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Relações Internacionais (R:I)
versão impressa ISSN 1645-9199
Relações Internacionais no.35 Lisboa set. 2012
Paix et guerre entre les nations que lições para os europeus?
Paix et guerre entre les nations: what lessons for the Europeans?
Joël Mouric
Agregado em História e doutorado pela Universidade de Bretagne Occidentale. Autor de uma tese sobre Raymond Aron et lEurope, a ser publicada pela Presses Universitaires de Rennes. Vencedor do prémio Aron 2011.
RESUMO
Cinquenta anos depois da sua publicação, o livro Paix et guerre entre les nations de Raymond Aron foi mais ou menos esquecido porque considerado datado e heterodoxo no contexto da disciplina de relações internacionais. No entanto, Aron apresentou, tomando como referência Clausewitz, uma estratégia prudente, suscetível de preservar a liberdade dos europeus, o que pressupõe a determinação dos cidadãos em assumir o seu dever de defesa ao serviço da sua nação. Aron condena os excessos do nacionalismo, mas defende a forma política da nação, assim como critica, em nome da autonomia do político, o projeto europeu dos pais fundadores e defende que os europeus devem permanecer cidadãos.
Palavras-chave: Raymond Aron, Paix et guerre entre les nations, Carl von Clausewitz, Europa
ABSTRACT
Fifty years after the publication of Paix et guerre entre les nations by Raymond Aron, this book is a little for gotten because it is dated and is heterodox in the international relations subject. However, based on Clausewitz, Aron has presented a prudent strategy able to preserve the freedom of the European peoples which presuppose the citizens determination to assume their duty of defense on the nation service. Aron condemns the nationalism excesses but defends the political form of nation, as well as, criticizes, on the behalf of the political autonomy, the European project of the founding fathers and defends that the Europeans should rest citizens.
Keywords: Raymond Aron, Paix et guerre entre les nations, Carl von Clausewitz, Europe
Publicado em 1962, Paix et guerre entre les nations1 consagrou Raymond Aron como teórico das relações internacionais. Jean-Baptiste Duroselle2, Stanley Hoffmann3, Henry Kissinger, Golo Mann, Carl Schmitt e mesmo o general De Gaulle tinham feito o seu elogio4. No entanto, cinquenta anos depois, o autor e o livro são negligenciados, se não mesmo esquecidos. Raros são os especialistas dasrelações internacionais que tomam Aron como modelo. Um deles chegou mesmo a escrever, a propósito dos realistas americanos, «que [estes] ignoram os escritos de Raymond Aron e, pior, que até ignoram que ignoram os escritos de Aron»5. Duas razões podem explicar esta desatenção. Por um lado, o facto de Aron ter tratado na terceira parte do seu livro «Histoire, le système planétaire à lâge thermonucléaire» a conjuntura da Guerra Fria. Desde o momento em que esta terminou, a obra parecia pois desatualizada. Por outro lado, o método aroniano, a sua filosofia crítica da história fundada na compreensão dos acontecimentos pela análise das intenções dos atores, e a consciência dos limites da objetividade histórica6, opõe-se à corrente maioritária da investigação em relações internacionais, que pretende basear a reflexão na explicação mais do que na compreensão7. Contudo, hoje é preciso reconhecer que é graças ao seu método, e porque ele captou aspetos permanentes da situação estratégica da Europa, que Aron continua a dar aos europeus uma lição de estratégia. Neste ensaio, procuraremos mostrar como, em Paix et guerre entre les nations, Aron propõe um modelo de prudência sus cetível de inspirar o homem de Estado em tempos de conflito, e a influência de antigos e modernos no seu conceito de prudência. Explicaremos depois por que razão Aron, nesta sua obra fundamental, não manifestou muita estima pelo projeto comunitário europeu.
