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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.24 Lisboa dez. 2009

 

Soberania

António Horta Fernandes[*]

 

A soberania e o que ela significa é uma das questões menos discutidas hoje em politologia, aparecendo mesmo praticamente informulada em relações internacionais. Provavelmente podemos encontrar razões para isso no estrito empirismo e positivismo que marca hoje muitas das análises nesses saberes Todavia, talvez a razão principal se deva encontrar na forma como os racionais soberanos se impregnaram no corpo político moderno e contemporâneo, ao ponto de parecerem o ar que respiramos. O presente artigo visa precisamente desconstruir essa impregnação, tentando chamar a atenção para a duvidosa consistência praxista da soberania, trazendo a lume a sua arquitectura.

Palavras-chave: Soberania, poder, vida, Agamben

 

On Sovereignty

Sovereignty and what it means is less discussed on Political Science and International Relations. May be we could justify it because of the empiric and positivism that even more support that studies. However, the main justification could be found on the way as the rational sovereigns has crossed the modern and contemporary political body – seems to be the air we breathe. This article will try to deconstruct this impregnation and to alert to the uncertain consistence of sovereignty by stressing its architecture.

Keywords: Sovereignty, power, life, Agamben

 

 

A soberania é ainda hoje das questões menos discutidas. Discute-se o ocaso ou a manutenção e mesmo, nalguns casos, o reflorescimento de ideais nacionais soberanos, empiricamente contam-se os atributos de soberania que permanecem intactos e aqueles que foram afectados, em mais raras ocasiões releva-se a contaminação de distintos actores internacionais não soberanos por racionais soberanos, que se pautam na sua acção como se de soberanos se tratasse, nomeadamente algumas organizações internacionais, mas na mais das vezes o problema acaba sempre na mesma fileira de tratamento: do ponto de vista interno, assegurar a constitucionalidade democrática e o Estado de direito face aos eventuais excessos da soberania configurada na unidade do Estado; do ponto de vista internacional, perceber a eventual erosão de um certo patriotismo constitucional que essa mesma soberania traduziria e responder da melhor forma; conjugadamente e num mundo globalizado e deslizante, encontrar uma saída airosa para o melhor dos atributos soberanos face à cada vez maior interpenetração entre o interno e o externo num futuro que se percebe como essencialmente aberto.

Em qualquer caso, permanece um impensado relativamente à soberania em si mesma e igualmente em relação à sua bonomia. Essa bonomia é tida como tal e o impensado permanece porque os racionais soberanos estão de tal modo enraizados que quase os intuímos politicamente como uma segunda pele ou, melhor, como o ar que respiramos; e, como se sabe, não podemos viver sem pele nem sem ar, pelo que inevitavelmente são coisas boas que não oferecem motivo de grande reflexão, a não ser para avaliar do seu estado e logo da nossa qualidade de vida.    

Daí que não possa estranhar a flagrante contradição entre a possibilidade do ocaso do Estado soberano, muitas vezes referenciada na literatura, e a assunção soberana de uma segunda pele política[1]. Como habitualmente não se interroga a fundo o que é verdadeiramente a soberania e se ela é mesmo uma segunda pele ou como o ar que respiramos (e desde logo não é, nem sequer historicamente), uns concluem negativamente por uma poluição política incompatível com um futuro humanamente harmonioso na Terra, outros acham que nem tanto porque sentem implicitamente que os racionais soberanos já se alastraram e enquistaram noutros actores emergentes da cena internacional. Outros haverá ainda que pressentem que politicamente seria uma coisa distinta, mas tão habituados que estão ao mundo soberano e ao crasso empirismo, que na verdade não acham nada apesar dos palpites de um mundo pós-soberano, pois na prática tudo se faria equivaler nessa empíria uniforme e sem relevo.    

O presente artigo não se propõe nenhuma análise empírica ou sequer teórica acerca do estado de saúde da soberania e dos estados soberanos, antes procura, na humilde esteira de quem antes o já pensou, reflectir acerca do que é isto da soberania e das suas eventuais credenciais para promover o bem comum ou individual das comunidades humanas ou das pessoas. Logo se verá que no seu curto evolver na história da humanidade os atributos soberanos não possuem afinal as características exaltantes que muitas vezes se lhe atribuem e que, portanto, a soberania não será a pele que devemos vestir ou o ar que queiramos respirar.

Para concretizar os objectivos propostos, esgrimem-se uns quantos argumentos-chave em instância agambeniana, mais político-ontológica, sem esquecer, em fundo, a influência de Carl Schmitt, pensamento com características mais político-jurídicas. Assim sendo, e como digressão primeira à temática em si mesma, há que fazer uma brevíssima incursão directa no pensamento de Carl Schmitt, tão grande é a influência que ainda hoje exerce sobre as discussões em torno do tema da soberania. Todavia, ainda antes, sob pena de aborrecer o leitor familiarizado com Agamben, mas confiando que compreenderá o propósito, importa esquissar umas quantas linhas-mestras do pensamento agambeniano que (não exclusivamente) nos inspira.

Sinteticamente, aquilo que Agamben nos diz é que toda a história política ocidental está assente no primado do poder por si mesmo (de raiz teológico-económica e teológico-política), expresso na figura da suma potestade, da soberania, articulada entre auctoritas e potestas.

Esta máquina bipolar (reino e governo), e nisto Agamben segue de muito perto Schmitt, baseia-se na capacidade de impor o Estado de excepção, um Estado do mais puro poder, nem verdadeiramente fora nem verdadeiramente dentro da lei. Seja o soberano quem for, incluindo a soberania popular. Sendo necessário acrescentar que, mesmo podendo o soberano reinar cada vez mais e governar cada vez menos, como a máquina governativa reside na estrita articulação entre reino e governo, a liberdade de decisão soberana tem a sua correspondência nos actos contingentes e gestionários de governo, económicos, isto é, an-árquicos.

Em bom rigor, a excepcionalidade soberana representa para Agamben, uma vez mais em estreita sintonia com Schmitt, a forma mais pura se não primeva da lei. A ex-ceptio é literalmente captar o que está fora, uma exclusão inclusiva, pelo que o Estado de excepção corresponde à máxima vigência da lei, coincidindo com a realidade no seu todo. No estado de excepção é verdadeiramente impossível distinguir entre vigência e transgressão da lei. A lei não é cumprível, tendo como corolário ser informulável. A discricionaridade está então no auge. O soberano coincide consigo mesmo no que à cinética definitória do poder concerne[2].    

A figura que se contrapõe ao soberano é a do homo sacer, um homem inscacrificável, todavia passível de ser morto sem que isso seja considerado homicídio.  Nas palavras do próprio Agamben,

 

«o espaço político da soberania ter-se-ia assim constituído através de uma dupla excepção, como uma excrescência do profano no religioso e do religioso no profano, configurando uma zona de indiferença entre sacrifício e homicídio. Soberana é a esfera em que se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar sacrifício, e sagrada, isto é, exposta à morte e insacrificável, é a vida que foi capturada nesta esfera»[3].

 

No fundo, o homo sacer somos todos nós enquanto expostos, abandonados à mercê do soberano. E um homem exposto não é mais que uma vida nua, indefesa.

Contudo, a vida nua é também a vida tal qual é, na sua essência sabática, na sua pura potência, gozosa e contemplativa, de ser. Assim, a verdadeira política residiria em inactivar a máquina potestática e na devolução ao homem da sua qualidade de qualquer, de viver apenas a sua própria vivibilidade, sem objectivos que transformem economicamente em meios o que seriam fins[4]. Ou por outra, deixar o meio vital votado à sua própria práxis, não lhe apor finalidades (o que remete para um outro título de Agamben, Meios sem Fins).

No presente artigo, acolhemos sobretudo a crítica agambeniana à lógica soberana, prescindindo do que julgamos serem alguns excessos anacrónicos, mas de enorme pertinência arqueológica. Também deixamos em suspensão as soluções preconizadas pelo filósofo italiano, não porque devam ser enjeitadas, antes porque merecem uma reflexão crítica à parte. 

 

A SOBERANIA COMO EXPERIÊNCIA DESGARRADORA

Do ponto de vista jurídico, aquele de onde recebe a inspiração imediata e aquele no qual directamente trabalha, Schmitt opunha-se às teses normativistas do direito puro de Kelsen, que defendia não poder ter uma norma como origem senão outra norma fundamental, pretendendo evitar com isso que o direito pudesse assentar em decisões puramente arbitrárias. É preciso não esquecer que, através de Adolf Merkl, Kelsen estava em contacto com o Círculo de Viena e o neopositivismo lógico.

