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Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  no.19 Lisboa  2011

 

Autonomia e co-responsabilidade ou o lugar da Educação de Adultos na luta pela inclusão social

 

Alcides A. Monteiro*

*Doutor em Sociologia. Professor auxiliar no Departamento de Sociologia da Universidade da Beira Interior, CovilhãDirector do Mestrado em Empreendedorismo e Serviço Social.alcidesmonteiro@yahoo.com

 

Resumo

Como pode a Educação de Adultos contribuir para a inclusão social de grupos mais desfavorecidos? Usando o exemplo de cursos de Educação e Formação de Adultos (EFA) dirigidos a mulheres desempregadas e residentes em meio rural, o presente texto visa analisar o modo como a Educação se pode transformar num passo importante para que estes adultos vejam reforçada a sua condição de cidadania e a capacidade para participarem na determinação do seu destino. No contexto de uma sociedade do risco, a formação para a autonomia, a (auto)reflexividade e a co-responsabilidade é a resposta encontrada para atingir o objectivo da inclusão social.

Palavras-chave: Sociedade do risco; educação de adultos; inclusão social; autonomia; co-responsabilidade; (auto)reflexividade.

 

Autonomy and co-responsibility or the place of Adult Education in the fight for social inclusion

How can Adult Education contribute to the social inclusion of less favored groups? Taking in account the example of Adult Education and Training Courses directed to unemployed women living in rural areas, the present text aims at analyzing the way Education can transform itself in an important path towards the reinforcement of the citizen condition of these adults and also of their ability to actively participate in the modeling of their own destiny. Within the context of a risk society, the training with regard to the exercise of autonomy, (self)reflectivity and co-responsibility is the answer found to reach such a goal.

Keywords: risk society; adult education; social inclusion; autonomy; co-responsibility; (self) reflectivity.

 

Introdução

Dos discursos sobre a actualidade sobressai a ideia de que a sociedade em que vivemos é, mais do que nunca, caracterizada pelo risco e pela incerteza, mas também por uma maior liberdade individual de escolha e decisão. Se há quarenta anos a autonomia individual era uma utopia e um ideal que mobilizavam movimentos sociais contra os mecanismos institucionais julgados alienantes, hoje são as instituições quem mais fala a linguagem da autonomia, em relação ao trabalho, à escola ou ao comportamento dos beneficiários de prestações sociais (Molénat, 2010). Esta incitação à implicação dos indivíduos na sua própria transformação está no cerne do pensamento neoliberal, ao valorizar a noção de responsabilidade individual como princípio moral e de direito que permite a cada um, liberto de constrangimentos, procurar o seu bem-estar. Mas também, em consequência, imputando a cada indivíduo a responsabilidade pelos seus actos e o dever de encontrar meios que permitam suplantar as adversidades. Sinteticamente, como sublinha Mellos (1999, citado por René, Goyette, Bellot, Dallaire & Panet-Raymond, 2001, p.129) “o indivíduo pode e deve determinar por si só o seu projecto de vida, sem assistência exterior, nem entrave”.

O presente texto visa no entanto, numa abordagem distinta, propor a reflexão sobre a articulação entre o exercício da autonomia e de uma “pragmática da responsabilidade”, enquanto formas de promover o reforço da condição de cidadania e da capacidade dos grupos sociais mais frágeis participarem na determinação do seu destino. Dito de outro modo, não a responsabilidade como norma ou obrigação individual, mas como construção a partir de uma estrutura de interacções que, conjuntamente com o reforço da capacidade (auto)reflexiva e de autonomia, contribuem para a inclusão social das populações desfavorecidas e a sua condução ao pleno estatuto de cidadãos e parceiros. Reflexão esta simultaneamente cruzada e influenciada pela avaliação de uma experiência concreta, a que tem sido levada a cabo ao longo dos últimos dez anos pela Fundação Solidários (organização ligada à promoção do desenvolvimento local e comunitário) em torno da promoção de cursos EFA (Educação e Formação de Adultos). No âmbito destes cursos, a concepção associada à acção da Fundação Solidários tem sido a de que, face a grupos de mulheres que abandonaram precocemente a Escola, muitas delas com idade superior a 45 anos, residentes em comunidades isoladas onde as oportunidades de emprego são escassas, marcadas ainda por uma situação de dependência financeira face aos maridos, o investimento no reforço da capacidade de agir em autonomia a partir de um exercício de auto-reflexão e de processos negociados de partilha de responsabilidades, serão ingredientes necessários para enfrentar as situações de risco e procurar novas alternativas para a sua vida.

1. A “sociedade do risco”

A sociedade actual, aquela em que vivemos, é pós-moderna, globalizada, individualizada, mas também se caracteriza por ser a “sociedade do risco”. Unidos por tese e por obra, autores como Ulrich Beck, Anthony Giddens ou Scott Lash têm vindo a dar corpo à teoria de que a modernização das sociedades (e em particular a segunda modernidade) representa um forte programa de individualização, no contexto de uma organização social marcada pelo peso do “risco” nas vidas de cada um dos seus cidadãos. De forma mais comum, o alerta para o aprofundamento de um “risco ambiental” (ele próprio objecto privilegiado de reflexão no seio do cursos EFA promovidos pela Fundação Solidários) tem sido matéria de debate aprofundado nos media e fortemente participado pela sociedade civil. Cada vez mais as pessoas adquirem consciência dos perigos ambientais decorrentes da própria acção humana, as crianças e jovens são hoje, nas escolas, sensibilizadas para tal quadro de risco e a necessidade premente de tomar medidas de inversão.