OS FUNDAMENTOS
Em 1983, pouco antes da sua morte, Aron trabalhava numa apresentação crítica da Paix et guerre entre les nations. Escolheu começar com uma longa citação de Rousseau que, nos Écrits sur lAbbé de Saint-Pierre, expõe «a condição mista do género humano»: «de homem a homem, vivemos no estado civil e submetidos às leis, de povo a povo, todos gozam da liberdade natural, o que torna no fundo a nossa situação pior do que se estas distinções fossem desconhecidas»8. Contrariamente a Hobbes, que descreveu o estado de natureza como um estado de guerra, Rousseau mostra «que o estado de guerra nasce do estado social»9 e adverte que os corpos políticos não são movidos pela fria razão de Estado, mas pelas paixões, de onde provém a ferocidade das guerras10. Se Hobbes descrevia a força soberana do Leviatã, Rousseau vê no Estado «um corpo artificial» frágil, que tem necessidade, para subsistir, da «vivacidade das suas paixões»11. Os afrontamentos ideológicos do século xx confirmaram esta intuição. Retomando em Paix et guerre a distinção estabelecida por Panayis Papaligouras, Aron qualificou o sistema internacional da Guerra Fria como «heterogéneo», visto que os estados não estavam fundados sobre os mesmos princípios e proclamavam-se de valores contraditórios12. Aron mostra, na esteira de Rousseau, que é inútil esperar que uma política internacional racional seja, enquanto tal, uma garantia de paz ou de moderação. Assim, rejeita tanto o realismo dogmático como o idealismo messiânico. Aron mostra a fraqueza dos conceitos de poder e de interesse nacional sobre os quais Hans J. Morgenthau fundamentou a sua teoria das relações internacionais13. Morgenthau, de facto, não esclarece se o poder é meio ou fim, nem para quem o seria. Assemelha-se, no fim de contas, a «um cruzado do realismo»14. Para ultrapassar a antinomia entre idealismo e realismo, Aron invoca a prudência, virtude essencial do homem de Estado. A prudência é a compreensão do concreto, associada à consciência das responsabilidades:
«Ser prudente é agir em função da conjuntura singular e dos dados concretos, não por espírito de sistema ou por obediência a uma norma ou uma pseudonorma, é preferir a limitação da violência ao castigo do pretenso culpado ou a uma justiça dita absoluta, é propor-se objetivos concretos, acessíveis, conformes à lei secular das relações internacionais e não objetivos ilimitados desprovidos de significado, como um mundo seguro para a democracia, ou um mundo onde a política de poder tenha desaparecido.»15
A esta apresentação, orientada contra o idealismo wilsoniano, responde uma outra, dirigida contra os realistas. A prudência não deve ser confundida com a pusilanimidade, nem mesmo com a contenção; pode ser brutal, e consiste antes de mais em ter em conta a realidade no seu conjunto, a fim de conduzir a ação política com êxito:
«a prudência não ordena sempre a moderação, nem a paz do compromisso, nem as negociações, nem a indiferença aos regimes internos dos estados inimigos ou aliados. A diplomacia romana não era moderada; a paz imposta pelo Norte aos sulistas excluía qualquer compromisso. As negociações com Hitler eram na maior parte dos casos estéreis ou nefastas. Num sistema heterogéneo, nenhum homem de Estado pode tomar como modelo Francisco Ialiando-se ao Grande Turco ou Richelieu mantendo os príncipes protestantes. O verdadeiro realismo, hoje, consiste em reconhecer a ação das ideologias na conduta diplomático-estratégica.»16
A vocação de Raymond Aron foi a de defender a sociedade liberal contra as ameaças totalitárias. Em LIntroduction à la philosophie de lhistoire17, a sua tese defendida em 1938, Aron acreditava ter encontrado no decisionismo de Max Weber a resposta que procurava. Mas as diligências de Weber comportavam o risco do relativismo, ou até do niilismo. Exilado em Londres durante a guerra, e redator de La France Libre18, Raymond Aron apropria-se da interpretação de Clausewitz por Hans Delbrück19, segundo a qual sendo a guerra um ato de natureza política, a ascensão aos extremos é um risco, mas não uma fatalidade. A partir de 1955, Aron procedeu a uma releitura sistemática do tratado de Clausewitz, Da Guerra, que lhe inspira o ensaio com o mesmo nome de 1957, em Espoir et peur du siècle20. Aron tinha-se moderado e, no seu pensamento, a prudência tinha substituído o decisionismo, como o indica a citação de Clausewitz que coloca a abrir o ensaio: «Toda a arte militar se transforma em simples prudência, cujo objeto principal será impedir o equilíbrio instável de pender subitamente em nossa desvantagem e a semiguerra de se tornar uma guerra completa.»21
Paix et guerre entre les nations inscreve-se portanto numa perspetiva realista, e pessimista, sobre as relações internacionais: «A guerra é de todos os tempos históricos e de todas as civilizações.»22 Contrariamente a outros teóricos23, Aron não considerava que o facto nuclear refutasse as conceções clausewitzianas: «A estratégia de dissuasão é uma prova de vontades, cuja técnica de armas e de veículos determina as condições mas não o problema.»24 A chegada da estratégia atómica, conjugada com a permanência das lutas ideológicas, requeria mais que nunca a virtude da prudência, que Raymond Aron, na sequência de Aristóteles25, mas também de Edmund Burke26 e de Clausewitz, colocou no topo das qualidades
