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Revista Lusófona de Educação
versão impressa ISSN 1645-7250
Rev. Lusófona de Educação no.22 Lisboa 2012
Formação profissional contínua e qualidade dos cuidados de enfermagem: a necessidade de uma mudança de paradigma educativo
Continuous professional training and nursing care quality: the need for a change of educational paradigm
Formación Profesional continua y calidad de los cuidados de enfermaría: La necesidad de un cambio de paradigma educativo
Maria de Lourdes Varandas* & Albino Lopes**
* Doutora em Educação, Professora adjunta na Escola Superior de Enfermagem de Lisboa (ESEL)
lcosta@esel.pt
** Professor Catedrático do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa (ISCSP/UTL)
alopes@iscsp.utl.pt
Resumo
Pretendemos, compreender como é que os enfermeiros constróiem os seus saberes e os disponibilizam à comunidade, centrando-nos no papel do ensino de enfermagem e nas competências adquiridas ao longo da formação profissional. Definimos como objetivos: 1) avaliar se os profissionais de enfermagem consideram que a formação inicial se encontra devidamente orientada para a emergência das competências necessárias para serem prestados cuidados de qualidade; 2) avaliar a perceção da satisfação dos utentes com os cuidados de enfermagem; 3) identificar as diferenças que os enfermeiros e os utentes percecionam acerca da qualidade dos cuidados. O trabalho resulta de uma pesquisa multimétodo com duas linhas de estudo: a 1ª linha compreende 2 estudos, de natureza qualitativa que permitem perceber a importância da formação para a qualidade dos cuidados e a formulação do modelo inicial de investigação. A 2ª linha deste trabalho é efetuada de forma dedutiva, de carácter descritivo – transversal, com metodologia qualitativa e quantitativa que pretende avaliar a satisfação dos clientes em relação à qualidade dos cuidados e a construção de um novo modelo sobre os fatores mais relevantes para a satisfação do cliente. Os resultados identificam um conjunto de variáveis que influenciam, direta e indiretamente, a qualidade dos cuidados e a satisfação dos clientes, realçando sobretudo o estatuto da emergência das competências, em contexto organizacional, como fator mediador.
Palavras-chave: formação; enfermagem; emergência de competências; cuidar; qualidade.
Abstract
The evolution and improvement of nursing services' quality has been a constant concern both to health care professionals and the Nursing Teaching system. The training doesn't limit itself to the simple acquisition of knowledge and techniques. It requires the training process to be based on critical-reflexive pedagogical referential, contributing to foster professional skills that enable holistic care centered action. Adding to this, training should be based on a reflection about habitus and professional socialization, the transference of which takes place on real life situations, clinical teaching, according to the consistency of the models, norms and values present or acquired during the internship.
Thus, we aim to understand "what is the contribution of initial training to the patients' perceived quality? Our purpose is to understand how nurses construe their knowledge and offer it to the community. We focus on the role of nursing education and on the skills acquired in the course of continuous nurse training. Our goals are: 1) to assess whether nurses perceive the initial training to be directed towards the emergence of skills required to provide quality healthcare; 2) to assess the perception of patients' satisfaction with nursing care; 3) and to identify the differences between nurses' and patients' perceptions about the quality of healthcare.
We conducted a multimethod research with two lines of studies. The first line includes two studies: on study 1, based on a qualitative methodology, critical literature was reviewed and exploratory interviews to 17 field experts were conducted; on study 2, semi-structured interviews to 26 nurses were conducted in order to understand nurses' perception about the role of training on the quality of care.
The second line of studies is carried out in "deductive form" and intends to evaluate patient's satisfaction with healthcare. Two studies were conducted, both descriptive cross-sectional combining quantitative and qualitative methodologies. On study 1, we applied the instruments SUCEH21, to 116 customers for the CSP context, and SUCECS26. On study 2 we ran a document analysis of 94 complaints presented to the studied organizations in digital format.
The results allowed the identification of a set of variables that influence directly and indirectly both the quality of healthcare and patient's satisfaction. They also allowed the construction of the final framework to analyze the problem posed. On that framework we highlight the status of emerging competencies on organizational context as a mediating factor.