A partir dos contributos de Ulrich Beck (1986), começou a percepcionar-se a igual aplicabilidade de tal noção ao domínio dos problemas sociais, caracterizando novos riscos sociais. De forma simplificada, o autor afirma que a incerteza e a precariedade se instalaram no seio da ordem social, genericamente considerada, e na vida de cada um de nós. As mudanças profundas ocorridas em instituições sociais basilares (família, escola, Estado, mercado, grupos e associações…) tornam os resultados das decisões individuais, em certos domínios da vida quotidiana, menos previsíveis e aumentam a noção de risco. Casar, fazer estudos e empregar-se, montar um negócio, são acções hoje acompanhadas de um elevado grau de incerteza quanto aos seus resultados, porque os contornos das instituições que suportavam tais actos não são mais os mesmos (Hespanha & Carapinheiro, 2002, p. 14). As oportunidades, ameaças e ambivalências da biografia, que antes podiam ser ultrapassadas no grupo familiar, na comunidade, no contexto de uma classe ou grupo social, com a ajuda do Estado, têm que ser cada vez mais percebidas, interpretadas e geridas pelos próprios indivíduos.

Mas, uma certa democratização dos riscos e ambivalências não pode fazer esquecer que os aspectos positivos e negativos do risco social associado à globalização se continuam a repartir desigualmente pelos diferentes grupos e espaços sociais. A expressão “fractura social” - ícone de uma forma francesa, republicana, renovada, de pensar a questão da exclusão social - é a designação forte que remete para a imagem de uma sociedade em que laços sociais estruturantes entraram em crise, lembrando a incapacidade dessa sociedade em integrar todos os seus membros e deixando muitos deles à deriva. A revelação de que poderemos estar perante uma sociedade cada vez mais dual, composta pelos in e out, em que muitos dos que tinham um lugar social o perderam e para outros se encontra bloqueada a entrada no mundo do trabalho e em outros universos de relação social, serviu a alguns destes autores para reforçar convicções de que a questão da exclusão social interroga o conjunto da sociedade nos seus valores fundamentais e apela a muito mais do que meras medidas reparadoras que proporcionem a esses “infra-cidadãos” o acesso a direitos materiais e sociais básicos (Monteiro, 2004, pp. 39-49).

Se o optimismo dos anos 60-70 poderia levar a pensar um controlo das zonas de vulnerabilidade a partir de uma forte zona de integração, hoje essa zona de integração aparece fracturada e a vulnerabilidade expande-se alimentando continuamente a zona de desafiliação (Castel, 1995): não um estado de ruptura, mas o cúmulo de um processo de fragilização dos laços face a dois vectores fundamentais, um eixo de integração / não integração pelo trabalho e um eixo de inserção / não inserção numa sociabilidade sócio-familiar. Não um estado de exclusão, mas um itinerário percorrido por indivíduos e grupos através de sucessivas fragilizações ou quebras de laços sociais que os ligam a instâncias fundamentais da socialização: o Estado, o trabalho, a família, a comunidade.

Tal como os indivíduos, também os territórios podem enfrentar processos de exclusão. Uma pequena comunidade rural, relativamente afastada dos grandes centros, hoje já não enfrenta apenas os problemas localmente sentidos, mas é afectada por efeitos cruzados de processos próximos e processos distantes, como são os da desertificação e envelhecimento, do desemprego e da pobreza, ou os da toxicodependência e insegurança.

2. Cada um constrói o seu destino

Contudo, é o próprio Ulrich Beck que, instado a pronunciar-se sobre o presente e o futuro, reconhece um lado obscuro na individualização e na globalização, mas não pode deixar de afirmar que o vaticínio desse mesmo futuro comporta pessimismo e optimismo (Beck & Beck-Gernsheim, 2003, p. 355). A noção de risco não deve ser apenas percepcionada como ameaça, surgindo igualmente como oportunidade. Numa sociedade de incertezas diárias, ao mesmo tempo profundamente destradicionalizada e atingida por crises de sentido, a tónica recai sobre o impulso crescente – uma obrigação mesmo – a que cada indivíduo tome uma posição activa face às condições da sua existência. A identidade individual transforma-se, progressivamente, num projecto reflexivo, de reflexividade sobre as seguranças do passado e as inseguranças do presente e do futuro, a partir da resistência, da criação de alternativas e da conquista de autonomia.