políticas. Se o parentesco entre Aron e Aristóteles é difícil de estabelecer, a relação justifica-se contudo pela ambição teórica comum aos dois autores, bem como pela atenção que ambos dão ao político; um e outro designam a prudência como a arte da decisão em situações históricas concretas, sempre únicas e complexas. Com Burke e Clausewitz, a proximidade é muito maior, são contemporâneos da Revolução Francesa, na qual Aron, no seguimento de Johann Plenge27, viu a origem dos conflitos ideológicos que conheceram o seu paroxismo na primeira metade do século xx. A Revolução Francesa, com efeito, suscitou pela primeira vez na Europa guerras inexoráveis porque visavam mudar o regime político dos estados, guerras tanto mais terríveis porque, com o estabelecimento do recrutamento obrigatório, já não eram só os exércitos mas os povos que se enfrentavam em massa28. As palavras de Tucídides que Aron tomou como divisa da revista Commentaire «Não há felicidade sem liberdade, nem liberdade sem coragem» encontram eco nas cartas de Burke sobre a paz com o diretório regicida: «There is a courageous wisdom: there is also a false reptile prudence, the result not of caution but of fiar.»29 Aos olhos de Aron, Burke e Clausewitz foram os cidadãos recrutados para defender a liberdade política nos seus respetivos países, contra uma empresa, a da França revolucionária, depois imperial, que anunciou os totalitarismos do século xx: «Edmond Burke lutou tanto contra as ideias democráticas como pela sabedoria.»30 Aron dissociava assim Burke do pensamento contrarrevolucionário, para fazer dele um sábio e ilustre defensor da liberdade política. No mesmo sentido, Aron também sentiu empatia com o Clausewitz de depois de Iéna, aproximando a sua situação daquela que ele mesmo tinha vivido em 1940:
«Clausewitz escreveu que doravante, não sendo já o Bürger de um Estado respeitado, deveria o seu respeito ao exterior, à compaixão dos estrangeiros, não gozando já dele como um direito: bastou-me lembrar as minhas experiências de 1940, a minha chegada a Inglaterra, sem nada mais que o uniforme que levava, para simpatizar com os sentimentos contraditórios que agitavam o prisioneiro em França, depois o reformador regressado à Prússia, onde existia um partido que no século xx se chamaria dos colaboracionistas.»31
Em Paix et guerre entre les nations, Clausewitz é invocado como o teórico de uma estratégia prudente, que ensina a limitação da violência ao serviço de fins políticos bem definidos. Trata-se do Clausewitz interpretado por Delbrück, o da Ermattungsstrategie, ou estratégia de usura, por oposição à Niederwerfungsstrategie, que visa aniquilar o inimigo, à qual se reduz demasiadas vezes, no seguimento de Ludendorff, o pensamento do general prussiano. No contexto da Guerra Fria, a Europa estava dividida, não podia empreender nada, mas podia resistir. Daí a fórmula «sobreviver, é vencer»32. A dissuasão, não só nuclear, mas reforçada pela resolução dos cidadãos em combater pela sua liberdade, permitia usar a vontade de vencer os soviéticos, até ao dia em que eles renunciassem às suas pretensões revolucionárias:
«Nós não queremos destruir aquele que nos quer destruir, mas convertê-lo à tolerância e à paz [...], enquanto os dois mundos permanecerem o que são, a liberdade de que gozam os ocidentais terá um significado subversivo do outro lado da cortina de ferro...»33
Aprudência de Raymond Aron estava pois, de todos os pontos de vista, enraizada na trágica experiência europeia da primeira metade do século xx, na qual as nações europeias se tinham esgotado. Levava-o a desejar a coesão da Aliança Atlântica, dado fundamental para o equilíbrio de forças, mas sem aderir às doutrinas americanas, quer tomassem a forma de um messianismo wilsoniano ou do realismo de Morgenthau. Nesse sentido, Aron não era um atlanticista. Mesmo o moderado George F. Kennan foi contradito quando declarou num colóquio, em 1957, que a divisão da Europa era insustentável. Aron replicou que tinha pelo menos o mérito de ser clara, e que uma divisão clara da Europa era considerada, com ou sem razão, como menos perigosa. Em resumo, escreve Kennan nas suas Memórias: «Aron prosseguiu, dizendo que uma situação equívoca seria mais perigosa que uma situação anómala. Por uma vez, acidentalmente e com pena, do lado dos homens de Estado.»34 Na ocorrência, Aron não era favorável à divisão da Europa, queria pelo contrário evitar a qualquer preço reconhecer o domínio soviético sobre a Europa Central e Oriental, mas julgava necessário manter o dispositivo da Aliança Atlântica enquanto durasse o conflito ideológico. A questão da liberdade da Europa é o tema central de Paix et guerre entre les nations.