Keywords: formation; nursing; competence; caring; quality.
Resumen
Tenemos la intención de entender cómo las enfermeras construyen sus conocimientos y ponerlos a disposición de la comunidad, centrándose en el papel de la educación de enfermería y las habilidades adquiridas durante la formación.
Se definen los objetivos: evaluar si los profesionales de enfermería consideran que la formación se dirige de manera adecuada a la emergencia de las habilidades necesarias para ser proporcionada atención de calidad; evaluar la percepción de satisfacción del cliente con la atención de enfermería; identificar las diferencias de percepción de enfermeras y usuarios sobre la calidad de la atención.
Los resultados se refieren a un estudio multimétodo con 2 líneas de estudio: 1 línea comprende 2 estudios, de carácter cualitativo que permiten comprender la importancia de la formación de calidad de la atención y la formulación de la investigación inicial del modelo.
La línea 2 de este trabajo se realiza de una manera deductiva, es descriptivo – transversal, de metodología cualitativa y cuantitativa que tiene como objetivo evaluar la satisfacción del cliente con respecto a la calidad de la atención y la construcción de un nuevo modelo de los factores más relevantes para la satisfacción del cliente.
Los resultados identifican las variables que influyen, directa e indirectamente, la calidad de la atención y satisfacción del cliente, haciendo especial hincapié en la situación de los poderes de emergencia, en un contexto organizacional, como un factor mediador.
Palabras clave: educación; enfermera; las habilidades de emergencia; cuidado; calidad.
Introdução
O presente trabalho teve como origem as preocupações por nós sentidas, enquanto docentes e investigadores, com a formação dos estudantes de enfermagem ao nível da aprendizagem dos conhecimentos teóricos e teórico-práticos destes futuros profissionais de saúde.
Verificamos, nomeadamente, que, pelas alterações analisadas nos últimos anos, no ensino de enfermagem e na profissão, houve um processo de crescimento significativo. Tem sido um caminho repleto de curvas e obstáculos, nem sempre fáceis de transpor. Porém, é ao nível da qualidade dos cuidados que a insatisfação mais se faz sentir.
Face a todas estas mudanças, também as funções do enfermeiro têm sofrido alterações substanciais, nas últimas décadas. Por isso, a preocupação com a evolução, e com a melhoria da qualidade percebida, dos cuidados de enfermagem, continua a ser uma constante, quer para os profissionais quer para a Ordem dos Enfermeiros (OE).
Sendo as competências relacionais e sociais de grande complexidade e de difícil formalização, a revisão de literatura evidencia que, para além dos programas curriculares e do trabalho desenvolvido pelos professores, é no decorrer do ensino clínico (EC) que o estudante consolida os conhecimentos adquiridos nas aulas teóricas (Carvalho, 2005). É, ainda, durante este período, que o futuro profissional parece ter uma verdadeira oportunidade de desenvolver e aplicar os conhecimentos técnicos e científicos, o que implicaria a associação de atitudes, normas e valores, à sua conduta.
Desta forma, podemos dizer que o estudo das “competências de terceira dimensão” Aubrun e Orofiamma (1990) sugere que estas devem ser analisadas à luz do habitus (Bourdieu, 1997) e do processo de socialização profissional (Dubar, 1997).
A complexidade dos resultados obtidos sugere-nos reforçar a ideia de que apenas o contexto de trabalho poderia constituir o autêntico fator de promoção do desenvolvimento das competências. Na perspetiva de Vygotsky (1978), o ser humano desenvolve-se pela interação social, pelo que o desenvolvimento cognitivo mantém uma estreita relação com a situação de aprendizagem. Para o autor, a aprendizagem quando significativa, estimula e desencadeia o avanço para um nível de maior complexidade, o qual serve, por sua vez, de base para novas aprendizagens. Assim, a qualidade da aprendizagem contextualizada da profissão de enfermagem seria mediatizada pela ação tutorial de um indivíduo mais experiente, a qual, em situação de EC, competiria mais ao enfermeiro orientador do que à competência do corpo decente da escola. Desta forma, a emergência das competências pode constituir-se como um fator mediador entre a formação e os cuidados prestados, na medida em que as dimensões relacionais (comunicação, informação, apoio emocional, cortesia, disponibilidade) são valorizadas pelo cliente e constituem o modo a partir do qual estes definem a qualidade dos cuidados.