Já Pierre Bourdieu, através do conceito de habitus, havia dado ênfase ao modo como, movendo-se em distintos campos, cada indivíduo é confrontado com a necessidade de engendrar respostas para si e para os outros. Constrói-se, assim, uma certa forma de pensar o mundo, reflexo de um contexto cultural partilhado, que permite ao actor social economizar reflexão na acção. Trata-se de uma reflexividade pragmática traduzida no que Bourdieu designa por “ajustamentos rotineiros das estruturas subjectivas e das estruturas objectivas” (Bourdieu, 1992, citado por Fernandes, 2009, p.156). Contudo, num cenário em que essas estruturas objectivas estão fragilizadas, o Estado não consegue assegurar a integração cultural e social dos cidadãos e outras instituições sociais como a família, a escola o mercado ou a sociedade civil emitem sinais de insegurança, é exigida aos indivíduos uma contribuição mais activa, decidindo eles entre amplas gamas de opção, planificando a longo prazo, adaptando-se, improvisando. As oportunidades, os perigos, as incertezas e as decisões que antes eram geridos em grande medida no seio da associação familiar ou da comunidade rural, são agora fruto de gestão individualizada. Se podemos aceitar a ideia de José Machado Pais, segundo a qual os horizontes de reflexividade individual continuarem estreitamente dependentes da reflexividade inerente ao habitus (2007, p.29), também nos parece pertinente a concepção veiculada por autores como Paul Sweetman, Lisa Adkins ou Lois McNay, de acordo com a qual os “tempos de crise” incrementam a possibilidade de reflexividade. Para a última autora, as crises são sinónimos de crescente movimento entre campos, o que pode conduzir à reflexividade (pessoal e institucional) e à mudança. Assim ocorre com a entrada das mulheres no mercado de trabalho, que cria dissonâncias nessa mesma esfera, ou com a “lucidez dos excluídos” que pode gerar resistência e negociação (Adams, 2009).

Importante para a nossa argumentação é igualmente a ideia de que a gestão activa dos percursos individuais não deixa de ser feita no seio de comunidades onde se estabelecem laços interpessoais, mas com a distinção fundamental de que são cada vez mais laços de significado e não de pertença. Até porque os temas do desencanto do mundo e da perda de sentido fazem acompanhar-se de uma crescente abertura comunicacional (Fernandes, 2009). Emancipado dos grupos de pertença originais que sobre ele se impunham, o indivíduo assume hoje a liberdade de escolher com quem se relacionar e o momento em que essa interacção se processa. Dir-se-ia mesmo um zapping identitário, na medida em que o projecto reflexivo que orienta o indivíduo na construção da sua identidade, o conduz ao estabelecimento de relações limitadas no tempo, em função de interesses e necessidades específicos, logo abandonadas quando outros desafios se impõem. Como consequência, as novas comunidades em construção – grupos de auto-ajuda, agrupamentos de bairro, sistemas de troca local, redes de troca de saberes, associações de moradores, de consumidores ou de serviços, fóruns de debate na Internet - são elas próprias “comunidades reflexivas”, de significados partilhados. Citando Scott Lash, Beck, Giddens e Lash (2000, p. 157),

Estas comunidades são reflexivas na medida em que: primeiro, uma pessoa não nasce ou é ‘lançado’ nestas comunidades, ‘lança-se’ a si mesma; segundo, elas podem estar amplamente estendidas através de um espaço ‘abstracto’, e quiçá também através do tempo; terceiro, elas, conscientemente, colam-se muito mais ao problema da sua própria criação e constante reinvenção do que as comunidades tradicionais; quarto, as suas ‘ferramentas’ e os seus produtos não tendem a ser materiais, mas sim abstractos e culturais.

Por fim, o contexto particular da exclusão e desfavorecimento sociais torna particularmente relevante ainda uma outra faceta desta reflexão / debate, a da distribuição desigual das capacidades de cada indivíduo para responder aos novos desafios da “sociedade pós-tradicional”, por sua vez associada a questões de poder e de estratificação. Se definirmos reflexividade como, entre outras dimensões, o exercício individual de uma “automonitorização responsável”, seguindo a denominação adoptada pelo autor acima citado, em que cada indivíduo é impulsionado para uma posição activa de escolha e decisão sobre a construção da sua trajectória pessoal, é forçoso reconhecer que os recursos que viabilizam essa capacidade se encontram na nossa sociedade desigualmente distribuídos. É o próprio Giddens quem o reconhece (1997, p.115):

a democracia, dialógica ou outra, tem os seus limites, limites esses que dizem sobretudo respeito à influência inoportuna da desigualdade. O diálogo não depende da igualdade material, mas pressupõe que não são usados recursos diferenciados para impedir que seja dada voz a determinadas opiniões ou para o drástico desvirtuamento das condições de intercâmbio dialógico. Um dos pontos fortes da crítica de esquerda à democracia liberal tem sido há muito a exigência de que a democracia seja articulada com programas de igualização económica.

O autor toca aqui o argumento que faz depender de condições materiais o acesso à democracia e à participação na coisa pública. Em nosso entender, contudo, uma análise destes mecanismos de desigualdade e da ultrapassagem dos seus limites passa por uma inversão dos termos da argumentação. Não se trata tanto de recursos materiais, mas de contextos psicológicos, culturais, simbólicos e relacionais (confiança, ausência de coacção, acesso ao saber e aos meios que o disseminam, identificação de direitos e possibilidades, acesso às redes de relações e colectivos que fundam a consolidação de determinadas identidades) que permitem a cada indivíduo conhecer e mover-se na amplitude das escolhas que se lhe oferecem. Para que a expansão da reflexividade e, por consequência, da autonomia do indivíduo seja um facto e um contributo para uma nova democracia, é necessário que a própria reflexividade se democratize e se torne uma capacidade acessível a todos (Monteiro, 2008). O acto de discurso ou diálogo surge como uma das formas privilegiadas dessa democratização ou “alimentação” da capacidade reflexiva, explorando as potencialidades de uma racionalidade comunicativa e de expansão da importância da esfera pública. Foi precisamente esse um dos desafios principais assumidos pela Fundação Solidários em torno da promoção de cursos EFA (Educação e Formação de Adultos).