Também Schmitt recusa qualquer decisionismo arbitrário na fundação do direito. Mas ele pensa que não se pode desvincular o direito das decisões de poder que o efectivam e recriam. Ora, o poder constituinte do direito, contrariamente às teses normativistas, não é limitado imediatamente pela sua própria racionalidade pura, antes é a excepção soberana que torna possível esse direito e é constitutivo dele. Por isso é que a excepção é a pedra-de-toque, o valor de utilidade marginal do direito, e também por isso é que é soberana. A soberania é, por conseguinte, o poder que ordena a norma jurídica, que a sustenta, que lhe dá racionalidade e ao qual a norma está avocada, estando ao mesmo tempo dentro e fora dela, sendo-lhe ultimamente superior[5].

Em resumo, o direito sustenta-se no poder político, personificado no Estado, por sua vez caracterizado pela sua condição soberana. Numa leitura hobbesiana da realidade política, que não necessariamente idêntica ao próprio pensamento de Hobbes, como veremos, e existencialmente crítica da ideia revolucionária apocalíptica, o que Schmitt encontra na soberania é a possibilidade de deter o estado de natureza, a anomia, em nome do direito maior de autoconservação das próprias comunidades humanas enquanto comunidades politicamente organizadas. Schmitt tem em mente a Segunda Carta dita de Paulo aos Tessalonicenses (2 Tes 2, 3-9) e a figura do Katechon, como o que retém o Anti-Cristo, freio soberano histórico (o império romano à altura) face à dissolução sempre iminente[6].

Antecipando já algumas respostas a questões que o leitor possa pôr e que poderá ir depreendendo ao longo deste ponto, até em virtude da instância agambeniana por nós assumida, quiçá a grande diferença entre Agamben e Schmitt, para além deste último ter uma posição radicalmente oposta quanto à necessidade de uma ordem soberana, resida em que, para o filósofo italiano, não só estes motivos ontometafísicos são o fulcro da questão, como, por força deles, interessa-lhe sobretudo as consequências ontológicas da análise de linguagem realizada ao paradoxo da excepção soberana. Enquanto para Schmitt o que urgia era a necessidade de autoconservação do poder e não tanto o paradoxo em si, resolúvel na prática, na superioridade do Estado face ao direito[7].

O que remete, obviamente, para a questão da racionalidade última de tal pretensão, que não seja a arbitrariedade, envolvendo então o problema da representação, da inevitável tradução política moderna dos conceitos teológicos e a função da Igreja como ideal-tipo, enquanto representação perfeita, para o Estado soberano[8]. Não querendo com isto dizer que essa assunção da racionalidade não seja discutível, porque enlaçamos novamente com a legitimidade dos pressupostos ontológicos, antropológicos e existenciais.

Mas discutir esses pressupostos em Carl Schmitt não é agora a questão, além de que, de alguma forma, os parágrafos que se seguem e o próprio teor deste estudo no seu conjunto vão, de algum modo, respondendo aos mesmos.

Passando agora à dissecação da soberania em si mesma, o cerne deste excurso, mas tendo inevitavelmente Schmitt em fundo, pode dizer-se, desde Bodin, que a mesma se caracteriza pela indivisibilidade, perpetuidade e, sobretudo, absolutez do poder, que adquire assim características majestáticas, de pura unicidade, para além do mensurável, e de incondicionalidade, uma vez que ab-soluto é aquele que está solto de condições. Assim sendo, o poder soberano pode ser definido como aquele que pode proclamar o Estado de excepção e de suspender, dessa forma, a validade da ordem. Como refere Agamben, o peculiar da excepção soberana «é o facto daquilo que é excluído não se subtrair absolutamente à relação com a norma; pelo contrário, esta mantém-se ligada à excepção desaplicando-se, retirando-se dela. O estado de excepção não é, portanto, o caos que precede a ordem, mas a situação que resulta da sua suspensão»[9]. Percebe-se que no Estado de excepção, como atrás referimos e voltamos a repisar, é impossível distinguir entre observância e transgressão da lei. Ora, a capacidade soberana assenta ultimamente nisso, na possibilidade de submeter à morte sem que isso seja considerado homicídio. No expor as vidas nuas ao poder de ban do soberano, que nesse limiar indefinido estão totalmente desamparadas, à mercê do exercício soberano.

Não se trata apenas de identificar a razão soberana com a razão de Estado, nem de ligar os dois conceitos, obviamente conectados. A questão é muito mais profunda e tanto assim é que a ideia soberana gera um dos mais candentes problemas que o pensamento político ocidental tentará em vão solucionar definitivamente: como legitimar uma teoria do Estado e da soberania autónoma face à sociedade enquanto corpo político, tendo em conta a cada vez mais inescusável importância do Estado, sabendo ao mesmo tempo das terríveis aporias que essa ideia soberana comporta?

Mesmo as teses que na Idade Moderna não defendiam o absolutismo tinham dificuldade em lidar com o problema; ora acentuando a velha dissolução do poder soberano no corpo político, ora correndo o risco de celebrar novos despotismos, os da vontade geral omnipotente. Ainda hoje não se encontrou uma solução definitiva, embora no espaço liberal, seja a pioneira experiência federal norte-americana aquela que melhor terá respondido ao problema, sem o resolver de todo, já que os Estados Unidos acabam também por ser uma nação tão normal quanto as outras na divisão internacional do trabalho (não só político) e das suas alienações.

No âmbito internacional, a excepcionalidade soberana é decisiva, uma vez que muito do que é ser soberano, como dirá Hegel, se refere antes de mais ao outro. Pois bem, é precisamente em função da lógica soberanista que a política internacional se caracteriza pela sua fungibilidade e potencial de conflitualidade, sendo, por definição, não sistémica. Dir-se-á que isso acontece apenas nas zonas de limiar, de fronteira, mas são precisamente essas, de traçado incerto, que o poder soberano pretende recriar constantemente e de forma discricionária, indecidível de um ponto de vista sistémico. Como a um poder soberano se opõe outro poder soberano, pelo menos de acordo com a lógica vestefaliana, pode aquilatar-se do potencial de conflito e de imprevisibilidade que caracteriza, ainda que não exclusivamente, a cena internacional[10]. Perante a racionalidade soberana dificilmente poderia ter resistido a velha ordem medieval que separava ontologicamente a paz da guerra. A paz e a guerra são agora uma questão de cálculo soberano, que a razão de Estado não faz mais que evidenciar. A paz e a ordem desejam-se, mas elas são fruto de uma inibição e suspensão soberana, até à próxima intervenção. É o paradoxo da ordem desejada se fundar no caso limite, na excepção que, apesar de excepcional, a vai recriar, só não se sabendo quando.

De qualquer forma, seja no âmbito interno ou internacional, é bom reter que a soberania constituída enquanto tal é um fenómeno moderno. Em bom rigor, não se pode falar de soberania sem Estado (embora a soberania alimente a edificação deste último) e não se pode falar propriamente de Estado antes da modernidade. Para haver Estado é preciso que este se decante do corpo comunitário de raiz política através da sua cabeça, que esta seja autónoma e até majestática (soberana), de modo a representar a referida comunidade sem nela se diluir. Para isso é preciso que o Estado e os seus atributos sejam encarados segundo uma racionalidade e funcionalidade essenciais próprias, até mesmo um fim em si mesmo (o conceito de razão de Estado tanto emerge como faz emergir essa teleologia) e dessa forma possa definir e posteriormente desfuncionalizar o corpo político (a separação Estado/sociedade civil). Porque quando o corpo político é tomado enquanto tal, isto é, como corpo político qua corpo político, enquanto racionalidade e funcionalidade intrínseca e específica do ponto de vista político-jurídico, então esse mesmo corpo político pode muito bem ser definido pela «abstracção» político-jurídica (o Estado) entretanto criada precisamente para plasmar essa essencialidade política autónoma.

Historicamente falando, essa essencialidade política autónoma da comunidade que se passa a ver a si mesmo dessa forma alimenta a novel máquina do Estado e o nascimento da burocracia, tanto como a complexificação das funções de governo que necessitam dessa máquina alimenta igualmente o sentido de autonomia e a sua racionalização e teorização específicas.