Este aspeto evidencia o papel dos contextos no processo de ensino/aprendizagem, na medida em que exercem grande influência sobre o sujeito que aprende, promovendo mudanças nos domínios, cognitivo, psicomotor e atitudinal, podendo ocorrer tanto para responder a necessidades correntes de trabalho como para desenvolver competências relevantes para atividades futuras. Pode considerar-se como uma variável responsável pelas diferenças de comportamento das pessoas, segundo a perspetiva de Fishbein e Ajzen (1980), que as atitudes e as normas podem influenciar o comportamento de forma indireta através da intenção comportamental, o que revelaria uma posição mediadora. Logo, à luz da revisão de literatura os aspetos da socialização e do habitus seriam bastante relevantes para o desenvolvimento das “competências de terceira dimensão”.
Também nesta perspetiva se pode evocar o modelo de Nonaka e Takeuchi (1997) que apela a quatro processos de criação do conhecimento: socialização, explicitação, combinação e incorporação. Este modelo evidencia que há diferenças fundamentais entre a informação, o conhecimento e a competência, pelo que os autores fazem a distinção entre o conhecimento explícito e o conhecimento tácito. Na sequência deste modelo presume-se que o acesso ao ensino formal, mais vocacionado para a obtenção do conhecimento explícito, não poderia ser distintivo da preparação dos enfermeiros. Seria, antes, no seio de um processo de evolução em espiral, envolvendo o indivíduo, o grupo e a organização, que se cria mais conhecimento, como resultado de uma interação entre todos os atores organizacionais.
Dado que a formação inicial tem um papel determinante no desenvolvimento profissional, caberia à escola, enquanto instituição formatadora, repensar os curricula e os modelos pedagógicos que administra, garantir os saberes e o “treino” cognitivo e, sobretudo, dotar-se dos protocolos necessários com organizações e com os profissionais devidamente habilitados em competências tutoriais. Desligadas da prática profissional será difícil que as escolas possam garantir a aquisição das competências de base, e promover, adequadamente, as condições indispensáveis de uma socialização profissional conducente à prestação de cuidados com elevada qualidade.
A escolha desta temática deve-se à nossa preocupação (académica e profissional) sobre a forma como são prestados os cuidados de saúde, por parte dos enfermeiros.
A pesquisa desenvolvida segue um modelo descritivo-transversal; para o estudo empírico optou-se por uma metodologia de tipo multimétodo.
Como objetivos de pesquisa empírica, foram definidos os seguintes: o primeiro tem algo específico e, igualmente, uma dimensão geral, na medida em que só no final dos estudos este poderia estar cabalmente respondido. Os restantes objetivos são específicos. Assim, pretende-se:
Avaliar se os profissionais de enfermagem consideram que a formação inicial se encontra devidamente orientada para a emergência das competências necessárias para serem prestados cuidados de qualidade;
Avaliar a perceção da satisfação dos utentes com os cuidados de enfermagem; Identificar as diferenças que os enfermeiros e os utentes percecionam acerca da qualidade dos cuidados.
Pretende-se, enfim, compreender de que forma é que os enfermeiros constróiem os seus saberes e os disponibilizam à comunidade, centrando-nos no papel do ensino de enfermagem e nas competências adquiridas ao longo da formação profissional contínua.
1. Metodologia
Este trabalho assenta numa análise multimétodo e contempla duas linhas de investigação: a 1ª linha constitui o ponto de partida do nosso trabalho. Para isso, efetuámos dois estudos.
