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Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  n.10 Lisboa  2007

 

Editorial

 

 

1. O projecto de desenvolvimento encetado após a Segunda Guerra Mundial teve no Estado-nação o seu espaço privilegiado. Esse projecto, onde a modernização era assumida como ideal universal, oferecia uma perspectiva optimista para o desenvolvimento económico nacional, assentando em programas de assistência, de carácter bi ou multilateral, normalmente conduzidos pelas organizações internacionais entretanto criadas. Nessa perspectiva, as iniciativas de desenvolvimento resultavam de um processo onde, apesar dos planos nacional e internacional se apresentarem interligados, era o espaço nacional que constituía a unidade política fundamental para a mobilização das populações e para se atingir o ideal da modernização.

Contraditoriamente, esse projecto de desenvolvimento nacional conduziu a uma integração económica global, que fez deslocar os termos do desenvolvimento de uma questão dominantemente nacional para uma questão progressivamente global. O desenvolvimento deixa de ser um projecto capaz de ser conduzido no quadro do Estado-nação, na base dos tradicionais estímulos ao mercado nacional, para depender cada vez mais do mercado mundial, sob a condução de um gerencialismo global (“global managerialism”) que tem no chamado consenso de Washington os seus dez mandamentos: disciplina fiscal, prioridades na despesa pública, reforma fiscal, liberalização financeira, taxas de câmbio, liberalização do comércio, investimento estrangeiro directo, privatização, desregulação e direitos de propriedade.

Esse projecto de desenvolvimento global — a globalização, na expressão consagrada — pode ser entendido como algo mais do que a mera continuação do sistema mundial, como defende Giddens, ou apenas como o acelerar da idade de transição, como advoga Wallerstein. Entendido num ou noutro sentido, esse novo projecto de desenvolvimento tem todavia como pilares fundamentais, por um lado, uma estratégia de liberalização e, por outro, a afirmação do axioma das vantagens competitivas, tendo subjacente uma nova concepção de desenvolvimento, adjectivado de sustentável, que acaba por trazer novamente para primeiro plano a teoria neoclássica do capital humano.

Não admira então que Roger Dale argumente que os mais claros efeitos da globalização nas políticas educacionais sejam consequência da reorganização das prioridades dos Estados em se tornarem mais competitivos, nomeadamente de forma a atraírem os investimentos das corporações transnacionais para os seus territórios, pelo que é possível distinguir os efeitos da globalização nas políticas de educação dos decorrentes das tradicionais formas de intervenção das organizações internacionais no quadro do anterior modelo desenvolvimentista.

No projecto desenvolvimentista, a assistência técnica das organizações era (é) activamente procurada pelas autoridades nacionais, sobretudo como forma de legitimação de opções internas; por outro lado, os múltiplos e variados relatórios produzidos pelas organizações internacionais constituíam(em) uma forma de mandato, mais ou menos explícito de acordo com a centralidade dos países. No projecto de globalização – tenho-o defendido em várias ocasiões, a agenda globalmente estruturada faz-se sobretudo tendo como centro nevrálgico os grandes projectos estatísticos internacionais. E, nesses projectos estatísticos, a escolha dos indicadores constitui, seguramente, a questão determinante na fixação dessa agenda global.

Pelo seu impacte nas políticas de educação dos países centrais (e em muitos países situados na semiperiferia dos espaços centrais), o projecto centrado em torno da construção e recolha dos indicadores nacionais de ensino assume uma particular relevância, tendo como expressão pública mais conhecida a publicação Education at a Glance. A esse relatório anual somam-se constantes estudos sobre a competitividade dos países, podendo-se afirmar que os rankings aí divulgados se tornam uma espécie de classificação de Jogos Olímpicos (ou de Campeonatos) dos sistemas educativos a nível mundial ou de uma dada região.