A LEITURA DA EUROPA
O realismo de Aron levava-o a reconhecer uma parte de verdade na filosofia de Carl Schmitt fundada na distinção amigo/inimigo. A união das nações que compunham a Europa Ocidental não seria resultado da ameaça que a urss suscitava? Aron refere que
«Os novos poderes não ultrapassaram as rivalidades entre os antigos poderes que se constituem ou se descobrem inimigos. É contra a ameaça da União Soviética que o bloco atlântico concebeu uma vontade comum. É para recuperar uma independência em relação aos Grandes que os estados europeus se tentam unir. Se o conflito dos Gigantes desaparecesse por um golpe de varinha mágica, o que restaria da integração europeia ou da integração do bloco atlântico?»35
No entanto, Aron contestava a noção schmittiana de inimizade absoluta, e censurava o filósofo alemão por se comprometer simultaneamente em duas direções incompatíveis: por um lado, fundamentava a política na inimizade, por outro, exprimia a nostalgia do jus gentium europæum, do concerto europeu onde os conflitos eram moderados pelos estados. Escrevia Aron a Carl Schmitt:
«Para retomar a minha terminologia, o sistema europeu devia ser homogéneo. Os estados deviam repousar sobre o mesmo princípio de legitimidade. Os príncipes deviam estar mais preocupados em manter a sua comum legitimidade do que em mobilizar contra os seus irmãos os rebeldes e os revolucionários do outro lado da fronteira. Estas condições sociológicas exigiam uma rara e transitória conjunção.»36
Em desacordo com Schmitt, Raymond Aron estava ainda mais afastado das posições de Jean Monnet, que pretendia criar uma entidade política a partir de um mercado comum. Este projeto não era compatível com a filosofia aroniana fundada no primado e na autonomia do político. Em Paix et guerre entre les nations, as diligências de Jean Monnet são severamente refutadas:
«A esperança que a federação europeia sairá insensivelmente e irresistivelmente do mercado comum funda-se numa grande ilusão do nosso tempo: a ilusão da interdependência económica e técnica entre as diferentes frações da humanidade desvalorizou definitivamente o facto das soberanias políticas, de estados distintos que se querem autónomos.»37
Raymond Aron não acreditava pois num sentido da história que conduziria infalivelmente à unificação do Velho Continente; ele lamentava, aliás, que a Europa comunitária, que qualificou várias vezes de «Europe-croupion»38, fizesse esquecer a situação do continente no seu conjunto: os europeus de Leste estavam privados de liberdade, a do Ocidente era precária enquanto durasse o conflito Este-Oeste pois dependia da aliança americana. Segundo Aron, a vitalidade política ou histórica da Europa dependia das nações e do espírito cívico, fundado antes de mais sobre o dever de defesa. Assim, em Nova York, em 1974, afirmava:
«Os judeus da minha geração não podem esquecer a precaridade dos direitos do homem, no mundo tal qual existe, quando não coincidem com os direitos do cidadão. Ora os direitos do cidadão implicam também deveres e, o primeiro de todos, na tradição continental da Europa, é o dever de servir sob os estandartes, se o Estado ou as circunstâncias o exigem.»39
