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Revista Lusófona de Educação
versão impressa ISSN 1645-7250
Rev. Lusófona de Educação no.20 Lisboa 2012
A construção da cidadania participativa através da educação
Edifying a participative citizenship through education
Emilio Lucio-Villegas*
*Doutor em Educação pela Universidade de Sevilha (Espanha). Diretor da Cátedra Paulo Freire e membro do Steering Committee da Sociedade Europeia de Investigação na Educação de Adultos desde 2008.
elucio@us.es
Resumo
Neste artigo procuro discutir as relações entre educação, neste caso particular entre educação de adultos, e participação, enquanto caminhos e formas de cidadania. Parto do pressuposto de que a participação e a cidadania estão inter-relacionadas: os indivíduos só são cidadãos de pleno direito se tiverem possibilidades de participar na res publica. Abordo igualmente a Investigação Participativa enquanto metodologia de desenvolvimento do processo de participação. De seguida, apresento quatro experiências relacionadas com o Orçamento Participativo adoptado na cidade de Sevilha. O final deste artigo inclui algumas conclusões que destacam as tensões e as contradições que emergem dessas experiências.
Palavras-chave: educação de adultos; cidadania; participação; orçamento participativo.
Abstract
In this article I try to explore relationships between education – in this case adult education – and participation as a way and a form of citizenship. My departure point is that both participation and citizenship are closely linked each other: people can only be citizen if they are the possibility to participate in public business. I present Participatory Research as a methodology for developing participatory process. After that I present four micro experiences related to the practice of Participatory Budget in the city of Seville. At the end of the article are presented some conclusions to explore tensions and contradictions derived from these experiences.
Keywords: adult education; citizenship; participation; participatory budget.
Introdução
Pensar em participação é pensar sobre democracia, especialmente em países como o meu, com um passado recente, obscuro e sombrio abalado por uma ditadura sangrenta.
Na primeira linha da primeira página da introdução de um livro sobre a figura de John Dewey, Virgínia Guichot afirma: "Falar de democracia é falar de justiça social" (2003, p. 17). A obra de John Dewey é fundamental para entender toda uma corrente de pensamento – sobretudo anglo-saxónica – e de ação relacionada com a construção de uma sociedade e de uma escola mais justa, democrática e participativa. Talvez um dos principais representantes desta corrente, que a relaciona com a cultura e a educação de adultos, tenha sido o pensador galês Raymond Williams.
Curiosamente, esta é uma viagem de ida e volta. Como observa Devine (2003), grande parte da filosofia liberal norte-americana constrói-se graças aos mestres escoceses que trabalham nos primeiros colleges e universidades e que se formaram no chamado Iluminismo Escocês. É daqui que deriva grande parte da filosofia que considera, como disse Dewey, que a democracia é um estilo de vida para ser vivido – partilhado – e não apenas ensinado.
Gaventa (2006) fala de quatro tipos de participação: a) participação a partir da base, como as lutas dos excluídos, claramente relacionada com o trabalho de Freire e de Fals Borda nos países da América do Sul e em África; b) participação dos beneficiários dos projetos, que se relaciona com os processos de desenvolvimento dos anos 80, com o trabalho das ONGs e com um determinado discurso a que eu chamo missionário/imperialista; c) os processos participativos que visam comprometer as pessoas interessadas em fazer o que deseja o Banco Mundial ou o FMI, um tipo de participação ligado ao anterior; d) finalmente, a participação como exercício dos direitos de cidadania que fala de direitos, de cidadania, de políticas, e não de beneficiários, de oportunidades – novas ou antigas. É a este último tipo que me referirei a partir de agora, focando a minha atenção na cidadania como referente de participação.
A ideia central do meu argumento é que este tipo de processos é imprevisível. Os mecanismos que desencadeiam e são accionados quando implementamos processos participativos são tão importantes e de um enredo tão vasto, que se torna muito difícil poder, ou até mesmo imaginar, como será a realidade quando esses processos avançam e conquistam novos domínios de liberdade e de democracia.
Toda esta dinâmica ocorre dentro de um quadro que é, em grande parte, percorrido por processos educativos. Portanto, os contributos da educação e da educação de adultos na esfera da educação formal, mas também da não formal e informal, são essenciais e muito esclarecedores para as metodologias e processos que estão em jogo para a construção da luta cultural e educativa que pressupõe a construção de um tecido social rico e dinâmico, que ajude as pessoas a sair do silêncio.
A partir destas premissas, explico, no ponto seguinte, como concebo a participação e a construção da cidadania que, parafraseando Dewey, seria um estilo de vida.
