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Revista Lusófona de Educação
versão impressa ISSN 1645-7250
Rev. Lusófona de Educação n.16 Lisboa 2010
O Despertar do associativismo docente em Portugal.
Fernandes, Rogério (2010).
Lisboa: Edições Universitárias Lusófonas, 62 páginas.
Jose Brás, Maria Neves & Rosa Serradas Duarte,
Profissão sem memória? Como ficaríamos se continuássemos a persistir num processo de perturbação da memória? Que faríamos se mergulhássemos num estado de amnésia? Sem consciência do que somos, sem possibilidade de aprendermos com o que fizemos, ficaríamos desorientados no mar do esquecimento.
Rogério Fernandes foi um dos primeiros historiadores a denunciar o paradoxo entre memória e a profissão docente. Apesar da sua extraordinária importância para a construção da profissão docente eram inexistentes os estudos ao nível da recuperação da nossa memória colectiva. O alertar para o desafio para esta conquista foi de grande alcance, pois, sem este empreendimento, graves perturbações surgiriam na identidade colectiva.
´´A classe docente`` - avisava Rogério Fernandes em Abril de 1995[1] - ´´foi gradualmente perdendo a memória do passado``, devido, em parte, ao número pouco significativo de estudos sobre a história da profissão docente e do seu associativismo. Também Catroga (2001:31) se refere à ´´crise da memória colectiva e histórica`` que atravessa as sociedades contemporâneas, como se de sociedades amnésicas se tratasse.
Foi no sentido de desvendar a muralha de silêncio que pairava sobre os primórdios do associativismo docente e quebrar, assim, a ´´amnésia colectiva``, de que Bento (1978) falava, que Rogério Fernandes escreveu, em 1988, O Despertar do associativismo docente em Portugal, cuja 1ª edição remonta a 1989, sob a chancela do Instituto Irene Lisboa.
Volvido estes anos, a obra é (re)publicada, agora, em 2010, iniciando a série Memória e Sociedade da colecção Ciências da Educação das Edições Universitárias Lusófonas. Esta (re)publicação estava agendada desde finais de 2008, entre António Teodoro - director do Instituto das Ciências da Educação (ICE) e do Centro de Estudos e Intervenção em Educação e Formação (CeiEF), da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (ULHT) - e Rogério Fernandes, quando este liderou, na qualidade de Investigador Responsável[2], o projecto de Investigação, Percursos do associativismo e do sindicalismo docentes em Portugal, 1890-1990, que obteve o financiamento da Fundação para a Ciência e Tecnologia.
È sabido que só nos finais do século XIX é que começamos a verificar que os professores primários se vão organizando em instituições cada vez mais mobilizadoras da classe, criando associações, no sentido dado por André Robert (1995:155) ´´qui dit association d`une catégorie particulière de professeurs dit, quasi automatiquement, construction de son identité contre une autre catégorie``.
Devemos olhar para o movimento associativo com uma particular curiosidade. Ele é um indicador importante no estudo da profissão docente. Como bem nos refere Nóvoa (1991:25), as formas associativas exprimem-se através da identificação de um saber disciplinar, da manifestação de tendências pedagógicas e da vontade de exercer um novo poder profissional. Significa que o seu estudo nos dá acesso a um conjunto de questões de grande importância para a compreensão do processo de (des)construção da profissão docente, para um conhecimento detalhado das lutas pela qualificação/desqualificação profissional.
Com efeito, a criação de associações de professores constituiu historicamente um dos passos mais importantes dados no sentido da profissionalização da actividade docente e desempenham um papel importante na definição da profissão docente bem como na defesa dos seus membros (Adão, 1984; Nóvoa, 1987), marcando ´´decisivamente, em diferentes momentos históricos, o próprio processo de construção da profissão docente`` (Teodoro, 1990: 111). Neste processo associativo devemos igualmente considerar os sindicatos, pois eles são também um tipo particular de associação docente que têm por objectivo ´´conseguir condições de trabalho conformes às exigências de justiça social`` (Monteiro, s.d.: 6).
Rogério Fernandes teve este grande mérito de nos chamar a atenção para esta linha de pesquisa. Para muitos, a docência era vista mais como uma vocação do que propriamente como um processo de conquista. Uma espécie de chamamento espiritual explicaria grande parte dos mistérios da profissão.