Ainda aí ressurgia a recordação de 1940, a afinidade eletiva com Clausewitz, que tinha conhecido uma situação análoga em 1806 depois da derrota de Iéna, e a proximidade com Burke, que criticava a abstração dos direitos do homem: judeu francês, Raymond Aron tinha experimentado em 1940 o desprezo dos seus direitos cívicos pelo Estado francês dirigido pelo marechal Pétain. Até 1944, a sua sobrevivência devia-se ao asilo que a Inglaterra lhe concedera. Na mobilização dos cidadãos para defender o seu Estado e a sua liberdade, estava a dimensão política que, pensava, faltava ao projeto de Jean Monnet, e que talvez não recebesse nunca. Aron tinha visto em 1952, no projeto da Comunidade Europeia de Defesa (ced), a ocasião para uma possível união política, e no fracasso da ced a certidão de óbito do projeto de Monnet40. Em Paix et guerre entre les nations, Aron faz o elogio da nação, que lhe parece uma espécie de obra-prima da história política:
«formadas ao longo dos séculos pela força e pelo sangue vertido, certas nações modernas redescobriram o segredo da união (nunca perfeita) entre a cultura e a política, a história e a razão. A nação tem a sua língua e o seu direito, que recebeu de séculos escoados e que exprimem uma vocação singular. Os cidadãos querem viver juntos, propor as suas próprias leis para dar à obra humana uma contribuição que, sem eles, não existiria. Nesse sentido, a nação, como escreveu R.P Fessard, tem uma vocação, enquanto que a classe não a tem.»41
Toda a fundação política supõe um ato de vontade que não aparece inadvertidamente. Em Paix et guerre, a Europa comunitária, porque desprovida desta característica, não é uma resposta ao problema da Guerra Fria, mas antes um efeito secundário desta e que não pesa na relação de forças mundial: «Afederação da Europa Ocidental, desejável ou não, contribuirá para a paz ou a tensão internacional, mas, de qualquer maneira, não modifica a ordem internacional.»42 Podemos duvidar, ao ler Paix et guerre entre les nations, que os pais fundadores da Europa comunitária tivessem sequer fundado alguma coisa, pelo menos no plano político, e no índice do livro nem sequer aparecem. Em compensação, figuram nomes como Charles de Gaulle, Konrad Adenauer, Winston Churchill ou ainda Imre Nagy. Só a partir de 1965 é que Raymond Aron infletiu o seu juízo sobre a construção europeia atribuindo-lhe um certo significado histórico, porque temia as consequências da política gaulista sobre a coesão da aliança ocidental. Em 1966, Aron publicou no Figaro uma série de artigos, «Lidée européenne est-elle en train de mourir?»43, que suscitaram da parte de Jean Monnet uma proposta de ação comum. Aron respondeu polidamente, mas nada se seguiu: não estava de modo algum convertido à visão de Monnet.
NOTA FINAL
Num contexto diferente do da sua redação, Paix et guerre entre les nations permance pois um livro importante. É certo que a Guerra Fria terminou, que a União Europeia prosseguiu o seu alargamento geográfico e diversificou o campo das suas competências com novas transferências de soberania. Não deixa de ser verdade que os europeus continuam a não assegurar a sua própria defesa, motivo que os remete ainda hoje para os Estados Unidos. Os europeus parecem por vezes alimentar a ilusão de que as relações comunitárias são um modelo para todo o mundo, ou mesmo a solução de todos os conflitos; acreditam ou desejariam acreditar que já não são inimigos. Ora, a nossa condição política é sempre este «sistema misto» que Rousseau descrevia, no qual as paixões agitam as razões de Estado. Paix et guerre entre les nations está aí para lembrar que a liberdade dos europeus depende da permanência das virtudes políticas: aos cidadãos, Aron lembra a exigência do dever da defesa, da dedicação à pátria sem a qual nenhum direito subsistiria; aos dirigentes, cuja responsabilidade é conservar a cidade, Aron dá uma lição de prudência. AJean-Louis Missika e Dominique Wolton, que lhe perguntavam em 1981 o que conviria fazer para que a Europa aumentasse a sua resolução coletiva, e qual era a condição sine qua non da sua manutenção, Raymond Aron respondia:
