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Relações Internacionais (R:I)
versão impressa ISSN 1645-9199
Relações Internacionais n.27 Lisboa set. 2010
Portugal, a Grande Recessão e a Europa
Luciano Amaral
Professor auxiliar da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa. Doutorado em História e Civilização pelo Instituto Universitário Europeu de Florença.
RESUMO
A relação da economia portuguesa com a crise internacional começada em 2007, a qual vem ganhando o nome convencional de Grande Recessão, não é simples. O grande problema da economia portuguesa não é dos últimos anos, mas da última década: desde o princípio do século XXI que se sucedem as mais pobres taxas de crescimento, o que tem levado a uma substancial perda de terreno em relação aos países mais desenvolvidos. Com este artigo tentamos perceber as consequências da evolução económica portuguesa, que vão muito para além da economia, tocando em especial no projecto da União Europeia e, logo, na inserção de Portugal nele.
Palavras-chave: Portugal, União Europeia, história económica, crise económica e financeira
ABSTRACT
Portugal, the Great Depression and Europe
The linkage between the Portuguese economy and the 2007 international crisis which has been named as Great Depression is not clear. The major problem of the Portuguese economy is not born in recent years, since the beginning of the 21st century that we assist to the lower development rates, which has contributing to deepener the gap with the developed countries. In this article we will examine the outcomes of the Portuguese economy evolution that extrapolate the economic sphere, reaching the European Union project and the Portuguese insertion on it.
Keywords: Portugal, European Union, economic history, economic and financial crisis
A relação da economia portuguesa com a crise internacional começada em 2007, a qual vem ganhando o nome convencional de Grande Recessão, não é simples. Em termos de crescimento, a Grande Recessão não nos parece ter afectado excessivamente. Claro que os ritmos têm sido modestos, e houve mesmo crescimento negativo ao longo de todo o ano de 2009. Mas nem a contracção nem a quebra das taxas foram das maiores em termos internacionais. O grande problema da economia portuguesa não é dos últimos dois anos, mas da última década: desde o princípio do século XXI que se sucedem, ano após ano, as mais pobres taxas de crescimento, o que tem levado a uma substancial perda de terreno em relação aos países mais desenvolvidos. Na linguagem que se vem tornando habitual, a última década foi de divergência.
Mesmo o mais recente drama do país, o do preço dos juros da dívida pública nos mercados de capitais internacionais, não resulta propriamente da crise imediata, mas das perspectivas de crescimento a médio e longo prazo. Nem o défice do Estado nem o volume da dívida pública se contam entre os mais elevados do mundo, sendo que o País se envolveu desde o princípio do século em programas (mais ou menos bem concretizados) de redução do défice orçamental. E os receios dos mercados de capitais também não se relacionam com suspeitas de incapacidade de pagamento no curto prazo (ao contrário do que acontece com a Grécia ou a Irlanda). Para os mercados de capitais (pelo menos na interpretação dada pelos seus oráculos, as agora infames agências de rating), as dificuldades imediatas só são importantes no sentido em que fazem parte de uma incapacidade de pagar a prazo, cuja origem é o baixíssimo ritmo de crescimento na última década e o que ele prenuncia para os próximos anos.
Importante perceber não é, portanto, o que tem acontecido nos últimos meses (estando aqui Portugal numa situação que é comum a todas as economias do mundo), mas o que tem acontecido desde o princípio do século XXI. E também importante é perceber as consequências desta evolução, que vão muito para além da economia, tocando em especial no projecto da União Europeia (UE) e, logo, na inserção de Portugal nele.
Uma longa crise
A economia portuguesa viveu um longo período de optimismo entre 1986 e o ano 2000. Era o tempo em que sucessivos economistas viam em Portugal um «caso de sucesso». Quando, no início do século XXI, apareceram os primeiros anos de crescimento medíocre, muita gente acreditou tratar-se apenas de algo passageiro. Rapidamente voltaríamos ao ritmo dos anos anteriores, tal como já acontecera a seguir a 1994, depois da crise iniciada em 1992. Entretanto, quase sem darmos por isso, passou uma década, e continuámos a afastar-nos das economias mais ricas. Hoje somos, em termos comparativos, seis por cento mais pobres do que éramos no ano 2000, e o pessimismo está de regresso.