Sobre a cidadania e a democracia
A condição de ser cidadão – nunca cidadã – começa, tal como a conhecemos no Ocidente, com a Grécia Antiga, na Atenas de Péricles, e continua durante o Império Romano. A condição de cidadania tem estado sempre associada à exclusão de outras pessoas que não eram cidadãs – no caso da antiguidade clássica, os escravos, as crianças e as mulheres. Este é um dos ensinamentos que podemos tirar de uma leitura moderna da História do Declínio e Queda do Império Romano de Gibbon (edição espanhola 2004): o Império criou uma diversidade de situações de cidadania na qual algumas pessoas tinham plenos direitos e outras estavam privadas, até certo ponto, ou na sua totalidade, destes mesmos direitos, o que não só gerava diferenças entre aqueles que eram cidadãos romanos e os que não o eram, mas também entre as diferentes classes de cidadãos.
Heller e Thomas Isaac (2003) consideram que a cidadania – para além de um direito – é também uma forma de relacionamento. Assim, estes autores entendem que a cidadania não é só um direito político, mas, mais do que isso, exige uma equidade nas relações nas quais se enquadra, porque o exercício das mesmas, tal como no Império Romano, é subvertido pelas diferenças sociais. Desta forma, continuam os autores, o pleno exercício da cidadania e as novas relações sociais que ela acarreta, trazem de novo para a arena política indivíduos que estavam excluídos ou marginalizados, no que que Mohanty e Tandon (2006) têm chamado de Cidadania Participativa.
Williams, tal como antes Gramsci, considerava que um aspeto fundamental para a educação era o das representações culturais: o rascunho, por assim dizer, que nos fazem da realidade. Esta realidade, marcada e construída para pensar de uma certa maneira, encontra-se nas construções simbólicas que delimitam toda a realidade e as relações entre as mulheres e os homens. Williams assinalava-o claramente:
Creio que o sistema de significados e valores que a sociedade capitalista gerou tem de ser derrotado em geral e no particular através de uma forma de trabalho intelectual e educacional sustentado. Este é o processo cultural a que chamei de 'Longa Revolução' e, quando o chamo de 'Longa Revolução', quero dizer que é uma luta genuína que faz parte da batalha necessária pela democracia e pela vitória económica da classe operária organizada (cit. por McIlroy & Westwood, 1993, p. 308).
Conforme Hardt e Negri (2005) afirmam, um dos elementos essenciais da atual situação social, que eles denominam de Império, tem que ver com a exploração que envolve toda a vida social e pessoal, toda a vida laboral e afectiva de todos os homens e mulheres. Uma exploração que não é apenas física, como no caso da escravatura, que não é unicamente económica, como no caso das sociedades fordistas tradicionais, mas é sobretudo alienadora da capacidade de criação que as mulheres e homens possuem. O Império cria-nos, diz-nos como havemos de nos reproduzir, para depois nos dizer como havemos de morrer - mesmo em vida. E, com certeza, apresenta-nos uma determinada visão daquilo que é e supõe ser cidadão: uma espécie de etiqueta sem direitos.
Esta construção é baseada numa certa relação de poder e é, portanto, desigual – já vimos antes que a cidadania é, de alguma forma, uma relação que deve ser de equidade. Fejes e Nicoll (2008) reúnem uma série de trabalhos cujo elemento comum é a ligação entre algumas das ideias de Foucault e as teorias – e sobretudo as práticas – da aprendizagem ao longo da vida. Em consonância com o que estamos apresentando, podemos assinalar algumas questões. A primeira tem a ver com a afirmação de Rose:
O novo cidadão é solicitado para fazer parte de um trabalho incessante de treino, formação e reformação, desenvolvimento e reforço das ferramentas, melhorando as suas credenciais e preparando-se para uma vida de incessante procura de emprego: a vida torna-se numa capitalização constante do Eu (cit. por Edwards, 2008, p. 29).
Desta forma, a educação não só se torna uma mercadoria, como também o biopoder faz com que a educação se torne uma mercantilização da própria pessoa. A aprendizagem individualiza-se, torna-se num motivo de concorrência e não de cooperação, um conceito centrado naquilo que a educação deve ser e não aquilo que as pessoas e as colectividades desejariam que fosse.
Este comando imperial constrói-se e mantém-se – entre outras formas – por meio daquilo que Fejes e Nicoll (2008) denominam de confissão. Tomando como exemplo o modelo sueco, estes autores explicam como é moldada a subjectividade de acordo com este modelo. Qualquer adulto que pretenda aceder a processos de educação, deve reunir-se com o seu conselheiro educativo para discutir questões como: Que tipo de educação? Em que lugar? Com que organizador educativo? Quantas horas por dia? Deste modo, a partir desse processo de confissão, a subjectividade da pessoa é moldada, criada e recriada. Assim, as formas de cidadania estão sujeitas às pressões homogeneizadoras de um sistema de cidadania que às vezes não é coerente com as formas tradicionais de organização comunitária (Avritzer, 2003).
