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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.34 Lisboa jun. 2012

 

20 anos de desintegração da União Soviética em retrospetiva. Histórias em primeira pessoa

 

Licínia Simão

Professora auxiliar convidada em Relações Internacionais na Universidade da Beira Interior e investigadora e pós-doutoranda do Centro de Estudos Sociais. Em 2007 foi investigadora convidada do Centre for European Policy Studies (ceps), em Bruxelas, e em 2010 foi professora e investigadora convidada da Academia da osce, em Bisqueque, no Quirguistão. As suas publicações incluem, entre outras, Engaging Civil Society in the Nagorno Karabakh Conflict: What Role for the eu and its Neighbourhood Policy? (Microcon, 2010) e «Portuguese and Spanish relations with Moscow: contributions from the eu’s periphery to the cfsp» (Journal of Contemporary European Studies, 2011).

 

Laurence S. Sheets

Eight Pieces of Empire

Nova York, Crown Publishing, 2011, 318 páginas

 

Laurence Sheets viveu na União Soviética (e nas repúblicas independentes que dela emergiram), entre 1989 e 2008. Primeiro como estudante de língua russa em São Petersburgo (então Leninegrado) e depois como correspondente da Reuters no Cáucaso e como correspondente em Moscovo para a National Public Radio. Este enquadramento profissional do autor é fundamental para perceber o tipo de narrativa desta obra e a perspetiva que ela nos traz sobre os momentos finais da União Soviética e os vinte anos que se seguiram. O autor não é um académico e esta obra não tem pretensões de ser uma análise teórica deste processo de desintegração violenta. Pelo contrário, o que Sheets faz é apresentar-nos, de uma forma profundamente humana, a história do fim da urss e os processos de ajustamento ao fim do império soviético e à nova realidade de uma independência convulsa. Como o próprio autor reconhece, «as vidas pessoais e as situações explosivas que foram afetadas pela fragmentação [do império] são o objeto central deste livro» (p. xv).

A obra está dividida em oito capítulos, apresentando fragmentos da desintegração do império. O primeiro é dedicado a Leninegrado, entre 1989-1991, e mostra-nos o impacto da abertura da urss e do desmoronar dos sistemas de controlo e proteção social (os problemas de alcoolismo nos homens e o regresso da religião para as mulheres). O segundo trata o deflagrar das guerras separatistas na Geórgia (1992-1996). O terceiro e o quarto lidam com o conflito de Nagorno-Karabakh (1993-1996) e a primeira e a segunda guerra na Tchechénia (1993-2004), respetivamente. O capítulo cinco é dedicado à Rússia. Centra-se na questão da família Romanov e nas relações entre os serviços secretos, kgb (agora fsb), e a Igreja Ortodoxa. O sexto capítulo é dedicado ao Uzbequistão e à guerra no Afeganistão, no contexto da luta contra o terrorismo. O sétimo é dedicado às revoluções coloridas e à tragédia de Beslan, bem como a outras histórias avulsas sobre a vida no espaço pós-soviético. E o último capítulo completa a viagem do livro (e do autor) fazendo-o regressar a São Petersburgo, onde tudo começou.

 

HISTÓRIAS NA PRIMEIRA PESSOA

A mais-valia desta obra é exatamente a narrativa na primeira pessoa. Sheets escreve sobre as situações que acompanhou como estudante e como repórter, deixando os enquadramentos históricos dos acontecimentos num mínimo absoluto. Aliás, este pode ser um obstáculo a uma compreensão mais ampla dos processos de desintegração do império, ainda em marcha, para aqueles que não acompanhem com regularidade a região. Para os que o fazem, este livro acrescenta detalhe e colorido aos últimos vinte anos de história no espaço pós-soviético. Em alguns momentos o livro mostra-nos um lado mais humano e menos conhecido desta história. Através da história de Vova, o racketeer, cuja adaptação ao fim do controlo absoluto do partido à vida económica da União Soviética e a corrupção rompante que acompanhou os últimos anos da urss, o levou a procurar lucros fáceis no submundo do crime organizado. O relativismo moral que acompanhou o colapso da União Soviética é frequentemente esquecido e a condenação destas práticas tornou-se óbvia segundo os padrões do Estado de direito ocidental. Contudo, no período de grande incerteza e abertura, entre 1989 e 1991, a necessidade de sobreviver e a possibilidade de prosperar tornou-se uma justificação forte para operar à margem da lei da nação. Sheets coloca esta tensão da seguinte forma: «o eclipse do império soviético refletiu-se num espelho torto, onde a escuridão fez sombra à luz, o paraíso era uma fraude – e o inferno era visível em todo o lado» (p. 44).