«Pois bem, lembre-se que, numa democracia, os indivíduos são ao mesmo tempo pessoas privadas e cidadãos. Ora, o que me impressiona mais é que é quase impossível, parece-me, em França, dar nas escolas aulas sobre o patriotismo, e que é provavelmente extraordinariamente difícil, mesmo numa faculdade, dar uma aula sobre os deveres do cidadão e lembrar que a nossa civilização, na medida em que é liberal é também uma civilização do cidadão. Enão só do consumidor, não só do produtor. As nossas sociedades, as nossas democracias, são países de cidadãos.»44
TRADUÇÃO: JOSÉ AUGUSTO COLEN
NOTAS
1Aron, Raymond Paix et guerre entre les nations. Paris: Calmann-Lévy, 1962. [ Links ]
2Duroselle, Jean-Baptiste «Paix et guerre entre les nations: la théorie des relations internationales selon Raymond Aron». In Revue française de science politique. Vol. 12, N.º 4, 1962, pp. 963-979. [ Links ]
3Hoffmann, Stanley The State of War. Essays on the Theory and Practice of International Politics. Nova York: Praeger, 1965. [ Links ]
4Aron, Raymond Mémoires. Paris: Robert Laffont, 1983, pp. 455 e segs. (na reedição de 2003). [ Links ]
5Battistella, Dario «Raymond Aron, réaliste néo-classique». Communication à la journée détudes Penser la guerre, Raymond Aron. Paris: ehess, 4 de junho de 2010. [ Links ] O mesmo autor tenta atualizar a diligência aroniana em duas obras recentes: Un monde unidimensionnel. Paris: Les Presses de Sciences-Po, 2011, e Paix et guerres au xxie siècle. Paris: Sciences humaines éditions, 2011.
6Aron, Raymond Introduction à la philosophie de lhistoire. Essai sur les limites de lobjectivité historique. Paris: Gallimard, 1938. [ Links ]
7Aron, Raymond Leçons sur lhistoire. Paris: De Fallois, 1989, pp. 43 e segs. [ Links ]
8Aron, Raymond Paix et guerre entre les nations. Présentation de la huitième édition, pp. i-ii; Rousseau, Jean-Jacques «Écrits sur lAbbé de Saint-Pierre». In OEuvres complètes. Vol. iii. Écrits politiques. Paris: Gallimard, La Pléiade, 1970, p. 610.
9Rousseau, Jean-Jacques «Écrits sur lAbbé de Saint-Pierre», p. 601.
10Hoffmann, Stanley «Rousseau on war and peace». In The State of War. Essays on the Theory and Practice of International Politics, p. 64. [ Links ]
11Rousseau, Jean-Jacques «Écrits sur lAbbé de Saint-Pierre», pp. 605 e 606.
12Aron, Raymond Paix et guerre entre les nations, p. 108; Papaligouras, Panayis Théorie de la société internationale. Kundig: Genebra, 1941. [ Links ]
13Morgenthau, Hans J. Politics Among Nations. Nova York: Knopf, 1948; [ Links ] Aron, Raymond Paix et guerre entre le nations, p. 584.
14Aron, Raymond Paix et guerre entre les nations, p. 586.
15Ibidem, p. 572.
16Ibidem, pp. 586-587.
17Aron, Raymond Introduction à la philosophie de lhistoire. Essai sur les limites de lobjectivité historique.
18Aron, Raymond Chroniques de guerre. La France libre 1940-1945. Paris: Gallimard, 1990. [ Links ]
19Delbrück, Hans Die Strategie des Perikles, erläutert durch die Friedrichs des Großen, mit einem Anhang u¨ber Thucydides und Kleon. Berlim: Reimer, 1890 (reedição Kessinger, 2010). [ Links ]
20Aron, Raymond Espoir et peur du siècle. Essais non partisans. Paris: Calmann-Lévy, 1957. [ Links ]
21Clausewitz De la guerre. Paris: Minuit, 1955, p. 703.
22Aron, Raymond Paix et guerre entre les nations, p. 157, começo do cap. vi, «Dialectique de la paix et de la guerre».