A esta luz, a cidadania e as formas de democracia participativa convertem-se de desconhecidas (ou demasiadamente conhecidas para alguns) em perigosas, já que estão e se constroem – segundo o esquema de significados hegemónicos – sobre formas estranhas que não estão relacionadas com o ideal de democracia.
Portanto, para concluir este ponto, será interessante destacar a diferença que Torres (2005), de acordo com McPherson, propõe entre democracia como método -representação política, separação de poderes, etc. - e democracia como conteúdo -participação política nos assuntos públicos, direitos para todos, etc.
A substância parece, neste caso, o conteúdo da democracia.
A Investigação Participativa como metodologia
Hall entende que é necessário recuperar o ethos participativo (2001). Isto significa que a participação torna-se num elemento prioritário e distintivo. Não pode haver Investigação Participativa (doravante IP) sem participação. Isto pode parecer redundante – de facto é – mas a experiência mostra que, em muitos casos, e sob a égide de qualquer denominação, se diz uma coisa e se faz outra. Tal é o caso de algumas práticas participativas nas quais a execução não é participada, caindo inteiramente nas mãos dos técnicos. E a própria participação em si é regulamentada, compartimentada para certos momentos e não é, como se pretende com o ethos participativo, uma actuação feita sob outros parâmetros, ideias e concepções.
Para nos situarmos, seria necessário um breve olhar sobre as principais definições e caracterizações da IP que duas figuras indiscutivelmente marcantes pela sua trajectória propuseram: Fals Borda e Hall. Será igualmente relevante discutir as conexões com a educação popular que cientista sociais como Souza realizaram.
Para Hall (1981, 2001), a Investigação Participativa pode ser definida da seguinte forma:
• O problema surge na comunidade, que o define, o analisa e o resolve.
• O objetivo final da investigação é a transformação radical da realidade social e a melhoria da vida das pessoas envolvidas. Os beneficiários da investigação são os próprios membros da comunidade.
• A Investigação Participativa exige a participação plena e integral da comunidade durante todo o processo de investigação.
• A Investigação Participativa abrange toda uma série de grupos de pessoas despojadas de poder - explorados, pobres, oprimidos, marginalizados, etc.
• O processo de Investigação Participativa pode suscitar nos que intervêm uma melhor tomada de consciência dos seus próprios recursos e mobilizá-los com vista a um desenvolvimento endógeno.
• Trata-se de um método de investigação mais científico que a investigação tradicional, no sentido em que a participação da comunidade facilita uma análise mais precisa e autêntica da realidade social.
• O investigador aqui é um participante comprometido que aprende durante a investigação, adoptando uma atitude militante e evitando refugiar-se na indiferença.
Por outro lado, Fals Borda (1986) também delineia uma série de características para a IP, referindo quatro em concreto:
• A pesquisa é coletiva. Todos os processos de investigação são realizados pelo grupo de forma dialógica.
• É um processo de recuperação crítica da história.
• Valoriza, particularmente, o uso da cultura e dos saberes populares.
• Procura produzir e difundir novos conhecimentos, desde a convicção de que existe uma forma de produção alternativa ao conhecimento científico tradicional.
Queremos destacar alguns elementos. O primeiro é que a investigação é coletiva, ou seja, o seu método só pode ser aquele que é dialógico e que se fundamenta na colaboração e cooperação entre as pessoas.
Outro elemento importante tem a ver com a criação de conhecimentos. Nesse sentido, Souza (2006) interroga-se: Que conhecimento produzir? Para quê produzi-lo? Esta questão sobre o conhecimento – por vezes esquecida – é muito importante, uma vez que nos liga, entre outras coisas, à educação popular. Novamente Souza (2006) nos questiona acerca da necessidade de que o conhecimento produzido e as acções empreendidas sirvam para mudar as relações sociais em que vivemos e que nos permitam construir determinados tipos de relações de cooperação contrárias às dominantes competitivas. Essa abordagem de Souza relaciona-se, por exemplo, com a obra de Williams no que concerne à importância da batalha cultural que a escola deve estabelecer – e não apenas a escola – para alterar as relações sociais com que nos deparamos, e o papel que nesta batalha desempenha a educação em geral e a de adultos, em particular.
