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Revista Lusófona de Educação
versão impressa ISSN 1645-7250
Rev. Lusófona de Educação n.15 Lisboa 2010
A presença de sujeitos culturais negros no contexto do ensino superior e a afirmação de suas identidades
José Licínio Backes
Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil. backes@ucdb.br
Resumo
O texto é resultado da pesquisa docente vinculada ao Programa de Pós-Graduação – Mestrado em Educação, da Universidade Católica Dom Bosco, “A afirmação da identidade negra pelo acesso à universidade: o projeto Negraeva”, financiada pela FUNDECT/MS e tem como objetivo problematizar a produção de identidades culturais negras por meio do currículo que circula no Ensino Superior. A compreensão de currículo é inspirada nas teorias pós-críticas, sendo visto como campo de luta e contestação, campo que produz identidades e diferenças no território da cultura. É um campo de disputa, onde algumas identidades são legitimadas, outras não.
Palavras-Chave: Cultura, identidade, currículo, negro.
The presence of black cultural subjects in the context of higher education and the assertion of their identity
Abstract
This paper is a result of a research project related to the Graduate Studies Program in Education of the Dom Bosco Catholic University. The project, “The affirmation of black identity through access to the university: The Negraeva project” is funded by the FUNDECT/MS. Its goal is to examine the production of black cultural identities through the curriculum that circulates in higher education. The author’s understanding of curriculum is inspired by the post-critical theories that see it as an arena of struggle and challenge, an arena that produces identities and differences in the territory of culture. It is an area of dispute where some identities are legitimized and others are not.
Keywords: Culture; identity; curriculum; blacks.
Iniciamos o texto, lembrando as palavras de Skliar (2004: 70), quando pontua que escrever “[...] é uma forma de estarmos vivos neste mundo onde muitos outros, neste mesmo instante, não escrevem nem lêem porque morrem de fome, morrem na guerra e morrem de desilusão”. E, nós acrescentamos, morrem física e simbolicamente, vítimas de discriminação e racismo.
O texto é resultado da pesquisa vinculada ao Programa de Pós-Graduação – Mestrado em Educação, da Universidade Católica Dom Bosco, “A afirmação da identidade negra pelo acesso à universidade: o projeto Negraeva”, financiada pela FUNDECT/MS e tem como objetivo problematizar a produção de identidades culturais negras por meio do currículo que circula no Ensino Superior1.
O entendimento de currículo, presente no texto, pauta-se nas teorias póscríticas, segundo as quais o currículo não é “[...] um meio neutro de transmissão de conhecimentos ou informações” (Silva, 1995: 202), mas um campo de luta e contestação que produz identidades e diferenças: “as narrativas do currículo con-tam histórias que fixam noções particulares sobre gênero, raça, classe – noções que acabam também nos fixando em posições muito particulares ao longo desses eixos” (Silva, 1995: 195). Essas posições não são fixas, sempre é possível encontrar formas de subvertê-las, desviá-las, contestá-las.
Para articular as reflexões, tomamos como ponto de partida três fragmentos extraídos das entrevistas realizadas com alunos negros que ingressaram no Ensino Superior tendo como apoio fundamental o projeto Negraeva. As respostas dos sujeitos entrevistados, são, como lembra Silveira (2002), atravessadas pela subjetividade do pesquisador. O projeto Negraeva foi elaborado com o propósito de apoiar estudantes da comunidade São Benedito (mais conhecida como Comunidade Negraeva ou Comunidade Tia Eva), localizada na cidade de Campo Grande, MS, para que pudessem acessar e manter-se no Ensino Superior. O projeto Negraeva foi submetido à Fundação Ford em 2002 e foi aprovado, tendo apoiado 17 estudantes, segundo a informação obtida com a coordenação do projeto. O projeto foi elaborado pela própria comunidade, tendo recebido ajuda de um professor (identificado com a luta do movimento negro) da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Estes sujeitos estudaram em diferentes universidades de Campo Grande (pública e privadas), e, para não serem identificados, não mencionaremos em qual universidade cada sujeito fez o curso e usaremos nomes fictícios.