Estudo 1: pretende proceder a uma revisão de literatura pelo que, realizámos entrevistas exploratórias dirigidas a peritos (enfermeiros chefes, enfermeiros supervisores, enfermeiros diretores) de organizações públicas e privadas de saúde, docentes de enfermagem e ex-bastonária da OE, num total de dezassete (17) participantes, sobre formação, autonomia e modelo de gestão.
Estudo 2: pretende compreender a perceção dos enfermeiros sobre a importância da formação para a qualidade dos cuidados Para tal, realizámos entrevistas semi-directivas, estruturadas a partir de um guião orientador, elaborado a partir dos temas resultantes, da 1ª linha do estudo. A amostra constituída por vinte e seis enfermeiros (26) detentores da titulação inicial, há cinco anos e mais, e com formação pós-graduada, de diferentes categorias, de unidades de CSP e cuidados hospitalares. Do estudo efetuado resultou um modelo inicial de investigação que representa os aspetos facilitadores e inibidores da qualidade dos cuidados.
Na figura 1, estão representados no modelo os aspetos facilitadores sugeridos pelos resultados obtidos no estudo por nós realizado, no qual é evidenciado que a qualidade dos cuidados está intimamente ligada com a formação inicial e com a formação contínua, embora seja referido que as recentes alterações das políticas de saúde também tenham influenciado a conceção dos cuidados. Para este modelo contribuiu, também, a revisão de literatura previamente efetuada.
A figura 2 representa um modelo dos aspetos inibidores da qualidade dos cuidados sugeridos no estudo por nós realizado e para o qual também contribuiu a revisão de literatura já efetuada.
Nesta 1ª linha do estudo, foi utilizada a abordagem qualitativa, com aproximação à metodologia da Teoria Fundamentada, para poder construir um embrião de explicações teóricas, tão completas quanto possível, de um fenómeno considerado importante para a profissão: a relação entre formação e qualidade dos cuidados.
Para uma investigação avançar é indispensável a formulação de objetivos (Quadro 1) de pesquisa empírica, via pela qual optámos.
A 2ª linha deste trabalho, é realizada de uma "forma dedutiva", tendo por base os conhecimentos teóricos e as entrevistas semi-diretivas efetuadas. Pretende avaliar a satisfação dos utentes em relação à qualidade dos cuidados. É um estudo descritivo-transversal com uma metodologia quantitativa e qualitativa, procedendo à análise documental, em suporte informático. Para a sua concretização realizámos dois estudos:
Estudo 1: desenvolveu-se a partir da aplicação de dois instrumentos de colheita de dados, SUCEH21 para contexto de cuidados hospitalares, aplicado a cento e dezasseis (116) clientes; SUCECS26 para contexto de cuidados de saúde primários (CSP), aplicado a sessenta e nove (69) clientes destes serviços, tendo resultado um modelo em que se salientam os aspetos mais relevantes para a medição da sua satisfação.
Médias da escala de satisfação dos utentes em contexto hospitalar
Relativamente aos clientes do contexto de cuidados de saúde hospitalar, efetuámos uma média ponderada para obter valores que são diretamente comparáveis, visto que as dimensões se baseiam num número variável de afirmações.
Analisando a tabela 1, constatamos que o valor médio de satisfação oscila entre 2,39 (dimensão continuidade dos cuidados) e 13,14 (subescala qualidade no atendimento). Por sua vez, ao analisar o desvio-padrão, verificamos valores elevados de dispersão em todas as dimensões à exceção da subescala prontidão na assistência (aqui as respostas parecem ser unânimes); este facto indicia a existência de clientes distribuídos em duas faixas: os pouco satisfeitos e os muito satisfeitos.
Visto que as dimensões se baseiam num número variável de afirmações, efetuámos uma média ponderada para obter valores que são diretamente comparáveis,
para os participantes do Hospital.
Pela análise da tabela 2, verifica-se que o valor de média de satisfação oscila entre um mínimo de 1,20 (dimensão continuidade dos cuidados) e o valor máximo de 2,80 (subescala ambiente terapêutico). Considerando o ponto intermédio de 1,50, observa-se que a dimensão continuidade de cuidados está em terreno negativo; a dimensão utilidade da informação também não apresenta valores muito elevados. Por sua vez, ambiente terapêutico, qualidade no atendimento e prontidão na assistência são dimensões com perceção positiva dos clientes.