O contexto de atuação e algumas práticas concretas 2
As práticas que iremos apresentar derivam do trabalho por nós realizado entre Novembro de 2005 e Dezembro de 2007, na cidade de Sevilha. Estas foram possíveis graças a um acordo entre o Instituto Paulo Freire de Espanha (doravante IPFE) e a Câmara Municipal de Sevilha, e em particular com a área de Participação Cidadã, que era a responsável pela implementação dos Orçamentos Participativos.
O primeiro a observar são as causas que levaram a esse acordo. A ideia central era a de que as pessoas tinham grande dificuldade em entender o que acontecia nas assembleias onde se deliberava e onde se tomavam as decisões relativas à distribuição financeira que era objeto da decisão popular. Assim, o primeiro problema que se enfrentava era um problema de formação para participar. A dificuldade das pessoas para a participação vinha limitada por uma certa forma de analfabetismo. Nesse sentido, entendemos que os ensinamentos derivados do modelo de Kerala (Heller & Thomas Isaac, 2003, Thomas Isaac& Franke, 2005) são muito estimulantes.
O programa de formação que tentámos construir era dirigido a adultos. É importante notar aqui que desde há muito tempo as escolas de educação de adultos têm sido uma referência fundamental nos bairros da cidade, já que têm exercido não só um trabalho educativo dentro das escolas, como também um trabalho de dinamização cultural e comunitária nos bairros. Era esta uma vertente importante para trabalhar no terreno da democracia e da cidadania.
Finalmente, é de referir que Sevilha é a quarta cidade do estado espanhol em número de habitantes, capital da Comunidade Autónoma de Andaluzia. Só para fornecer um dado relacionado com a educação, com informações da própria Câmara Municipal da cidade, podemos afirmar que a taxa de analfabetismo – absoluta e funcional – ultrapassa 50% da população. Obviamente, isto cria uma situação muito complicada no momento de implementar qualquer proposta democrática. Além disso, como observado por Santos (2003) no caso de Porto Alegre, parece haver um processo de complexificação das regras de participação ao mesmo tempo que a democracia directa se aprofunda.
Dentro deste contexto que temos definido, apresentaremos quatro práticas específicas: a primeira está relacionada com a reivindicação organizada de um grupo de mulheres numa escola de educação de adultos; a segunda, com práticas contra-hegemónicas ligadas a um grupo de pessoas idosas na procura da habitação que nos colocou na situação contraditória de estar 'no e contra o Estado'; e finalmente, as propostas de formação realizadas no âmbito formal das escolas de adultos e do não formal dos Movimentos Sociais, que resultaram na elaboração de materiais didácticos.
O elevador da escola de educação de adultos 'Polígono Norte'.
Neste primeiro exemplo podemos ver a estrutura organizativa de um grupo de mulheres que reivindicava um elevador para poder ir às aulas. É importante um esclarecimento: muitas das escolas para adultos estão localizadas em centros escolares para crianças e jovens e partilham essas instalações. Não partilham necessariamente as piores instalações, embora em muitas ocasiões o processo de partilha seja bastante complicado. Por outro lado, em Espanha existem ainda lacunas significativas quando se trata de adaptar os espaços e edifícios a pessoas com algum tipo de deficiência motora. E, como último ponto, as pessoas mais velhas têm – como é lógico – alguns problemas de mobilidade que as crianças e jovens normalmente não têm. O Centro a que nos referimos é um centro partilhado, onde grande parte das salas de aula utilizadas pelos adultos se situam no primeiro e segundo andares.
Por outro lado, o início do trabalho com este grupo foi bastante problemático. Durante os primeiros encontros estabeleceram-se várias limitações ao trabalho que derivavam da interpretação do objetivo estabelecido pela trabalhadora do IPFE, que, segundo as mulheres, consistia em unicamente sensibilizar o grupo para a dinâmica dos Orçamentos Participativos. Perante esta situação, as suas palavras exactas foram: Não temos nada com isso, já nos basta a Associação e os problemas do bairro. Depois de clarificar a função do seu papel e as suas preocupações, a trabalhadora teve de dedicar várias sessões ao reconhecimento de todos os problemas que afectavam as pessoas, colectivamente, e determinar assim as soluções adequadas.
Um dos principais obstáculos manifestava-se na escassa participação que era notória entre as pessoas e as dificuldades existentes para que se envolvessem em atividades do Centro. Começaram-se a analisar colectivamente quais as causas possíveis dessa falta de participação, chegando a algumas conclusões: a acomodação das pessoas, as excessivas facilidades oferecidas pela direção e a não-leitura dos painéis informativos.
Mas o objetivo de grande parte da actividade deste grupo de mulheres tinha-se forjado nos anos de luta por um elevador no Centro. Este foi, a partir desse momento, o eixo da actividade e do trabalho do grupo de mulheres acompanhado pela trabalhadora do IPFE.