Assim sendo, e porque este é um ponto de menor resistência das teses de Agamben, em grande parte por nós reflectidas neste artigo, podemos aquilatar quanto o filósofo italiano tem e não tem razão face à célebre obra de Kantorowicz sobre os dois corpos do rei (público e privado). Na realidade, o precedente romano imperial, invocado por Agamben, acerca das singulares cerimónias fúnebres dos reis franceses, em que, junto ao corpo físico do rei morto, a sua efígie em cera era exposta num lit d’honneur, e cuidada como se de um segundo corpo (público) do rei, simples doente, se tratasse, permanecendo aí até ser queimada sete dias depois, não pode ser esquecido. Kantorowicz terá negligenciado o precedente romano e o que este significava, pois talvez mais importante que a perpetuação da dignidade real, essencial para a formação do Estado moderno, expressa na fórmula, le roi ne meurt jamais, seja antes de realçar esse excedente de vida que faz do poder soberano absoluto e indivisível. Contudo, o carácter perpétuo não é menos importante em termos da sua funcionalidade prática. É esse carácter que parece faltar no ritual romano.

Se a ideia de uma cabeça sobre o corpo político, essa ficção que tanto êxito teve na história política do Ocidente, estivesse presente em Roma, nunca Augusto teria feito baquear tão facilmente a República senatorial, apoderando-se do Império (isto é, da suma potestade que, em última análise, a auctoritas, que passa a encarnar, lhe permite alcançar) nem a dança posterior, particularmente visível em momentos de crise, de sucessão de imperadores (caótica para um espectador moderno) teria tido lugar. Só que se Roma já conhecia essa excedência e excepcionalidade soberana e de algum modo a esconjura no ritual fúnebre da efígie do imperador, a modernidade europeia veria nessa capacidade excedentária a sua própria sobrevivência; daí que a simbólica da transmissão de poder fosse relevada por sobre as outras, sem as negar, com as consequências que se conhecem: a prevalência moderna e contemporânea dos racionais soberanos em praticamente todas as áreas no que ao político diz respeito[11]

Estamos em crer que é à luz do exposto até aqui que melhor se entende o pensamento hobbesiano, em que muitos leitores estarão a pensar, o qual, por outro lado, ilustra à maravilha a nossa exposição. Assim, e atendendo a que não se pode obviar Hobbes, faremos uma sucinta digressão à volta do seu pensamento sobre a soberania para culminar com umas quantas reflexões em torno a Derrida, não diríamos como contraponto, mas mediando complexamente os racionais soberanos, tentando entrever nele algumas «positividades» possíveis.

As considerações que se tecem sobre o pensamento político de Hobbes têm o seu núcleo na racionalidade soberana, pois parece-nos que as questões do que significa o Estado de natureza, o contrato social e a figura do Leviatã têm uma resposta mais adequada se nos basearmos nas considerações de Craig Macpherson, à luz de uma inspiração agambeniana.[12]

Em primeiro lugar importa observar que Hobbes é um dos primeiros paladinos daquilo que se convencionou designar por paradigma individualista. Para este paradigma, que mergulha as suas raízes no nominalismo franciscano de Trezentos, e na querela dos universais, desapareceram as qualidades sociais incorporadas na essência dos indivíduos. Essas qualidades (ser plebeu ou nobre, ser social por natureza) descrevem a realidade mas não são coisas reais, antes meros nomes, daí o nominalismo. Se as predicações que fazemos dos indivíduos, os únicos que realmente existem, não são coisas, do ponto de vista político o que resta são apenas estes (ou o sujeito dotado de vontade por excelência: Deus), que voluntariamente, seja por que razão for, decidem contratualizar a vida em comum, antes inexistente. O que temos então são átomos formalmente iguais e intermutáveis que estão na base da comunidade política. É verdade que esta laicização e fundo mecanicista, claramente perceptível em Hobbes, não estava presente nos nominalistas, os quais queriam defender a absoluta liberdade de Deus, pondo em causa a ideia de exemplares na Sua mente (aos quais estaria supostamente obrigado), fazendo, com isso, cair as essências e o seu princípio de individuação. O que é certo que o paradigma individualista – funde-se a comunidade política na vontade de Deus, que transmite o poder por sua graça ao monarca, ou na vontade dos homens – dificilmente defende o corpo político do abuso estruturante da acção soberana.

Isso é bem visível em Hobbes, em que o Estado de natureza traduza antes de mais a o exercício do poder soberano discricionário. Na verdade, o Estado de natureza nem é historicamente empírico nem uma ficção, ao jeito do véu da ignorância de Rawls, acerca dos fundamentos que permitam entender a origem lógica da sociedade e do poder. O Estado de natureza recria antes o que seria uma sociedade de individualismo possessivo de mercado, aquela que Hobbes começava a entrever e aquela a que dava o seu aval, se lhe tirássemos os mecanismos de controlo. Como uma sociedade assim tenderia sempre à desagregação, o instituto soberano actuando escrupulosamente acima das partes era positivo. Sendo as características do poder soberano as do Estado de natureza concentradas e uma vez que sem essa concentração seria impossível a existência de base de uma sociedade de individualismo possessivo de mercado, aquela que se quer identificar, logo o Estado de natureza caracteriza muito mais a soberania do que a ausência dela. Mesmo atendendo a que o Estado de natureza descreve igualmente e em primeira mão elementos societários evoluídos, abstraídos dos mecanismos de governo, o que ele implicaria se fosse de si real era a existência de múltiplos átomos soberanos, que fariam sua a conduta de governo a que estavam habituados em sociedade; ainda assim o estado de natureza teria a ver com a soberania[13].

Por outro lado, como bom materialista e mecanicista moderno, e se esta explicação for a que melhor serve o pensamento de Hobbes, este tendia a tomá-la como universalizável porque de acordo com as invariantes e princípios de explicação que caracterizariam o homem, na boa lógica da mecânica corpuscular e da psicologia sensista (que nitidamente reforçam a tese). O soberano seria o regulador ideal dessa matriz antropológica marcada pelo desejo insaciável de poder, não intrinsecamente político, mas também pelo visceral sentido de autopreservação. Seria então o mais capaz regulador das paixões da alma, essencial numa época em que se vai deixando de acreditar num regime objectivo e filosoficamente realista de virtudes[14]

Como o problema é a soberania e a primazia do Leviatã, talvez se devesse ver o soberano como transcendente ao pacto, que verdadeiramente não o produz e que só com ele faz sentido, parecendo-nos que se confunde as coisas quando se diz precisamente o contrário: que o contrato social originário produz o soberano. Embora decorra naturalmente da razão de ser soberana ordenar uma sociedade conflitual, sem a qual não faria sentido a existência de tal figura. Sendo por isso que o poder comum, quando abstraído da figura do soberano e não havendo sociedade preexistente, é dito gerado pelos indivíduos, uma vez que só há soberano porque existe uma sociedade para governar, não sendo o poder de natureza teocrática, e só há sociedade porque existem indivíduos que a constituem, aparentemente sem resto.

Mas os indivíduos contratam e pactuam entre si a estrutura comum do poder porque existe uma figura prévia que o possibilita. Daí que entre si e face a cada um se possa dizer que alienam o seu poder constituinte. Mas face ao soberano não, já que face a ele e no que toca ao poder não podem senão estar na condição de alienados. Sem o soberano não há sequer quem garanta o pacto sociopolítico da entropia constitutiva dos direitos naturais de cada indivíduo.

Não é por acaso que Hobbes refere que quem desobedecer ao soberano invocando um pacto com Deus também ele comete injustiça, uma vez que não pode haver pacto com Deus sem mediação de alguém, e esse alguém é o soberano, o lugar-tenente de Deus, o detentor da soberania abaixo de Deus. Deus esse, do qual a soberania releva da sua omnipotência.

Não dizemos que Hobbes defende ser o poder outorgado ao monarca pela graça de Deus, antes dizemos ser o contrato constituinte, que de qualquer forma se estabelece entre os indivíduos e não entre estes e o soberano, apenas um artefacto analítico para explicar um modelo de sociedade política, no que aos átomos que a compõem concerne, que está desde sempre implicado na e pela ideia e realidade soberanas[15].