Análise correlacional em contexto hospitalar
Para avaliar o objetivo de que existe relação entre as habilitações literárias dos clientes e a sua satisfação com os cuidados de enfermagem, efetuámos a correlação de Pearson (tabela 3).
Analisando a tabela 3, podemos concluir que existe uma associação parcial entre a satisfação e as habilitações literárias. Só encontrámos correlações estatisticamente significativas com as dimensões qualidade no atendimento (r=-0,31; p=0,001), ambiente terapêutico (r=-0,24; p=0,01) e continuidade de cuidados (r=-0,22; p=0,02). Uma vez que todos os valores têm sinal negativo, concluímos que há uma relação inversa entre as duas variáveis, ou seja, à medida que aumenta a diferenciação académica dos participantes, a sua satisfação com os cuidados de enfermagem diminui.
Médias da escala de satisfação dos clientes em contexto de CSP
Relativamente aos clientes do contexto de CSP, efetuámos uma média ponderada para obter valores que são diretamente comparáveis, visto que as dimensões se baseiam num número variável de afirmações.
Pela tabela 4, verifica-se que o valor médio de satisfação oscila entre 3,10 (dimensão formalização da informação) e 24,94 (subescala qualidade na assistência). Os valores de desvio-padrão não são elevados nas subescalas qualidade na assistência e individualização da informação; contudo, nas dimensões envolvimento do cliente, informação dos recursos, formalização da informação e elo de ligação, os valores indiciam dispersão dos scores dos participantes.
Contudo, uma vez que as dimensões se baseiam num número variável de afirmações, efetuámos uma média ponderada para obter valores que são diretamente comparáveis.
Pela tabela 5, observa-se que o valor de média de satisfação oscila entre um mínimo de 1.55 (formalização da informação) e o valor máximo de 2,77 (subescala qualidade na assistência). Considerando o ponto intermédio de 1,50, constatamos que as dimensões inf ormação dos r ecursos, formalização da inf ormação e elo de ligação estão no limite inferior, apresentando valores marginais de satisfação positiva. No que toca à qualidade na as sistência, individualização da informação e envolvimento do utente, são dimensões pontuadas positivamente pelos nossos clientes.
Análise correlacional de satisfação dos clientes em contexto de CSP Para avaliar o objetivo de que existe associação direta entre as habilitações literárias dos clientes e a melhoria da satisfação dos mesmos, efetuámos a correlação de Pearson (tabela 4.42).
Analisando a tabela 6, podemos concluir que existe uma associação parcial entre a satisfação e as habilitações literárias. Só encontrámos correlações estatisticamente significativas com as dimensões qualidade na assistência (r=-0,32; p=0,008), individualização da informação (r=-0,25; p=0,039) e envolvimento do utente (r=-0,32; p=0,007). Uma vez que todos os valores têm sinal negativo, concluímos que há uma relação inversa entre as duas variáveis, ou seja, à medida que aumenta a diferenciação académica dos participantes, a sua satisfação com os cuidados de enfermagem diminui.
Para testar se existem diferenças na satisfação dos cuidados de enfermagem relativamente ao género utilizámos o teste t de Student.
Assim, e de acordo com a tabela 7, só foram encontradas diferenças estatisticamente significativas nas subescalas qualidade na assistência (média do género masculino = 26,88; desvio-padrão de 0,33; média do género feminino = 24,65; desvio-padrão de 3,60; t=4,68; p=0,000) e informação dos recursos (media do género masculino = 6,22; desvio-padrão de 1,39; média do género feminino = 4,48; desvio padrão de 2,58; t=3,04; p=0,007). Pelos valores médios, concluímos que os homens apr esentam níveis mais ele vados de satisf ação.