Vamos analisar o processo, centrando-nos nas sete etapas que definimos anteriormente, referindo-nos ao IP.
• O problema surge na comunidade, que o define, o analisa e o resolve. Neste caso, o problema (a necessidade de um elevador) é definido pelas mulheres envolvidas no projecto. Elas reflectem sobre a sua realidade mais próxima e descobrem que um dos principais obstáculos que as pessoas têm para frequentar a escola, tem a ver com a dificuldade de se movimentarem dentro do mesmo. De alguma forma, as mulheres substituem um modelo individual de deficiência por um modelo social (Oliver, 1990).
• O objetivo final da investigação é a transformação radical da realidade social e melhoria de vida das pessoas envolvidas. Os beneficiários da investigação são os próprios membros da comunidade. O elevador vai permitir que as pessoas vão à escola. Trata-se, portanto, de um benefício geral para a comunidade, constituída, neste caso, pelas pessoas que fazem parte, ou querem fazer parte, da Escola de Educação de Adultos.
• A Investigação Participativa exige a participação plena e integral da comunidade durante todo o processo de investigação. Neste caso, envolveu o empenho e a participação de pessoas, desde a construção social das necessidades até à apresentação da proposta às assembleias distritais.
• A Investigação Participativa abrange toda uma série de grupos de pessoas despojadas de poder - explorados, pobres, oprimidos, marginalizados, etc. O Polígono Norte é um bairro da periferia da cidade. É um meio socioculturalmente pobre, com elevadas taxas de desemprego, analfabetismo, etc. Tem, nalgumas das suas zonas, uma alta percentagem de imigrantes. A tudo isto se deve acrescentar que as pessoas mais envolvidas nesse processo eram mulheres, geralmente donas de casa. O processo de Investigação Participativa pode suscitar nos que nele intervêm uma melhor tomada de consciência dos seus próprios recursos e mobilizá-los com vista a um desenvolvimento endógeno. No processo de elaboração e apresentação da proposta, as mulheres descobriram a sua capacidade de falar em público, de explicar aos outros os seus sonhos, realidades e desejos. Em geral, tornaram-se mais conscientes dos seus recursos pessoais e colectivos.
• Trata-se de um método de investigação mais científico que a investigação tradicional, no sentido em que a participação da comunidade facilita uma análise mais precisa e autêntica da realidade social. De alguma forma, o que as mulheres fizeram foi um processo de codificação e descodificação da realidade, a fim de conseguir uma melhor visão da mesma, bem como dos meios e dos recursos – entre eles, os municipais – que as ajudaram nos seus êxitos. O processo de investigação conseguiu alcançar o que Crowther (2006) chama de 'conhecimento realmente útil'.
• O investigador aqui é um participante comprometido que aprende durante a investigação, adoptando uma atitude militante e evitando refugiar- se na indiferença. O papel e o trabalho da investigadora externa (a trabalhadora do IPFE) são cruciais neste caso. Ela estabeleceu um forte compromisso com o grupo e sempre o acompanhou em todas as suas acções. O elemento essencial para entender tudo isto é que ela sempre partiu da situação das vidas reais das pessoas.
Finalmente queremos salientar que esta proposta foi aprovada nas assembleias – tendo sido a mais votada em todo o distrito - e o elevador já está a funcionar na escola.
Os residentes de São Bernardo na luta por uma casa digna
Sevilha, como já foi mencionado, é a quarta maior cidade em número de habitantes, e a maior do Sul de Espanha. É também a capital de uma das Comunidades Autónomas mais pobres, que, como todo o Sul, podemos considerar uma zona semiperiférica (Wallerstein, 1984). Com a Exposição Universal de 1992 e nos anos subsequentes, Sevilha sofreu um processo de especulação urbanística muito profundo, que afectou os bairros mais tradicionais e históricos da cidade: o norte do Bairro Antigo, Triana e São Bernardo. É neste processo de especulação imobiliária que se contextualiza o nosso trabalho com alguns moradores do bairro de São Bernardo, numa prática contra-hegemónica e, às vezes, contra a própria Câmara Municipal.
São Bernardo é um bairro popular, que remonta à Sevilha árabe dos séculos X e XI. Desde então, este distrito, tal como todos os outros subúrbios de Sevilha, foi povoado, maioritariamente, por trabalhadores da Andaluzia ocidental que emigravam do campo, fugindo do desemprego sazonal e da fome endémica, atraídos pela procura de trabalho na indústria e na construção. Por isso, é um bairro historicamente habitado pela classe trabalhadora que viveu perto do seu trabalho nas indústrias metalúrgicas, de grande tradição na cidade.
