira et al ., 2011).

Mais precisamente, Paraty veio a ser redescoberta em meados da década de 1970, com a abertura da Rodovia Rio-Santos (BR-101). Com isso, Paraty tornou-se amplamente acessível, impulsionando a vocação turística que a região já apresentava por seu conjunto paisagístico/arquitetônico e suas belezas naturais. Inicia-se, assim, um novo ciclo em que a cidade passa a ser importante opção de Turismo nacional e internacional. Desde essa época, o Turismo é uma das principais atividades econômicas de Paraty e mobiliza boa parte da comunidade (História, 2011; Jornal de Paraty, 2011; Oliveira et al., 2011).

Com população de 37 533 habitantes, Paraty concentra sua atividade econômica no setor de serviços, o qual corresponde a 60% do PIB do município, seguido da Indústria, com 37% e a Agropecuária com apenas 3% (IBGE, 2012).

  • Tipologia de empreendedores em Tiradentes (MG) e Paraty (RJ)

A partir do conjunto dos dados empíricos analisados, constatou-se que os processos de transformação das duas cidades foram marcados por contradições e conflitos entre atores/instituições, os quais influenciaram a dinâmica de desenvolvimento local e, especificamente, os tipos de empreendimentos que ali se instalaram (Sant’Anna et al., 2011; Bourdieu, 2009, 2010). Duas categorias emergentes do processo de codificação - as quais refletem tais contradições – merecem destaque: «centro histórico versus periferia» e «nativos versus forasteiros».

Em relação à primeira, vale salientar que fenômeno similar ocorreu em Tiradentes e em Paraty com o crescimento do Turismo: o deslocamento da população nativa que morava em seus centros históricos para a periferia, estimulado pelas elevadas ofertas do mercado imobiliário. Assim, os centros históricos de ambas as cidades passaram a se diferenciar dos outros bairros, concentrando a maior parte dos estabelecimentos comerciais voltados para atender os turistas, sendo palco de disputas voltadas à obtenção de ganhos políticos e financeiros. Nessa direção, enquanto o ciclo do Turismo foi importante por trazer desenvolvimento para Tiradentes e Paraty, também foi perverso ao causar o deslocamento das populações nativas de seus locais de origem.

Com relação aos conflitos entre «nativos versus forasteiros», os mesmos foram observados de forma mais acentuada em Tiradentes. Nessa cidade, as diferenças de hábitos e interesses entre os locais e os forasteiros – atraídos pela expansão das oportunidades decorrentes da expansão da indústria do Turismo – acabaram por provocar «choques culturais», conforme evidenciam relatos, tais como: «Nós temos dois opostos aqui, convivendo juntinhos. E com grandes rixas. Porque, o pessoal que veio de fora, os ETs, que somos nós, nós trouxemos o método, a disciplina, a ciência, as boas intenções de fazer aquilo vingar de uma forma sustentável. E, aí, entrou em choque com a filosofia local, que era ganhar dinheiro a qualquer custo» (Relato, entrevista Tiradentes).

Tais evidências corroboram conceções de Bourdieu (1990, 2009, 2010), especificamente a noção de que os campos sociais (diferentes grupamentos de uma comunidade, em outros termos) são marcados por conflitos entre atores que buscam preservar sob seus domínios capitais relevantes.

Por outro lado, não se observou, em Paraty, maiores «preconceitos» da população nativa em relação àqueles que foram morar na cidade. A comunidade local entende que as pessoas «de fora» podem trazer uma experiência para a cidade ou desenvolver algum negócio que pode torná-la mais atrativa: «Desde que a pessoa venha a Paraty e comece a produzir, trabalhar e participar da cidade, é muito benvinda» (Relato, entrevista Paraty).

As contradições expostas influenciam papéis assumidos pelos atores sociais envolvidos nas dinâmicas em análise em ambas as localidades, em especial os empreendedores locais e o poder público, assim como o modo como se relacionam. Neste contexto, constatou-se que os empreendedores se constituíram em agentes centrais nas transformações vivenciadas tanto por Tiradentes, quanto por Paraty, um achado convergente com pesquisas de Harvey (1996) e de Borja e Castells (1997), que evidenciam o importante papel de agentes privados no desenvolvimento contemporâneo das cidades que se pretendem competitivas.