Rogério Fernandes vem contrapor-se a esta ideologia da vocação, chamando-nos a atenção para a necessidade de nos concentrarmos nas dinâmicas dos processos de luta, para o percurso histórico que constituiu a profissão docente. Isto alerta-nos para o facto do resultado a alcançar depender muito da nossa intervenção, o que rompe com a concepção funcionalizada da docência.
Ele vem dizer-nos que tudo está em jogo, tudo é provisório e o nosso papel como profissionais é o de não ficarmos passivos, acéfalos em relação às normas que são promulgadas pelo patronato. O desenvolvimento profissional passa por esta problematização e pela consciencialização da necessidade da nossa intervenção.
A actividade profissional implica ter a possibilidade e a responsabilidade de dar forma ao que se faz. Aspirar a ser profissão é escolher a ser sujeito colectivo da liberdade individual, o que no remete para o espaço de construção da mútua dependência. Por isso, todo o trabalho que se quer profissional se desenrola num quadro de luta constante, na busca de um espaço de afirmação, reconhecimento e autonomia. Isto permite, como dirá Pintassilgo (2003: 17) afastar-se da imagem do funcionário e aproximar-se, de algum modo, da figura ideal do intelectual. Por isso, a grande importância da existência das associações profissionais. Elas indiciam o arranque do processo de profissionalização docente. Como refere Freire (2006: 324-325), elas surgem como uma ´´Associação de iguais, para a defesa dos seus interesses, morais e materiais - para garantir as características distintivas da profissão, relativamente a uma qualquer ocupação``.
É neste sentido que deve ser interpretado O Despertar do associativismo docente em Portugal, livro que agora recenseamos. Ele abre com uma Nota de Apresentação, de António Teodoro para quem esta (re)publicação é ´´uma pequena, mas sentida homenagem`` a Rogério Fernandes ``exemplo de investigador rigoroso, professor atento e dedicado aos seus estudantes e militante de causas que considera essenciais`` (p.7).
O corpo deste texto de Rogério Fernandes estrutura-se em dois níveis de análise distintos, todavia convergentes e complementares. No primeiro nível de leitura, o autor aborda, com rigor científico e ancorado numa diversidade de fontes manuscritas e impressas, a situação dos professores e mestres no dealbar do século XIX.
Num segundo nível de leitura, Rogério Fernandes centra o seu estudo na primeira associação dos professores portugueses, o Monte Pio Literário, criado em 1813, por 131 docentes que assinaram em Lisboa o respectivo compromisso.
Relativamente ao primeiro ângulo de abordagem, o autor, numa linguagem simples e mobilizadora, oferece ao leitor excertos curiosos e paradigmáticos de queixas formuladas pelas câmaras e por pais contra professores, como, por exemplo, um insulto que um mestre régio, ´´em razão do seu emprego``, recebe, em 1806, de um carpinteiro (p. 16).
O professor era também alvo de exortações, por parte das autoridades políticas, como aquela que um Comissário de Lisboa faz a um mestre para que se ´´exercite com particular cuidado em Ortografia prática e Aritmética, mas também sobre a gravidade do Vestido pelo muito que isso convém para conciliar o respeito dos discípulos`` (p. 17).
Estes exemplos, entre muitos outros que poderíamos convocar aqui, configuram a imagem social dos professores pouco favorecida perante a opinião pública, auferindo vencimentos modestos, nem sempre pagos atempadamente, e cuja actividade docente não era atractiva nem prestigiada.
A par deste campo de abordagem, o autor analisa, com minúcia, a composição da classe docente, a carreira, os vencimentos, direitos e deveres, regime disciplinar e as acumulações - umas legais e compatíveis com a sua condição docente, outras ilegais e contrastantes com as tarefas requeridas a um professor, como quando este exercia a de açougueiro ou de lavrador.
Assim, não obstante a sua precária e pouco prestigiada situação sócioprofissional, constata- se a inexistência, até 1813, de qualquer organismo de classe, capaz de impulsionador e mobilizar a classe docente. A incapacidade para se agregarem ou fazerem, segundo terminologia da época, ´´representações`` colectivas, levou o autor a concluir que até à data referenciada, ´´a consciência de classe`` não parece ter-se manifestado ´´entre estes obscuros obreiros da educação nacional`` (p.44).