23O almirante Sanguinetti escrevia: «La guerre nucléaire est la négation de la formule de Clausewitz», porque considerava doravante as forças armadas como investidas apenas de uma missão puramente dissuasiva, Raymond Aron, numa carta a Bernard Brodie onde discutira a resposta graduada segundo o conceito de escalada, concluía: «La stratégie moderne de lâge atomique nous ramène plus que jamais à Clausewitz ». Cf. Malis, Christian Raymond Aron et le débat stratégique français 1930-1966. Paris: Economica, 2005, p. 729. [ Links ] E também Sanguinetti, Alexandre La France et larme atomique. Paris: Juillard, 1964, p. 21, [ Links ] e Bibliothèque nationale, NAF 28060, Fonds Raymond Aron, boîte 88, carta de Raymond Aron à Bernard Brodie de 23 de novembro de 1965.
24Aron, Raymond Paix et guerre entre les nations, p. 409.
25Oppermann, Matthias Raymond Aron und Deutschland. Die Verteidigung der Freiheit und das Problem des Totalitarismus. Ostfildern: Thorbecke, 2008. [ Links ]
26Oppermann, Matthias «Burkeanischer Liberalismus. Raymond Aron und die Tugend der Klugheit». In Bevc, Tobias, e Oppermann, Matthias Der souveräne Staat. Das politische Denken Raymond Arons. Estugarda: Steiner, 2012, pp. 157-179. [ Links ] Ver também Mahoney, Daniel J. «Dépasser le nihilisme, Raymond Aron et la morale de la prudence». In Raymond Aron et la liberté politique. Actes du colloque international de Budapest. Paris: De Fallois, 2002, pp. 133-147. [ Links ]
27Plenge, Johann 1789 und 1914: Die symbolischen Jahre in der Geschichte des politischen Geistes. Berlim: Springer, 1916; [ Links ] duas referências em Paix et guerre entre les nations, pp. 73 e 305.
28Aron, Raymond Les guerres en chaîne. Paris: Gallimard, 1951, pp. 23-25; [ Links ] Aron, Raymond Paix et guerre entre les nations, pp. 156, 302 e 393.
29Burke, Edmund Two Letters Addressed to a Member of the Present Parliament on the Proposals for Peace with the Regicide Directory of France. Londres: Rivington, 1796, p. 11. [ Links ]
30Aron, Raymond Espoir et peur du siècle, p. 120.
31Aron, Raymond «Clausewitz et lÉtat». In Annales. Histoire, Sciences Sociales. Ano 1977, Vol. 32, N.º 6, pp. 1255-1267, [ Links ] p. 1262 para a citação.
32Aron, Raymond Paix et guerre entre les nations, cap. xxii.
33Ibidem, p. 686.
34Kennan, George F. Memoirs 1950-1963. Nova York: Pantheon, 1972, p. 253. [ Links ]
35Aron, Raymond Paix et guerre entre les nations, pp. 740-741.
36Bibliothèque nationale, NAF 28060, boîte 208. Lettre de Raymond Aron à Carl Schmitt, 1 de outubro de 1963.
37Aron, Raymond Paix et guerre entre les nations, p. 733.
38Aron, Raymond «Le relatif déclin de lEurope». In Ranimer lEurope. Société amicale des anciens élèves de lEcole Polytechnique (A.X.), conférence du 8 juin 1983. Paris: Les Editions dOrganisation. [ Links ]
39Aron, Raymond «Une citoyenneté multinationale est-elle possible?». In Commentaire. N.° 56, 1991, pp. 695-704, [ Links ] reeditado em Les Société modernes. Paris: puf, 2006.
40Aron, Raymond, e Lerner, Daniel (dir.) La Querelle de la CED, Essais danalyse sociologique. Cahiers de la Fondation nationale des sciences politiques. Paris: Armand Colin, 1956, pp. 209 e 212. [ Links ]
41Aron, Raymond Paix et guerre entre les nations, p. 736.
42Ibidem, p. 740.
43Aron, Raymond «Lidée européenne est-elle en train de mourir?». In Le Figaro, 15 de novembro de 1966; Aron, Raymond «Léchec politique». In Le Figaro, 17 de novembro de 1966; Aron, Raymond «LEurope des nations». In Le Figaro, 19-20 de novembro de 1966. Ver também Aron, Raymond «Mort ou métamorphose de lidée européenne?». In Le Figaro, 7 de dezembro de 1966; Aron, Raymond «Garder confiance». In Le Figaro, 12 de dezembro de 1966.
44Aron, Raymond Le Spectateur engagé. Paris: Le Livre de Poche, 2005. [ Links ]