Outros exemplos abundam. A história da «guerra que ninguém começou», entre a Abcásia e a Geórgia, em que Sheets acompanha a descida de uma das repúblicas mais prósperas da União Soviética numa espiral de violência e destruição que tornou a Geórgia num Estado falhado durante a década de 1990. O autor é particularmente sensível ao papel de Shevardnadze, «o senhor que terminou a Guerra Fria», neste processo. Ao acompanhar os últimos dias antes de as forças abcáses tomarem Sukhumi, Laurence Sheets descreve-nos uma série de perspetivas justapostas e por vezes incongruentes (refletindo a própria realidade desta guerra): Shevardnadze apelando aos georgianos para que sigam para a frente de guerra, os jornalistas que, não conseguindo reportar o que veem por falta de comunicação com o exterior, ficam servindo de testemunhas de uma guerra total. Ao mesmo tempo, o mundo está absorto na realidade do colapso súbito da urss e ainda não se mentalizou para a necessidade de gerir estes conflitos (ainda hoje parece não o ter feito).

O outro exemplo mais forte da profunda humanidade desta narrativa é a cobertura da Guerra da Tchechénia e da devastação total da vida nesta república do Cáucaso do Norte. Sheets acompanha-nos ao longo do escalar da luta separatista da Tchechénia e a emergência do comandante Shamil Basaev e das suas táticas radicais violentas, envolvendo a tomada de reféns e exigindo que Moscovo reconhecesse a independência tchechena (anos mais tarde, em 2004, Sheets vai reportar sobre a tomada de reféns em Beslan, num momento que o autor reconhece ter sido pessoalmente muito difícil de gerir e que contribuiu em muito para a decisão de terminar a sua atividade como jornalista. Sheets é hoje o responsável do International Crisis Group pelo Cáucaso do Sul). A sua descrição dos acontecimentos na Tchechénia (e nos outros conflitos que foi acompanhando) serve para despoletar uma reflexão sobre o papel dos jornalistas e a sua segurança nestes contextos de violência generalizada. Segundo o Comité para a Proteção dos Jornalistas1, entre 1992 e 2012, a Rússia esteve sempre no top 10 dos países onde morrem mais jornalistas, à exceção de 1992, 1997 e 2010, com mais de 80 jornalistas a perderem a vida, neste período.A Rússia é também o terceiro país onde morreram mais jornalistas em situações de combate ou devido a fogo cruzado, no mesmo período de tempo, com 12 jornalistas a perderem a vida nesta situação. Em 1995, ano em que a primeira guerra da Tchechénia estava em plena força (1994-1996), morreram cinco jornalistas na Rússia em situações de combate. Muitos dos companheiros de trabalho de Sheets acabariam por perder a vida em missões noutros conflitos, numa amálgama entre o cumprimento do dever e luxúria pela adrenalina do trabalho em contextos de ação.

 

TERRORISMO E A GUERRA NO AFEGANISTÃO

O livro aborda ainda a guerra contra o terrorismo e o início do conflito no Afeganistão. O impacto da presença norte-americana na Ásia Central, contudo, é limitado ao caso uzbeque e o autor não trata as restantes ex-repúblicas, o que acaba por ser redutor da realidade social desta região. Para além das descrições da prática de tortura pelo regime uzbeque do Presidente Islam Karimov, Sheets concentra-se no conflito afegão e a sua narrativa acaba por perder de vista as personagens únicas que o acompanharam no início do livro. A sua abordagem do conflito de Nagorno-Karabakh, entre a Arménia e o Azerbaijão acaba por ser também mais superficial do que a da Geórgia e dos conflitos no Cáucaso do Norte. Um apontamento relevante é a questão da «democracia oriental», que ganhou força no discurso popular do Azerbaijão, no período da guerra e ainda hoje se faz sentir. A descida da região numa espiral de anarquia – em vez da democracia ocidental prometida – levou a que muitos vissem a possibilidade de estabelecimento de uma forma temporária de autocracia benevolente, liderada por uma figura paternal, «como um passo necessário para estabelecer lei e ordem» (p. 146). Esta é, aliás, uma ideia que se tornou popular também na Ásia Central, mas que nos últimos anos foi abandonada, dando lugar a regimes autoritários, onde as pretensões de serem vistos como democracias são bastante limitadas (com a honrosa exceção do Quirguistão, hoje uma república parlamentar, a única na região). Eight Pieces of Empire é um livro bem informado sobre a realidade pós-soviética, escrito por alguém que viveu de perto estes últimos vinte anos e que continua a fazê-lo. Estas perspetivas são particularmente relevantes para nos ajudar a completar o puzzle da fragmentação do espaço soviético, mas são destorcidas pela própria experiência emotiva do narrador. O livro deve ser lido a partir desse pressuposto. Por outro lado, ao ser escrito a partir de uma série de experiências no terreno, na sua maioria a acompanhar os conflitos que deflagraram na região, há outros aspetos da realidade pós-soviética que não são incluídos. O livro faz contudo um esforço bem conseguido para ser mais do que uma crónica de guerra. Abre a porta aos processos políticos das revoluções coloridas (centrando a sua análise no caso da Geórgia e na saída de cena de Shevardnadze), à existência difícil dos muitos povos que compõem o império (os pastores de renas na ilha de Sakhalin) ou aos desafios da vida em Chernobil.

 

NOTAS

1 Committe to Protect Journalists. [Consultado em: 14 de fevereiro de 2012]. Disponível em: http://cpj.org/killed/1995/in-combat.php.