Ademais, os dados empíricos revelaram a presença de diferentes tipos de empreendedores, classificados conforme suas origens, estilos de gestão e a forma como lidam com as questões coletivas (Bourdieu, 1990). Tais evidências corroboram, também, pressupostos teóricos que sinalizam que empreendedores variam entre si e que tais diferenças têm importantes implicações teóricas e práticas (Cooper, et al., 1997; Saravasthy, 2004). Com isso, buscou-se compreender o perfil de tais atores, tomando-se como referência a tipologia de Sant’Anna et al., 2011.

Em relação à categoria de Empreendedores Tradicionais (Remanescentes e Pioneiros) inicialmente identificada em Tiradentes, também foi possível observá-la em Paraty. O grupo de Empreendedores Remanescentes é, de fato, formado por pequenos comerciantes nascidos nas cidades, os quais possuem discursos centrados no «nome da família». Embora revelem forte ligação com as cidades, apresentam atuação pouco expressiva em relação ao crescimento de seus negócios. Em função disso são, não raro, rotulados como «conservadores», como indivíduos «sem ambição» e «acomodados», conforme sinalizam os trechos que seguem. «Agora, as pessoas que são daqui... o cara não está nem aí, você passa na rua e vê a pessoa sentada na rua batendo papo (...). Por isso que eu acho que ainda precisa de avanço, tem que existir uma qualificação em Tiradentes» (Relato, entrevista Tiradentes). «Tem empreendedores que nasceram aqui e vivem isso. Para eles, se a gente falar de cultura, eles vão se assustar» (Relato, entrevista Paraty).

Os dados empíricos revelam também a presença de Empreendedores Tradicionais Pioneiros nas duas cidades investigadas. Em ambas, eles foram os primeiros a implementar negócios direcionados ao Turismo cultural. Outro traço distintivo desse grupo, nos dois casos, é seu « background cultural» e a estreita ligação de seus empreendimentos a «projetos pessoais». «Tiradentes não é um lugar para se ganhar dinheiro. É uma opção de vida mesmo. Não é para ganhar dinheiro. Aqui é muito bom, um lugar muito bom para morar» (Entrevista em Tiradentes). «A cidade (Paraty) pareceu um pouso perfeito para criar filhos pequenos. Eu morava no Rio de Janeiro [RJ] (...). O RJ é uma cidade complicada para criar filhos, a gente queria um lugar menor. E Paraty sinalizava como um lugar tranquilo» (Entrevista em Paraty).

Em relação aos Empreendedores Modernos Profissionais, identificados inicialmente em Tiradentes, ressalta-se que os mesmos também foram observados em Paraty. São, no geral, indivíduos não nascidos na cidade, com sólida instrução formal e que utilizam práticas gerenciais na gestão de seus negócios. Muitos deixaram as capitais e foram morar em Tiradentes e Paraty em busca de melhor qualidade de vida. Esse perfil de empreendedor traduz narrativas que expressam preocupação com os aspetos coletivos da cidade e com efeitos negativos do Turismo. «Eu acho que Tiradentes tem um grande problema. Se o poder local não acordar para essa questão da sustentabilidade, a gente corre o risco de entrar numa (...)» (Entrevista em Tiradentes). «Nós viemos para fazer negócio, ter qualidade de vida e valorizar mais ainda aquilo que já existia na cidade» (Entrevista em Paraty).

No que tange ao Empreendedor Moderno Negocial não há, entretanto, indícios de sua presença em Paraty. Por outro lado, fica evidente o crescimento desse grupamento de empreendedores em Tiradentes, com a expansão da atividade turística. São empreendedores que, comumente, priorizam o retorno financeiro de seus negócios e o individualismo, em detrimento de questões mais coletivas. «Tem uma pousada em Tiradentes que hoje em dia é a melhor pousada da cidade. E ela vende tudo. Até os lençóis que você dorme vêm etiquetados. Então é um showroom» (Entrevista em Tiradentes).