Pela tabela 8, vê-se que não há diferenças estatisticamente significativas, exceto na subescala formalização da informação (média dos que recorrem ao tratamento = 2,38; desvio-padrão de 1,59; média dos outros motivos = 3,41; desvio padrão de 1,71; t = -2,35; p=0,021) onde quem se desloca por outros motivos apresenta médias mais elevadas.
No quadro 2, apresentamos os resultados obtidos a partir dos objetivos analisados, procedendo-se a uma descrição sintética, de modo a realizar a sua leitura integrada facilitada pelo quadro.
Da análise dos dados obtidos através dos formulários aplicados aos clientes, podemos concluir que, em contexto hospitalar, a satisfação destes com os cuidados de enfermagem encontra-se agrupada em três itens:
- Qualidade no atendimento (13,14);
- Ambiente terapêutico (11,21);
- Prontidão na assistência (5,24).
Os dados obtidos através dos questionários administrados aos clientes em contexto de CSP, sobre a satisfação dos mesmos em relação aos cuidados de enfermagem, e após a sua análise, agrupámo-los em três itens:
- Qualidade na assistência (24,94);
- Individualização da informação (16,42);
- Envolvimento do utente (7,77).
Estudo 2 constitui a última etapa da investigação e diz respeito à avaliação, de uma forma global, da insatisfação dos clientes em relação aos cuidados de enfermagem, relativamente às organizações em estudo. Recorre-se à análise documental, em suporte informático, das reclamações dos clientes, num total de noventa e quatro (94), colhidas no “Observatório Nacional do Gabinete do Utente”. Teve como propósito “representar de outro modo a informação obtida, por intermédio de procedimentos de transformação” (Bardin, 1995, p.45).
Pela análise da informação obtida, verifica-se que as reclamações incidem mais nas competências relacionais/comportamentais, logo seguidas da prestação de cuidados de saúde, das infraestruturas e dos atos administrativos.
1. Competências relacionais/comportamentais neste âmbito as reclamações distribuem-se em três níveis:
- Promoção da continuidade de cuidados onde 5,3% referem falta de informação aos utentes/familiares” e 1% referem que há falta de informação sobre os serviços;
- Eficácia na comunicação 3,19% referem desrespeito no trato interpessoal;
- Manutenção do ambiente terapêutico 39% referem falta de cortesia e 1,6% desrespeito pala privacidade.
2. Prestação de cuidados os utentes reclamam da qualidade no atendimento, sendo que 7,44% se referem a uma má prática e 19,5% referem negligência”.
Conclui-se daqui que, segundo indicam os números, uma percentagem significativa de utentes considera haver negligência na prestação de cuidados. Ora, não se tendo aprofundado o conceito de negligência para os clientes, será precipitado afirmar que os profissionais de enfermagem são tão negligentes como indicam os resultados, porque é dedutível que esta representação por parte dos clientes é sempre feita a “quente” e em momentos em que a resposta à necessidade/ansiedade é avaliada mais na perspetiva da emoção do que da razão. O mesmo se poderia arguir no que respeita ao que os clientes consideram como uma má prática.
1. Ainda neste âmbito, 6,4% dos utentes reclamam da prontidão na assistência, dos quais 3,2% se referem ao “tempo de espera e igual número se queixa da “recusa da consulta de enfermagem, por falta de processo clínico.
2. Infraestrutura – Verifica-se nesta temática algum descontentamento em relação aos recursos disponíveis, nomeadamente:
- Recursos físicos (materiais) 1,08% falam de desadequação do equipamento; 1,06% em escassez” e 2,12% em falta de “higiene do meio ambiente”;
- Recursos humanos - 3,2% reclamam da “funcionalidade da equipa.
3. Atos administrativos – relacionam-se, sobretudo, com o “extravio de pertences e com questões relacionadas com a organização e funcionamento dos serviços, nomeadamente desorganização …” e “desarticulação entre serviços.
2. Resultados e discussão
Os resultados obtidos estão estruturados segundo uma parte analítica e uma parte interpretativa, consideradas complementares, procurando-se uma melhor compreensão dos dados e resultados.