No entanto, a ideia de um grande ciclo uniforme de crescimento entre meados dos anos 1980 e o final do século XX é uma ilusão estatística decorrente da contiguidade temporal entre dois ciclos diferentes, o primeiro entre 1986 e 1992 (talvez 1986-1990 fosse a periodização mais correcta) e o segundo entre 1995 e 2000. O primeiro foi marcado pela inversão das condições da crise internacional dos anos 1970 (embaratecimento do preço do petróleo e queda do dólar), pela abertura da economia europeia às exportações portuguesas e pelo enorme afluxo de capitais e outros meios de pagamento do exterior. Como, ao mesmo tempo, os governos da época seguiram uma política orçamental expansionista (embora não o parecendo, graças à poupança no serviço da dívida), a economia foi impulsionada por excepcionais circunstâncias externas e internas. Este crescimento mostrou os seus limites quando se deram sinais de sobreaquecimento, sob a forma de inflação. Para a combater, adoptou-se então, em 1990, uma política monetária e cambial restritiva, cujas consequências foram o abrandamento da economia entre 1990 e 1992 e a longa crise de 1992 a 1994.
Quando a partir de 1995 o crescimento regressou, não o fez da mesma forma e, talvez por isso mesmo, não foi tão acentuado. Tendo a política monetária e cambial restritiva persistido (como tem persistido até hoje), as exportações passaram a ter um papel cada vez menor na estrutura e, logo, no crescimento da economia. O bom ritmo de crescimento deveu-se predominantemente a uma política orçamental expansionista, que foi possível seguir sem consequências muito graves graças à queda consistente das taxas de juro e à redução da dívida (em resultado do programa de privatizações então aplicado). Mesmo assim, vem desses anos o início do endividamento externo que agora tanto nos assusta (e aos nossos credores ). Ao contrário do que transparece de muito do debate político corrente, o endividamento não começou com a adesão à União Económica e Monetária (UEM, vulgo, euro), mas logo em 1995. Na época, contudo, julgou-se que não passaria de um fenómeno transitório.
Finalmente, tudo mudou quando, a partir do início do século (em especial desde 2002), as contas públicas começaram a apresentar saldos negativos inaceitáveis no contexto da UEM. Desde então que os governos têm adoptado políticas orçamentais contraccionistas, as quais se acrescentaram assim à política monetária para estrangular o crescimento da economia. E foi sobre este cenário que se abateu a crise iniciada em 2007. Não houve, portanto, um longo ciclo de crescimento de 1986 a 2000, interrompido pela crise de 1992-1994, mas dois ciclos diferentes, com razões e virtualidades diferentes. Num certo sentido, o segundo é já prenunciador das dificuldades posteriores, ao assentar numa expansão interna que a economia não conseguiu pagar colocando os seus produtos no mercado internacional. Este quadro parece resultante de um problema estrutural grave, para o qual não se vislumbra solução fácil: a adopção de uma moeda demasiado forte (o euro) para o nível de produtividade da economia.
Se entre 1976 e 1990 foi possível expandir as exportações através de uma política cambial (o famoso crawling peg, em que o escudo era desvalorizado em montantes mensais pré-anunciados) que, desvalorizando o escudo de forma sistemática, permitiu manter a sua competitividade internacional, a partir de 1990 esse factor foi eliminado. Mais do que eliminado, foi invertido. A partir de então, em vez de fomentar as exportações, o câmbio passou a puni-las severamente. O resultado foi um crescente enviesamento em termos de incentivos, conducente a uma concentração de recursos no sector não transaccionável da economia, algo para que também contribuiu a constante expansão da despesa pública. Esta expansão resultou da construção do Estado-Providência, talvez o projecto político mais consensual de todo o período. Se o Estado-Providência foi instalado, a forma como o fez não é fácil de sustentar: a despesa pública cresceu ao dobro da velocidade da economia, dando origem a persistentes dificuldades de financiamento.