A maioria da população vivia em regime de aluguer e poucas eram as pessoas que eram proprietárias das suas casas. O tipo de casa, muito característico desta e de outras zonas da cidade, era chamado de pátio de vizinhos. Estas casas colectivas foram apresentadas como uma tentativa de resolver o problema da falta de habitação na cidade (Garcia Bernal, 2005). Esta solução consistia em subdividir uma casa em muitos quartos e alugar cada um deles de forma independente. Os inquilinos, assim, tinham apenas uma divisão para toda a família e partilhavam a cozinha, a casa de banho, o pátio – um local importante por significar o espaço de reunião dos vizinhos – e o acesso à água. Este tipo de habitação manteve-se até aos dias de hoje, marcando uma forma específica da vida e da identidade das pessoas.
Com o crescimento da cidade para a zona leste, este subúrbio, uma área muito próxima do centro de Sevilha, tornou-se num local desejável como residência da burguesia. O processo de gentrificação começou por altura da Exposição Universal de 1992. Os interesses desenvolvidos, durante os anos 80 e 90 do século passado, destruíram quase totalmente a composição social do bairro. Isto por causa do envelhecimento da população e dos edifícios, bem como porque os despejos são possíveis e baratos, com sucessivas declarações de edifícios em ruínas. O trabalho de revitalização que alguns moradores começaram a desenvolver no bairro levou à formação de um grupo chamado Assembleia de Moradores São Bernardo 52. É este grupo o responsável pela ocupação de um edifício de habitação social construído pela Câmara Municipal que estava então desabitado. É com este grupo que o IPFE tem trabalhado.
O trabalho do IPFE procurou relacionar elementos de reflexão para ajudar as pessoas a pensar naquilo que significa ser cidadão – o acompanhamento das práticas do grupo e o apoio – com as ferramentas necessárias, para que o grupo pudesse expressar a sua voz. Este último trabalho foi estreitamente relacionado com a chamada alfabetização cinza. Portanto, o trabalho realizado consistiu, em primeiro lugar, em apoiar as tarefas diárias do grupo em São Bernardo. Isso implicou, em certas alturas, a ajuda para escrever cartas à Câmara Municipal, escrever aos jornais e para redigir os acordos feitos pelo grupo. No entanto, o trabalho mais interessante e desafiante realizado foi o início da recuperação oral da história do bairro.
Nós acreditamos que a recuperação desta história lhes permitirá expressar a sua palavra e situarem-se no contexto do seu próprio processo histórico. Todo o processo está a ser realizado por meio de entrevistas e, desta forma, esperamos que os próprios moradores – que já o têm vindo a fazer – possam ir construindo os elementos históricos de resistência face ao processo de gentrificação. Este processo está a ter um impacto cultural - não apenas urbano – no quotidiano das pessoas. Para terminar, vejamos um exemplo deste impacto.
A mudança de moradores do bairro significou a perda da cultura popular e da identidade de classe que o bairro tinha, que estava muito delimitada pela própria estrutura urbana – pátios de vizinhos – que eram, de alguma forma, potenciadores da comunicação e interacção social. Neste sentido, é habitual que nas noites de verão os moradores ponham cadeiras na rua, bebam alguma cerveja, se calhar, vinho, comam algo e passem duas ou três horas de convívio e partilha. Um morador novo – obviamente, alienado das tradições da classe trabalhadora nos bairros populares da cidade – denunciou no tribunal essa prática como anti-social e nada saudável. Portanto, os residentes confrontam-se agora com o desafio de manter os seus costumes tradicionais – que revelaram ser muito úteis quando não se tem ar condicionado para combater o calor tórrido do Verão de Sevilha.
Os materiais de trabalho sobre a Participação Cidadã
Os trabalhos específicos de formação foram levados a cabo em duas direcções principais. Durante o primeiro ano de vigência do acordo, um dos objetivos foi o de elaborar materiais que permitissem trabalhar a participação e a cidadania ligadas às tarefas diárias das aulas de educação de adultos e que se aprofundasse, ao mesmo tempo que a democracia, o domínio das ferramentas para viver em sociedade: leitura, escrita, cálculo e capacidades de comunicação, entre outras. O resultado de tudo isso foi um trabalho intitulado Educando en Ciudadanía desde, por y para la participación (disponível em www.institutopaulofreire.org no endereço de publicações e registado livre de direitos para que possa ser utilizado livremente por todos os interessados). O material didático está organizado em três secções principais:
• O meu ambiente e eu. Tenta-se, com este ponto, incentivar as pessoas a reflectir sobre as suas necessidades. As necessidades são construções sociais que as pessoas vão fazendo no processo de tornarem-se mais conscientes da sua própria realidade. Na verdade, podemos dizer que a construção das necessidades permite às pessoas descobrir quais são os seus direitos relativamente ao seu ambiente envolvente, constituído pelo seu bairro.