Mas esses rankings são igualmente procurados no interior dos países e dos respectivos sistemas educativos. Em Portugal, nos últimos anos, os principais meios de comunicação social estabelecem rankings de escolas secundárias a partir dos resultados dos seus alunos nos exames nacionais. Muitas análises se têm realizado, todas elas em geral conduzidas no sentido de questionar a qualidade da educação pública e conduzindo sistematicamente à responsabilização dos professores e dos modos de gestão das escolas. Compreender as razões dessa agenda mediática, com os seus fortes impactes na agenda política, deve ser um elemento importante a tomar em consideração na formulação da agenda de investigação em políticas da educação. O Observatório de Políticas de Educação e de Contextos Educativos, editor desta Revista, já assumiu esta prioridade. Agora, com satisfação, se constata que, no âmbito do Fórum que a Associação Internacional de Sociologia realiza em Barcelona, de 5 a 8 de Setembro de 2008, o RC 04 – Sociologia da Educação adoptou o seguinte tema central de debate: “Accountability, standards, testing, and inequality: Critiques, collaboration, and future research. Um exemplo que talvez devesse ser seguido em Portugal pelas associações científicas que têm a Educação como objecto de estudo, como parte da responsabilidade social dos cientistas sociais.

 

2. O presente número da Revista Lusófona de Educação dedica uma particular atenção às tendências nas políticas de educação, e aos respectivos modos de análise, num esforço continuado para tornar intelegível os processos e os modos de regulação dominantes.

O primeiro artigo, A Educação em Tempos de Globalização. Modernização e hibridismo nas políticas educativas em Portugal, de António Teodoro e Graça Aníbal, constitui um produto da investigação realizada no âmbito do projecto Educating the Global Citizen: Globalization, Educational Reform and the Politics of Equity and Inclusion. The Portuguese case, financiado em Portugal pela FCT e que se insere numa rede envolvendo dezasseis outros países. Os autores apresentam uma reflexão sobre as políticas educativas e os discursos que as justificam, num tempo de procura de integração de Portugal no espaço europeu após os anos de 1960 e especialmente no quadro democrático do pós revolução de 1974. Teodoro e Aníbal defendem, a partir de uma análise empírica das palavras-chave nos discursos dos responsáveis políticos, a existência de um carácter híbrido que associa uma orientação construtivista numa perspectiva crítica com a apologia da eficácia do sistema entendida como necessária à produtividade económica, especialmente a partir dos anos de 1980. O artigo sublinha a importância do contexto nacional e do sentido que as suas características conferem ao modelo globalizado de modernização para explicar por que a tendência homogeneizante da regulação internacional é mitigada por preocupações de cariz emancipatório.

No segundo artigo, Pesquisa Histórica da Educação do Tempo Presente, Afonso Celso Scocuglia expõe e defende a relevância da história da educação do tempo presente para a pesquisa histórico-educacional. O autor apresenta os avanços e os desafios enfrentados pelos pesquisadores desse campo, argumentando que as fontes disponíveis para a pesquisa da história da educação do tempo presente sendo abundantes e próximas do pesquisador não facilitam a pesquisa, nem, muito menos, diminuem a sua necessária rigorosidade. No plano metodológico, Scocuglia reforça a ideia de que a educação, como uma prática social, exige de seus pesquisadores a consecução dos depoimentos orais, das informações e de todos os tipos de documentação oriundas dos sujeitos que a fizeram/fazem.

O terceiro artigo, Aprendendo a ler o mundo. Adaptação do método de Paulo Freire na alfabetização de crianças, de Olívia Leite e José B. Duarte, resulta de uma investigação realizada no âmbito do mestrado em Ciências da Educação da Universidade Lusófona pela primeira autora, sob a direcção científica do segundo. O ponto de partida foi a constatação de que as aulas de recuperação em alfabetização eram uma continuidade das aulas regulares e, numa tentativa para procurar soluções para alfabetizar as crianças analfabetas, planificou-se uma investigação-acção fundamentada na pedagogia crítica de Paulo Freire. A pesquisa realizou-se numa escola pública de um município próximo de Curitiba, no sul do Brasil, e envolveu 12 jovens analfabetos ou semi-analfabetos. O artigo apresenta a metodologia seguida pela pesquisadora e os resultados obtidos. Os autores, na discussão dos resultados, sublinham que a concretização da alfabetização é mais eficiente quando o professor explora o universo vocabular do aluno, ou seja, a sua leitura de mundo. Quanto à hipótese da metodologia utilizada pela escola influenciar diretamente na aquisição da leitura e da escrita, independentemente da leitura de mundo de cada sujeito, confirmam que a história de vida de cada educando foi indiscutivelmente facilitadora de estímulos para a aprendizagem significativa.