Nestas circunstâncias e a um nível primeiríssimo, a quem mais que aos indivíduos poderia ser assacada a instituição do poder, se eles são tudo quanto há e o próprio soberano é um «deus mortal»? Mas mal comecemos a qualificar os níveis de explicação deparamos com a figura do soberano, o único a poder fazer cumprir na terra os ditames divinos da lei natural, isto é, da justiça querida por Deus.

Em suma, abstraindo, em segundo grau, para mostrar a sua inevitabilidade, do soberano, o poder remete ao contrato, tal como abstraindo, da mesma forma, dos mecanismos de controlo dos elementos societários evoluídos se remete ao Estado de natureza. A verdade é que nem o estado de natureza nem o poder são compreensíveis sem o soberano. Os indivíduos formalizam entre si a constituição do Estado porque há poder, perfeitamente representado no soberano, para instituir. Mas, vendo bem, esse poder representa-se a si mesmo, ou é a representação secularizada da soberania divina. No fundo, a excepção que reenvia para si mesmo, fruto da secularização de conceitos teológicos. Ora, esta mesma ideia de auto-representação soberana é manifesta na definição da essência do Estado que Hobbes nos dá.

Hobbes define-a como «uma pessoa de cujos actos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum»[16]. Embora seja evidente que os actos derivam da multidão, mediante pactos recíprocos entre todos, porque a soberania é coisa humana e a humanidade coisa de indivíduos, politicamente a pessoa soberana é que dá o tom, porque anteriormente apenas nos deparamos com uma multidão, isto é, com um conjunto de indivíduos que agregadamente e cada um por si ainda não estão politicamente qualificados. Logo, esses indivíduos nunca poderiam configurar partes políticas em ordem a um todo político com anterioridade ao soberano. O que mostra de antemão e uma vez mais que o soberano transcende e é pressuposto aquando do pacto ou pactos. Pelo que se pode dizer que o todo representa as partes se e só se e quando as partes forem qualificadas politicamente pelo todo, a unicidade soberana. O soberano remete então para a soberania e vice-versa, só assim podendo ser simplesmente soberano, isto é, plenamente livre e incondicionado (ab-soluto).

Tudo isto, não quer dizer que a linguagem seja clara e isenta de dificuldades, nomeadamente em torno à noção de representação pessoal num todo, de compreensão ainda algo volúvel à época, como mostraremos à frente.

Seria a soberania que tornaria possível o pactum societatis e não o inverso. Percebendo-se assim melhor o que, doutro modo, seria um estranho tour de force, ou seja, fundar a ideia soberana, absoluta, perpétua e indivisível num contrato de irremissível alienação. Nem outra coisa nos parece que Hobbes quer expressar logo no início da sua introdução ao Leviatã, a todos os títulos programática, quando começa por dizer:

 

«do mesmo modo que tantas outras coisas, a natureza (a arte mediante a qual Deus fez e governa o mundo) é imitada pela arte do homem também nisto: que lhe é possível fazer um animal artificial. Pois vendo que a vida não é mais do que um movimento dos membros, cujo início ocorre em alguma parte principal interna, porque não poderíamos dizer que os autómatos (máquinas que se movem a si mesmas por meio de molas, tal como um relógio) possuem uma vida artificial? […] E a arte vai mais longe ainda, imitando aquela criatura racional, a mais excelente obra de natureza, o Homem. Porque pela arte é criado aquele grande Leviatã a que se chama Estado, ou Cidade (em latim Civitas), que não é senão um homem artificial, embora de maior estatura e força do que o homem natural, para cuja protecção e defesa foi projectado. E no qual a soberania é uma alma artificial, pois dá vida e movimento ao corpo inteiro. […] Por último, os pactos e convenções mediante os quais as partes deste Corpo Político foram criadas, reunidas e unificadas assemelham-se àquele Fiat, ao Façamos o Homem proferido por Deus na Criação»[17].

 

As passagens citadas mostram que a sociedade política é expressa antes de mais pela cabeça que a representa, na medida em que a define como tal, isto é, pelo Estado, sendo esta unicidade estadual apenas viável se o for plenamente, se o Estado for soberano. E repare-se como novamente a figura do soberano é sempre subjacente a qualquer pacto e que se trata de uma precedência lógica, na sequência do texto, talvez por necessidade de clareza de exposição, mesmo genealógica. É que não só existem duas linhas distintas de projecção e construção para a cabeça e para o corpo político, pelo que a cabeça não deriva politicamente, nem do ponto de vista lógico nem genealógico, de nenhum pacto prévio, como, e quiçá mais importante, quem dá vida ao corpo político enquanto político é a alma soberana, não fazendo nenhum sentido que essa alma fosse previamente instituída em termos políticos por um corpo que ainda não tivesse vindo à vida, que verdadeiramente ainda não fosse corpo de resto, seriam aporias absolutamente desnecessárias e inexplicáveis num tão grande filósofo, caso MacPherson, como já dissemos, não tivesse entrevisto o óbvio: que não é suposto haver nenhum Estado de natureza operativo enquanto tal e em primeiro grau no pensamento de Hobbes; a que acrescentaríamos, o que temos vindo a argumentar, que tudo anda à volta e está em função da historicamente novel figura da soberania.

Tudo o que acabámos de expor é visível depois ao longo dos capítulos que tratam das causas, geração e definição, organização e funcionamento do Estado e da sociedade política, assim como dos direitos do soberano, particularmente os decisivos capítulos xvii e xviii, em que se vai dizendo que nunca o soberano pacta alguma coisa com qualquer parte e que os mecanismos de transferência de direitos por parte dos indivíduos se processam sempre na condição de outro assim o fazer, mas sempre pressupondo o soberano, a quem se transferem os direitos de governo. Daí que Hobbes venha a concluir, na sequência do programa acima citado, que

 

«a opinião segundo a qual o monarca recebe de um pacto o seu poder, quer dizer, sob certas condições, deriva de não se compreender esta simples verdade: que os pactos, não passando de palavras e vento, não têm qualquer força para obrigar, dominar, constranger ou proteger ninguém, a não ser a que deriva da espada pública. Ou seja, das mãos livres daquele homem, ou assembleia de homens, que detém a soberania, cujas acções são garantidas por todos e realizadas pela força de todos os que nele se encontram unidos. Quando se confere a soberania a uma assembleia de homens, ninguém deve imaginar que um tal pacto faça parte da instituição. Pois ninguém é suficientemente tolo para dizer, por exemplo, que o povo de Roma fez um pacto com os romanos para deter a soberania sob tais e tais condições, as quais, quando não cumpridas, dariam aos romanos o direito de depor o povo de Roma»[18].

 

É claro o absurdo que Hobbes aponta e que exemplifica no caso romano: não faz sentido um tal pacto porque desde logo para o fazer seria necessário que os romanos fossem romanos, ou seja, qualificados como pertencendo ao povo de Roma, mas isso implica que antes haja povo de Roma. Assim como os romanos que deporiam o povo de Roma, no preciso momento em que supostamente o deporiam não deporiam afinal nada, pois não tinham qualificação política para usar a figura da deposição, uma vez que pura e simplesmente não havendo povo de Roma também não existiriam partes designadas por romanos – é um pouco como a rábula dos gauleses a invadir a Gáulia.

Resta perguntar pela origem última da soberania enquanto figura qualificada e não como figura simpliciter, porquanto já sabemos que esta última é criação humana, analogando a pessoa do soberano à própria ideia de pessoa, no sentido de indivíduo e de átomo, no caso particularmente reforçado e robustecido, uma vez que nenhuma ordenação social natural prévia aos indivíduos. A resposta de Hobbes parece-nos algo aporética, é certo que ele diz que o poder soberano pode ser adquirido por sujeição dos inimigos ou quando os homens concordam entre si submeterem-se a outro, mas uma vez mais a figura é pressuposta. A tentação imediata seria afirmar que a origem do soberano decorre ontologicamente do próprio ser da política, mas parece-nos que a tese é demasiado forte e embate contra o individualismo metodológico de Hobbes. Cremos então que essa origem decorre, em primeiro lugar, naturalmente do próprio entendimento cabal da edificação do Estado na modernidade a que Hobbes assiste e talvez compreenda quase como nenhum outro. Por outro lado, essa origem não parece decorrer menos da própria formalização teórica do modelo, dada a particular antropologia sensista e mecanicista de Hobbes e a impossibilidade de aceitar a preexistência da sociedade relativamente ao indivíduo. Nesse caso, só a ideia soberana torna possível a vigência de uma sociedade política de átomos individuais, mas também só para esta faz a soberania inteiro sentido – a pressão teórica mas também ética sobre o modelo contratualista liberal é por demais evidente, mas não é este o momento para expor o assunto[19].                        