• Mais do que uma palavra. Os sonhos podem ser alcançados. Podem ser trocados por realidades através da participação. Dessa forma, pode-se acabar com a sensação de solidão e insegurança, conhecer os recursos que permitam e facilitem a possibilidade de alterar o estado da nossa realidade actual.
• Orçamentos Participativos. É muito importante proporcionar às pessoas uma maneira de responder às suas reivindicações de forma colectiva. Neste sentido, os Orçamentos Participativos apresentam-se como uma oportunidade e um desafio à participação.
A Escola Participativa e Cidadã
Durante o segundo ano ampliámos o âmbito, delineando um novo trabalho de formação ligado, de uma maneira mais profunda, aos Movimentos Sociais. A ideia fundamental era a de estender a formação a um âmbito não formal e poder aproveitar o potencial reivindicativo e formativo do movimento associativo da cidade. Isto é muito importante uma vez que permite que os cidadãos e as cidadãs passem de uma posição de beneficiários a outra bem diferente, a de cidadãos que participam nas decisões com os seus direitos e responsabilidades (Gaventa, 2006). Além disso, seguindo o padrão do chamado modelo de Kerala (Thomas Isaac & Franke, 2005), a formação torna-se num elemento estratégico que deve potenciar e reforçar o tecido social.
Esboçámos uma actividade de formação de 40 horas dirigida a pessoas que participassem em alguma associação ou Movimento Social, mas que não fossem dirigentes dos mesmos. O local para realizar a formação também era particularmente significativo: os centros comunitários que o município tem distribuído por toda a cidade e que se encontram em quase todos os bairros. É importante destacar que as últimas dez horas incidiam sobre a gestão administrativa dos projetos, e que essa distribuição do tempo da formação foi feita pelos próprios técnicos da Câmara. O esquema dos cursos era o seguinte:
• Antes do início: do sonho à construção participativa de necessidades. Novamente, visa-se insistir no processo de construção colectiva de necessidades para acabar definitivamente com o padrão tecnológico, que supõe que as necessidades estão presentes numa situação e, como os sintomas de uma doença, podem ser diagnosticadas.
• Construindo a cidade a partir da participação das moradoras e dos moradores. Reflectir sobre a construção da cidadania e da democracia participativa. Este é um ponto claramente teórico, que trata de trabalhar sobre a construção da democracia com pessoas que têm já uma significativa experiência associativa.
• Os orçamentos participativos como oportunidade: Como fazer propostas para melhorar a realidade? A destreza que nos parece essencial é converter o passado em projetos concretos que possam ser apresentados e discutidos.
• Quanto custa? Como apresentar propostas? Como requerer subsídios? Como gerir o dinheiro? Como justificar os subsídios? Esta secção é claramente administrativa e é aplicada por técnicos municipais. No entanto, entendemos que tal é crucial, já que supõe a aquisição de ferramentas práticas que possam permitir aceder a uma grande quantidade de recursos.
Ministraram-se doze cursos num trimestre. Em geral, os cursos seguiram o programa previsto. Redigiu-se um primeiro material provisório e, atualmente, desenvolve-se um material semelhante ao que explicámos acima, mas com uma diferença significativa: o elemento central é a elaboração de um projecto. Além disso, o material não tem em consideração a sua ligação com as ferramentas de lecto escritura, uma vez que se dirige a um grupo de pessoas que poderíamos considerar letradas e com maior experiência associativa, o que traz consigo a possibilidade de introduzir elementos de carácter mais reflexivo e elaborado.
Conclusões
Vamos situar as nossas conclusões nos seguintes aspectos: i) a nossa posição 'no e contra o Estado', ii) a importância da formação – mas uma determinada
formação, com metodologias também elas determinadas, iii) o papel dos agentes sociais e iv) o futuro.
A) No e contra o Estado
A experiência de São Bernardo apresenta-nos uma contradição muito importante. Trabalhámos dentro de uma instituição – a Câmara Municipal da cidade – e apoiámos os grupos e colectividades que, no seu caminho para a cidadania, se confrontaram, por vezes frontalmente, com a própria Câmara. A definição de 'no e contra o Estado' é traçada originalmente pelo London Edinburg Weekend Return Group (Crowther & Martin, 2007) para assinalar a posição contrária dos profissionais dos Serviços de Saúde, educacionais, sociais, que trabalhavam para um governo conservador – na Grã-Bretanha – e tentavam realizar práticas progressistas que ampliassem o bem-estar das pessoas.