A pesquisa teórica orienta-se para o modelo sintetizado na figura 3, pelo que ele está ancorado na revisão da literatura.
A qualidade dos cuidados, de acordo com o modelo, seria influenciada pela formação a qual exerceria, por sua vez, uma ação no paradigma do cuidar, contribuindo para a satisfação do cliente, e tendo como fator mediador o desenvolvimento de competências, sobretudo de âmbito relacional e social.
Nesse sentido, surge a necessidade de comparar as representações de “qualidade dos cuidados” na perspetiva dos enfermeiros e na perspetiva do utente, destacando-se dois grupos de fatores emergentes, que denominamos por fatores facilitadores da perceção da qualidade dos cuidados e fatores facilitadores da perceção da satisfação do cliente. Da comparação, resulta que é comum aos resultados apresentados o fator competências, nomeadamente as competências relacionais e sociais que emergem, assim, como uma variável mediadora da formação e da qualidade dos cuidados.
O primeiro grupo, fatores facilitadores da qualidade de cuidados, é compos-to pela formação (inicial, pós graduada e contínua), pelo paradigma do cuidar e pelas políticas de saúde. Cada um destes fatores apresenta uma associação direta com o fator qualidade dos cuidados, a qual integra, em conjunto com o fator satisfação do cliente, o segundo grupo de fatores deste modelo. Os fatores facilitadores da satisfação do cliente não influenciam diretamente a qualidade dos cuidados, mas contribuem para a satisfação deste, o que se repercute, de forma indireta, na qualidade dos mesmos. Embora a teoria pareça indicar que a satisfação está contida nos parâmetros da qualidade, o modelo separa os dois conceitos talvez porque, devido à assimetria de informação, o cliente e os interessados em geral acabam por ter alguma lógica na sua distinção.
O segundo grupo, facilitadores da satisfação do cliente, é composto pela qualidade do atendimento e prontidão na assistência, pelo ambiente terapêutico, pela individualização da informação e pelo envolvimento do utente. Este grupo não apresenta uma relação direta com a qualidade dos cuidados mas contribui para a satisfação do cliente, o que influencia, de forma indireta, a qualidade dos cuidados.
Por último, procura-se identificar as possíveis diferenças que os enfermeiros e os clientes têm da qualidade dos cuidados.
Desta forma, o modelo de chegada é constituído pelos fatores já referidos; entretanto, com exceção do segundo ciclo de formação, todos os restantes estão presentes no modelo final, apresentando lógicas relacionais diferentes.
Pode concluir-se, deste modo, que os estudos realizados, de natureza qualitativa e quantitativa, permitiram a identificação de um conjunto de variáveis que influenciam, direta e indiretamente a perceção da qualidade dos cuidados e a satisfação dos clientes, envolvidos na amostra. Neste estudo empírico verificou-se que, na perspetiva dos profissionais de enfermagem, foram valorizados três (3) fatores facilitadores da qualidade dos cuidados, que estão relacionados com a formação e com o contexto organizacional: formação, paradigma do cuidar e políticas de saúde. Já na perspetiva do cliente, foram identificados os fatores facilitadores da satisfação que dizem respeito a: qualidade no atendimento e prontidão na assistência, ambiente terapêutico, individualização da informação e envolvimento do utente.
Os resultados da pesquisa indicam, assim, que há fatores que estão relacionados com a formação, pelo que é necessário refletir sobre estes aspetos, para que o processo formativo contribua, de forma positiva, para a qualidade dos cuidados. Tendo consciência que há fatores relacionados com aspetos organizacionais que se cruzam com a formação, parece evidente a necessidade de rever todo o processo formativo.