O primeiro fragmento de entrevista nos ajuda a perceber a dificuldade ainda existente, para pensar um currículo que não seja pautado no mito da igualdade confundida com mesmidade (Skliar, 2003).A idéia ainda corrente é que “todos são iguais”, as diferenças são apenas aparentes, pois, em última instância, todas as identidades fazem parte da identidade humana. Lembramos que, embora a identidade humana seja reivindicada como postulado universal, trata-se de um saber/poder que tem “[...] sexo, etnia e projeto político-filosófico” (Costa, 1999: 61), isto é, é fruto de um projeto “[...] unitário, centrado, masculino, branco e europeu” (Costa, 1999: 61). Como escreve Skliar (2003), a igualdade foi entendida como o retorno ao mesmo, (retorno ao colonizador) e, por isso, é costumeiramente apresentada como oposição à diferença. Entretanto, trata-se de uma armadilha, “de um binarismo não-pertinente entre igualdade e diferença, já que igualdade deveria ser o resultado de uma relação de oposição com a desigualdade – e não com a diferença – e diferença com a mesmidade – não com a igualdade” (Skliar, 2003: 108).
Assim, apesar de muitas vezes a declaração “todos somos iguais” ser feita com as melhores intenções, ela pode ser também uma forma de manter relações de poder que historicamente têm posicionado os sujeitos negros em condições subalternas. Neste sentido, é significativa a fala da acadêmica Ana, ao narrar o encontro com o Pró-Reitor de uma das Instituições de Ensino Superior onde estes sujeitos estudam ou estudaram:
Aqui a gente procurou na universidade, a gente tentou falar com o Reitor, não conseguiu. Fomos atendidos pelo Pró-Reitor, que agora não recordo o nome. Mas ele disse que a universidade não tinha interesse de fazer parte de um projeto como o Negraeva e que a situação do negro era igual a do indígena e do japonês, que não havia diferença na história dessas três etnias. (Acadêmica Ana, grifos nossos).
O argumento utilizado pelo Pró-Reitor é um dos argumentos mais utilizados quando se discute a diferença, ou melhor, o argumento mais utilizado para não se problematizar a produção da diferença. O argumento da igualdade confundida com mesmidade foi criado pela lógica moderna e pautou a construção do currículo. Se não levarmos em conta o saber/poder presente neste argumento, somos capturados pela armadilha da igualdade/mesmidade. Apple (2000: 46) lembra que existe um discurso hegemônico que esconde as condições específicas em que cada grupo cultural participou da formação das sociedades, traduzido da seguinte forma:“‘Nós’ somos uma nação de imigrantes.‘Nós’ somos todos imigrantes, desde a primeira nação original (indígena), cujo povo atravessou o Estreito de Bering, até os imigrantes mais recentes.” (p. 46). Entretanto, como salienta Apple (2000: 47) referindo-se ao contexto dos EUA:“Essa história, contudo, não trata das condições diferenciais que existiram. Alguns imigrantes vieram acorrentados, eram escravos e enfrentaram séculos de repressão e de segregação administrada pelo governo. E nisto há um mundo de diferença.” Embora o autor esteja se referindo ao contexto estadunidense, o mesmo argumento circula também no contexto brasileiro.Tratase novamente da armadilha da igualdade/mesmidade.
Esta armadilha pode ser vista como uma estratégia no sentido de “incluir para excluir”, conforme Veiga-Neto (2001). O Pró-Reitor, para defender seus interesses (de não oferecer uma bolsa para os sujeitos negros), “inclui” todos na “mesma situação”, nas “mesmas condições históricas”, nas condições de “igualdade”.
Como explica Veiga-Neto (2001: 113), a inclusão pode ser entendida como “[...] o primeiro passo numa operação de ordenamento, pois é preciso a aproximação com o outro para que se dê um primeiro (re)conhecimento, para que se estabeleça algum saber, por menor que seja, acerca desse outro”. O Pró-Reitor inclui o outro, e é por meio dessa operação que se autoriza a dizer quem são (são os “mesmos”) e, desta forma, pode dizer como devem ser tratados – devem ser tratados como “iguais”. Assim, o processo de exclusão legitima-se com o argumento da inclusão. Ao incluir o outro, o sujeito captura-o segundo seus interesses. Ao dizer que o negro é igual, é possível abertamente, sem constrangimento, defender que ele não deve ser tratado de forma diferente na universidade (não deve receber bolsa). Mas, ao mesmo tempo em que ele é “igual”, tornando-se inteligível, acessível e familiar, é mantido a uma certa distância que permite que não seja incorporado no mesmo. Como lembra a acadêmica Ana, o Pró-Reitor afirmou que “a universidade não tinha interesse de fazer parte de um projeto como o Negraeva”. Desnecessário dizer que imagem de universidade está presente e que interesses estão em jogo ao afirmar que não há interesse em participar do Projeto Negraeva.