A instalação e o desenvolvimento do Estado-Providência foram provavelmente os mais importantes fenómenos políticos, económicos e sociais das décadas da democracia portuguesa. Se o crescimento da economia ao longo dos seus trinta e seis anos foi pouco consistente, o mesmo não é verdade quando falamos da despesa e dos serviços públicos. O PIB per capita cresceu em média à taxa de 2,5 por cento ao ano entre 1974 e 2008. Mas a despesa pública cresceu aproximadamente ao dobro desse ritmo. Em 1974, ela representava cerca de 23 por cento do pib; em 2008, representava cerca de 46 por cento, um número já superior à média dos países europeus desenvolvidos. Dado que nesses países, no mesmo período, se verificou um abrandamento do seu crescimento e até, em muitos casos, um decrescimento, a convergência foi quase completa. A convergência não se deu apenas no volume da despesa. Deu-se também na sua natureza. Em 1973, a maior rubrica orçamental era a militar. Hoje, as maiores rubricas são sociais: segurança social, saúde e educação, tendo os gastos militares descido para níveis residuais (algo que, de resto, também se verificou nos outros países). São estes números que não deixam dúvidas sobre a capacidade de Portugal para construir a sua versão própria do Estado-Providência ao longo das últimas três décadas e meia.
Mas isto não deixou de constituir um problema para a economia e para o País. Hoje, com uma despesa pública que cresce a ritmos sempre superiores aos da economia, com salários que crescem tradicionalmente acima do ritmo da produtividade (assim aumentando os custos unitários de trabalho), com uma moeda forte que não pode ser desvalorizada face aos principais parceiros comerciais, com um sector não transaccionável em expansão e um sector transaccionável em declínio, e com um endividamento externo que parece incontrolável, Portugal está muito longe da fase do bom aluno europeu. As aproximações mais relevantes da actualidade remetem para os casos pouco exemplares das economias dependentes e subsidiadas do Mezzogiorno italiano ou da Alemanha de Leste.
As semelhanças com estas regiões são muitas: tal como Portugal, ambas são regiões de uma união monetária (da lira e do marco, antes de 1999; do euro, a partir daí); ambas têm graves problemas de competitividade, reflectidas em elevados custos unitários do trabalho e produtividade estagnada em termos relativos; por isso mesmo, ambas são economias incapazes de satisfazer com produção própria as suas necessidades de consumo, encontrando-se portanto endividadas. A grande diferença entre elas e Portugal é o facto de, para além de regiões de uma união monetária, serem também regiões de países soberanos, não se constituindo a sua dívida num problema nacional (sê-lo-ia se a sua dimensão no interior da economia italiana ou alemã fosse maior). Desta forma, o seu problema não é um problema de endividamento, mas de subsídio, ou de recepção de recursos provenientes das áreas mais produtivas dos respectivos países. Tanto o Mezzogiorno quanto a Alemanha de Leste só não são economias endividadas como Portugal porque são economias subsidiadas. A dívida externa portuguesa mostra-nos a dimensão que o subsídio à nossa economia atingiria caso a UE fosse também uma união política com responsabilidades na transferência de recursos compensatórios (10 por cento do PIB ao ano). Mas enquanto continuar a ser um país independente, Portugal não será automaticamente beneficiado com aquelas transferências. Continua, por isso, a correr o risco de insolvência.
Consequências
Estamos assim perante dilemas fundamentais: o crescimento económico encontra-se limitado por objectivos políticos que não são fáceis de abandonar. Seria possível vencer a barreira da moeda forte (que corresponde a uma incapacidade para exportar e a um impulso para importar), caso se fechasse o mercado nacional às importações. Mas, para além dos problemas de eficiência daqui resultantes, a abertura comercial é matéria inegociável da nossa participação na UE, sendo que a UE é parte indissociável do nosso regime democrático. Negociar o encerramento do mercado nacional corresponderia a pôr em causa a participação naquele clube de países ricos e democráticos, o que parece ser um preço demasiado elevado. Seria ainda possível vencer a barreira da moeda forte abandonando a UEM e recuperando uma moeda nacional. Se é verdade que voltaríamos a ter autonomia monetária, não é menos verdade que as consequências em termos de fuga de capitais, explosão das taxas de juro e inflação acabam por colocar esta alternativa também longe do horizonte político razoável. O que não quer dizer que não possa ser adoptada em desespero de causa.
