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Relações Internacionais (R:I)
versão impressa ISSN 1645-9199
Relações Internacionais n.22 Lisboa jun. 2009
Salvando vidas humanas
Clóvis Brigagão*
SAMANTHA POWER
O Homem Que Queria Salvar o Mundo Uma Biografia de Sergio Vieira de Mello
São Paulo,
Companhia das Letras,
2008, 667 páginas
É sempre aventura difícil, mas instigante, escrever sobre alguém. Ainda mais alguém como Sergio Vieira de Mello (SVM), a partir do montão de folhas escritas pela acadêmica norte-america Samantha Power. O tom hesitante e até prudente frente a essa tarefa, de múltiplas faces, não garante, caro leitor, o produto perfeito e acabado, à semelhança da biógrafa e do biografado. Vamos à própria autora, que nos apresenta sua obra como «uma biografia dupla».
Primeiro, «é a história da vida de um homem corajoso e enigmático que, em 2003, via o mundo de um jeito bem diferente daquele de quando ingressou na ONU em 1969» (p. 29). Em trinta e quatro anos de ONU, Sergio Vieira de Mello lidou e sofreu com, cuidou de e viveu muitas guerras e deslocamentos humanos, em onze diferentes e conflagradas nações: Bangladesh, Sudão, Chipre, Moçambique, Líbano, Camboja, Bósnia, Ruanda, Congo, Kosovo e Timor Leste (p. 19), distante do chamado «circuito Elisabeth Arden» (Nova York, Londres e Paris). Segundo, «é também a biografia de um mundo perigoso [ ] Vieira de Mello entendeu que, mesmo sem conseguir solucionar todos os males, deveria fazer o possível para atenuar alguns deles» (p. 30).
A OBRA E O PERSONAGEM
Volumosa obra: são 667 páginas (556 de narrativa corrida e 90 de agradecimentos, notas, lista de entrevistas, créditos fotográficos e índice remissivo). O livro encerra três partes cronológicas e historicamente seqüenciais: sua vida (desde a infância); a ação e a experiência acumuladas (trajetória de mais de trinta anos como exemplar funcionário multilateral onusiano, repletos de negociações intensas rápidas sob forte pressão e tensão conflitiva); e seus onze últimos meses de trabalho e de vida à frente do vulnerável escritório da ONU em Bagdá, na ainda iniciante e duradoura ocupação dos Estados Unidos no Iraque.
A autora oferece-nos o fio condutor:
«Em uma reunião no Salão Oval, Vieira de Mello criticara as políticas de detenção norte-americanas em Guantánamo e no Afeganistão e pressionara o presidente [Bush] a renunciar à tortura. Quando chegou o dia de escolher um enviado, Annan [então secretário-geral da ONU] designou Vieira de Mello, por acreditar que fosse o único homem cujos conselhos o governo Bush poderia acatar. Annan também sabia que seu colega carismático era um dos raros solucionadores de problemas capazes de assegurar o apoio simultâneo dos governos americano, europeus e árabes» (p. 21).
INVESTIGAÇÃO INTENSIVA E MORALISMO DE POWER
Aqui iniciamos a recensão crítica ao livro de Samantha Power, resumindo, tanto quanto possível, as experiências marcantes do exímio negociador de campo, em todos os níveis e em todos os lugares por onde passou. Com sobejo fôlego, a autora constrói sua obra a partir de duas dimensões de SVM. Primeiro, uma investigação completa e intensa ao estilo do «jornalismo objetivo norte-americano» dos passos, a rotina e os itinerários, assim como os dramas, as dúvidas, os erros e os acertos contagiantes da personalidade de SVM. Era uma figura de grande fôlego, física, cultural e com sensibilidade humana. Trabalhador incansável, era um «pé-de-boi», quer nas tarefas politicamente sensíveis ou até mesmo nas rotinas burocráticas da ONU. Ainda assim, mesmo depois de estar presente em tantas situações muito difíceis e traumáticas, nunca perdeu a capacidade de ficar chocado com as barbaridades que seres humanos impunham a seus semelhantes.
Uma segunda dimensão da obra de Samantha Power é, no entanto, eivada da percepção puritana da autora. Na maioria das vezes, ela vê-se chocada e, então, julga com precipitação, «pecados» ou «distorções comportamentais» (behaviorismo típico norte-americano) atribuídos a valores e atitudes de seres humanos como SVM. É bom destacar: SVM foi homem da vida um «fura-vidas» a serviço do que de melhor pode existir em um ambiente internacional sob a liderança das Nações Unidas. Brasileiro, ao longo de sua jovem vida ele volta, pouco a pouco, a identificar-se com sua terra natal; embora internacionalista de «carteirinha», SVM possuía o savoir-faire cosmopolita e, ao mesmo tempo, era intensamente delicado, afetuoso e, acima de tudo, respeitoso com quem o hospedava, sob os escombros de conflitos e da miséria humana, seja na África, na Ásia, na Europa, na América do Sul ou no Oriente Médio. A percepção precipitada de Power acerca de vários aspectos da vida e da ação de SVM é, no mínimo, preconceituosa. Ela encontrou-se com Sérgio, pela primeira vez, na ex-Iugoslávia em 1994, para um «jantar à noite »: imaginemos o fascínio. Em inúmeras páginas de sua Introdução, por suas próprias palavras ou por citações, Power claramente expressa julgamentos morais sobre SVM: aventureiro, popstar internacional, figura global, festeiro, «como um cruzamento de James Bond com Bobby Kennedy».