3. Cursos EFA, primeira abordagem: “aprender com autonomia”

“As mulheres são um dos grupos desfavorecidos no que respeita à integração sócio-profissional, e marginal no que se refere ao papel activo na sociedade” (Solidários, 2003b, p.8). Reportando-se à sociedade alemã, mas numa leitura que facilmente se pode estender a outras sociedades europeias ocidentais, Beck-Gernsheim (p.117) comparou a situação das mulheres à pergunta, perante um copo com metade de líquido, se o mesmo está meio cheio ou meio vazio. Se, por um lado, os movimentos feministas recordam a persistência de desigualdades fundamentais entre homens e mulheres, por outro são inegáveis as mudanças significativas ocorridas na sua vida, em domínios como a família, a educação, o trabalho ou a participação na vida pública. “Gerações de mulheres em mudança”, reivindicam hoje uma maior liberdade para a viver “a sua própria vida”, mas continuam a debater-se com uma integração incompleta no mundo do trabalho ou com maiores obstáculos à intervenção política e cívica.

A este contexto junta-se ainda a particular situação das mulheres a quem a Fundação Solidários tem vindo a dirigir a sua acção formativa: oriundas de pequenas comunidades rurais do concelho de Sever do Vouga, distrito de Aveiro, muito isoladas devido à escassez de transportes e sentindo um elevado declínio populacional, trata-se de grupos de mulheres com uma média de idades superior a 30 anos e portadoras, à partida, de uma escolaridade ao nível do ensino básico. Geralmente casadas, dependem financeiramente dos maridos (alguns deles ausentes por emigração), circunscrevendo o seu papel principal à gestão da casa e ao trabalho nos campos da família, num cenário onde o desemprego, a sua idade e baixa qualificação dificultam qualquer alternativa em termos profissionais. Do seu discurso pessoal ressalta a desvalorização da própria imagem e da imagem da comunidade.

Como afirma José Brás, um dos responsáveis da Fundação Solidários, “ser cidadão, capacitar-se para aprender e empreender, é um caminho”. Um caminho que, na concepção patrocinada por esta organização, toma como uma das metas o “desenvolvimento de competências transversais que valorizam e (re)colocam o papel das mulheres, enquanto cidadãs responsáveis e activas no processo de decisão relativo ao seu desenvolvimento e ao desenvolvimento das suas comunidades”1. Por sua vez, o cumprimento desta meta passa por:

• Desenvolver a autonomia, a auto-estima e a auto-afirmação positiva• Revisão dos papéis da mulher

• Desenvolver as competências de tomada de decisões, negociação e motivação em grupo• Desenvolver o empreendorismo das formandas• Desenvolver as competências de aprender a aprender• Melhorar o relacionamento interpessoal com os outros: na família, na comunidade, na sociedade (Solidários, 2003ª, p.6).

• Entre 2000 e 2010, a Solidários implementou seis cursos EFA2, o primeiro deles permitindo a obtenção do 1º Ciclo e os restantes dirigidos à obtenção do 2º Ciclo do Ensino Básico, com as correspondentes qualificações de profissionais de nível 1 ou 2 em áreas como a jardinagem, a agricultura biológica ou os cuidados pessoais. Entre os diferentes cursos manteve-se estável a área geográfica de abrangência, assim como o facto de os grupos-alvo serem mulheres em situação de desemprego. Mas manteve-se, sobretudo, a aposta em alguns valores como fundamentais à formação destas mulheres. Falamos concretamente do incentivo a percursos de aprendizagem e formação pautados pelos princípios da (auto)reflexividade e autonomia.

Ensaiado desde o primeiro curso, um dos traços distintivos da acção empreendida pela equipa pedagógica tem passado precisamente pela aceitação e valorização da dimensão “reflexão” como central à acção / intervenção formativa que desenvolve. Em todo o processo de construção, implementação e revisão do plano de formação, procurou seguir-se uma metodologia onde a permanente interrogação e desafio são as vias para uma constante revisão das opções tomadas e o desencadeamento de novas possibilidades. Sucessivas auto-avaliações conferem a todos os planos de intervenção um carácter provisório. Uma reflexão (“thinking from a distance”) que, realça-se, implica não só um acto cognitivo ou cerebral, mas também intuições e emoções.

Por sua vez, se a equipa pedagógica incorpora os conceitos de reflexividade, mas também o de risco, directamente na sua forma de agir (redefinição constante, reacção, provocação, diálogo, negociação com as formandas…), tem procurado igualmente prolongar tais fórmulas para o exercício directo com as formandas. Tal é a intenção expressa:

Esta orientação para o formando e em função do formando, pensamos ser o combustível que vai mantendo acesa a chama da motivação, (…) Pensamos desta forma, indo ao encontro ao mundo das formandas, aos seus desejos e necessidades, ‘obrigando-as’ a tomar parte activa nos processos de decisão, ter ‘construído’ uma espécie de antídoto contra o desinteresse, tornando as formandas cada vez mais comprometidas com o seu percurso de formação. Nomeadamente quando, a meio do percurso, decidimos fazer aquilo que nós denominamos de contratualização das competências, as formandas tornaram-se muito mais afirmativas, uma vez que reflectiram, reconhecendo aquilo que já sabiam, e muito mais participativas e empenhadas, uma vez que foram elas que decidiram e que disseram quais as competências que queriam ainda desenvolver (Solidários, 2003ª, p.10).

