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Relações Internacionais (R:I)
versão impressa ISSN 1645-9199
Relações Internacionais no.41 Lisboa mar. 2014
RECENSÃO
Duas nações dentro de uma1
João Carlos Santana da Silva*
* É Licenciado em História e mestre em História Contemporânea pela Faculdadede Letras da Universidade de Lisboa. Foi colaborador do Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros e editor da revista Negócios Estrangeiros entre 2010 e 2011. Contribuiu para a Enciclopédia de Direito Internacional (Almedina, 2011) e para a Enciclopédia da Constituição Portuguesa (Quid Juris, 2013).
A história não é nova. Para o público norte-americano, faz parte da cultura histórica mais básica, a par do Boston Tea Party. Mesmo para os europeus, a lição é geralmente considerada como estando suficientemente estudada. Falo da Guerra Civil Americana, que se iniciou formalmente com o ataque confederado a Fort Sumter no dia 12 de Abril de 1861 e terminou com a rendição do general Robert E. Lee (e do exército dos Estados Confederados da América) em Appomatox a 9 de Abril de 1865, defronte do general Ulysses S. Grant, com este em representação do vitorioso exército da União. A maioria dos estudos sobre a Guerra Civil foca-se nesta dimensão militar, pela importância que esta teve na reorganização política, na alteração da ordem jurídica (com um valente teste à resiliência constitucional, ao equilíbrio de poderes e ao limite dos poderes presidenciais) e na transformação radical do paradigma estratégico militar do século xix.
Outro dos factos conhecidos é, precisamente, o papel desempenhado no eclodir da guerra pela discussão em redor da abolição da escravatura nos Estados Unidos. Discussão que subiu de tom a partir de metade do século xix e que tornou óbvia uma diferença irreconciliável entre os estados do Norte e os do Sul assentes em modelos económicos e sociais que, de divergentes, passaram a uma situação de oposição radical: o Norte, apostado na industrialização da sua economia e na conquista de novos mercados internacionais, ao mesmo tempo que combatia gradualmente a escravatura na União; o Sul, sobretudo o Sul profundo, assente num sistema obsoleto de plantações (particularmente as de algodão) que não só estagnavam o desenvolvimento económico como dependiam, por sua vez, da fortemente enraizada instituição da escravatura. No fundo, não se pode falar apenas de uma fractura política entre Norte e Sul à altura da Guerra Civil, mas sim de toda uma divisão entre formas de ver a sociedade e de encarar as futuras reformas a fazer nos estados da União. Falamos, na prática, de duas nações diferentes dentro da América.
Foi neste aspecto que Bruce Levine quis pegar ao abordar o impacto da Guerra Civil de 1861-1865. Professor de História na Universidade de Illinois em Urbana-Champaign, Levine propôs-se estudar a profunda transformação que se deu nos Estados Unidos durante e após a guerra de uma forma pouco habitual na academia norte-americana: através do estudo da queda da «casa de Dixie», ou seja, de toda a estrutura económica e social (que vai a níveis muito mais profundos do que a mera estrutura política) dos estados do Sul. The Fall of the House of Dixie: The Civil War and the Social Revolution that Transformed the South é o resultado deste trabalho de investigação.
A «Segunda Revolução» Americana: O Ataque Ao Sistema Esclavagista Do Sul
Após receber a nomeação do Partido Republicano, em 1858, para senador do Illinois no Senado dos Estados Unidos, Abraham Lincoln viria a perder a corrida para Stephen A. Douglas (com quem mais tarde disputaria a própria presidência em 1860). No entanto, no seu discurso de aceitação de candidato ao Senado, o famoso discurso da «House Divided», Lincoln declarou que o governo não poderia continuar a ser «metade escravo e metade livre», acrescentando que não esperava que a União se dissolvesse, mas sim que deixasse de estar dividida, ou seja, «ou se torna inteiramente uma coisa, ou inteiramente a outra»2. Não poderia o candidato do Illinois ter oferecido vaticínio mais certeiro.
O que Bruce Levine aqui procura fazer é descrever esta «segunda revolução» americana (que se foi dando enquanto as tropas do Norte lutavam para conservar a União), demonstrando «como esta grande e terrível guerra minou as fundações económicas, sociais e políticas do velho Sul, destruindo a servidão humana e o mundo estratificado da elite esclavagista» (da Introdução). Dando relevo à experiência dos estados sulistas, Levine explica porque é que Lincoln teve um momento clarividente ao prever que o país teria de se tornar inteiramente uma das duas Américas distintas em que se dividia.
