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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.43 Lisboa set. 2014

 

25 ANOS DA QUEDA DO MURO DE BERLIM

 

Os Estados Unidos e o fim da Guerra Fria

The United States and the end of the Cold War

 

Tiago Moreira de Sá

Professor Auxiliar na Faculdade de Ciência Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-UNL). Investigador no IPRI-UNL. As suas publicações mais recentes incluem os livros Carlucci versus Kissinger. The USA and the Portuguese Revolution (Lexington Books, 2011); Os Estados Unidos e a Descolonização de Angola (Dom Quixote, 2011); À Procura de um Plano Bilateral. A Fundação Luso-Americana e o Desenvolvimento de Portugal (FLAD, 2010). Está atualmente a escrever dois novos livros, um sobre as relações Luso-Americanas e outro sobre a Política Externa Portuguesa, ambos a publicar em 2014.

 

RESUMO

Como escreveu Henry Kissinger, «A Guerra Fria começou numa altura em que a América esperava uma época de paz. E terminou no momento em que a América se preparava para uma nova era de conflito.» Este artigo analisa as causas que estiveram na base do fim do conflito Leste-Oeste, quando nada o fazia prever, e o papel desempenhado neste contexto pelos Estados Unidos.

Palavras-chave: Estados Unidos, União Soviética, Ronald Reagan, Mikhail Gorbachev.

 

ABSTRACT

As Henry Kissinger wrote, «The Cold War began at a time when America waited a time of peace. It ended at the time that America was preparing for a new era of conflict». This article examines the causes which led to the end of the East-West conflict, when nothing could anticipate it, and the role played in this context by the United States.

Keywords: United States; USSR, Ronald Reagan, Mikhail Gorbachev

 

«A Guerra Fria começou numa altura em que a América esperava uma época de paz. E terminou no momento em que a América se preparava para uma nova era de conflito.»1

 

O fim do conflito bipolar que emergiu a seguir à Segunda Guerra Mundial foi súbito e inesperado. Não só ninguém previu o colapso da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), como até bem próximo desse acontecimento a maioria da literatura de relações internacionais, bem como muitos decisores políticos norte-americanos, acreditava que os soviéticos gozavam de paridade ou mesmo superioridade estratégica2. Além disso, na primeira metade da década de 1980, as relações entre Washington e Moscovo eram bastante tensas, com o presidente Ronald Reagan a descrever a União Soviética como o «império do mal» e os líderes desta a chegarem ao ponto de acreditar que os Estados Unidos estavam a preparar um ataque nuclear preventivo contra o seu país3. É certo que a situação se alterou radicalmente a partir de 1984/1985, tendo-se verificado após esse momento os mais amplos e significativos acordos ao nível dos armamentos estratégicos de toda a Guerra Fria4. Porém, a tensão e a desconfiança nunca desapareceram por completo. Este artigo tem como objetivo responder a duas questões centrais. Em primeiro lugar, por que razão terminou o conflito Leste-Oeste quando nada o fazia prever. Em segundo lugar, qual o papel dos Estados Unidos nesse resultado.

 

ESCOLAS DE PENSAMENTO SOBRE O FIM DA GUERRA FRIA

Da extensa produção académica relativa aos motivos do fim da Guerra Fria é possível identificar três grandes escolas de pensamento. A primeira, concentra-se nas causas norte-americanas, muito em particular no papel das administrações Ronald Reagan e George H. Bush. A segunda, nas causas soviéticas, destacando a tentativa reformadora de Gorbachev. A terceira, nas causas dos satélites da URSS na Europa de Leste, mais precisamente nas revoluções aí ocorridas no ano de 1989. Em relação ao primeiro caso, uma corrente interpretativa, designada de «triunfalista», defende que os Estados Unidos venceram a Guerra Fria, destruindo a sua Némesis, a União Soviética. Para eles, a administração Reagan provocou o fim do conflito bipolar ao acelerar o colapso soviético através da adoção de uma política externa ofensiva destinada a explorar as fragilidades de Moscovo, supostamente conhecidas em Washington, como, por exemplo, levando a cabo um programa de rearmamento maciço, lançando a Iniciativa de Defesa Estratégica (SDI, na sigla em inglês) e apostando numa retórica mais contundente e neo-wilsoniana. Os «triunfalistas» consideram que foi a combinação desta política ambiciosa, que conjugava poder militar e ideologia com a incapacidade do Kremlin de acompanhar o ritmo dos gastos em defesa e a competição tecnológica que levou à implosão da URSS5. Outra corrente reverte a visão dos «triunfalistas» e sustenta que as políticas mais duras de Reagan levaram antes a um adiamento do fim da Guerra Fria, pois a retórica anticomunista, o SDI e os aumentos dos gastos na área militar tornaram mais difícil a Gorbachev seguir um caminho de aproximação com o Ocidente, sobretudo devido à reação da ala mais conservadora do Politburo, crescentemente crítica do caminho escolhido pelo secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética (PCUS). Em resumo, segundo esta perspetiva, a linha ofensiva do presidente norte-americano acabou por reforçar os setores mais ultra em Moscovo, retirando apoio interno a Gorbachev para seguir as suas políticas reformistas e, logo, impedindo a Guerra Fria de acabar antes6. Apesar destas diferenças, as três visões têm em comum a defesa da existência de uma política de linha dura por parte da administração de Ronald Reagan, mesmo que chegando a conclusões diferentes sobre o impacto desta na implosão soviética e no consequente fim da Guerra Fria7. A segunda grande escola de pensamento desloca a atenção para a URSS, considerando que não foi Washington que venceu o conflito bipolar, mas sim Moscovo que o perdeu ao implodir, sobretudo por três motivos: as políticas de Gorbachev, o expansionismo excessivo no Terceiro Mundo a partir de década 1970 e o colapso da sua economia8. Em relação ao primeiro motivo, como escreveu Tony Judt só um comunista podia «abater» a URSS. Existe um consenso na literatura relativamente ao papel que Mikhail Gorbachev teve na transformação, primeiro, e implosão, depois, da União Soviética.