Talvez fosse possível alterar uma parte dos incentivos à expansão do sector não transaccionável moderando ou revertendo determinadas políticas sociais. Mas qualquer passo nesse sentido, junto de uma população crucialmente dependente do Estado-Providência para quase todos os aspectos da sua vida, criaria um choque social de tais dimensões que, mais uma vez, parece impossível considerar a hipótese com facilidade.
Todas as medidas capazes de nos fazer regressar a um crescimento económico baseado na produtividade enfrentam, portanto, obstáculos políticos e sociais que são na prática quase inultrapassáveis. Ou seja, eles apenas seriam ultrapassáveis com um custo tão elevado que se torna difícil adoptar as soluções correspondentes.
Restam assim três possibilidades: uma positiva, outra negativa e uma terceira que pode ser vista como positiva ou negativa dependendo da posição de princípio que sobre ela se tenha. A positiva seria uma espécie de milagre à irlandesa, ou seja, o súbito interesse pelo País de investidores capazes de promover actividades altamente produtivas e de forte penetração nos mercados mundiais. Foi graças aos capitais americanos aplicados em sectores de tecnologia sofisticada que a Irlanda passou do «caso de caixote do lixo» que era nos anos 1980 para chegar ao estatuto de segundo país mais rico da UE na actualidade (apenas atrás do Luxemburgo). Trata-se, como é evidente, de algo completamente fortuito, não se podendo alimentar sobre este cenário qualquer tipo de certeza.
A possibilidade negativa subdivide-se em duas: o abandono da UEM ou, em alternativa (ou em conjunto), a declaração de incapacidade de pagamento da dívida externa no médio prazo. Em ambos os casos abrir-se-ia diante do País um horizonte de «latino-americanização», levando à destruição da sua reputação internacional, com consequências dramáticas que não requerem grande elaboração.
Resta a terceira possibilidade, cuja avaliação positiva ou negativa dependerá das preferências de cada um. Tratar-se-ia da assunção pelo País da sua incapacidade para fazer face aos seus problemas económicos de forma isolada, aceitando transformar-se numa mera região de qualquer coisa semelhante a um Estado nacional europeu. O País poderia então ser alimentado por transferências de rendimento que compensassem a baixa produtividade, como acontece em estados federais como os Estados Unidos e a Alemanha. De soberano endividado, Portugal passaria então a região subsidiada de uma grande unidade económica europeia. Para quem preza a pátria e a independência nacional, seria uma solução inaceitável. Para os que são indiferentes a estes valores tratar-se-ia, pelo contrário, de uma solução excelente. Resta saber como encarariam esta possibilidade os países capazes de financiar a mudança. Não é claro que o fizessem com alegria.
A forma específica como a democracia portuguesa evoluiu desde 1974 coloca o País numa situação política, económica e social muito complexa. Na ausência de algo próximo de um milagre, sobram opções que ninguém tomaria de ânimo leve, fossem elas más ou apenas hipoteticamente boas. Sem fazer adivinhação, não custa apresentar uma previsão simples: seja o que for que venha a acontecer, as perspectivas não entusiasmam.
Uma Nova Europa
Claro que tudo isto se prende também com o salto qualitativo que o projecto europeu vem dando nas últimas décadas. Quando, em 1992, os países-membros da CEE e das Comunidades Europeias fundaram em Maastricht a UE e iniciaram o processo de criação da moeda única, colocaram o projecto europeu num novo patamar. O projecto atravessava então uma séria crise identitária. A Europa unida começou como um instrumento para domesticar a Alemanha (a causadora das duas guerras mundiais), unindo-a à França numa barreira ocidental que, baseada nas armas americanas, fizesse frente ao expansionismo comunista da URSS. Nesse tempo, a CEE era vista como uma comunidade de estados independentes, unidos pela liberdade de comércio, por alguma homogeneização legal e pela protecção militar americana.
