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Relações Internacionais (R:I)
versão impressa ISSN 1645-9199
Relações Internacionais n.28 Lisboa dez. 2010
Um século ainda pequeno
José Medeiros Ferreira
Doutorado em História Política e Institucional Contemporânea pela Universidade Nova de Lisboa, onde é Professor Associado aposentado. Antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, foi membro do Parlamento Europeu e deputado à Assembleia da República. Tem diversa obra publicada na área da história e da política externa portuguesa.
Tendo em conta o «mandato» recebido para este artigo proceder a uma revisão das prioridades nacionais na política externa , irei dividi-lo em duas partes: na primeira, procederei a uma outra reconstituição da história das relações internacionais de Portugal; na segunda, proporei algumas medidas de política externa para acompanhar o crescimento do século XXI, este século ainda tão pequenino para glosar o que disse Karl Kraus sobre o seu século nas vésperas da I Guerra Mundial.
Começo aliás pelo século XX, mas de outra maneira.
O estado português entrou no século XX com o problema da dívida externa por resolver. No entanto, eram as questões coloniais aquelas que mais inflamavam os discursos sobre a posição internacional de Portugal. Mas, embora não apareçam nos manuais, foram as sucessivas negociações financeiras que marcaram as relações internacionais do País, até, pelo menos, 1931. Ora a república Portuguesa chega ao seu centenário com a magna questão do financiamento exterior da sua economia por resolver. E só lhe pode fazer frente com uma política externa própria e activa, mas com uma política externa. Sem esta, não haverá investimento externo nesta faixa da Península Ibérica, nem poder de atracção das economias emergentes como as de Angola ou do Brasil, nem ambiente de segurança para a evolução própria da república Portuguesa. O Estado ainda é o nosso melhor negociador internacional. E neste século XXI, grande parte da política externa dependerá da capacidade negocial dos principais agentes económicos, culturais e políticos.
Caso o estudo das negociações financeiras internacionais do estado português nos séculos XIX e XX estivesse feito, entender-se-ia facilmente que grande parte da política externa no século XX teve uma natureza material e financeira, e isso por um motivo muito preciso: a taxa de poupança interna sempre foi insuficiente para dar resposta aos desafios do desenvolvimento económico da sociedade portuguesa. Desde o convénio com os credores externos de 1902, até aos suprimentos do Banco de Inglaterra entre 1916 e 1918, passando pela disputa das reparações de guerra na conferência de Paz em 1919 e, desde o diferendo de uma década com a Alemanha para o pagamento das indemnizações até à questão do aval a um empréstimo externo pelo comité financeiro da Sociedade das Nações (SDN) em 1927, assim como a prolongada drenagem colonial, a história da política externa portuguesa é, em grande parte, a história da captação do capital no exterior para as necessidades da economia interna. Como muitas dessas relações internacionais passavam pelo Ministério das Finanças, pouco relevo se tem dado a essa dimensão da política externa nacional.
E, no entanto, bem se pode arquitectar uma outra história das relações internacionais de Portugal, e até da interna, através do percurso das negociações financeiras, desde o tempo de Costa Cabral e do fontismo até às recentes operações que culminaram com os montantes e os juros actuais da «dívida soberana». A actualidade tem sempre a sua história.
Os protagonistas do regime democrático deviam estar mais prevenidos para esses aspectos financeiros das relações internacionais da república Portuguesa do que os historiadores da diplomacia política.
Desde logo porque a consolidação financeira do regime democrático começou, do ponto de vista internacional, com a chamada «operação do grande empréstimo», no valor de mil e quinhentos milhões de dólares a fornecer por um consórcio de países liderados pelos Estados Unidos, em 1977, que assim recuperavam um antigo projecto de ajuda financeira a Lisboa no contexto de uma política de descolonização e de viragem para uma economia integrada «with the open trading and payments system of europe and the industrial countries generally», como se escreveu num memorandum de origem oficial norte-americana, datado de 28 de Janeiro de 1977 e entregue ao Governo português.