No quarto artigo, Apontamentos sobre a investigação sociológica. Possibilidades e caminhos de pesquisa, Alberto Albuquerque Gomes apresenta uma proposta de análise das questões fundamentais do método de pesquisa nas ciências sociais. Sublinhando que este assunto foi objeto de discussões incontáveis e de produção de vários textos no sentido de explicar a sua relevância em geral e no contexto acadêmico, o autor insiste que o problema está em como validar a pesquisa, por outras palavras, quais os padrões e ferramentas deveriam ser usadas para aumentar a precisão e o grau de confiança desses resultados. Gomes, a partir de uma analogia com a arte, propõe uma estrada que assegure a rigidez necessária a qualquer investigação científica.

O quinto artigo, Em busca do conceito de cultura escolar. Uma contribuição para as discussões actuais, de Milan Pol, Lenka Hloušková, Petr Novotný e Jiří Zounek, apresenta o conceito de cultura escolar a partir de uma análise de artigos relevantes escritos em inglês, alemão, checo e eslovaco. Reconhecendo que foram as inúmeras definições e a evidente ausência de delimitação do conceito de cultura escolar que serviram de impulso para o estudo, os autores mobilizam as várias definições de cultura escolar documentadas fora da Pedagogia por três ciências tradicionais - Gestão, Antropologia e Sociologia, para concluirem que o conceito de cultura escolar é um conceito fronteiriço da Pedagogia. A abordagem integrativa apresenta-se, segundo os autores, mais perto do campo da pedagogia ou, mais especificamente, da possibilidade de ser considerada como uma abordagem que trata o conceito de cultura escolar como um conceito pedagógico.

No sexto artigo, A formação do professor investigador na escola e as possibilidades da pesquisa colaborativa: um retrato sem retoques, Josefa A. G. Grígoli, Leny R. M. Teixeira, Claudia Maria de Lima, Adriana Rodrigues da Silva & Mônica Vasconcellos focalizam a sua pesquisa na construção do saber docente, buscando aprofundar a compreensão dos fatores reguladores da acção docente que atuam no sentido da manutenção da prática do professor ou da sua transformação. Para investigar as formas mediante as quais os professores aprendem e as razões que os levam a mudar ou a resistir às mudanças da prática, as autoras realizaram um trabalho de formação, nos moldes de uma pesquisa colaborativa, envolvendo dez professoras da primeira etapa do ensino fundamental (correspondente, em Portugal, ao 1º ciclo do ensino básico) e três gestoras. A intervenção realizou-se mediante a participação prolongada das pesquisadoras na vida da escola, norteada pela convicção de que capacitação e desenvolvimento dos professores devem ser decididos pelo próprio grupo e realizados na unidade escolar, a partir das necessidades por eles expressas e visando a construção da sua autonomia. O artigo apresenta os resultados preliminares dessa intervenção.

O sétimo artigo, Literacia Científica e Educação de Ciência. Dois objectivos para a mesma aula, de Nuno Vieira, apresenta uma perspectiva histórica do ensino de ciência, desde os finais do século XIX até à actualidade. Sublinhando algumas datas importantes no modo de encarar o ensino das ciências, o autor defende que, actualmente, a orientação dominante vai no sentido de se pretender formar cidadãos informados, capazes de participar em debates científicos, atentos às causas e às consequências inerentes ao conhecimento, bem como à sua aplicação no quotidiano. Numa segunda parte, Vieira equaciona as finalidades para o futuro do ensino de ciência, defendendo que se devem minimizar a importância de testes e classificações internacionais, por estas acabarem por conduzir a uma deterioração do sistema de ensino. Como afirma o autor, “tomam-se decisões políticas para melhorar a classificação, destroem-se os pilares essenciais para a construção de uma sociedade cientificamente literata, e descura-se a especificidade de cada comunidade, não se dando atenção aos interesses dos alunos e dos professores o que poderá conduzir a uma inibição da criatividade e inovação nas actividades escolares”.