Tendo ascendido ao cargo de secretário-geral do PCUS com apenas 41 anos, cerca de menos 20 do que os seus antecessores, e tendo viajado pela Europa Ocidental durante a década de 1970, o novo líder do Kremlin estabeleceu desde o início como prioridade a «revisão da moribunda economia» do país9. Com esse propósito, lançou a Perestroika, uma política de transformação gradual e limitada da economia de planeamento centralizado em uma com elementos de mercado, cujo momento seminal foi a aprovação da Lei de 1986 sobre a Atividade Laboral Individual que permitiu a iniciativa privada de pequena escala. Todavia, ele rapidamente percebeu que o problema da economia não era mais do que um sintoma de um problema maior e que só podia ser resolvido por uma reforma política, a começar pelo PCUS. Como já foi escrito, «Para o Partido reformar a economia, teria primeiro de se reformar a si mesmo.» Assim, deu início à Glasnot, uma abertura política traduzida essencialmente no incentivo à discussão pública de um conjunto restrito de tópicos e, mais importante de tudo, na democratização do partido comunista através de eleições internas (maio/junho de 1989), de forma a isolar os setores mais conservadores e quebrar o seu bloqueio. Ora, foi justamente o efeito da conjugação da Perestroika e da Glasnost no sistema soviético que levou ao colapso do país: o comunismo, pelo menos na URSS, não era reformável10. Outro motivo muitas vezes avançado é o excessivo expansionismo da União Soviética no Terceiro Mundo, sobretudo a partir da década de 1970, altura em que os seus dirigentes pensavam que «o vento soprava a seu favor»11 . Os anos que se seguiram foram de avanço de Moscovo um pouco por toda a periferia do sistema internacional, levando mesmo à generalização da ideia de que estava a ganhar a Guerra Fria. Em 1975, os seus aliados venceram no Vietname e em Angola, contando com um forte apoio do Kremlin, traduzido no segundo caso no fornecimento ao MPLA de centenas de toneladas de armamento pesado, tal como tanques T-33 e T-54, mísseis antitanque sam-7 e aviões Mig-21, para além de ter inaugurado uma nova forma de travar a Guerra Fria com os Estados Unidos: o recurso aos cubanos. No final de 1977, quando a Etiópia se envolveu num choque militar com a Somália por causa da disputa em torno do deserto do Ogaden, a URSS transportou por via aérea e terrestre entre 12 a 15 mil tropas cubanas para a Etiópia e forneceu mais de mil milhões de dólares em armamento. Em 1978-79, foi estabelecido um regime pró-soviético no Iémen do Sul, o que por sua vez deslocou o tradicionalmente mais moderado Iémen do Norte para uma relação mais próxima com Moscovo. E, em 1979, Moscovo invadiu o Afeganistão12. Finalmente, alguns autores sublinham em especial a dimensão económica, nomeadamente a persistente crise da economia soviética e o impacto nesta última da renovada corrida aos armamentos. A riqueza do país, que mal crescera durante um período longo de tempo, estava agora a retroceder. A dívida pública estava descontrolada, totalizando 54 mil milhões de dólares em 1989. O volume de produção era qualitativamente atrasado e quantitativamente inadequado. A combinação de objetivos do planeamento central arbitrariamente estabelecidos com a escassez endémica e a ausência de indicadores de preço paralisavam toda a iniciativa13. Este já muito frágil edifício foi definitivamente abalado pela agressiva política de rearmamento da administração Reagan. Como afirmou Gorbachev perante o Politburo, «se uma nova corrida aos armamentos começar, a pressão sobre a nossa economia será inacreditável»14. A terceira escola de pensamento centra-se nas causas localizadas nos satélites soviéticos da Europa de Leste. Segundo esta perspetiva, as revoluções de 1989, que culminaram na «queda dos muros», tiveram um papel relevante na implosão da URSS15. De facto, «a narrativa convencional do colapso final do comunismo começa com a Polónia»16. Na viragem de 1988 para 1989 iniciou-se a chamada «Segunda Revolução Polaca», uma vez mais na sequência do agravamento da situação económica, que desencadeou um movimento maciço de protesto, traduzido em greves, paralisações e ocupações. Ao contrário do que tinha sucedido no passado, onde, por regra, as autoridades