Mas uma vez desaparecida a ameaça soviética, o projecto ficou um pouco vazio de sentido. A principal resposta a este aparente impasse foi mudar a natureza do projecto: do tradicional entendimento entre nações deveria agora passar-se à unificação política, tendo como horizonte último a transformação da UE numa unidade estratégica autónoma uma superpotência comparável aos Estados Unidos, à Rússia e à China. É isto que explica os permanentes saltos constitucionais em que o projecto se viu envolvido: mercado único, moeda única e Constituição de que o Tratado de Lisboa é uma forma reduzida.
A crise económica tem sido entendida pelos entusiastas desta transformação como uma «oportunidade a não perder». Mas que «oportunidade»? No essencial, ela resulta das consequências económicas da UEM. Vem-se tornando cada vez mais claro algo que desde o início muita gente disse sobre ela. Que apenas seria funcional se integrasse duas outras dimensões: um mecanismo automático de transferências orçamentais entre os estados e uma verdadeira liberdade de circulação dos factores de produção. É o que se passa, por exemplo, nos Estados Unidos, que também são uma união monetária (que usa o dólar como referência), mas são mais do que isso: são um país e uma nação, pelo que possuem um orçamento federal, que actua de forma compensatória em caso de crises assimétricas, e são ainda uma união linguística e cultural, o que permite aos trabalhadores abandonar as zonas em crise para se irem empregar nas zonas em expansão, sem rupturas de língua e de cultura. Já a Europa possui 23 línguas diferentes e culturas nacionais tão diferenciadas que dificilmente se pode falar numa cultura europeia unificada. Que têm em comum a Bulgária e a Dinamarca, por exemplo?
A década de existência da UEM permitiu uma maior integração económica dos países que nela participam. Tal como anteriormente, existe liberdade de comércio, mas agora desapareceu a arma de proteccionismo implícito que representa a manipulação da taxa de câmbio. Para Portugal, pertencer ao euro significa ter a mesma moeda que a Alemanha, a França, a Holanda ou a Dinamarca, mas apenas cerca de metade da sua produtividade. A consequência disto foi a incapacidade de colocação de produtos nacionais nos mercados parceiros numa proporção capaz de compensar aqueles que são importados. Foi assim que o endividamento externo bruto chegou a mais de 100 por cento do PIB actualmente. Na ausência de proteccionismo, explícito ou implícito (por via do câmbio), restam a Portugal três soluções: uma é aquela que se vai verificando preferencialmente, o endividamento; outra é a que se vai verificando parcialmente, a emigração, para responder a uma taxa de desemprego que nunca na História de Portugal foi tão elevada; finalmente, há uma terceira, que também se vem verificando em parte, e que constitui a tal «oportunidade» as transferências com origem nos países excedentários em termos de pagamentos internacionais ou então com origem num orçamento europeu aumentado.
Os grandes problemas que esta última possibilidade coloca são os da soberania e da democracia. A moeda é certamente um símbolo de soberania, mas confunde-se menos com a soberania popular do que a fiscalidade e os orçamentos. A perda de soberania monetária associada à criação do euro não teve, portanto, as mesmas implicações que teria uma hipotética perda de soberania orçamental. Desde sempre que a transferência de recursos dos governados para os governantes impôs a estes a necessidade de consultar assembleias representativas (como as antigas Cortes, por exemplo). A democratização das sociedades ocidentais alargou a base fiscal a que os governantes podem recorrer, mas também exigiu deles outra relação com os governados. O soberano hoje, mesmo nas monarquias, não é o rei, mas o povo. Claro que o povo enquanto soberano literal é uma ficção. Mas os seus representantes tomam as decisões em seu nome. Ora, quaisquer finanças públicas europeias teriam de se basear num princípio de representação, que, no século XXI, só pode ser democrático. Acontece que uma democracia europeia, baseada numa comunidade política europeia, pura e simplesmente não existe e não é previsível que se concretize com rapidez.