Apesar da complexidade dos resultados, parece ser indiscutível que o contexto de trabalho emerge como o verdadeiro promotor do desenvolvimento das competências, apoiando a perspetiva de Vygotsky (1978) em que o ser humano se desenvolve pela interação social, quando o desenvolvimento cognitivo mantém uma estreita relação com a aprendizagem. Recorde-se que para o autor, a aprendizagem quando significativa, estimula e desencadeia o avanço para um nível de maior complexidade que, serve de base para novas aprendizagens. Assim, a aprendizagem contextualizada seria mediatizada por um indivíduo mais experiente, que em situação de EC compete ao enfermeiro orientador. A leitura dos resultados à luz desta perspetiva, permite confirmar que a emergência das competências pode constituir-se como um fator mediador entre a formação e os cuidados prestados, na medida em que as dimensões relacionais (comunicação, informação, apoio emocional, cortesia, disponibilidade) são valorizadas pelo cliente e que é este o modo como eles definem a qualidade dos cuidados.
Este aspeto evidencia o papel dos contextos no processo de ensino/aprendizagem, pela sua elevada influência sobre o sujeito que aprende, promovendo mudanças nos domínios, cognitivo, psicomotor e atitudinal, podendo ocorrer tanto para responder a necessidades correntes de trabalho como para desenvolver competências relevantes para atividades futuras. Pode considerar-se como uma variável responsável pelas diferenças de comportamento das pessoas que, segundo a perspetiva de Fishbein e Ajzen (1980), as atitudes e nor-mas podem influenciar o comportamento de forma indireta através da intenção comportamental, o que revelaria uma posição mediadora. Logo, à luz da revisão de literatura os aspetos da socialização e do habitus seriam bastante relevantes para o desenvolvimento das “competências de terceira dimensão”.
Face ao exposto, observa-se que, apesar de na formação inicial se ter feito um esforço de adequação dos curricula e de reformulação o modelo de EC, a redução do hiato que parece existir entre a formação e a prática apenas poderá ser conseguida com uma “escola em alternância” o que parece constituir a ponte entre as duas perspetivas. A atual ênfase colocada no capital intelectual exige um novo perfil profissional, mais comprometido afetivamente com a organização e com os resultados, que possam traduzir-se na satisfação do cliente e na humanização dos cuidados de saúde; exige ainda um novo modelo de educação, de caráter mais cognitivo e afetivo, tendo como principal beneficiário o cliente. Para tal, o perfil do profissional de enfermagem deveria compreender um compromisso com a universalidade, a equidade e a integralidade do cuidar.
Conclusão
O conhecimento alcançado em relação à presente pesquisa permite compreender aspetos importantes do processo de ensino/aprendizagem, não só relacionados com os conteúdos teóricos mas também com os ensinos clínicos. A pesquisa desenvolvida abriu leques para a procura de novas informações e permitiu a elaboração de um quadro de conhecimento de base tendente a questionar a articulação do sistema de formação com os contextos da prática.
Da investigação surge, ainda, como problema pertinente de pesquisa posterior a mudança de paradigma: de um ensino sequencial, baseado nos saberes como suporte para a aquisição de competências do cuidar, para um sistema em que a aquisição de competências, interagindo em permanência com os saberes adquiridos, se completaria no contexto de execução como ambiente formativo indispensável.
O paradigma vigente forjaria, deste modo, um habitus suportado na noção de saberes, passíveis de serem mobilizados em contexto; esse habitus tenderia, entretanto, a bloquear o desenvolvimento de competências em exercício. Seria, pois, de pressupor, no atual paradigma uma espécie de inevitabilidade de o profissional ter de se desfazer do habitus escolar para adquirir o habitus profissional. Esta situação parece criar um problema de identidade profissional na medida em que a sequência do habitus escolar seria um desenvolvimento do tipo biomédico e não um desenvolvimento de cuidar. O designado mode-lo holístico do sistema vigente pode não passar de um voto de intenções, na medida em que, para que ele se concretize terá que ser planeado e construído em consequência das necessidades de cada cliente, como determinante para a aquisição das competências.
É, efetivamente, neste aspeto que necessitamos de promover uma revolução paradigmática abrangendo os três atores envolvidos: docentes, estudantes e supervisores clínicos, de forma a diminuir o fosso entre as organizações de ensino e as organizações prestadoras de cuidados, no seio das quais deverão ser recrutados os supervisores e onde ocorre, para o melhor ou para o pior, a formação/formatação dos profissionais de enfermagem.
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