Para compreender o verdadeiro impacto desta «segunda revolução», é essencial saber o enorme peso cultural, social e económico que o Sul tinha em toda a União. Levine vai directo à questão: era um território enorme, maior do que a Grã-Bretanha, a França, a Áustria, a Prússia e a Espanha juntas e, nas palavras de um grande proprietário de plantações de algodão do Sul, suficiente para fazer um império capaz de «governar o mundo» (p. 3); dos 12 milhões de habitantes dos seus estados, um em cada três era escravo; o valor total destas pessoas escravizadas, nos mercados, era de cerca de três biliões de dólares, excedendo o valor de todas as terras aráveis do Sul; e, é claro, produzia dois terços do algodão mundial, fazendo deste bem a principal exportação dos Estados Unidos. A íntima relação entre o poderio económico e, consequentemente, político do Sul, a produção de algodão e a existência de escravatura tinha, pois, um carácter absoluto. Na verdade, sem escravatura, não haveria esta vantajosa produção de algodão. E sem esta produção de algodão o «King Cotton», como era apelidado pelo seu peso económico e político , não haveria riqueza que sustentasse as elites e, naturalmente, o sistema estratificado do Sul. Sem escravatura, o sistema de plantações simplesmente colapsaria (p. 11).
A intransigência da sociedade sulista em alterar, de bom grado, a forma como se organizava deve, pois, ser compreendida tendo em mente essa dependência económica da instituição esclavagista: tal como as fundações de uma casa (a «casa de Dixie»), também toda a estrutura do Sul dependia desta forma de mão-de-obra. Mas a relação dos brancos do Sul (sobretudo as classes mais altas) com a escravatura vai muito além da necessidade material desta força de trabalho. Mais do que alicerce económico, a escravatura era o garante da perpetuação da sua estratificação social, o contraponto à posição da aristocracia e, em última instância, a prova de que a sociedade, como um todo, se mantinha coesa e estruturada.
Na legitimação da escravatura, perdurava a perspectiva de Thomas Jefferson de que aquela seria um «mal necessário». Isto é, receava-se que, após o transporte de milhões de africanos através do Atlântico para trabalhar nas colónias americanas, a emancipação súbita de todos estes escravos obrigasse à sua integração na civitas, não estando preparados nem civilizados para tal. Mas nem todas as justificações eram tão condescendentes. A concepção da escravatura enquanto elemento civilizacional agregador é aprofundada por Levine ao citar Abel P. Upshur, um ex-juiz da Virgínia que afirmava não haver civilização que não se baseasse na exploração do esforço de apenas uma parte da sua população: ou seja, em todas as sociedades (as bem-sucedidas) se reservava o trabalho mais pesado e monótono às classes mais baixas e menos qualificadas, permitindo a uma outra classe a dedicação aos trabalhos intelectuais, culturais e políticos que faziam progredir as respectivas civilizações. É ainda bastante relevante a referência (que será frequente ao longo do livro) a James Henry Hammond, político e pensador pró-esclavagista do período pré-Guerra Civil, que evoca Roma e a Grécia clássicas como exemplos que confirmam que a escravatura é o verdadeiro alicerce de um duradouro «edifício republicano» (pp. 18-19). Numa frase, sem escravos negros, não existiriam, na sociedade norte-americana, cidadãos brancos verdadeiramente livres e iguais.
O Braço-De-Ferro Entre Estados E Governo Federal
A outra dimensão explorada por Levine, através da documentação de correspondência pessoal e diários de figuras relevantes e anónimos do Sul, é a da defesa dos direitos dos estados perante o governo federal. Partindo da secessão feita, sobretudo, como reacção à chegada ao poder do recém-criado Partido Republicano predominantemente abolicionista , o autor explica como esta posição de princípio de autonomia perante o governo da União se vai, na verdade, esboroando após a formação do governo da Confederação. As soluções avançadas pelo presidente confederado Jefferson Davis vão-se revelando tão «autoritárias» como as da União: a conscrição militar que levava, de famílias pobres e não-proprietárias de escravos, os únicos homens em condição para trabalhar (e proteger a propriedade); a protecção dos mais ricos ao permitir que estes pagassem para não serem alistados no exército; a cisão definitiva entre ricos e pobres no Sul após aprovação de um plano para armar e eventualmente libertar os escravos que combatessem pela Confederação3.
