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Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  n.15 Lisboa  2010

 

Maria Rita Lino Garnel (2004). A República de Sebastião de Magalhães Lima. Lisboa: Livros Horizonte, 174 pp.

 

José V. Brás* e Maria Neves Gonçalves**

* zebras@netcabo.pt

** maria.neves@netcabo.pt

 

Este livro de Rita Garnel propicia-nos um olhar pelo percurso multiforme de Sebastião de Magalhães Lima, que ocupou um lugar proeminente na cultura política e histórica do seu tempo. A defesa de um ideal republicano e a propaganda antidinástica e anticlerical estão patentes na sua produção escrita e jornalística, bem como na sua acção cultural e cívica.

As principais armas de combate ideológico a que Magalhães Lima recorreu foram - como salienta Fernando Catroga no Prefácio - o livro, o jornalismo, a oratória e os contactos internacionais.

Numa escrita clara e mobilizadora, Rita Garnel, ao eleger como seu protagonista, Magalhães Lima, e ao estudar o seu pensamento, procurou apreender as ideias e os ideais, os valores e as expectativas que hegemonizaram a cultura republicana nos decénios anteriores à queda da Monarquia.

Apesar da autora sublinhar que o seu objectivo não foi traçar a biografia de Magalhães Lima, no sentido tradicional da palavra, o leitor fica a conhecer os aspectos mais marcantes da sua vida e obra. Investigando e reflectindo sobre as múltiplas facetas da sua acção, Rita Garnel evidencia: (i) os anos da formação, nomeadamente em Coimbra, onde cursou Direito e contactou com diversas personalidades, já ao tempo simpatizantes do republicanismo (Alves da Veiga, Feio Terenas, Trigueiros de Martel, Gomes Leal, entre outros); (ii) a actividade jornalística (O Século, Vanguarda, A Folha do Povo, Comércio de Portugal); (iii) o labor literário (O Mistério da Estrada da Beira, folhetim publicado nas páginas de O Tribuno Popular, uma colectânea de contos intitulada Miniaturas Românticas, e o romance A Senhora Viscondessa); (iv) a actuação como propagandista (em conferências, comícios, exposições, congressos e centenários); e (v) o papel que desenvolveu na Maçonaria mormente desde que foi eleito Grão-Mestre (cargo que desempenhou de 1907 até 1928, data da sua morte).

Foi precisamente a pluralidade de desempenhos em prol dos direitos humanos, de um ideal de cidadania activa e da universalidade dos valores da liberdade, da justiça, da solidariedade e da tolerância, que lhe mereceram o epíteto de sacerdote laico: “ao longo de mais de cinquenta anos de vida pública dedicou-se sem descanso à propaganda dos seus ideais” (p. 35), pois derramar as luzes e educar o povo eram, como assinala a autora, as preocupações dos novos apóstolos da república, entre os quais se destaca Magalhães Lima.

Este livro que reproduz, com pequenas alterações, a dissertação de Mestrado defendida em 1998 na Faculdade de Letras de Coimbra, surge-nos cheio de interesse, como se, mudando-se os tempos e as perspectivas, se mantivessem por resolver os mesmos problemas. E quais foram as questões prementes para Magalhães Lima que Rita Garnel revisita? São temáticas (algumas das quais permanecem actuais e em debate) como o feminismo, a maçonaria feminina, o sufrágio, a pedagogia cívica, a laicidade, a moral cívica, o cremacionismo, o descentralismo, o municipalismo e a edificação pacífica de uma Europa democrática.

Ao seguir uma lógica de pesquisa histórica, assente na busca de informação e interpretação dos dados recolhidos, a autora apresenta-nos um estudo coerente, bem fundamentado e de excelente qualidade e rigor científicos. Este trabalho, norteado por uma sistemática preocupação em contextualizar e datar os factos – a cronologia permite, na expressiva fórmula de Alain Mougniotte “intégrer chaque fait dans la constellation à laquelle il appartient” (1991, p. 10) - possibilita-nos apreender a representatividade de Magalhães Lima no panorama políticocultural do seu tempo, bem como a sua presença constante e dinamizadora no seio do movimento antidinástico o que o tornou “uma das personalidades republicanas mais conhecidas fora de Portugal” (p. 119). Magalhães Lima foi um dos intelectuais que mais se empenhou na difusão da educação popular, na luta por uma escola obrigatória, gratuita e laica e na formação moral e cívica dos cidadãos. É, pois, importante relembrar este vulto da República.