Nosso segundo fragmento de entrevista nos ajuda a localizar o problema:
Eu já havia entrado outras vezes na universidade, eu até iniciei um curso aqui na universidade, cursei um ano e pouquinho, e tive que parar por falta de condições econômicas para me manter no curso, pagar minha mensalidade e as demais despesas que a gente tem.Aí fiquei um ou dois anos fora, tentei vestibular na federal, passei, comecei um outro curso também, que era matemática, fiz dois anos, parei, aí depois abriu Ciências Sociais, e resolvi fazer e foi o curso que consegui concluir. (Acadêmico Roque).
Essa é uma das realidades dos sujeitos negros no Ensino Superior: alguns até chegam a entrar na universidade, mas não permanecem nela, numa primeira leitura, por questões econômicas. Mas seriam apenas questões econômicas? Ou podemos apontar outros atravessamentos ou até mesmo outros fatores tão ou mais decisivos que dificultam a entrada e permanência no Ensino Superior? Seria a questão econômica a produtora dessa condição, ou podemos procurar a explicação em outro lugar, talvez em outros lugares, de tal modo que o que aparece como sendo o produtor não passa de um efeito?
Com os Estudos Culturais, aprendemos que não existem leis necessárias (Hall, 2003). As explicações das realidades e as verdades podem ser buscadas em diferentes lugares:“A verdade ou as verdades são coisas deste mundo, constituídas no seio de correlações de forças e de jogos de poder.” (Costa, 2000: 76). Neste sentido, queremos argumentar, apoiados no campo teórico dos Estudos Culturais, que sustentam a centralidade da cultura (Hall, 1997), que vemos a questão econômica como a face mais visível e óbvia de uma questão produzida há séculos no Brasil, cuja disputa central não se deu/dá no campo econômico, mas no campo da cultura: “As lutas pelo poder adquirem cada vez mais um caráter cultural e não podem ser reduzidas a sua dimensão material.” (Candau, 2006: 36).
Portanto, a falta de recursos financeiros é um efeito, um produto de uma articulação muito mais sutil e eficaz que se dá no território da cultura, invadindo os campos da educação e do currículo. Uma cultura produzida no campo do poder visto como “[...] disseminado, circulante, capilar e também produtivo, e não apenas centralizado e repressivo” (Costa, 1999: 41).
O campo da cultura, visto como articulado inexoravelmente com relações de poder, produz as identidades e as diferenças, posicionando os sujeitos em diferentes lugares sociais, “legitimando” para uns o acesso à riqueza, aos privilégios, ao Ensino Superior público e gratuito e, para outros, a negação desse acesso. Para tanto, a cultura (entendam-se os sujeitos da cultura produzidos pela cultura, mas não um sujeito a priori, e sim um sujeito sempre já fabricado pela cultura) vai produzindo determinadas marcas que serão utilizadas em contextos específicos para posicionar os sujeitos na rede social.
Particularmente, a marca produzida pela cultura (branca) que mais nos interessa discutir neste texto em conexão com a educação e o seu currículo é a marca racial. Esta marca, como diferentes dados estatísticos evidenciam, continua sendo utilizada para posicionar os sujeitos negros em lugares socialmente menos valorizados.
Apoiados em Skliar (2003; 2004), podemos sustentar que o posicionamento dos sujeitos negros na sociedade brasileira está relacionado à forma como a cultura ocidental aprendeu a lidar com a diferença cultural, que, se facilmente reconhecida, é sempre associada equivocadamente à inferioridade, déficit, falta, porque orientada pela lógica colonizadora. Nessa lógica, os sujeitos das outras culturas são avaliados segundo uma forma fixa e única, sendo diminuídos, penalizados, discriminados:
A operação da discriminação consiste, primeiro, na diminuição, na redução do outro – e também a relação do outro com os “seus” outros – e, em segundo lugar, em dotar todos esses outros, assim “diminuídos”, de uma única possibilidade de interpretação dos seus valores e das suas normas. A uma minoria, a qualquer minoria, lhe é dado para si própria um referente idêntico de representações: haveria assim uma única forma fixa permitida, possível de se pensar, de se olhar, de se perceber, de se julgar, de se nomear etc. o interior desse grupo. (Skliar, 2004: 76).