O momento de “contratualização das competências” foi reconhecido por todas as partes como uma das apostas-chave no percurso para atingir tais objectivos. Sobre ele se farão considerações mais detalhadas num trecho posterior3. Contudo, outros investimentos formativos contribuíram em idêntica direcção. Dos mencionáveis, sublinha-se o modo como os exercícios de avaliação das formandas se inscreveram numa lógica pela qual delas se exigia a necessidade de reflexão sobre quadros de acção alternativos e de tomada de decisões em consonância. Concretamente, a avaliação das competências na área educativa e na área profissionalizante procurou, sempre que possível, ser concretizada através da “simulação de situações de vida”, obrigando cada formanda a reflectir e a tomar decisões de natureza pessoal perante a diversidade de opções ao dispor e as tarefas a executar em consequência. Citam-se dois exemplos

• Caso 1:

As formandas são convidadas a imaginar-se jardineiras por conta própria, recebendo pedidos de instalação de relvados para três clientes diferentes, cada um formalizando um tipo concreto de pedido e disponibilizando condições específicas. Em alternativa, as formandas poderiam optar por trabalhar temporariamente por conta de outrem, na circunstância para uma empresa de jardinagem. Todas as tarefas a executar posteriormente decorrem deste primeiro quadro de decisão e sucedem-se como se de um “jogo de pista” se tratasse.

• Caso 2:

Situação apresentada: “Soube, através de uma amiga sua, que uma Fundação abriu concurso para dois lugares: um para jardineiro(a) em regime de trabalhador por conta de outrem e outro para prestador(a) de serviços de jardinagem em regime de contratação de serviços. Para se candidatar, terá que realizar um conjunto de tarefas de forma a evidenciar as suas competências como jardineira, e só então poderá formalizar a sua candidatura”. Mais uma vez, cada formanda é solicitada a mobilizar competências e a tomar decisões tendo em vista o sucesso da sua candidatura. O exercício envolve ainda conhecimentos de “jardinagem”, “linguagem e comunicação”, “matemática” e “tecnologias de informação e comunicação”.

Reflexão sobre a natureza do problema colocado e o quadro de alternativas que se oferecem, acção autónoma sobre as decisões a tomar e as vias de resolução a percorrer, são critérios em permanente evidência nestes exercícios avaliativos ou em outros momentos da dinâmica de formação, como por exemplo a elaboração e uso de portfolios reflexivos.

O portfolio reflexivo tem sido usado como suporte para a auto-aprendizagem e auto-avaliação das formandas sobre o seu percurso de aprendizagem, ao invés da sua utilização enquanto “portfolio de competências” (Aníbal et al, 2008, p.153) ou instrumento de avaliação e validação formal do percurso formativo e das competências adquiridas. Para a sua construção tem sido seguida uma estratégia que valoriza o percurso de aprendizagem, assim como a relação próxima com o projecto pessoal e profissional4. Num primeiro momento, as formandas são convidadas a reflectir e a escrever a sua história de vida, com particular ênfase sobre as aprendizagens mais significativas decorrentes dessa experiência de vida, em diferentes domínios (social, familiar, académico, vocacional). Ilustrando-as, os textos devem ser acompanhados de certificados, fotografias, cópias de contratos de trabalho, etc.. Esta será a primeira etapa da construção do portfolio. Posteriormente, mais ou menos a meio do curso, as mesmas formandas são confrontadas com a necessidade de preparar o período pós-formação e, em consequência, é-lhes pedido que desenhem um projecto pessoal e vocacional, mas também antecipem o seu contributo para o futuro da comunidade em que vivem. Tal exercício requer de cada uma delas uma reflexão comparativa sobre a sua situação ao início do curso e as perspectivas vividas no momento em que escreve, para além do traçar de expectativas e aspirações para o futuro. Na fase final do curso EFA, as mesmas formandas são convidadas a olhar para a sua história de vida, a (re)escrevê-la outra vez e a partilhá-la numa sessão pública com as colegas, Equipa Pedagógica, família, representantes institucionais e outros agentes locais.

Como resultado, o portfolio reflexivo revela-se um importante espaço para a criatividade e para a auto-narrativa. Por outro lado, oferece potencialidades enquanto espaço de “troca de impressões e emoções” entre a proprietária do portfólio e outros interlocutores (colegas, Equipa Pedagógica, familia e restante comunidade). Por outras palavras, transforma-se numa construção conjunta e num objecto de interacção.

5. A “automonitorização responsável”

Retornamos neste ponto à obra de Beck, Giddens e Lash (2000, pp.128-129) para daí recuperar uma outra ideia-chave enunciada pelo terceiro dos autores, a de que, se os direitos de cidadania próprios da modernidade simples se concentravam na defesa da igualdade perante a lei, na garantia dos direitos políticos e sociais de que o Estado-Providência seria o principal garante, na modernidade reflexiva transformaram-se essencialmente no direito de acesso às estruturas de informação e comunicação. De igual modo, se as obrigações de cidadania iam, principalmente, para o Estado-nação, elas vão hoje para o Eu, para a “automonitorização responsável”. Desta forma, e com esta expressão, o autor faz realçar a importância que a ideia de “responsabilidade” adquire no contexto da nova ordem social.