recorriam à força, desta vez decidiram negociar com a oposição, dando início a uma «revolução negociada» e que serviu de modelo para a maioria (mas não todos) dos satélites soviéticos da Europa de Leste. Em primeiro lugar, legalizaram a oposição, neste caso concreto o «Solidariedade», permitindo a existência de interlocutores legitimados entre os que se opunham ao regime. Depois, iniciaram o processo de negociação, que ficou conhecido por «mesa-redonda», tendo as partes chegado a acordo sobre um conjunto abrangente de temas, com destaque para a eleição de uma nova Assembleia. Em junho de 1989, realizaram-se as primeiras eleições parcialmente livres, tendo o «Solidariedade» ganho no Senado todos os lugares exceto um (99 em 100) e a totalidade dos que lhe foi permitido concorrer na Assembleia Parlamentar. Três meses depois tomava posse Tadeusz Mazawiecki, o primeiro primeiro-ministro não comunista na Europa de Leste desde 1940. Finalmente, em janeiro de 1990, foi dissolvido o partido comunista17. Os restantes casos tiveram vários elementos comuns com o exemplo polaco. Em todos existiu um «contágio» do precedente aberto pela Polónia, tendo as imagens televisivas dos acontecimentos nesse país funcionado como um catalisador decisivo18. Na maioria deles foi seguido o modelo polaco: legalização de partidos políticos, negociações com a oposição no formato «mesa-redonda», realização de eleições, tomada de posse de um novo governo, abolição do partido comunista. Mas existiram também vários elementos específicos. Na Hungria, houve uma transição conduzida pelos próprios comunistas depois do golpe interno no partido no poder levado a cabo pelos jovens reformistas, inspirados pelo exemplo de Gorbachev, que afastaram o septuagenário Kadar. Na República Democrática Alemã (RDA), que foi decisivamente influenciada pelos desenvolvimentos húngaros, nomeadamente pela abertura (informal) da fronteira austro-húngara em setembro de 1989, por onde passaram dezenas de milhares de cidadãos do Leste com o objetivo de chegarem à rfa, assistiu-se à única verdadeira revolução popular, tendo o comunismo e o muro sido derrubados pelas grandes manifestações nas ruas das principais cidades do país. Na Checoslováquia, assistiu-se a um processo misto, combinando elementos de revolução popular (a «revolução de veludo»), e de transição política, destacando-se o papel desempenhado por redes e grupos sociais informais, como o «clube John Lennon», as «Mães de Praga» e o «Fórum Cívico», bem como pelos estudantes. Os casos da Bulgária e da Roménia tiveram elementos semelhantes ao da Hungria, tendo o processo sido iniciado, e no essencial conduzido, pelos próprios comunistas depois de um «golpe palaciano» que afastou as lideranças de Zhivkov e Ceausescu, respetivamente. Porém, especialmente no último exemplo, conheceram níveis de viol&ecir c;ncia muito superiores, incluindo a execução do líder romeno no dia de Natal de 198919. Como é sabido, existiram ao longo de toda a Guerra Fria várias revoltas nos satélites soviéticos, sendo que as primeiras ocorreram muito pouco tempo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Então, por que razão, em 1989, tudo foi diferente? A explicação pode ser encontrada em três motivos fundamentais. Primeiro, pela decisão de Gorbachev de abandonar a «Doutrina Brejnev», que para todos os efeitos dotava a URSS de um direito de intervenção militar nos países do Pacto de Varsóvia onde os regimes comunistas e subordinados a Moscovo estivessem ameaçados por subversões internas. Segundo, pelo incentivo dado por Gorbachev a uma Perestroika e uma Glasnost na Europa de Leste, tendo o secretário-geral do PCUS se empenhado em convencer os dirigentes locais a levarem a cabo processos de reforma económica e política semelhantes aos da União Soviética. Terceiro, pela grave crise económica e social que existia à época nos vários países, com destaque para os que se tinham endividado mais no Ocidente, como a Polónia, a Hungria e a Bulgária. Mas, tudo somado, apesar da existência de elementos internos relevantes nos vários Estados da Europa de Leste, o fator decisivo esteve na URSS. Como escreveu um autor, em última análise «era sempre Moscovo que contava» e 1989 foi «a revolução de Gorbachev»20.