Esta operação é construída no campo da cultura, e, por isso, a tomamos como central em nossa análise.Ao nos posicionarmos a favor da centralidade da cultura, não estamos diminuindo os efeitos negativos que a falta de acesso aos bens materiais produz nos sujeitos, estamos apenas procurando argumentar que, para que essa situação possa ser modificada, é preciso questionar a lógica discursiva que a produz; apoiados em diferentes autores, podemos dizer que esta lógica também se assenta no mito da democracia racial e no ideal de branqueamento, produzidos pela cultura hegemônica. Como muito bem argumenta Gomes (2007: 104), o mito da democracia racial funda-se na “igualdade que apaga as diferenças”. Segundo Munanga (1999), esse mito se baseia na mestiçagem biológica e cultural entre as três raças originárias, exaltando a idéia de uma convivência harmônica, seja em termos sociais ou raciais. Desta forma, as desigualdades são dissimuladas pelas elites,
[...] impedindo os membros das comunidades não brancas de terem consciência dos sutis mecanismos de exclusão da qual são vítimas na sociedade. Ou seja, encobre os conflitos raciais, possibilitando a todos se reconhecerem como brasileiros e afastando das comunidades subalternas a tomada de consciência de suas características culturais que teriam contribuído para a construção e expressão de uma identidade própria. Essas características são “expropriadas” e “convertidas” em símbolos nacionais pelas elites dirigentes. (Munanga, 1999: 80).
Procurar pensar a diferença e o currículo fora do horizonte da mesmidade/ colonialidade, do mito da democracia racial, do ideal de branqueamento, é o grande desafio para nós educadores. De modo semelhante aos autores citados neste texto, Silva (1996: 204) também observa que “é crucial examinar as formas e os regimes de representação e de discurso pelos quais o ‘outro’ foi e continua sendo social e historicamente construído como objeto de um olhar imperialista e colonial”à .
O que escrevemos até agora serve para argumentar junto com Silva (2004) que discutir o currículo na perspectiva racial/étnica não significa apenas discutir os fatores que levam os sujeitos de determinadas raças/etnias (neste texto, os sujeitos negros) a não terem acesso à universidade ou discutir as dificuldades enfrentadas, mas apoiados nos Estudos Culturais, compreendê-lo como “racialmente enviesado” (Silva, 2004: 99). O currículo foi/é construído em bases etnocêntricas/colonialistas. Longe de ser um conjunto de disciplinas/conhecimentos desinteressados, o currículo é um campo que traz as marcas da cultura hegemônica (ocidental, branca, machista, cristã, eurocêntrica). O currículo é o resultado das relações sociais de poder, é um “espaço conflituoso e ativo de produção cultural” (Meyer, 1998: 376). Portanto, é um espaço de produção de identidades e diferenças culturais, raciais, de gênero, de crença. Seguindo a autora, podemos afirmar que conceber o currículo como um produto da cultura enquanto campo de luta e contestação implica questionar os saberes/poderes que “produzimos, selecionamos e implementamos de forma a reconhecer o sexismo, o racismo e a discriminação que eles não só veiculam, mas constroem e ajudam a manter” (Meyer, 1998: 378). Considerar a cultura como produtora de identidades, como campo de conflito, como prática que normaliza práticas, que “naturaliza” formas de ver e perceber o outro, que cria formas legítimas e ilegítimas, implica reconhecer que o “[...] o racismo não pode ser concebido como uma questão de preconceito individual. O racismo é parte de uma matriz mais ampla de estruturas institucionais e discursivas que não podem ser simplesmente reduzidas a atitudes individuais” (Silva, 2004: 103).