Não é, no entanto, isenta de polémica a concepção do princípio da responsabilidade, desde logo pela diversidade de interpretações a que se propicia o uso deste conceito. Com efeito, ao primeiro olhar esta concepção surge alinhada com a visão neoliberal dos modos de governança, que associa “responsabilidade” a “imputabilidade” (responsability vs accountability) e, por consequência, a uma noção de direito que coloca tónica na visão autoritária, de resposta de cada indivíduo pelos seus actos. Perante a afirmação do princípio absoluto da liberdade individual, e a consequente retracção da intervenção do Estado-Providência (nomeadamente ao nível das políticas e programas sociais), o indivíduo torna-se o principal responsável pelo seu bem-estar e, do mesmo modo, imputável por uma eventual má gestão dos riscos e uma insuficiente auto-vigilância. Por outras palavras, associa-se o princípio da responsabilidade às noções mais vulgares de papel e obrigação.

Em contraste, outros autores transportam a leitura deste princípio para um domínio mais ético e moral. É o caso de Hans Jonas que, num raciocínio por alguns considerado particularmente interessante ao operar a distinção entre responsabilidade retrospectiva e responsabilidade prospectiva (Charbonneau & Estèbe, 2001), inscreve o apelo à responsabilidade nas gerações presentes sobre a futuro a legar às gerações vindouras. Na sua obra Das Prinzip Verantwortung, publicada originalmente em 19795, aborda de forma particular a questão dos riscos ambientais e das consequências das inovações tecnológicas em curso, para advogar que uma certa “heurística do medo” deverá ser base instrutiva e mobilizadora de auto-limitação e responsabilidade sobre os possíveis efeitos futuros do crescimento. Pouvoir ablige – no sentido estrito da obrigação moral – e o objecto próprio de uma nova concepção da responsabilidade é a possibilidade de uma perpetuação da humanidade no futuro (Sève, 1990, pp.73-74).

Mas é nosso entendimento que a leitura do conceito de responsabilidade, e do princípio que sustenta, não fica completa sem uma outra abordagem, aquela que não se situa exclusivamente sobre perspectivas individualistas e noções de direito ou éticas, mas que abre espaço a uma leitura mais relacional da ideia de responsabilidade e onde a noção de laço social não é estranha. Podemos encontrá-la traduzida como prática concreta, entre outros, na construção de parcerias em contextos de intervenção social e de promoção do desenvolvimento local. Naturalmente, não naqueles processos de negociação em que uma das partes (em muitas circunstâncias, o Estado) determina as regras, distribui os papéis e apela as outras à participação, ao “dever cívico de participar”. Mas, sim, quando a parceria configura uma congregação de esforços entre parceiros que mantêm entre si uma independência e especificidade para além da consensualização de esforços em torno de um propósito concreto, construído em comum e a para o qual procuram conjugar meios de acção.

Nesta, como em outras estruturas de interacção (por exemplo, nas actuais modalidades de relação entre pais e filhos), o quadro de responsabilidade não é definido em absoluto a priori, mas vai-se revelando gradualmente como fruto do próprio processo de interpelação mútua entre actores: que relações de poder estão em jogo, como se negoceiam as tarefas, quais as regras em construção, que modalidades de comunicação são utilizadas, como evoluem as práticas ao longo do tempo, qual o peso da parte afectiva e do sentimento de obrigação? (Charbonneau et Estèbe, 2001, p.8). Tratando-se de processos de interdependência, está a em jogo o que Michel Métayer denomina de “práticas de interpelação” (2001, pp. 23-26). Ou, para se ser mais preciso, de “práticas de mútua interpelação”, dado tratarem-se de sequências de trocas em que as funções de quem interpela (questiona ou pede) e de quem responde (pelos seus actos) se vão intercambiando. Aquele que imputa uma responsabilidade a outrem tem também, por sua vez, “contas a prestar” em função de compromissos que assumiu e que se sente mais ou menos obrigado a cumprir.

Para finalizar, importa referir que esta abordagem relacional, pragmática ou solidária, da responsabilidade não exclui as anteriores abordagens. Pelo contrário, integra-se com elas. Baseada no contributo de vários filósofos (Derrida, Blanchot ou Levinas), Stéphanie Gaudet (2001, pp.79-81) enuncia a decomposição do conceito de responsabilidade em três modalidades, que são os três movimentos de resposta: responder por si, responder ao outro, responder perante as instituições. “Responder por si” configura, por excelência, a responsabilidade de cada sujeito se individualizar, de ser ele mesmo, em suma, de desenvolver uma reflexividade que marca o que para cada um é mais ou menos importante. Por sua vez, a “resposta ao outro” é, segundo Derrida, Blanchot e Levinas, a modalidade primeira, dado o conceito de responsabilidade se colocar primordialmente em termos de laço de interdependência (Gaudet 2001, p.80). Desde logo nos inícios da vida adulta, mas também nos compromissos amorosos ou profissionais, o assumir desses compromissos para com os próximos é uma unidade forte na trajectória de cada sujeito. Se as duas primeiras modalidades pertencem sobretudo à esfera privada, existe ainda uma outra responsabilidade que liga o indivíduo às instituições. “Responder perante as instituições” está no centro do exercício de cidadania, posicionando o indivíduo perante as instituições que definem a sociedade à qual pertence.