Contudo, privados de protecção na velhice ou na invalidez e, porventura, conscientes do agravamento geral das condições de ensino bem como, certamente, o sentimento de frustração que avassalou o professorado, uma assembleia constituída por 131 pessoas, na sua grande maioria docentes, foram capazes de se reunir na residência de José António de Lemos Seixas Castel-Branco, mestre régio na Corte e ´´proprietário`` da Escola dos Cardais de Jesus, para criarem um Monte Pio - à semelhança, aliás, de um Monte Pio criado pelos operários arsenalistas em 1807.
Rogério Fernandes traça neste livro com detalhe e rigor científico os passos da primeira experiência associativa dos docentes portugueses. Esta iniciativa é, na sua fundamentada opinião, ´´o primeiro momento alto da afirmação da classe dos professores`` e´´faz parte essencial da história da profissão docente no nosso país`` (p. 61).
Esta primeira organização de professores mobilizou o funcionalismo público civil e militar, não conseguindo, porém, atrair mestras régias ou particulares, fosse pelo insuficiente amadurecimento da consciência profissional fosse pelo carácter discriminatório dos estatutos. Desde o início da sua criação, o Monte Pio Literário viu-se confrontado com a hostilidade declarada da Junta da Directoria Geral dos Estudos, do Comissário de Estudos em Lisboa e de outras autoridades políticas. Com a ocorrência da revolução liberal vintista abre-se-lhe uma luz de esperança, esperança essa, em breve defraudada, uma vez que a associação se vê impossibilitada de prosseguir os seus fins.
Não obstante a efemeridade deste movimento, a evocação, por Rogério Fernandes, deste grupo de pioneiros, detentor de uma consciência profissional e social, honra o seu autor que assim deu um contributo inestimável para a história da profissão docente. E se pensarmos como Veyne (1971:105), ´´on ne pourrait pas considérer le passé sans le voir à travers les soucis du présent``, poderemos, impulsionados pelo exemplo de Rogério Fernandes, operar o que Catroga (2001) designa de re-presentificação e revisitar o movimento associativo docente, porque só rememorando o tempo histórico faremos jus ao aviso do velho sábio grego: ´´os homens morrem, porque não são capazes de juntar o começo ao fim``.
Notas
1 Frase proferida por Rogério Fernandes em 20 de Abril de 1995, num Encontro Regional de Professores e Educadores, promovido pelo Sindicato dos Professores da região Centro, com o lema A Profissão Docente e a Deontologia dos Professores.
2 O Projecto é actualmente coordenado pela Profª. Doutora Rosa Serradas Duarte.
Referências bibliográficas
Adão, Á. (1984). O estatuto sócio-profissional do professor primário em Portugal (1901-1951). Oeiras: Instituto Gulbenkian de Ciência.
Bento, G. (1978). O movimento sindical dos professores. Finais da Monarquia e I República. Lisboa: Editorial Caminho.
Catroga, F. (2001). Memória, história e historiografia. Coimbra: Quarteto Editora.
Freire, J. (2006). Sociologia do trabalho. Uma introdução. Porto: Edições Afrontamento.
Monteiro, C. L. (s.d.). O sindicato. Traços fundamentais. Departamento Editorial de Documentação.Textos de apoio.
Nóvoa, A. (1987). Le temps des professeurs. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica.
Nóvoa, A. (1991). Profissão professor. Porto: Porto Editora.
Pintassilgo, J. (2003). Os primórdios do associativismo docente do ensino liceal português (1904- 1908). As representações dos professores sobre a profissão e a construção de identidades. Cadernos de História da Educação, 2, 15-25. [ Links ]
Robert, A. (1995). Le syndicalisme des enseignants, des écoles, collèges et lycées. Paris: CNDP / La Documentation Française.
Teodoro, A. (1990). Os professores. Situação profissional e carreira docente. Lisboa: Texto Editora.
Veyne, P. (1971). Comment on écrit l`histoire. Augmenté de Foucault révolutionne l`histoire. Paris: Editions du Seuil.