Portanto, o racismo não é uma simples questão psicológica, mas um mecanismo produzido no contexto da colonização, como nos atestam, entre outros, Bhabha (2001), Hall (2003) e Skliar (2003). Hall (2003), mesmo fazendo ressalvas à leitura pós-colonial do mundo, sobretudo pela não-articulação entre pós-colonialismo e capitalismo global, não deixa de reconhecer que a colonização – e, portanto, sua compreensão – teve e continua tendo efeitos para as culturas e as identidades. “Nenhum local, seja ‘lá’ ou ‘aqui’, em sua autonomia fantasiada ou in-diferença, poderia se desenvolver sem levar em consideração seus ‘outros’ significativos e/ou abjetos” (Hall, 2003: 116.). Da mesma forma, noções de identidades culturais idênticas a si mesmas foram solapadas e forçadas a se representarem no “Outro”, por um sistema de similaridades e diferenças, tornando-se jogos de diferenciação por meio dos quais as identidades são construídas, sem poder escapar aos significados oscilantes e deslizantes.
Porém, não devemos nos deixar levar pela generalização simplista. É preciso considerar os contextos específicos em que o racismo é produzido e quais os interesses que estão em jogo. Para Hall (2003), embora se possam facilmente reconhecer processos semelhantes de representação entre os grupos humanos, desconsiderar as especificidades históricas sem levar em conta os contextos em que os grupos operam é um grande equívoco.
Portanto, tomar o espaço do Ensino Superior como espaço de construção de identidades raciais (e também como espaço de práticas racistas) tem um sentido diferente do que discutir outros espaços educativos. Sobretudo porque o Ensino Superior tem sido ainda mais excludente em relação aos sujeitos negros do que a educação básica: “[...] ao contrário do que ocorre com o segmento branco, na história escolar do estudante negro a universidade não se apresenta, de imediato, como um projeto prioritário” (Queiroz, 2004: 145).
Num certo sentido, pode-se dizer também que no Ensino Superior circulam argumentos que posicionam os negros nas margens da sociedade e que carregam uma “autoridade” maior do que os significados que circulam em outros tempos/ espaços. É ainda o Ensino Superior um espaço “naturalizado” para brancos que supostamente ocupam este espaço devido aos seus méritos, quando, na verdade, é apenas a materialização da nossa sociedade racista.Todo esse contexto produz um conjunto de efeitos sobre as identidades raciais. Mas devemos sempre lembrar que não são os efeitos da lógica moderna e linear, mas são efeitos que carregam, além das marcas do poder que os produziu, também a ambivalência inerente a todas as relações sociais. Os sujeitos não são receptores passivos. Os sujeitos sempre podem oferecer resistência, podem ignorar os apelos, aderir parcial ou totalmente aos posicionamentos impostos/propostos pela cultura hegemônica. A cultura hegemônica, por um lado, procura reafirmar a referência da branquidade e, por outro lado, subalternizar os sujeitos negros ou mantê-los no lugar de subalternos. Mas sempre há outras possibilidades: possibilidades de subverter, transgredir, rebelar-se, revoltar-se, instituindo outras posições de sujeito. Essas outras possibilidades podem vir de diferentes vozes e lugares. Podem, por exemplo, vir de professores do Movimento Negro, como muitos sujeitos de nossa pesquisa narraram, referindo-se a posturas de professores notadamente militantes, que traziam uma abordagem diferente daquela tradicionalmente reservada aos grupos negros, questionando os racismos e formas estereotipadas de representar a identidade negra. Podem vir também dos próprios acadêmicos negros que, por viverem uma experiência de grupo e de comunidade proporcionada ou intensificada pelo projeto Negraeva, destacada por todos os sujeitos entrevistados, sentiam-se motivados a subverter e transgredir o currículo oficial. Neste sentido, destacamos o terceiro fragmento de entrevista, que nos ajuda a entender como o currículo, além de legitimar identidades, pode também, ainda que de forma não intencional e planejada, contribuir para produzir outras identidades:
Uma coisa que eu senti quando eu comecei a fazer o curso.Tinha eu e mais duas negras no meu curso. Então eu senti que no começo tinha uma pressão assim, de ver o lado sexual. Aí entrou um pouco da discriminação, porque você é mulher, você é negra. Não sei se pelo fato de você chamar a atenção ou não, muitas pessoas começaram a ficar em cima, muitos rapazes da minha sala. Eu estava solteira na época.Tinha um filho, mas não estava casada. Aí depois eu casei, mas me afastei um pouco da turma. Só que aí eu senti uma discriminação, por você ser negra, mulher os homens olham você diferente, eles começam a achar que você é muito fácil, que você está disponível, que pode falar o que quiser. Aí eu tive uma postura radical, eu quero respeito, eu sou uma mulher casada. Mas não que antes eu tivesse alguma coisa. [...] A mulher, a sexualidade, isso é uma coisa que ainda pega. Se você não souber se impor, não mostrar que você é inteligente, mostrar que você não é brincadeira, que você não está ali servindo de objeto sexual, você tem que saber se impor. (Acadêmica Lia).