De qualquer forma, o Leviatã não é um soberano totalitário, porque o seu poder ainda não se exerce sobre as consciências privadas enquanto tais e nessa perspectiva o pacto adquire verdadeira acuidade.

As repercussões no âmbito internacional são óbvias, embora não haja nenhum governo mundial, Hobbes de modo algum pensa ser inviável à vida internacional, pelo que não é «hobbesiano» nem acredita na existência de qualquer anarquia internacional. Não apenas porque a passagem da ordem interna à externa, do micro ao macro implica diferenças epistemológicas a salvaguardar, bem visível na dificuldade de analogar os estados a indivíduos, uma vez que os estados ainda não possuem personalidade jurídica e a própria pessoalidade moral estadual está apenas a emergir[20], ou então porque a racionalização soberana implica uma contenção prudencial da anarquia (o outro seria apenas inimicus e não hostis), mas sobretudo porque não há soberano internacional, logo não há Estado de natureza real ou larvar. O que há, como se disse, são soberanos que introduzem uma primeira racionalização na vida internacional, ao introduzi-la nas suas comunidades. Para Hobbes não existe uma sociedade internacional como um todo, tendente a desagregar-se, logo o ferrete que impede a luta de todos contra todos, assumindo-a em si não é necessário. Outra coisa é considerar que essa ordem internacional plural é pacífica ou não é afectada pelos racionais soberanos, coisa que Hobbes também nunca disse, se é que essa foi alguma vez uma problemática central para ele.[21]

Já será Hegel a dizê-lo, ou, pelo menos, pode ser extraível do seu pensamento, que a lógica interestadual se baseia na igualdade, provindo esta igualdade da soberania, tendo que ser essa soberania minimamente substantiva. Ora, essa substantividade decorre em muito do jogo dialéctico intersubjectivo de mútuo reconhecimento. Pois bem, esse reconhecimento intersubjectivo, mesmo passando pela guerra, tem sempre algo de simbólico ou, mais precisamente, porque tem de passar pela guerra e não se impõe por si, há-de apelar no final sempre a uma retórica explícita ou implícita, pois cada uma das pretensões que se digladiam aceita que a outra vale e significa algo, caso contrário a guerra era o fim último do Espírito[22].

Mas se assim é, e já estamos para além de Hegel, a lógica simbólica assenta, por sua vez, numa dialéctica de impuissance, de relativa incapacidade e não de puro poder, pois a soberania nunca é pura e absolutamente segura na realidade, o que quer dizer que no próprio cerne do poder discricionário soberano (no âmbito externo) se dá a sua contenção; pelo que muito dificilmente se pode falar de anarquia internacional para explicar a cena internacional[23]. Aliás, essa impossibilidade do puro poder nem nunca poderia deixar de se dar sempre, não só porque, apesar da sua raiz teológica, o poder soberano enquanto poder fáctico humano é limitado, mas sobretudo (isto vale igualmente para os conceitos teológicos) porque já na ordem da formulação, do pensável, o absoluto só o é por negação do relativo, dos laços de relação, por suspensão de todos esses laços. Apenas podemos pensar o absoluto, o puro, através das relações que lhe são, própria e justamente, negadas e retiradas. Daí que o absoluto seja de alguma forma sempre o irrelativo (e o puro o que não é impuro), sem que ambos se sobreponham, senão as relações não seriam justamente retiradas nem faria qualquer sentido falar em retirada aludindo a uma magnitude outra que o pensamento pensa imperfeitamente nos limites do pensável.

Todavia, é necessário reter ainda que, formal, ontológica e metafisicamente, se dá uma contenção acrescida, com repercussões dirimentes ao nível conceptual, semântico e praxista. É que se o Absolutamente Outro enquanto absoluto transborda integralmente do absoluto pensável, configurando o tal absoluto de facto, o tal que…, que nós impropriamente denominamos de absoluto, já o absoluto da soberania, como figura finita da finitude humana, mesmo quando transborda do pensável, associado às cristas mais inauditas que parasitam o homem na sua raiz, nunca consegue ser tão absoluto quanto isso, por assim dizer.

Em suma, logo aquilo que mais serviria à possibilidade do deflagrar efectivo da anarquia internacional e à sustentabilidade conceptual e semântica da sua ideia, a discricionaridade absoluta do soberano, afinal nunca é puramente incontida, ou melhor, se olharmos à dialéctica de impuissance e à sua lógica simbólica, é até um primeiro momento inesperado, porque não pensado para ser isso, de contenção. Independentemente da sua capacidade ordenadora e racionalizadora, fazendo agora caso omisso do seu preço, até mesmo no seu momento cinético «total», a ideia de soberania não cauciona essa outra de anarquia internacional. Ideia última esta que parece assim configurar um mero mito, no sentido negativamente nebuloso que, por vezes, o termo contempla.

 

SERÁ POSSÍVEL VIRTUALIZAR A SOBERANIA? A PROPÓSITO DE DERRIDA

De facto, a soberania nunca se dá em estado puro, e é por aí, na desconstrução binária do conceito, que pega Derrida, enlaçando o seu cerne negativo com a face eventualmente luminosa que o conceito de soberania também adquiriu na filosofia política moderna ocidental e mesmo na filosofia ocidental tomada em conjunto, se pensarmos, por exemplo, nos sintagmas ontológicos e metafísicos do soberano bem ou da soberania de Deus. Nesse sentido, Derrida refere-se ao mal de soberania (mal de souveraineté) no duplo sentido, que se dá igualmente no mal de amor, em que se sofre da soberania, se padece do mal da soberania como de uma doença objectiva, dos seus excessos comparativamente ao estado são, mas também se sofre pela sua falta, pela sua ausência. Explica então o filósofo francês que

 

«se ao soberano bem o meu título associa o mal de soberania não é apenas para jogar com a oposição do bem e do mal, mas, atentando no idioma francês “être en mal”, “être en mal de”, gostaria, pelo contrário, de sugerir que a soberania falta sempre, que sempre ela está em falta, mas como o mais desejável a que ninguém seria capaz de renunciar. E que ela transporta em si o mal, que o soberano bem não se opõe ao mal mas contrai com ele uma espécie de contágio secreto. É, se quiserem, o bem em sofrimento, o bem à espera»[24].

 

Já noutro texto, intitulado Vadios (Voyous), em que a problemática dos rogue sates (estados vadios, estados párias, como são habitualmente conhecidos, ou estados canalhas) é central, e onde se argumenta que de algum modo todos os estados são estados vadios, uma vez que a soberania implica sempre e de modo constitutivo o uso abusivo do poder, no mais inconfessável silêncio das suas razões, na exacta medida em que é incondicionalmente soberana, majestática e por isso não tem de dar explicações. 

Derrida diz expressamente que

 

«o paradoxo, sempre o mesmo, é que a soberania é incompatível com a universalidade, quando no fundo é sempre apelada por todo o conceito de direito internacional, logo universal ou universalizável, e portanto democrático. Não há soberania sem a força do mais forte cuja razão – a razão do mais forte – é a de levar a melhor em tudo (d’avoir raison de tout) […] Conferir sentido à soberania, justificá-la, encontrar-lhe uma razão, é já encetar a sua excepcionalidade decisória, submetê-la a regras, a um direito, a uma lei geral, ao conceito. É portanto dividi-la, submetê-la à partição, à participação, à partilha. É dar conta dela. E dar conta da soberania é encetar a sua imunidade, virá-la contra ela mesma. O que acontece a partir do momento em que se fala dela para lhe dar ou lhe encontrar sentido, e como isto acontece sempre, a soberania pura não existe, ela está sempre em vias de se posicionar desmentindo-se, denegando-se ou desacreditando-se, (em vias) de se auto-imunizar, de se trair (assim) traindo a democracia que, no entanto, não acontece nunca sem ela»[25].