Em Paraty, a maior parte dos entrevistados sugere não predominarem negócios com tal perfil na região; isto na medida em que grande parte dos empreendedores locais tende a apresentar forte vinculação afetiva com a cidade. Além disso, suas «intenções» ao se instalarem parecem extrapolar a mera busca do resultado financeiro do negócio como observado, por exemplo, nos grandes centros. Ademais, em função de restrições dos órgãos ambientais e pela característica da cidade, que não tem condições espaciais de se expandir geograficamente, não há negócios de grande porte em Paraty: «Não acredito que há aquele perfil de empreendedor que só vem com foco no lucro; sempre possui algum tipo de ligação com a cidade. Eu diria que transformar isso aqui numa sanguessuga é difícil, porque as pousadas são relativamente pequenas» (Entrevista em Paraty). Desse modo, a presença de Empreendedores Modernos Negociais não se evidenciou, de forma significativa, na cidade de Paraty.

Finalmente, uma última categoria de empreendedores pôde ser identificada tanto em Tiradentes, como em Paraty: os Empreendedores Pós-Modernos (Camaleões e Vanguardistas). Os Empreendedores Camaleões são pequenos comerciantes que constituíram seus negócios na base da imitação de modelos empregados por empresários que se direcionam a segmentos mais «sofisticados» de mercado. É comum que esses empreendedores aproveitem a temporada de eventos de Tiradentes e Paraty e abram seus negócios de forma temporária e informal. «Teve um Carnaval em que diversos moradores saíram de suas casas e as alugaram: foi um caos, faltou água, a cidade ficou lotada e de um público que, infelizmente, ainda não é o que tem consciência do que constitui um patrimônio histórico» (Entrevista em Tiradentes). «Existem aqueles que improvisam. O negócio tem começo e fim, já sabem quando começa e já sabem quando vai acabar. Isso tem aos montes» (Entrevista em Paraty).

Os Empreendedores Camaleões raramente articulam-se e estimulam iniciativas visando aos interesses coletivos de Tiradentes e Paraty.

Assim como verificado em Tiradentes, os Empreendedores Vanguardistas também possuem presença marcante em Paraty, uma vez que são cidades com forte vocação para um Turismo cultural. Portanto, é comum de se ver inúmeros ateliers de arte e lojas com produtores culturais nos centros históricos das localidades. Os dados revelam, também, que os Vanguardistas encontraram, em Tiradentes e em Paraty, o local adequado para divulgar suas artes. Nas duas localidades, constatou-se uma preocupação dos Empreendedores Vanguardistas em relação ao «Turismo de massa» que tem frequentado as duas cidades nos últimos anos.

Analisando os tipos de empreendedores presentes em Tiradentes e em Paraty, constataram-se significativas similaridades entre os casos, à exceção da pequena evidenciação de Empreendedores Modernos Negociais em Paraty. Tal convergência reforça as tipologias propostas por Sant’Anna et al. (2011), bem como sinaliza para a importância de se analisar as variações entre empreendedores, conforme propuseram os estudos de Filley e Aldag (1978), Cooper et al. (1997) e de Sarasvathy (2004).

As similaridades encontradas podem ser explicadas pelas semelhanças dos processos de reconversão de funções econômicas vivenciados por Tiradentes e Paraty. As duas cidades se desenvolveram nos primórdios pela economia do ouro, ficaram abandonadas após este ciclo e se recuperaram pela preservação de seus patrimônios culturais, o que contribuiu para o desenvolvimento do Turismo, importante fonte de recursos atual de tais localidades.

Considerações finais

As pesquisas conduzidas em Tiradentes e em Paraty sobre o processo de reconversão de funções econômicas de cidades e a tipologia de empreendedores atuantes nas localidades propiciaram evidências significativas sobre os fenômenos analisados.

A convergência encontrada entre os estudos de Tiradentes e Paraty reforça o modelo de tipologias proposto por Sant’Ana et al. (2011). Nessa perspetiva foi confirmada a existência de diferentes grupos de empreendedores em ambas as cidades, os quais se distinguem por suas origens e estilos gerenciais e pelo modo como lidam com os aspetos da coletividade, resultados convergentes com pesquisas de Filley e Aldag (1978) e Sarasvathy (2004). Tais pesquisadores superam a premissa de homogeneidade entre empreendedores, defendendo a noção que tais atores variam entre si e que tais diferenças têm impactos sobre o desempenho de seus negócios.