Este fragmento nos remete a Hall (2003), quando destaca que as formas de discriminação não são as mesmas, dependem dos contextos, e, muitas vezes, articulam-se e combinam-se diferentes formas (no caso, raça, gênero, idade), posicionando os sujeitos. Para Hall (1997), na construção das identidades e no posicionamento dos sujeitos há uma articulação entre diferentes dimensões de tal forma que cada uma é constitutiva das outras, e vice-versa. Elas são, ao mesmo tempo, limites e possibilidade tanto para si quanto para as demais. Uma não funciona ou não tem efeitos reais sem as outras. Lembramos novamente que os efeitos aqui referidos não são os da lógica moderna, segundo a qual “se, logo”, mas são efeitos que ocorrem de forma ambivalente e imprevisível. As dimensões “[...] se constituem mutuamente – o que é outra maneira de dizer que se articulam um ao outro” (Hall, 1997:. 34).Assim, o racismo narrado pela acadêmica Lia é fruto de uma articulação de diferentes elementos. Ela é negra (elemento racial). Isso se articula ao fato de ser mulher, mãe solteira (elemento de gênero, e Santos [1997] nos lembra que o estereótipo da mulher negra é que ela é hipersexualizada), com a questão da idade (ela é jovem) e situa-se num contexto específico (sala de aula, num curso marcadamente masculino). Com isso, não estamos descentrando a questão racial, apenas mostrando que a prática racista emerge em contextos específicos, com efeitos diferentes, dependendo das características dos sujeitos e do seu entorno. Segundo Hall (2003: 327), facilmente somos
[...] persuadidos a aceitar a opinião enganosa de que, por ser em toda a parte considerado uma prática profundamente anti-humana e anti-social, o racismo é igual em todas as situações – seja em suas formas, suas relações com as outras estruturas e processos ou em seus efeitos.
É preciso considerar as formas específicas de racismo, pois, se o considerarmos como “igual em todas as situações”, somos facilmente levados a acreditar que, de alguma forma, todos são vítimas de processos discriminatórios e, neste caso, eles passam a ser vistos como práticas “naturais”. Queremos destacar ainda que a fala da acadêmica Lia demonstra que ela foi subvertendo a lógica do currículo, resistindo à posição de sujeito que o currículo lhe reservava. Neste sentido, queremos registrar que tanto ela como os demais sujeitos entrevistados tiveram essa postura e, segundo eles, encontraram no apoio do grupo do projeto, da família e da comunidade Negraeva a força para transgredirem a lógica imposta pelos currículos oficiais.
Ao finalizarmos este texto, queremos reiterar que o currículo, como “arena de significados”, apesar de continuar centrado na visão hegemônica, está sendo ressignificado pela presença de sujeitos diferentes, que, ao ocuparem politicamente estes tempos/espaços, vão forjando outras identidades. Neste processo, como nos lembram os autores citados neste trabalho, as identidades são ressignificadas, tanto as negras quanto as não-negras.A presença dos sujeitos negros na universidade, subvertendo e transgredindo o currículo, contribui para compreendermos que a “[...] época de ‘assimilar’ as minorias em noções holísticas e orgânicas de valor cultural já passou” (Bhabha, 2001: 245) e que faz sentido alimentar a “[...] crença de que não devemos simplesmente mudar as narrativas de nossas histórias, mas transformar nossa noção do que significa viver, do que significa ser, em outros tempos e espaços diferentes, tanto humanos como históricos” (idem: 352).
Notas
1 Versão revisada do texto apresentado oralmente no XIV ENDIPE, Porto Alegre - Brasil, 2008.
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