O documento, apresentado pelo embaixador norte-americano em Lisboa ao Governo de Mário Soares, propunha um plano de acção por fases e sugeria o estabelecimento de um consórcio internacional, constituído pela Alemanha, França, Japão, Reino Unido, Itália, Bélgica, Holanda, Canadá, Suécia, Suíça, Dinamarca, Noruega, Áustria, Irlanda e Venezuela, já que Portugal tinha «an acute foreign exchange cash shortage and will likely continue to suffer for another two or three years from balance of payments deficits that cannot be covered by private transfers or usual international credits alone». Essa percepção de que a escassez de meios de pagamento sobre o exterior não podia ser resolvida apenas pelos clássicos métodos do crédito internacional honra o Governo norte-americano da altura, e devia servir de exemplo aos decisores da união europeia (UE) para responderem às actuais dificuldades colocadas pelos mercados às «dívidas soberanas» de alguns dos seus estados-membros.
Aquela operação afunilou-se num acordo stand-by com o Fundo Monetário internacional (FMI), depois de uma reunião em Paris, em Junho de 1977, em que os negociadores financeiros esqueceram a dimensão excepcional e política da iniciativa governamental norte-americana. E foi assim que, por duas vezes, a República Portuguesa recorreu ao FMI antes da sua entrada na Comunidade Europeia, em 1978 e 1983, sem que fosse preciso chegar ao cimo do calvário para se salvar para glosar um antigo perito em finanças públicas.
Paralelamente, negociou-se o tratado de adesão à CEE, um longo processo em que as questões económicas e financeiras estiveram no centro da mesa durante oito anos. Nunca se fez tanta «diplomacia económica» como durante o processo negocial para o tratado de adesão da república Portuguesa à CEE.
Ora, a entrada da república Portuguesa na Comunidade Europeia obedeceu a vários pressupostos. Um deles indicava a drenagem de meios financeiros para Portugal incluindo investimentos, transferências de capital, fundos estruturais a fim de dar resposta aos problemas de modernização, desenvolvimento e abertura ao exterior da economia.
A entrada na «pequena Europa» dos nove tinha assim subjacente essa possibilidade de drenar meios financeiros do exterior para o desenvolvimento económico e social do País, além de facilitar a vinda de grandes investimentos privados. Tudo isso ocorreu com naturalidade até ao grande alargamento da UE aos países do Leste. Se o alargamento aos países da antiga EFTA não buliu com o essencial dos pressupostos do pedido de adesão de Portugal à CEE, já a entrada de roldão dos países que saíram da órbita soviética alterou por completo o centro de gravidade da UE.
Acresce que os governantes portugueses não conseguiram evitar que o escudo tivesse entrado sobrevalorizado no sistema monetário europeu em 1992.
Deste modo, a economia portuguesa não só perdeu o volante da política monetária ao entrar no sistema monetário europeu e, mais tarde, na zona euro, como teve de enfrentar a conversão de um escudo sobrevalorizado que lhe fez perder competitividade externa. Mas com essa decisão, voltava-se, de certa maneira, à ligação da moeda nacional ao padrão-ouro que vigorou até 1892 e entre 1911 e 1931. Simplesmente, o «ágio» dessa ligação será medido pelas subidas das taxas de juro no acesso aos empréstimos externos. E assim como, no fim do século XIX, se esbarrava no aumento do «ágio de ouro», hoje verifica-se um «ágio das taxas de juro», perante o aumento da dívida externa, a falta de cobertura das importações pelas exportações e uma balança de pagamentos escassa. Daí a necessidade imperiosa de fluxos financeiros do exterior, de preferência na forma de investimentos internacionais.
Porém, a criação da zona monetária do euro foi acompanhada de outra negociação paralela que culminaria na aceitação do Pacto de Estabilidade e Crescimento em 1998. Ora, esse pacto estabeleceria novos condicionalismos, metas e calendários aos estados-membros, em termos de percentagens de défices orçamentais e de dívida pública. Tratava-se ainda, no entanto, de uma negociação entre estados e organismos públicos europeus como a Comissão e o Banco central europeu (BCE).
Era um colete-de-forças com calendários que se revelaram irrealistas para o equilíbrio das finanças da maior parte dos estados-membros como o demonstram os sucessivos adiamentos: 2000, 2003, 2007, 2013
Por seu lado, o Pacto de Estabilidade deu origem a uma comédia de enganos entre Bruxelas e os governos nacionais, com a apresentação de orçamentos falaciosos nas estimativas, na desorçamentação, nas receitas extraordinárias , tendo como pano de fundo aquela defesa do euro forte. Essa comédia durou dez anos, mas agora a situação ainda é pior por outras razões.