 

A longa citação justifica-se uma vez que o texto não tem desperdício. Trata-se de uma universalidade que pressupõe a transparência e a publicidade, como tão bem viu Kant, mas em que o problema reside no não-dito, o inconfessável ser o reino mais próprio da soberania, se assim se pode dizer. Todavia, também aqui, por força da soberania historicamente nunca se apresentar em estado puro, se manifesta a ambiguidade[26]. No fundo, se a democracia é traída por esta apresentação ao mundo das credenciais da soberania, quando à primeira vista pareceria precisamente o contrário, é porque assim a soberania parece intrinsecamente legítima quando não o é, de certa forma se imuniza dela e a ela mesmo. Contudo, como a soberania é também mal em si, nunca estando em estado puro é também um mal por isso, porque está sempre plenamente em falta, porque se esconde no «a meio caminho» e como tal não pode ser completamente desmascarada. A coisa complica-se, porque este não é para Derrida o único sentido da sua falta, pois como mostra a própria passagem citada, a soberania também está sempre em falta porque configura (ou parece configurar) o plenamente livre, o povo perfeitamente soberano na sua transparência e como tal respeitável e a respeitar no âmbito internacional contra quaisquer ensejos hegemonistas ou imperiais.

Porém, como já Benjamim tinha visto relativamente às tentações do soberano barroco face ao mundo e ao seu próprio corpo finito, a soberania tende a culminar em tragédia, uma vez que na criatura finita a potência de realização se materializa sempre em acto limitado, em mero poder de facto, que no caso se quer puro poder e por isso denega todas as outras potencialidades e manifestações. Já concebida como criatura-desde-Deus, e na medida em que Deus é o que quer ser e quer ser o que é, incluindo a sua soberania o amor totalmente gracioso caso não queiramos ferir a sua omnipotência como mera autopossessão e mero amor de si, a potência nunca se desfaz totalmente no acto limitado em que se concretiza, uma vez que aí não é mobilizada por si mesma mas pelo amor que a alimenta e que a investe, amor esse que é sempre um acto de infinitização, um recomeçar sempre de novo de acordo com as possibilidades mais próprias do ser humano, no seu consumar-se aberto e histórico, até que Alguém seja (escatologicamente) tudo em todos. Não sendo por acaso que Agamben traz ao primeiro plano do palco essa vida nua puramente exposta, porque é ela que é curto-circuitada enquanto viver aberto pela sem-razão extemporânea da soberania que se apresenta como estrita oclusão do aberto.

Derrida não é avesso a essa demasia, ou, a bem dizer, insuficiência ontológica e metafísica da soberania. Não sendo por acaso que tanto o filósofo francês como Agamben usam as metáforas do lobo e do lobisomem, que reproduzem tanto a figura do tirano-lobo, quanto a ambiguidade do ser lobisomem (mais em Agamben, neste caso), enquanto «nem carne nem peixe», exposto ao estado de excepção soberano ou encarnando esse mesmo estado. Todavia, quer salientar igualmente que, ainda que de forma perfeitamente tergiversada na história ocidental, se percebe a intenção de fundo de liberdade, e não menos importante, que nas mediações de consequências imprevistas características da história aberta de uma criatura finita, também a soberania sinaliza faces eventualmente mais positivas. Daí que Derrida conclua O Soberano Bem dizendo que

 

«a procura de soberania na forma do soberano bem, o estar mal de soberania seria, ai de nós, indissociável da possibilidade do próprio mal, da pulsão de poder (Bemächtigungtrieb) e da pulsão de destruição, e inclusive da pulsão de morte. […] Mas como fazer para que este legítimo estar-mal de soberania não se torne uma doença e uma infelicidade, uma doença mortal e mortífera [que se possa partilhar o impartilhável]? É o próprio impossível»[27].

 

Como noutros casos em Derrida (lembremos o verdadeiro perdão, o do imperdoável), o impossível não remete para o espontaneamente negativo, lido e desconstruído como tende a ser de forma binária. Leitura que no caso vertente é tanto mais pertinente quanto o absoluto da soberania, desde logo na sua concepção, não pode escapar da sua faceta «apenas» irrelativa.

Postas assim as coisas, a soberania seria, quando muito, pensando em Schmitt e em Hobbes, uma resposta possível, ainda que algo inaudita, às desagregações indevidas mas quiçá inevitáveis provocadas pelas próprias aspirações primevas quando transaccionadas por criaturas finitas, quase sempre de forma extemporânea. No fundo, um cisne negríssimo respondendo a uma história de cisnes negros (aqui já não tomados adjectivamente mas simplesmente pela sua aparição enquanto tais). Mas isso seria aceitar que não existiria ou existe uma outra resposta possível. É partir erroneamente do pressuposto que o inaudito reinaria sim se não houvesse esse «inaudito» da soberania, que é o mesmo que dizer que o homem por si não tem solução nem a figura do outro existe verdadeiramente anelando por justiça. Aceitando um pouco o cinismo desse jogo de linguagem, não nos parece que o mesmo seja sequer remunerador nos seus próprios termos.

 

NOTAS

[1] Acerca do ocaso do Estado soberano, quiçá vaticinado demasiado apressadamente, quanto mais não seja porque a soberania, que lhe é essencial, continua a perdurar enquanto racional, mais ainda, enquanto marca de contrastaria de que julgamos não poder abrir mão, vide as lúcidas observações de Gray, John – A Morte da Utopia e o Regresso das Religiões Apocalípticas [no original Black Mass]. Lisboa: Guerra e Paz, 2008, pp. 135 e 259. Embora rejeitemos estruturalmente a sua particular posição realista.

[2] Cf. Agamben, Giorgio – El Tiempo que Resta. Comentario a la Carta a los Romanos. Madrid: Trotta, 2006, pp. 105-106.

[3] Cf. Agamben, Giorgio – O Poder Soberano e a Vida Nua. Homo Sacer. Lisboa: Presença, 1998, p. 84. O capítulo três, donde é extraída a citação, traça a genealogia da vida sagrada, do homo sacer. Sobre isto, vide igualmente, Agamben, Giorgio – Profanações. Lisboa: Cotovia, 2006, pp. 111-112.

[4] Giorgio Agamben mostra através do conceito de qualquer quanto o anonimato esconde o mais intencional dos reptos, o amor. O qualquer não é a singularidade indiferente relativamente a uma propriedade comum, mas a singularidade tal qual é, o ser que seja como for não é indiferente e por isso é amável. A singularidade exposta como tal é qual-quer, porque «o amor nunca escolhe uma determinada propriedade do amado (ser louro, pequeno, coxo, terno) nem prescinde dela em nome de algo de insipidamente genérico». Cf. Agamben, Giorgio – A Comunidade que Vem. Lisboa, 1993, pp. 11-12. Para uma visão mais desenvolvida do que é «viver a sua própria vivibilidade», cf. Agamben, Giorgio – El Reino y la Gloria. una genealogía teológica de la economía y del gobierno. Homo Sacer II, 2. Valencia: Pre-Textos, 2008, p. 270.

[5] Cf. Schmitt, Carl – Théologie Politique. Paris: Gallimard, 1988, pp. 22-25, onde se diz que a excepção, estando dentro e fora da norma jurídica, é mais interessante do que o caso normal, pois este não prova nada, enquanto a excepção prova tudo. A regra não sobrevive senão pela excepção que a conforma e a confirma. Nesta apertada síntese somos igualmente devedores do artigo de Sá, Alexandre Franco de – «Do decisionismo à teologia política: Carl Schmitt e o conceito de soberania». In Revista Portuguesa de Filosofia. Braga. Tomo lix, Fasc. 1, Janeiro-Março de 2003, pp. 89-111. Na verdade, Schmitt talvez se aperceba como nenhum outro do défice de fundamentação do Estado moderno. Como muito bem nos expressou epistolarmente Alfonso Galindo Hervás, um outro reputado especialista em Schmitt, a quem estamos gratos, e que aqui parafraseamos, o decisionismo do pensador alemão significa antes de mais que toda a ordem e todo o poder são essencialmente contingentes, carecendo de outro fundamento distinto da decisão – em bom rigor, um não-fundamento. E se Agamben tiver razão quanto à estrutura teológico-económica original do poder soberano, enquanto suma articulação de auctoritas e potestas, reino e governo, então as pretensões kelsianas ou neokelsianas perdem definitivamente qualquer eficácia argumentativa a nível fundacional. Na verdade, o que Agamben defende é que o poder soberano no seu todo parece ter uma origem ou, pelo menos, um fundo teológico-económico gestionário, essencialmente vicário, em que auctoritas e potestas se remetem mutuamente, cada figura fazendo as vezes da outra, numa remissão à economia intratrinitária, daí derivando a sua insubstancialidade e o seu paradoxal carácter de archê an-árquico, pois nenhuma das suas figuras está, em exclusivo, em posição de fundamento. Pelo que o soberano não obedeceria a um substrato claro que ultimamente o constrangesse. Cf. Agamben, Giorgio – El Reino y la Gloria, pp. 154 e segs.        [ Links ]