O oitavo, e último artigo, Sintomas de stress em Professores Brasileiros, de Maria das Graças Teles Martins, apresenta os resultados de uma pesquisa realizada no âmbito do Mestrado em Ciências da Educação da Universidade Lusófona. A autora pretende refletir e destacar os principais sintomas físicos e psicológicos de stress encontrados em professores das primeiras séries do ensino fundamental (1º ciclo do ensino básico, em Portugal) em escolas públicas estaduais de uma cidade brasileira. A análise dos resultados obtidos por Martins indica que os sintomas de stress estão presentes na maioria dos professores, prevalecendo o stress na fase de resistência. A sintomatologia predominante foram os sintomas psicológicos, na qual se apresentam como mais significativos a irritabilidade excessiva, o pensar constantemente em um só assunto e uma sensibilidade emotiva excessiva. Na área física, os sintomas mais presentes foram o cansaço constante, a sensação de desgaste físico constante e os problemas com a memória.

Na secção Diálogos, Manuel Tavares conduz uma entrevista com Boaventura de Sousa Santos, seguramente o cientista social português mais premiado e publicado em Portugal e no estrangeiro, Director do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, um Laboratório Associado com o qual a UI&D Observatório de Políticas de Educação e Contextos Educativos acaba de assinar um protocolo de cooperação científica (notícia mais detalhada será apresentada no próximo nº 11 da RLE). Nesta entrevista, Boaventura de Sousa Santos percorre alguns dos seus últimos trabalhos e explicita as suas teses nos campos da epistemologia, da sociologia do direito, da teoria pós-colonial, da democracia, da interculturalidade, da globalização, dos movimentos sociais (em particular do Fórum Social Mundial) e dos direitos humanos. Não exageramos ao afirmar que esta é uma das principais entrevistas de Boaventura de Sousa Santos, dialogada por e-mail entre Lisboa e Madison. De leitura obrigatória para se conhecer o pensamento de um dos mais brilhantes cientistas sociais contemporâneos.

Na secção Documentos, recuperamos o programa de acção do Ministério da Educação e Investigação Científica (MEIC) do IV Governo provisório, discutido e aprovado em sucessivas reuniões do Conselho de Directores-Gerais, entre Abril e Maio de 1975. Produzido num período onde o objectivo da construção de uma sociedade socialista se colocara como o rumo da revolução portuguesa, o Programa de Acção constitui um documento fundamental para a compreensão dos projectos e propósitos da revolução portuguesa no campo da educação nesse seu período crítico entre o 11 de Março e o Verão quente de 1975.

Na secção Em Debate, Isabel Sanches assina um texto significativamente intitulado Saudosismo dos anos setenta ou a arrogância da ignorância?, a propósito do projecto de Decreto-Lei sobre a Educação Especial. Realizando uma violenta (e certeira) crítica a tal intenção legislativa, Sanches termina sugerindo que a decisão política ganharia em se fundamentar em investigação pertinente, um objectivo que a União Europeia tem vindo a insistir ultimamente mas que continua, pelo menos em Portugal no campo educativo, a constituir uma declaração retórica.

Em Recensão, Isabel Brites apresenta uma detalhada análise do livro de Michel Foucault Vigiar e Punir. Trata-se de uma leitura pormenorizada e rigorosa de uma obra de leitura obrigatória para todos os educadores e que constitui, no campo da investigação em educação, uma referência teórica para muitos trabalhos.

A Revista Lusófona de Educação prossegue a secção Sítios Digitais, iniciada no número anterior. Agora, Vasco B. Graça apresenta um conjunto de indicações de grande utilidade, particularmente para todos aqueles que desenvolvem investigação qualitativa em ciências sociais e humanas.

Por último, duas das habituais secções da Revista. Em Notícias, apresentam-se breves referências à actividade científica da área de Ciências da Educação (futuro Instituto) da Universidade Lusófona. Em Dissertações, apresentam-se os resumos das dissertações defendidas em 2006 no âmbito do Mestrado em Ciências da Educação da Universidade Lusófona, valorizando, deste modo, o trabalho científico desenvolvido pelos nossos estudantes, hoje mestres.

 

Aracaju, Novembro de 2007

António Teodoro