De facto, o nosso mundo institucional e político demorou muito tempo a construir e nasceu em larga medida da vontade dos parlamentos em impor o seu controlo sobre os orçamentos dos países. A revolução que inaugurou o mundo contemporâneo (a Revolução Inglesa do século XVII) foi feita para sujeitar as despesas da monarquia ao controlo do parlamento. A Revolução Americana de finais do século XVIII foi também uma reacção à cobrança de impostos nas colónias americanas pela monarquia inglesa, sem que esta lhes oferecesse representação parlamentar «no taxation without representation», responderam os revolucionários. E a Revolução Francesa nasceu igualmente da necessidade que Luís XVI sentiu em 1789 de se legitimar perante assembleias representativas para aumentar impostos. Quase se poderia dizer que não há função mais nobre de um parlamento do que votar o Orçamento do Estado.
A ausência de uma democracia europeia dotada de uma instância representativa (um parlamento) claramente definida faz, portanto, das ideias de criação de um «verdadeiro orçamento europeu» ideias de forte pendor antidemocrático. É natural que se sucedam (como têm sucedido) as reacções. A Alemanha não prescinde da soberania parlamentar sobre o seu orçamento. Mas como do seu orçamento sai também a maior parte dos fundos capazes de salvar economias como a portuguesa, não se dispensa de impor condições que limitam a soberania do parlamento português, ao mesmo tempo que não pretende ver o parlamento português imiscuir-se na elaboração do orçamento alemão. Nada disto se resolveria facilmente pela criação de um qualquer comité europeu (que já foi sugerido mas não muito bem definido) impondo condições orçamentais aos parlamentos nacionais: os países excedentários, como a Alemanha, não tolerariam que tal acontecesse. Já os deficitários, por desespero, talvez o fizessem.
Vendo bem, é o que tem vindo a acontecer nos últimos meses. Em Maio passado, os países da UEM criaram um volumoso fundo de intervenção para assistir as suas economias em crise. Na forma (o que apesar de tudo não deixa de ser importante, revelando a delicadeza da situação) é um fundo multilateral, internacional. Na prática, contudo, apenas um país impõe condições: o seu maior contribuinte, a Alemanha, que faz as mais diversas exigências, sempre veiculadas por funcionários europeus. Portugal, em troca da assistência, vem aceitando mais ou menos inerme o que lhe é imposto.
Por causa da crise, o projecto europeu entrou em perigosos mares nunca dantes navegados. Seria bom que deles saísse ainda com alguma funcionalidade. O que talvez passe por todos os europeus (mesmo aqueles mais convictos de certas soluções) tentarem perceber o que na realidade é e não é a UE.
Conclusão
A Grande Recessão inseriu-se em dois outros movimentos históricos de grande importância, um nacional e outro internacional (embora com consequências nacionais directas): a longa divergência da economia portuguesa (na última década) e o processo de integração europeia induzido pela UEM. O seu efeito foi tornar ainda mais clara a divergência e convidar a um novo salto qualitativo do projecto europeu, agora visando a plena unificação política da Europa. As respostas que Portugal pode dar colocarão sempre o País numa situação difícil. O abandono da UEM, visando libertar-nos do colete-de-forças do câmbio do euro, traria dramáticas consequências económicas, para além de uma quebra de credibilidade internacional que o País não poderia suportar com facilidade. A revisão da construção do Estado-Providência teria também consequências económicas de monta, pela limitação do bem-estar de uma população que depende dele de maneira crucial. Isto para além das consequências políticas: a identificação da democracia portuguesa com o Estado-Providência é de tal forma umbilical que o corte da sua expansão quase corresponderia a uma mudança de regime não necessariamente a um fim da democracia, mas a um fim desta democracia. O salvamento da economia portuguesa pelos países excedentários da Europa (em particular a Alemanha) coloca em causa a independência do País e a própria democracia (agora em termos gerais e não na forma específica que assumiu em Portugal). Mas ao pôr em causa a democracia em Portugal coloca na realidade em causa a democracia no conjunto da Europa. O problema da economia portuguesa é também o problema da democracia portuguesa e, em última instância, da própria Europa.