Essa filosofia era compreensível nos primeiros tempos da existência da zona euro mas revelou-se menos positiva no contexto da crise financeira internacional. O euro não cumpre o seu papel federador e está a concentrar a riqueza no coração do corpo europeu, não conseguindo bombear os fluxos de prosperidade para os outros órgãos mais periféricos.
Repito: tratava-se de um espartilho mas era ainda um acordo e uma negociação entre poderes públicos europeus. As organizações não governamentais (ONG) do sistema financeiro mundial ainda estavam na sombra. Refiro-me às agências de rating que principiaram por distribuir notas máximas até ao meio da crise e recentemente especializaram-se em chumbar os estados com «dívidas soberanas», dada a falta de liquidez na banca internacional esta falência dos poderes públicos internacionais, e especialmente europeus, perante essas agências privadas, é uma das piores novidades trazidas pela crise.
Vamos então à parte da proposta de medidas urgentes e de redefinição de prioridades. a República Portuguesa, após vinte e cinco anos de participação na UE e vinte anos depois do fim da Guerra Fria, tem efectivamente de repensar as suas prioridades externas, como nos propõe a revista Relações Internacionais.
É um facto que continua a fazer sentido estar no núcleo central das políticas comuns europeias. Mas é mais fácil integrar acções de política comum como a comercial ou de cooperações reforçadas como a do Espaço Schengen, ou de segurança e defesa comuns como o envio de militares para certas missões no estrangeiro do que promover o crescimento económico. E este é um grande paradoxo das consequências da actual política europeia continental.
A zona monetária do euro está a fragmentar-se no acesso ao crédito dos países membros, e existe hoje uma verdadeira clivagem em termos de taxas de juro a pagar pelos estados com «dívidas soberanas». Não que a crise financeira internacional, com o seu corolário da estagnação do crédito interbancário, tenha sido causada pelo recurso à dívida pública por parte dos estados, mas porque estes, após terem socorrido a banca privada dos respectivos países, passaram a ser encarados como concorrentes nas operações de refinanciamento do sistema bancário.
Esta difícil realidade só aumenta a necessidade de o País se dotar de novo de uma política externa activa que seja muito mais do que diplomacia. O maior perigo que espreita a república Portuguesa é mesmo a sua alienação de vontade na política internacional, no exacto momento em que os mecanismos próprios do sistema financeiro mundial e do funcionamento actual da UE não garantem o crescimento do bem-estar da população portuguesa. Não é demais insistir neste ponto. Ajudado pelo facto de Portugal ter sido eleito membro do conselho de segurança para o biénio 2011-2013, o Governo português deveria rapidamente pôr em execução um plano de iniciativas internacionais que englobasse medidas europeias próprias e interesses estratégicos gerais.
Quanto às medidas europeias propriamente ditas, seria de propor o reactivamento das perspectivas financeiras até 2013 numa base imediata de cobertura quase total pelos fundos comunitários de apenas alguns projectos escolhidos, como os ligados aos transportes e à sociedade do conhecimento, aproveitando os recursos próprios disponíveis e retidos em Bruxelas por falta de execução dos estados-membros com problemas de co-financiamento. Deste modo compensava-se uma excessiva disparidade nos índices de crescimento e desemprego entre o centro e a periferia na UE que faz recordar a fase final do império austro-húngaro antes da I Guerra Mundial.
Neste âmbito faz todo o sentido negociar a nível europeu o projecto do TGV. É verdade que o projecto nasceu torto nas cimeiras luso-espanholas desde governos imemoriais. É verdade que as versões em tê, ou a ligação ao Porto e a Vigo ficaram pelo caminho. E sobretudo é verdade que nunca se enquadrou o TGV em Portugal numa perspectiva da dinâmica europeia mas apenas peninsular.
Ora, o projecto do TGV deveria ter sido desde o início um projecto inserido na dinâmica europeia da alta velocidade, que envolvesse, além da Espanha, pelo menos a França, pois seria o mais racional em termos do traçado das linhas, investimentos, comparticipação dos fundos comunitários, coordenação de prazos. Ainda hoje nada se sabe sobre os caminhos extrapeninsulares do TGV: se através do inacabado eixo Barcelona-Montpellier, se pela hipotética travessia central dos Pirenéus que interessa a Saragoça. Também nada se discute sobre os desenvolvimentos da alta velocidade em termos internacionais e novos tipos de comboios, como os agora apresentados na feira do trem em Berlim, e que têm reflexos nos custos das linhas a construir.