Ora, num contexto societal complexo como se configura o da modernidade avançada, ser responsável por si constrói-se e solidifica-se na articulação reticular com outros, na resposta ao outro e às suas interpelações. De igual modo, o laço de responsabilidade que nos liga a outrem está intimamente ligado ao domínio da reflexividade e à construção de uma identidade pessoal. Ou ainda, contra o discurso da apatia, vários estudos demonstram a relação estreita entre a construção de projectos individuais, os empenhamentos próximos e o empenhamento cívico, comprometendo-se com responsabilidades prospectivas (a luta pela defesa do ambiente e o futuro do planeta, recorde-se, ela própria objecto de atenção especial no seio do cursos EFA orientados pela Fundação Solidários). Só que, porventura, de uma forma mais desinstitucionalizada, mais flexível, mais localizada no tempo e com propósitos muito concretos (Monteiro, 2004).

6. Cursos EFA, segunda abordagem: a co-responsabilização pelo futuro

Na última década do séc. XX e primeira do presente século, têm-se vindo a reforçar os esforços no sentido de contrapor às políticas individualizadas de inserção uma concepção mais colectiva da responsabilidade pelas vulnerabilidades sociais. No contexto de programas e medidas que têm procurado incorporar tais princípios, a responsabilidade face aos problemas sociais desloca-se para o nível do local, ao mesmo tempo que, pouco a pouco, se incrementa a valorização da concertação e da parceria entre os diferentes actores envolvidos. Como fazem questão de salientar Jean-François René e outros (2001, pp.125-139) descrevendo o caso concreto da experiência canadiana de inserção profissional de jovens, num espaço de “governação territorializada” traçam-se práticas de “configuração partenarial” entre Estado e organizações comunitárias “...visando a construção de uma rede de intervenção em torno dos jovens em dificuldade”.

Um dos pontos de inovação que a Fundação Solidários introduz ao nível dos cursos EFA, passa, em contraste, pelo facto de estas parcerias não se constituírem a partir de uma malha institucional que potencia “uma rede de intervenção em torno de”, mas pela aposta numa “parceria com” as mulheres. Só possível pelo investimento em torno de competências que potenciaram o empowerment destas formandas (reflexividade e autonomia de decisão; capacidade de identificação de problemas, estratégias e recursos mobilizáveis; capacidade negocial; compreensão das lógicas de concertação e trabalho em equipa), reuniram-se por esta via condições para uma resposta capaz das formandas aos desafios decorrentes do envolvimento numa prática de parceria. O esforço de inserção traça-se na junção entre responsabilidades individualmente assumidas e quadros de responsabilidade colectivamente partilhados. Num tal contexto, a parceria funciona como um catalizador das responsabilidades.

Em termos concretos, iniciativas como a “contratualização de competências” ou a apresentação de um “projecto social e profissional” associado ao portfólio reflexivo, são entendidas como vias para fazer ir mais longe o empenhamento responsável das formandas no traçar do seu próprio destino, assumido no seio da equipa pedagógica como um dos objectivos primordiais a atingir. Descrevendo sinteticamente o processo de “contratualização de competências” (Monteiro, 2008), este visa o reconhecimento pelas formandas das competências já detidas e a tomada a consciencialização acerca das que elas julgam precisar ou querem vir a desenvolver até ao final do percurso de formação6. O procedimento inicia-se pela apresentação, por parte de uma mediadora, de um documento sumariando “situações de vida” e competências a elas associadas (“ocupação profissional”, “Eu”, “Eu e os outros”), a partir do qual cada mulher reflecte e identifica competências já possuídas e outras a adquirir. Em entrevista pessoal com a mediadora é, na base da auto-análise desenvolvida, clarificado um percurso individualizado de formação. Finalmente, o documento “O meu percurso de formação”, no qual designam as competências que pretendem vir a adquirir até ao final do curso, é publicamente partilhado com as outras formandas, a equipa pedagógica e alguns representantes institucionais.

Todo este processo implica um significativo esforço de auto-reflexão e auto-determinação por parte de cada uma das mulheres, na definição de um percurso individualizado de formação que a equipa pedagógica se compromete em parceria a respeitar e a implementar. Mas, de forma igualmente clara, é por esta via estabelecido um patamar de co-responsabilização, pelo qual se negociam metas concretas e se assumem em conjunto compromissos para as atingir.

Notas finais: sucessos e limites da acção educativa

Na sua obra mais recente, La société du malaise, Alain Ehrenberg explora aquelas que considera serem duas significações sociais para o conceito de autonomia: a autonomia como condição e a autonomia como aspiração. A primeira das mesmas, apoiada na herança puritana da cultura americana, encara o indivíduo como um sujeito que se auto-governa e deve ser livre nas suas escolhas e na prossecução da sua realização pessoal. Remete para a capacidade do indivíduo para gerir as condições da sua independência, entender as oportunidades, mobilizar o seu potencial e entrar em competição como em cooperação. A segunda, a da autonomia como aspiração, identifica-se sobretudo com o ideal republicano francês e é sobretudo uma reivindicação de emancipação. Nesse sentido, invoca sobretudo o lado político da autonomia, ou seja, faz depender a autonomia da acção do Estado e da capacidade deste para gerir uma igualdade de protecção a todos os cidadãos.