[6] Cf. Schmitt, Carl – El Nomos de la Tierra. En el derecho de gentes del «Ius publicum europaeum». Granada: Comares, 2003, p. 24. Para uma visão crítica da interpretação que Schmitt, bem como do pensamento teológico clássico, faz do Katechon, cf. Agamben, Giorgio – El Tiempo que Resta. Comentario a la Carta a los Romanos, pp. 108-111. Agamben identifica o Katechon e o Ánomos, figura do fora da lei absoluto, que designariam assim um único poder visto antes e depois do tempo final e que se encontrariam no tempo messiânico. Neste tempo messiânico, a vinda do Messias mostraria que o poder profano é o véu que cobre a aparência da realidade substancial, uma realidade não nomística e plenamente livre. Em tempos messiânicos essa aparência do poder é desapropriada como realidade (tida por) natural; virá depois a consumação final em que a aparência é definitivamente eliminada e o Ánomos será mostrado como fora da lei Absoluto. Com essa complexa reflexão que aqui apenas sumariámos, Agamben pretende mostrar que a carta paulina não permite fundamentar nenhuma doutrina cristã do poder pace Schmitt. Também Jacob Taubes, em reacção a Schmitt, sem pôr em causa o sentido clássico do Katechon, diz ser este um primeiro sinal de domesticação e cumplicidade da doutrinação cristã escatológica com as puras potestades deste mundo. Cf. Taubes, Jacob – La Teología Política de Pablo. Madrid: Trotta, 2007, p. 169.

[7] Para uma leitura mais pormenorizada das diferenças entre Agamben e Schmitt relativamente aos pressupostos de onde partem e ao horizonte de enquadramento das conclusões a que chegam, cf. Hervás, Alfonso Galindo – La Soberania. De la teologia política al comunitarismo impolítico. Murcia: Res Publica, 2003, em especial as pp. 231 e segs; ainda do mesmo autor, Política y Mesianismo. Giorgio Agamben (Madrid: Biblioteca Nueva, 2005, pp. 15-28, 133 e segs). Alfonso Galindo defende como pensamento impolítico, no qual inclui Agamben, todo o pensamento que para subtrair-se ao terror produzido pela política do Estado soberano, sugere a experiência comunitária, cujos critérios de aproximação serão basicamente a irrepresentabilidade e a passividade, não deixando assim espaço à figura de um representante soberano nem à de um chefe-de-obra, porquanto a comunidade assim experienciada não pretende nenhuma afirmatividade no concerto das nações, nem sequer face aos seus membros, aos quais expurgaria a sua vitalidade. O simples ser ou pôr em comum as singularidades que caracteriza uma tal comunidade é sempre ferido de morte por uma tal identidade ostensiva e superveniente; identidade essa que teria definido toda a política moderna senão mesmo todo o exercício histórico da política. Daí que, não obstante os pensadores impolíticos fazerem uma análise crítica radical do universo político moderno, os seus pressupostos e as suas conclusões de natureza ontológica ou metafísica, digamo-lo, transbordam desse mesmo universo, ou reduzem-no, como unilateral, quando não perigoso, quando se trata de compreender matérias, à primeira vista, em grande parte políticas, como é o caso da estruturação de uma comunidade. Julgamos que a expressão (espositiana) impolítico glosada por Alfonso Galindo é feliz, pois quer nos parecer que pretende jogar tanto com o dentro do político como com a impossibilidade do político que se infere da sua crítica radical. Embora a subsequente desvalorização de toda a política por si mesma, por parte dos impolíticos, nos pareça excessiva, a desvalorização radical da sua centralidade tem o nosso acolhimento pace Galindo, Rawls ou o Walzer das Esferas da Justiça.

[8] Cf. Schmitt, Carl – Théologie Politique, p. 46, onde o pensador alemão expressa claramente que todos os conceitos pregnantes da teoria moderna do Estado são conceitos teológicos secularizados. Aliás, estas afirmações fazem parte do terceiro capítulo da obra, publicada em 1922, aquele que introduz propriamente a teologia política.

[9] Cf. Agamben, Giorgio – O Poder Soberano e a Vida Nua. Homo Sacer, pp. 25-27; e Schmitt, Carl – Théologie Politique, p. 15, onde se afirma que o soberano é aquele que decide o Estado de excepção. Evidentemente que o ponto de partida das teses agambenianas sobre a soberania não é outro senão esta asserção schmittiana e as suas fundações, ainda que depois vá parar a formulações contrárias sobre o sentido ou des-sentido da soberania para a vida humana, incluindo a vida em comunidade politicamente estruturada.

[10] Reside aqui uma das maiores cruzes da teoria das relações internacionais: o de interpretar sistemicamente a cena internacional, quando toda ela foi e continua a ser marcada desde o seu início, a Idade Moderna, em elevado grau, por racionais soberanos. Sendo esses racionais soberanos precisamente a quinta-essência da negação sistémica. Interpretar um mundo sistemicamente, para mais e quase sempre de forma mecanicista, quando esse mundo está pejado de veios soberanistas, é de uma tão flagrante contradição nos termos que, confessamos, não conseguimos entender por que razão os internacionalistas ainda o fazem. 

[11] Cf. Agamben, Giorgio – Op. Cit., pp. 91-101; e Kantorowicz, Ernst – Los Dos Cuerpos del Rey. Un estudio de teología política medieval. Madrid: Alianza, 1985. Repare-se como o próprio São Tomás de Aquino justificou sempre a possibilidade eventual do tiranicídio, acaso o poder fosse radicalmente injusto, uma vez que o dever do rei era ser o guardião da justiça e não a cabeça que ditava ou criava em estado de excepção essa justiça. Ultimamente os homens deveriam sempre obedecer mais a Deus do que a outros homens, o que deve ser entendido não como um ataque à ordem secular, da qual São Tomás foi um dos primeiros a valorizar na sua autonomia relativa, mas como uma firme recusa de sacralização dos atributos de poder em si mesmo. Cf. Aquino, São Tomás de – Suma Teológica, IIa IIae, q.104, a.6. Manejámos a edição francesa, traduzida por A. Sertillanges (3 vols., Paris: Desclée, 1925-1926). Parece haver, no entanto, indícios de que Agamben acabou por aceitar a modernidade do conceito acabado e definido enquanto tal de soberania, ao reconhecer que a suspensão do direito como necessária ao bem comum é estranho ao mundo medieval. Cf. Agamben, Giorgio – Estado de Excepción. Homo sacer II, 1. Valencia: Pre-Textos, 2004, pp. 42-43.

[12] Cf. Macpherson, Craig – La Teoria Política del Individualismo Posesivo. De Hobbes a Locke. Madrid: Trotta, 2005, pp. 21-111, para a matéria que directamente nos concerne. Cf., Agamben, Giorgio – O Poder Soberano e a Vidua Nua, pp. 104 e segs., 120-121. Evidentemente que desta forma nos parecem superadas as objecções que João Paulo Monteiro coloca às teses de Macpherson no prefácio à edição portuguesa do Leviatã, uma vez que a nossa recuperação do exegeta canadiano é estritamente político-filosófica. Aliás, não temos a certeza que essas críticas sejam completamente legítimas, porque não estamos certos que Hobbes, sem que naturalmente quisesse ou pudesse ser profeta ou adivinho, não tivesse entrevisto o essencial do processo de racionalização do Estado moderno, incluindo o Estado liberal. Cf. Monteiro, João Paulo – «Prefácio». In Hobbes, Thomas – Leviatã. 3.ª ed. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, [2002], pp. 7-16.

[13] Enxertamos aqui de forma explícita a caracterização que fazemos da soberania na interpretação que Macpherson faz do Estado de natureza e da sociedade política em Hobbes, da qual, na prática, apresentámos um resumo. Hobbes diz expressamente que «as paixões que fazem o homem tender para a paz são o medo da morte, o desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável e a esperança de as conseguir através do trabalho». Cf. Hobbes, Thomas – Leviatã, cap. xiii, p. 113. É bem visível o acerto das teses de Macpherson, que também usa esta passagem. Mas basta ler os capítulos anteriores sobre as faculdades humanas e suas aplicações, pressupostos pelo capítulo xiii, para percebermos de imediato de que não se trata verdadeiramente de qualquer puro Estado de natureza.