Impõe-se propor aos governos espanhol e francês e à Comissão Europeia a reformulação do projecto, a coordenação dos trajectos, a harmonização dos calendários de construção e um robusto financiamento comunitário tritransfronteiriço neste domínio do transporte continental.
Ainda em grande parte focado nas questões próprias e europeias, mas já respaldado no lugar que ocupa no conselho de segurança das nações unidas até 2013, o Governo português deveria tomar a iniciativa, ou juntar-se a quem a tenha, para resolver certos problemas.
Assim, em termos do momentoso problema das dívidas soberanas, o estado português deveria sondar as potências e certos organismos como o FMI, o BCE e os Bancos Centrais para se organizar uma conferência internacional em que se debatessem algumas questões tais como um plano de reescalonamento do pagamento do serviço da dívida e dos períodos de amortização dos empréstimos, num contexto de moratória geral que arrefecesse a tendência para a especulação com as dívidas soberanas.
A República Portuguesa também pode tomar a dianteira numa política de pequenos passos na reforma do sistema das Nações Unidas o método não deve ficar reservado para a construção europeia para além da magna questão do alargamento do Conselho de Segurança que nos ultrapassa um tanto, e da qual tenho uma breve experiência pessoal que não me dá direito ao optimismo.
Conceber certos mecanismos tendentes a permitir alguma governança da globalização como a supervisão financeira já não é um escândalo, atacar a pobreza, contribuir para as missões humanitárias, quer do ponto de vista civil, quer do ponto de vista militar, são políticas consensuais e quase tradicionais que se devem reforçar.
Mas dinamizar certos organismos especializados da ONU, sobretudo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), é um serviço que Portugal prestará a todos e a si próprio. Sem a OIT não haverá comércio justo, sem a OIT o chamado «modelo social europeu» ficará na defensiva perante o dumping social de outras zonas do globo. A revitalização da OIT, a atribuição a esse organismo de um papel semelhante ao da Organização Mundial do Comércio (OMC) será um passo decisivo no caminho para uma maior governança da globalização.
Ainda no âmbito da ONU, da NATO, da UE, ou até da sua própria, Portugal deve manter a capacidade de participar nas missões militares no estrangeiro, apesar dos custos de manutenção de um aparelho de defesa moderno e actualizado. Desde 1992 que defendo que muita da nossa política externa passa por esse «critério militar».
Também o reforço e a reorientação do papel da CPLP é necessário em vários domínios. Vou referir especialmente o da política internacional da língua portuguesa. A língua portuguesa só se defende a prazo na Península Ibérica se tiver ganho a sua ofensiva nas organizações internacionais. Caso contrário, está destinada a recuar, pelo menos na Europa.
Paralelamente a estas acções de carácter mundial, mas que ajudariam a república Portuguesa a sair da banalização internacional, a grande estratégia apontaria para uma real diversificação das parcerias externas de Portugal.
As grandes parcerias externas da República seriam preferencialmente com Angola, Brasil e Estados Unidos, mas este é um caminho que se deve trilhar consoante a disponibilidade e as oportunidades. A lista não só não está completa, como pode ser alterada. O que importa aqui acentuar e exemplificar é esse plano bilateral da política externa para o futuro que também se pode estender às relações com estados-membros da UE, a começar pela Espanha.
Quando nos referimos aos Estados Unidos, englobamos quase tudo: segurança, defesa, intercâmbio científico e tecnológico, na prática um entendimento sobre o mundo.
Quando exemplificamos com Angola e o Brasil, ocorrem a realização de grandes negócios, as relações comerciais, económicas e financeiras e ainda uma política da língua portuguesa que une todos no plano da CPLP. E ainda a reforma do sistema das Nações Unidas num sentido mais favorável às pretensões dessas potências regionais.
Mas que ninguém se engane. A política internacional da língua portuguesa tem duas funções bem distintas: ela é de natureza ofensiva a nível mundial, mas com reflexos defensivos a nível da Península Ibérica.
Acabo por onde comecei: sem política e representação externas, sem independência nos volantes da política fiscal, sem estímulos aos investimentos públicos, o capital estrangeiro não se sentirá atraído para se fixar na faixa ocidental da Península Ibérica. Quanto muito procurará Portugal para negócios de ocasião, muitos deles na fronteira do comércio lícito, um cluster que acompanha a história do comércio externo português desde os tempos do tráfego de escravos ou da venda de volfrâmio