Em todo o percurso do livro, essas «valorações» são continuadas e submetidas ao escrutínio da visão moralista da vida feito pela autora: «tomar» whisky Black Label, estar em companhia ou ser atraído por mulheres jovens [com quem mantinha relações pessoais normais], «reunir-se» com amigos em bares, festas etc., etc. Prezada Samantha: Era nesses lugares, como em outro front, com seu respeito e glamour brasileiro, mas também português, africano, latino, internacional, que Sérgio expressava muito bem e positivamente, a continuidade de seu trabalho de campo ao que dava o melhor de si Aos olhos e palavras da autora, isso parece contaminar um estado de pureza da vida.1
Como poder compartilhar e aceitar a apressada e contraditória avaliação da autora sobre a carreira de SVM na ONU: «A rápida ascensão [ênfase minha] de Vieira de Mello na ONU fez com que as pessoas, em uma análise retrospectiva, achassem que ele tinha uma ânsia maquiavélica pelo poder». Inconsistentemente, logo depois, ela resume: «Depois de trabalhar por 28 anos no acnur (ênfase minha), do qual se afastou apenas duas vezes para servir em missões de paz no Líbano e na Bósnia» (pp. 249-250). Em que ficamos? Com a mesma ligeireza a autora transmite ao leitor depreciações, ideológicas e pessoais, em relação a algumas personalidades e autoridades da ONU, ora de forma desrespeitosa, ora com apreciações fugazes e superficiais2.
AVALIAÇÕES FINAIS
No fundo, a avaliação de Power sobre a relevância da ONU, seu tom de reprovação e até certo desdém político, é semelhante à posição e tom de um Francis Fukuyama3. Eles imputam à ONU uma presença internacional sem força política real, quer nas missões de paz, quer nos vários arranjos da intervenção humanitária. Para eles, as limitações apontadas em nada diminuem a relevância da ONU. Como se o poder só tivesse limites para a ONU, não para os Estados Unidos e seu braço, a NATO. Acabam reforçando a visão política das grandes potências, segundo as quais para defender direitos humanos (como em Guantánamo e Abu Ghraib?) e promover a democracia [que também consideramos fundamental], deve-se considerar e usar o poder da força! E conclui Fukuyama, numa posição que podia ser a de Power: «ainda não dispomos de um adequado conjunto de instituições que desempenhe isso legítima e efectivamente»4.
Com esse alicerce de investigação acadêmico-jornalístico, as questões mais substanciais, do pensamento à ação de SVM que por limite de espaço não podemos desenvolver aqui se igualam com o outro constante enredo de pequenos detalhes, comentários superficiais, ingênuos e simplistas (como sobre o Golpe Militar de 64 no Brasil). O livro perde substância, a narrativa mantém-se no mesmo registro, rápido e falho de análises substantivas. Furta a substância do biografado e torna-se, seguidas vezes, inconsistente, num só tom que não é o tom da bossa-nova.
Claro, o livro é recomendável como fonte para futura investigação. Sobre as duas dimensões focalizadas por Power, cabe, exclusivamente, aos leitores o diagnóstico. No epílogo, a autora revela seu veredito: «morreu sob os escombros do Hotel do Canal soterrado pelo peso da própria ONU» (ênfase minha). No entanto, prefiro recomendar aos leitores outra obra, formada por sete textos de amigos brasileiros (diplomatas, jornalistas e acadêmicos) sobre o pensamento e memória, bem como por dezoito dos mais importantes textos da produção intelectual de SVM, que cobrem toda sua visão e práticas de administração naqueles países onde atuou como representante da ONU5. SVM não se furta a oferecer visões e apresentar propostas práticas possíveis, com base em seus trinta e quatro anos de experiencia internacional. Poderia resumir aqui o que ele pensou sobre os conflitos: «muitos conflitos poderiam ser evitados ou, pelo menos, contidos, mitigados e superados, se a preocupação em resolvê-los sem resultar em uma ruptura do diálogo e da confiança mútua fosse o centro de uma estratégia internacional de prevenção»6.
NOTAS
1 Cf. pp. 22-29, 78, 83, 100-101, 121, etc. etc. etc. e etc.
2 Uma delas chocou o autor da recensão: suas injustas e levianas acusações contra o Sr. Thorvald Stoltemberg, em suas funções comissionadas pelas Nações Unidas e que sempre dedicou a maior e mais profunda admiração e amizade a SVM. Entrevista com Thorvald Stoltemberg, Oslo, Setembro de 2007, em conversa em sua residência. Este é um reparo que precisava ser feito aqui.
3 Fukuyama, Francis «The Internationalist». In New York Times, 17 de Fevereiro, 2008.
4 Ibidem.
5 Marcovitch, Jacques (org.) Sérgio Vieira de Mello Pensamento e Memória. São Paulo: Saraiva/EDUSP/Bunge Fundação, 2004, 338 pp. Há escritos sobre textos de SVM de Celso Lafer, Carlos Eduardo Lis da Silva, Luis Felipe de Seixas Corrêa e Luciana Mancini, Gelson Fonseca Jr., Paulo Sérgio Pinheiro, Ronaldo Mota Sardenberg e mais os textos escolhidos filosóficos, políticos, sobre Direitos Humanos, textos práticos de administração, sobre Timor-Leste (cinco textos) e quatro entrevistas de SVM. Vale a pena conferir.
6 Ibidem, resumo extraído de seus pensamentos no livro organizado por J. Marcovitch.
* Politólogo. Director do Centro de Estudos das Américas e coordenador do Grupo de Análise de Prevenção de Conflitos Internacionais da Universidade Cândido Mendes, Rio de Janeiro.