[14] Para a importância do esquema mecanicista em Hobbes, cf. Fraga, Fernando Aranda – «Hobbes y la epistemología de la ciencia política». In Revista Portuguesa de Filosofia. Braga. Vol. 59, Fasc. 1, Janeiro-Março de 2003, pp. 69-88. Acerca do fim do regime objectivo de virtudes e do controlo das paixões da alma, para além dos clássicos MacIntyre Alsair – After Virtue: A Study in Moral Theory. 2.ª edição. Notre Dame, Indiana, University of Notre Dame Press, 1984; e Hirschman, Albert – As Paixões e os Interesses. Argumentos políticos para o Capitalismo antes do seu Triunfo. Lisboa: Bizâncio, 1997; vide Henriques, Mendo Castro – «Descartes e a possibilidade da ética». In Cantista, Maria José, e Meirinhos, José (coords.) – Descartes, Reflexão sobre a Modernidade. Actas do Colóquio Internacional (Porto, 18-20 de Novembro 1996). Porto: Fundação Eugénio de Almeida, 1998, pp. 253-266.        [ Links ]

[15] Cf. Hobbes, Thomas – Leviatã, cap. xviii, p. 150, para o soberano como lugar-tenente de Deus, seu representante, agindo politicamente na Terra como se de Deus se tratasse. Para a derivação do direito soberano de Deus da sua omnipotência, vide o cap. xxxi, p.280.

[16] Cf. Hobbes, Thomas – Leviatã, cap. xvii, p. 146.

[17] Cf. Ibidem, Introdução, pp. 23-24.

[18] Cf. Ibidem, cap. xviii, pp. 150-151.

[19] Para a origem da soberania em Hobbes, cf. Ibidem, cap. xvii, pp. 146-147. Num sentido que tem similitudes com a proposta de interpretação apresentada, vide Koselleck, Reinhart – Crítica y Crisis. Un estudio sobre la patogénesis del mundo burguês. Madrid: Trotta/Universidad Autónoma de Madrid, 2007, em particular a segunda parte do primeiro capítulo, pp. 37-49; Koselleck é um autor de claras influências schmittianas, que, de resto, assume.

[20] Cfr. Homem, António Barbas – História das Relações Internacionais. O Direito e as Concepções Políticas na Idade Moderna. Coimbra: Almedina, 2003, p. 83. Onde se refere que o Estado não possui personalidade jurídica própria antes do século xviii. Cf. Igualmente, Hobbes, Thomas – Leviatã, cap. xvi. Para o filósofo inglês a questão central ainda é a da representação de uma pessoa por outra e as condições dessa representação. Trata-se, portanto, de um momento histórico de transição e não de um mais tardio em que a legitimação do carácter representativo do Estado está concluída e o que importa é compreender as características do representante, da pessoa fictícia (que doravante é mais do que isso) por si mesmo.

[21] O parágrafo final do capítulo xxx do Leviatã, p. 277, parece-nos ser uma confirmação do argumento por nós proposto em torno à cena internacional referida a Hobbes, além de ser uma mostra clara de que não havendo nenhum tribunal de apelo internacional, ainda assim a vida internacional é perfeitamente sustentável, incluindo a observância do direito das gentes entre soberanos, no que parece ser uma alusão suareziana. Cf. Hobbes, Thomas – Leviatã, cap. xxx, p. 277.

[22] Cf. Hegel, Georg Wilhelm – Princípios da Filosofia do Direito. 4.ª edição. Lisboa: Guimarães Editores, 1990, § 338, p. 310. Além do mais, o fazer guerra é desde logo reconhecer que o outro tem de ser vergado, que não está simplesmente à nossa mercê; que o vergá-lo exige cálculo e ponderação estratégica e, portanto, alguma coisa o outro vale em si mesmo, ainda que a descoberta desse valor intrínseco seja a posteriori, quando se dá a reacção que me obriga à parada vital, porque afinal percebo que o outro sempre foi outro, eventualmente com iguais pretensões soberanas, e não mera marioneta. 

[23] Seguramente, o não reconhecer este im-poder, mais, esta impotência no âmago do próprio exercício do poder, é uma das cruzes das teses realistas em relações internacionais.

[24] Cf. Derrida, Jacques – O Soberano Bem ou Estar Mal de Soberania/Le Souverain Bien ou être en mal de souveraineté. Viseu: Palimage, 2004, p. 17. Trata-se de uma obra bilingue que reproduz uma conferência de Derrida na Universidade de Coimbra, em 2003, no âmbito de um colóquio internacional dedicado precisamente ao seu próprio pensamento.

[25] Citado in Derrida, Jacques – O Soberano Bem ou Estar Mal de Soberania/Le Souverain Bien ou être en mal de souveraineté, p. 110. Não se trata de uma autocitação, antes de uma citação em nota explicativa da filósofa derridiana coimbrã Fernanda Bernardo, na prática a editora do texto. Os parêntesis curvos são igualmente dela. Sobre a leitura de conjunto que traçámos da obra, cf. Derrida, Jacques – Vouyous. Deux essais sur la raison. Paris: Galilée, 2003.

[26] Até porque, como já vimos, logo mesmo na ordem conceptual o absoluto da soberania não é ou não consegue ser o absoluto sem mais, simpliciter.

[27] Cf. Derrida, Jacques – O Soberano Bem ou Estar Mal de Soberania/Le Souverain Bien ou être en mal de souveraineté, p. 107. Ainda assim, essas positividades parecem muito mais querer indicar outros caminhos do que um resgate puro e simples da soberania. Não é por acaso que, embora reconhecendo que ao exercer-se efectivamente o perdão este parece implicar algum poder soberano, Derrida diga de imediato que a pureza de um perdão digno desse nome seria um perdão sem poder, uma incondicionalidade absoluta e sem mácula mas absolutamente dissociada da soberania. Cf. Derrida, Jacques – «El Perdón» [no original uma entrevista dada a Michel Wiervioka e publicada em Le Monde des Débats, em Dezembro de 1999]. In Aa.Vv. – El Perdón, Virtud Política. En torno a Primo Levi. Barcelona: Anthropos, 2008, p. 139. O que nos leva desde logo a pensar nesse advento messiânico, de extracção paulina, que percorre a obra de Agamben: o advento da potência que se realiza na debilidade e que desactiva, torna inoperante o poder de todas as potestades e dominâncias do mundo. Todavia, essa poderá ser uma «solução final» que force demasiado o pensamento abertamente tensional de Derrida. Não nos devemos esquecer que o perdão puro e incondicional para Derrida não deve ter qualquer meta. É uma referência incontaminada de qualquer conteúdo transaccional, estando mesmo para além de um horizonte de redenção. Mas não será esse para além de todo o horizonte, logo de todo o condicional e ainda perspectivístico, que a noção de horizonte comportaria, o reino da paz puríssima, o reino de Deus simpliciter? Nesse caso, já nem a figura do perdão mereceria a pena aí referenciar, pois estaríamos para além dela. O puro perdão seria da ordem do imediatamente anterior, do absolutamente gratuito que inaugura esse reino, do gesto que começa quando começa, do gesto de paz pura que redime, que antecede, se é que faz algum sentido falar aqui ainda de cronogramas, a consumação consumada. Então o puro perdão seria ainda de uma ordem penúltima, não integral, com qualquer coisa ainda de transaccional, como no tempo, porque o «depois» estaria já para além do fim final, o derradeiro seria mais que último, um «final final», se queremos manter as analogias sequenciais, só que em relação a uma «ordem» completamente diversa, a eternidade; e aí figura do perdão também ela se teria desvanecido, ter-se-ia tornado inoperante e desnecessária. Todavia, parece mais sensato pensar que esses «dois momentos» fazem parte do mesmo compacto «ontológico», pelo que o perdão incondicional não é estranho à redenção, antes pelo contrário; a redenção não é uma meta mas a desapropriação de todas as metas e de todas as transacções sacrificiais que qualquer meta comporta.

 

[*] Professor auxiliar com agregação do Departamento de Estudos Políticos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Estrategista.