Ademais, as dinâmicas de desenvolvimento de Tiradentes e de Paraty indicaram que as cidades têm experimentado fenômeno semelhante ao da «cidade empreendedora», conforme discutido por diferentes autores e sob diferentes perspetivas (Borja e Castells, 1997; Vainer, 2000). Tal conceção envolve a compreensão de que a cidade tem-se constituído cada vez mais como um «negócio», submetida à lógica da competitividade de mercado, o que implica a busca contínua por investimentos que visam torná-la atrativa, bem como em impactos sobre diferentes dimensões: econômica, social, espacial, política, cultural, os quais merecem ser melhor compreendidas em sua complexidade e extensão.

Sob a prevalência dessa lógica evidencia-se, por exemplo, o fortalecimento do papel dos empreendimentos privados no desenvolvimento local e o enfraquecimento do poder público (Harvey; 1992). De fato, os dados obtidos em Tiradentes e em Paraty revelam que, atualmente, as lideranças empresariais assumem papel central nas transformações vivenciadas pelas localidades, comparativamente aos atores políticos.

Constatou-se, igualmente, uma série de desequilíbrios nas cidades investigadas expressa por meio de pares antitéticos («centro histórico versus periferia» e «nativos versus forasteiros»), o que, segundo Ferreira (2007), é comum em cidades que experimentaram crescimento populacional e econômico de forma abrupta, como é o caso de Tiradentes e Paraty. Retomando estudos de Bourdieu (1989, 2009, 2010), ressalta-se ainda que tais contradições são reflexos das próprias interações e conflitos estabelecidos entre os distintos tipos de empreendedores e desses com outros atores sociais.

Outra importante consideração derivada deste estudo é que os diferentes tipos de empreendedores não atuam em um vácuo social. Ou seja, o contexto no qual os empreendedores se inserem impacta o seu desempenho, ao mesmo tempo que os próprios empreendedores influenciam o ambiente no qual estão imersos, resultados convergentes com pesquisas de Davidson (2004) e de Hindle (2010). Entende-se que a literatura sobre empreendedorismo não está atenta à dinâmica de coexistência e tensão entre tipos de empreendedores, além de não explorar adequadamente a influência do contexto na interação entre tais empreendedores.

Quanto às contribuições da pesquisa ressalta-se que a mesma revelou-se significativa ao ampliar os estudos sobre processos de reconversão de funções econômicas de cidades, correlacionando-os à literatura sobre «Liderança e Empreendedorismo». Além disso, este estudo pôde contribuir para reforçar o modelo de tipologias proposto por Sant’Ana et al. (2011). Os resultados deixam claro que os empreendedores possuem variações entre si e convivem em constante inter-relação, conflito e alianças no seio dos processos de transformações das cidades. São achados relevantes, visto que a literatura clássica sobre empreendedorismo ainda não está atenta à dinâmica de coexistência e tensão entre tipos de empreendedores distintos.

Ainda em relação aos avanços teóricos, não se pode deixar de citar a inserção do arcabouço teórico de Bourdieu (1990, 2010), o qual possibilitou uma melhor compreensão da inter-relação e das estratégias utilizadas por diferentes atores sociais em uma determinada comunidade.

Em termos práticos, o estudo justificou-se ao contribuir com subsídios para o desenvolvimento de medidas direcionadas a processos de reconversão de funções econômicas de cidades. Por fim, os resultados desta pesquisa geraram insights importantes para a formulação de políticas de fomento ao empreendedorismo, assim como ações direcionadas a qualificação desses atores, reconhecendo suas especificidades.

Oportunamente, sugere-se que o estudo realizado em Tiradentes e em Paraty seja replicado em outras cidades, sobretudo àquelas que vivenciaram processos de transformações distintos das localidades investigadas. Assim, será possível reforçar ou mesmo confrontar as tipologias de empreendedores propostas por Sant’Anna et al. (2011).

 

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Recebido em fevereiro de 2012 e aceite em junho de 2013.

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