No caso de São Bernardo, esta é claramente a nossa contradição que, no entanto, não o era, uma vez que a nossa opção pessoal e política era a de acompanhar os indivíduos e grupos (pessoas e coletividades) na construção da sua própria cidadania, ainda que isto nos confrontasse com o próprio poder. Além disso, o caso de São Bernardo é um claro exemplo de como a luta pela cidadania e pela democracia está intimamente ligada à luta por uma democracia redistributiva (Santos, 2003) e por uma maior justiça social.
B) A importância da formação
A experiência do estado Índio de Kerala tem sido um elemento de inspiração no nosso trabalho. Em suma, podemos dizer que a experiência de Kerala não pode ser entendida sem os processos de formação a ela associados. Em Kerala, a formação é um elemento estratégico na construção da democracia participativa, da democracia como conteúdo (Torres, 2005).
No nosso caso concreto, fizemos propostas de formação, mas estas têm sido acompanhadas de um certo cunho. Vejamos dois exemplos. Em primeiro lugar, no que diz respeito aos materiais Educando en Ciudadanía desde, por y para la participación, estes são baseados na experiência adquirida com o nosso trabalho nas escolas, procurando unir o trabalho diário de lecto escritura com as propostas participativas. Além do mais, não se procura proceder de acordo com uma única forma de democracia participativa – neste caso, os Orçamentos Participativos – e propõe-se a isenção de direitos de autor, para que possam ser
utilizados por todas as pessoas em todos os contextos que considerem adequados e nos quais estes materiais sejam úteis.
No que diz respeito à Escola Participativa e Cidadã, a condição para participar nos cursos – nem sempre cumprida – era a de fazer parte de alguma associação, mas não ser dirigente da mesma. Com isto pretendia-se organizar acções que envolvessem os processos de mudança no seio das próprias organizações, processos de substituição de umas pessoas por outras e criar uma dinâmica que estendesse a democracia até ao coração desses movimentos.
C) O papel dos agentes sociais
A potenciação da democracia e da participação supõe que os agentes sociais não devam ser diretivos. Delineámos um processo de acompanhamento, cujo ponto de arranque esteve sempre na posição de partida dos diferentes grupos. O caso do elevador é esclarecedor deste tipo de proposta.
A trabalhadora do IPFE não propôs, acompanhou simplesmente as pessoas pelo seu caminho para construírem socialmente as suas próprias necessidades. Primeiro, ao tentar definir quais as dificuldades que enfrentavam e, de seguida, uma vez estas identificadas, quais eram as maneiras que permitiam responder a essas necessidades. Da mesma forma, em São Bernardo, o trabalhador do IPFE acompanhou todas as moradoras e moradores no seu percurso reivindicativo, prestando a sua ajuda e colaboração quando necessárias e colocando-se sempre em segundo plano.
Entendemos que para construir uma democracia verdadeiramente participativa e relações de cidadania mais plenas, é necessário que o protagonismo esteja sempre nas pessoas e não nos agentes sociais que com elas trabalham. Caso contrário, o esforço está, na nossa opinião, condenado ao fracasso.
D) O futuro
Definir o futuro destas experiências particulares é muito complicado. O IPFE tem continuado a trabalhar com algumas das coletividades e experiências que temos aqui apresentado, embora a mudança no governo municipal produzida ao longo de 2007, e sobretudo em 2011, tenha trazido grandes alterações na estrutura de organização dos Orçamentos Participativos. Neste sentido, embora ainda seja cedo para um julgamento definitivo, acreditamos que muitos políticos profissionais parecem compreender que deve haver um maior peso partidário que acabe com as contradições de 'no e contra o Estado'. Entendem que os políticos estão preparados para atender as reivindicações e os sonhos dos cidadãos, sem contar com eles na definição de novas propostas.
Parece-nos claro que a democracia participativa não pode existir se não houver uma renúncia expressa do poder por parte daqueles que a detêm. Nesta linha de pensamento, acreditamos que outro dos elementos importantes a ser considerado será o poder dos técnicos que assumem e substituem as competências dos cidadãos e cidadãs. Estes últimos procuram fazer política escudados numa suposta racionalidade técnica que apoia os políticos profissionais, mas não pretendem obedecer aos sectores populares.
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Notas
1 Para a versão portuguesa tivemos a ajuda da Júlia Coelho e Paula Guimarães.
2 Neste trabalho têm participado, entre outros, Daniel García Goncet e Ana García Florindo.