Pelas razões já invocadas ao longo do presente texto, compreende-se facilmente que a nova ordem social em vigor, marcada pelo risco, pela individualização dos percursos de vida, pelos ideais de competição e cooperação, assim como pela generalização dos próprios valores da autonomia, afasta cada vez mais o conceito de autonomia do seu único significado enquanto aspiração política, para o estabelecer como condição de vida e, mesmo, de sobrevivência social: “A autonomia tornou-se a nossa condição, mas à autonomia-independência veio juntar-se a a autonomia-competição” (Ehrenberg, 2010, p.36). Pelo que se torna amplamente pertinente a questão colocada por Robert Castel, gerada ela própria a propósito de uma análise crítica da obra de Ehrenberg: “quais são as condições necessárias para que a autonomia possa vir a ser verdadeiramente uma autonomia como condição?” (2010, p.10).

A resposta avançada por Castel é de que o indivíduo precisa de protecções para salvaguardar a sua independência e o exercício da autonomia, em particular aqueles que carecem de um mínimo de recursos e de direitos para poderem ser independentes de facto. Sob pena de à fragilização dos laços sociais e ao espectro da exclusão se somar um abandono do indivíduo à sua sorte, numa sociedade cada vez mais competitiva e gestionária. Nesse sentido, a defesa do direito, da igualdade de protecção e do papel regulador do Estado continuam a ser condições necessárias para “fazer sociedade”. Uma resposta com a qual Ehrenberg genericamente concorda, mas à qual acrescenta uma outra dimensão: a de que a natureza das desigualdades de hoje implica uma responsabilidade pessoal na medida em que, nas economias do conhecimento, a igualdade de oportunidades depende das próprias capacidades relacionais e cognitivas do indivíduo, na linha do que já haviam afirmado Amartya Sen e Esping-Andersen. Esta situação implica o desenvolvimento de “práticas consistindo em ajudar os sujeitos a ajudarem-se a si próprios”, devolvendo-lhes o poder de agirem e tomarem decisões sobre o seu próprio futuro. Ou, por outras palavras, promovendo o empowerment dos desfavorecidos.

Olhando para a experiência desenvolvida pela Fundação Solidários no quadro da dinamização de cursos de Educação e Formação de Adultos, a principal conclusão que daí se extrai é a de que esta organização tem procurado interpretar a autonomia como uma “condição” necessária à vida daqueles que sofrem a experiência de uma não plena inclusão na sociedade portuguesa. E, para tal, faz uso da Educação como via para promover essa inclusão social e “preparar as formandas para a vida, de modo a que se tornem autónomas e se adaptem aos vários contextos”. Responsabilidade individual pela determinação do seu próprio percurso de formação e pelo estabelecimento de metas de vida, co-responsabilidade (em parceria, entre formandas e equipa pedagógica) pela garantia de procedimentos adequados à consecução de tais metas, foram princípios (a par dos já invocados, autonomia e auto-reflexão) em que os intervenientes nestas iniciativas de Educação e Formação investiram particularmente, e sobre os quais todas as avaliações reconhecem terem sido atingidos resultados inovadores.

Contudo, existe no seio da Fundação Solidários a permanente noção de que o ensaiado é sempre provisório e de que cada público, cada situação de exclusão, exige novas experimentações e sucessivas avaliações críticas. Ainda que sempre pautadas pelos valores que conferem à Educação um carácter emancipatório. Ou, como nos lembra Licínio Lima, a concepção de uma educação permanente caracterizada pelo diagnóstico crítico do mundo social, a compreensão dos obstáculos e imaginação das possibilidades de transformação ”dificilmente poderá deixar de reconhecer, humildemente, a desproporção entre a grandeza dos seus objectivos e a limitação dos seus meios e capacidades.” (2010, p. 51).

 

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Notas

1Citação retirada do folheto de apresentação da Sessão Final do curso “(Des)envolver Competências”.

2“Os cursos EFA preparam cidadãos com idade igual ou superior a 18 anos, que abandonaram prematuramente o Sistema de Ensino, não qualificados ou sem qualificação adequada e que não tenham concluído a escolaridade básica de 4, 6 ou 9 anos, permitindo a obtenção dos 1.º, 2.º ou 3.º Ciclo do Ensino Básico, associados a uma qualificação profissional de níveis 1 ou 2, numa óptica de dupla certificação escolar e profissional.” (http://www.iefp.pt/Formacao_Profissional/Mod_EFA.htm).

3Vide ponto 6 deste texto.

4Vide Monteiro, Gomes e Herculano, 2010, onde se produz uma análise mais pormenorizada do uso deste instrumento pela Fundação Solidários.

5 Tradução francesa: Jonas, H. (1990). Le principe responsabilité: une éthique pour la civilisation technologique. Paris: éditions du Cerf.

6Para um melhor conhecimento dos procedimentos desenvolvidos, consultar os documentos “(Des)envolver Competências – que competências adquirir…” e “(Des)envolver Competências – Roteiro Aprender com Autonomia”, editados pela Fundação Solidários.