A obra de Rita Garnel configura certamente outros ângulos de abordagem que outras análises poderão realçar, no entanto, tentámos acentuar os aspectos a que fomos (somos) mais sensíveis. A presença de Magalhães Lima no republicanismo português é, na nossa perspectiva, demasiado valiosa para que permanecesse no esquecimento. E este estudo, resultado de uma pesquisa rigorosa, interessa claramente a investigadores nos domínios do ideário republicano, do livre-pensamento, do anticlericalismo, da laicidade e do feminismo.

O livro de Rita Garnel põe em evidência a importância que a República tinha para Sebastião de Magalhães Lima. Para ele, o regime republicano significava o garante da justiça e da liberdade. Neste aspecto, destaca-se dos republicanos da altura porque a questão social assume a prioridade das prioridades.

A República tinha para ele o desígnio de uma autêntica revolução. No seu entender, era necessário combater a degradação e alterar as condições de vida da população. Seguindo o pensamento de Proudhon, considerava que isso tinha que passar inevitavelmente pela alteração do sistema capitalista vigente, por estabelecer uma nova ordem económica onde o homem assumisse a dignidade que lhe cabia. Não para acabar com os proprietários, mas para tornar o homem proprietário, o que só era realizável, conciliando-se o interesse individual com o interesse colectivo. Julgava que a solução estava no estabelecimento de uma ordem social fraterna porque esta poderia equilibrar os diferentes interesses e amornar as lutas sociais. Por isso, a instrução e a associação levaria à combinação e emancipação do povo. Ao contrário do socialismo autoritário, ele acreditava que o selfgovernment era um ideal a perseguir, pelo que os poderes do Estado deviam ser limitados pelas forças colectivas organizadas em associações. O Estado era assim concebido como resultante das associações cooperativas (consumo, crédito, produção e trabalho) organizadas em Federações.

Rita Garnel mostra também como Sebastião de Magalhães Lima leva a sua luta a uma dimensão cultural onde se situam as elites republicanas desde o anticlericalismo liberal ao livre pensamento e ao laicismo.A modernização do país passa por uma nova visão do mundo, assente na razão e na ciência. Ele faz parte dos intelectuais que pretendem operar a mudança da religião pela ciência, da fé pela razão. Agora quer-se acreditar que a salvação faz-se na história.

Face a este processo de mudança, percebe-se porque o ensino ocupa uma posição chave. A questão está obviamente no facto de ser por aqui que se faz a aprendizagem sociopolítica que se pretende implementar. Do professor exige-se que seja um novo apóstolo, que fale em nome da nova religião – a ciência. Com ele o político e o cívico predominam sobre o religioso concretizando-se na separação das Igrejas e do Estado.

À imagem de um bom positivista, Magalhães Lima considerava que o papel das religiões já tinha cumprido a sua missão como primeira forma de pensamento humano que antecedia à ciência. Por outro lado, na esteira de Ferdinand Buisson, pensa que o livre pensamento não devia ser visto como uma doutrina mas como um método a ser aplicado na luta pela emancipação das consciências. Isto exigia por sua vez a emancipação política e económica. Por tudo isto se percebe a grande importância que foi conferida à batalha escolar.

O livro em análise é tanto mais significativo quanto se avizinha a comemoração do centenário da República e, por isso, um tempo propício para evocar a cultura e utopias republicanas e rememorar doutrinadores e educadores antidinásticos, esses apóstolos que, no dizer do próprio Magalhães Lima, “trabalham no remanso do gabinete, pelejam na imprensa, discutem na tribuna e evangelizam na cátedra professoral” (Comércio de Portugal, Lisboa, ano I, nº 4, 29-6-1879).

 

Referências bibliográficas

Catroga, F. (1991). O republicanismo em Portugal – da formação ao 5 de Outubro. Lisboa: Editorial Notícias.

Homem, A.C. (1990). A propaganda republicana (1870-1910). Coimbra: Coimbra Editora.

Lima, M. (1879).“Interesses sociais”, Comércio de Portugal, Lisboa, ano I, nº 4, 29-6-1879.

Mougniotte, A. (1991). Les débuts de l’instruction civique en France. Lyon: Presses Universitaires.