Não era, no entanto, necessária a intervenção do governo confederado para azedar as relações da população pobre com a elite e com a própria escravatura. A permanente relutância dos grandes proprietários os principais proponentes da secessão e da guerra em fornecer escravos ou familiares em idade de combater para os esforços bélicos, para não perder lucros nas suas terras, lembrou aos estratos sociais mais baixos da sociedade sulista que a guerra não se fazia só pela manutenção da escravatura, mas pela perpetuação de uma rigidez social que nunca os beneficiaria. Multiplicaram-se então, por um lado, as deserções de soldados que voltavam simplesmente a casa para continuar a ajudar na subsistência e na defesa da família e, por outro, as milícias rebeldes «anti-rebeldes» (como o famoso bando de Newton Knight).
O estudo de Bruce Levine tem o mérito de reequilibrar a balança moral da história da Guerra Civil Americana sem nunca perder a imparcialidade, ou seja, o de trazer para o centro da história política dos anos 1861-1865 uma maior presença de Jefferson Davis do que de Abraham Lincoln, sem nunca absolver nem esquecer os méritos de qualquer um dos dois. Além disso, o autor reafirma que, se foi sobretudo a secessão a causar a guerra, então foi, pelo menos, o conflito pela escravatura (a sua manutenção ou abolição) a causar a secessão. O que explicará a ausência de comentário comparativo mais desenvolvido às economias dos estados do Norte e do Sul, crucial para perceber que a oposição à escravatura ia além da crença na igualdade e na liberdade como sendo direitos básicos4.
Por fim, o ponto forte de The Fall of the House of Dixie será, sobretudo, a convivência entre Norte e Sul dos Estados Unidos na análise da resiliência e coesão social durante a guerra. De um lado, a norte, o contraste entre o vigor dos abolicionistas e a crescente responsabilização pelos mortos do conflito (e perseguição) dos negros por parte dos soldados unionistas. Do outro, mais a sul, o rápido sucumbir da estrutura da «casa de Dixie» durante a guerra, ao perder-se, ano a ano, a profunda convicção de que a escravatura era o melhor sistema existente para o seu modo de vida, de que um governo confederado poderia ser melhor do que o da União, e de que os ricos do Sul protegeriam os pobres quando fosse necessário. Em suma, Levine ilustra as contradições internas de um lado e do outro das trincheiras à medida que os estados se tornam cada vez menos autónomos e mais sujeitos a um governo federal (sendo a Guerra Civil um período de fortalecimento dos poderes presidenciais) , lembrando, simultaneamente, que o racismo e a desconfiança perante o poder central e os grandes proprietários eram comuns a todos os americanos, quer estivéssemos no Norte ou no Sul. No fundo, deixa patente que, apesar de sentidos em «nações diferentes» dentro de uma mesma federação, as preocupações e os problemas de ambos os lados eram, na verdade, comuns. E que a «segunda revolução» americana, muito competentemente estudada neste livro, não conseguiu, apesar da tempestade de mudança desencadeada, revolucionar mentalidades. Seriam necessários, pelo menos, mais cem anos para tal: com o fim da guerra, vinha a hora de construir algo novo nas ruínas da «casa de Dixie».
Notas
1 A pedido do autor o texto não adopta as normas do Novo Acordo Ortográfico.
2Goodwin, Doris Kearns Team of Rivals: The Political Genius of Abraham Lincoln. Londres: Penguin Books, 2009, p. 198. [ Links ]
3Se, por um lado, esta decisão apaziguava os soldados oriundos de famílias mais pobres (anterior mente obrigados a combater sozinhos por privilégios que não tinham), por outro, tinha um valor paradoxal, já que prometia liberdade e esperança de cidadania a escravos negros que combatessem por princípios políticos e sociais que negavam reconhecer-lhes capacidade para ter esses direitos e exercer deveres cívicos semelhantes aos homens livres brancos. Ver este aspecto mais desenvolvido em Levine, Bruce Confederate Emancipation: Southern Plans to Free and Arm Slaves during the Civil War. Oxford: Oxford University Press, 2006. [ Links ]
4Na verdade, a incapacidade de os estados do Norte em concorrer com os preços do Sul garantidos pelo trabalho dos escravos negros nas plantações limitava o desenvolvimento industrial e punha em risco a competição com a produção têxtil britânica.