 

OS ESTADOS UNIDOS E O FIM DA GUERRA FRIA

No que diz respeito aos Estados Unidos, o fim da Guerra Fria aparece maioritariamente associado às administrações Reagan e Bush. Mas qual o foi papel destes dois presidentes? Qual foi decisivo? A versão dominante é a de que a combinação da dimensão ideológica com uma política externa ofensiva, sobretudo ao nível dos armamentos estratégicos, durante os anos de Ronald Reagan foi decisiva para o resultado final do conflito bipolar. Dito de uma forma mais simples: Reagan ganhou a Guerra Fria. Contudo, não se devendo desvalorizar estes elementos, a realidade é mais matizada e o presidente em questão não levou a cabo uma política igual do princípio ao fim do seu mandato relativamente à União Soviética, sendo possível identificar em traços gerais dois momentos distintos: entre 1981 e 1984, ele adotou uma política de confronto geopolítico e ideológico com Moscovo; a partir daí procurou uma diminuição da tensão na relação entre as superpotências, tendo mesmo negociado os mais ambiciosos programas de redução de armamentos nucleares21. Durante a sua campanha para a Casa Branca e nos seus primeiros anos de presidência, Ronald Reagan e os seus conselheiros acreditaram, e fizeram questão de frisar, que o aumento das capacidades soviéticas e da sua influência geopolítica colocavam a segurança norte-americana em maior perigo do que em qualquer outro momento no pós-Segunda Guerra Mundial22. Os factos pareciam comprovar esta perspetiva. A queda da Indochina em 1975 foi seguida pela débâcle angolana, por graves divisões internas depois da crise presidencial provocada pelo escândalo «Watergate» e pela expansão da URSS um pouco por toda a periferia do sistema internacional. Tropas cubanas espalhavam-se desde Angola até à Etiópia. O Cambodja foi invadido pelo Vietname, aliado de Moscovo. O Afeganistão estava ocupado por mais de 100 mil militares soviéticos. No Irão, uma revolução islâmica depôs o governo pró-americano do Xá, tendo o novo regime mantido como reféns 52 americanos. «Quaisquer que fossem as causas, os dominós pareciam, de facto, estar a cair.»23 Face ao que era percecionado como uma séria ameaça soviética à segurança dos Estados Unidos, a administração Reagan adotou uma política com três frentes, mas com um objetivo central: recuperar a superioridade estratégica norte-americana. Para isso, ela apresentou o maior orçamento de defesa de sempre em tempo de paz, procurou desestabilizar a URSS através de uma “guerra económica” e reforçou significativamente o apoio às forças nacionais que se opunham a Moscovo em várias partes do mundo, como os Mujahedeens no Afeganistão, a UNITA em Angola, os «Contra» na Nicarágua, para além de movimentos como o polaco DE “Solidariedade” na Europa de Leste24. Central nesta política foi o desenvolvimento de uma nova geração de armamentos estratégicos. Desde logo os mísseis balísticos MX A (míssil balístico intercontinental terrestre) e Trident II (míssil balístico intercontinental. lançado a partir de submarino). Também um novo bombardeiro, o B-2, de uso dual – nuclear e convencional – com capacidade de voar a baixa altitude e equipado com mísseis de cruzeiro, para além da recuperação do B-1. E, ainda, a atualização do submarino nuclear Orion. Mas as duas decisões estratégicas fundamentais foram a colocação de mísseis de médio alcance na Europa e a Iniciativa de Defesa Estratégica25.

Logo no primeiro ano do seu mandato, Reagan decidiu dar prosseguimento à decisão tomada ainda durante os anos de Jimmy Carter de enviar mísseis para a Europa Ocidental no quadro da nato, o que foi concretizado em 1983 com a colocação de mísseis balísticos Pershing II e mísseis de cruzeiro Tomahawk em vários países europeus, com destaque para a RFA. O objetivo imediato era o de inverter a suposta superioridade estratégica soviética na Europa, contrabalançando os seus mísseis ss-20. Porém, a decisão visava também manter a unidade da Aliança Atlântica, abalada pelos receios europeus de um menor compromisso americano na defesa do continente num eventual conflito com a URSS devido ao projeto do SDI. Finalmente, os chamados “euromísseis” destinavam-se ainda a evitar os sintomas de crescente nacionalismo e neutralismo alemão, particularmente visíveis no SPD depois do afastamento de Helmut Schmidt26. Em simultâneo, o governo norte-americano avançou com a Iniciativa de Defesa Estratégica, mais conhecida como «Guerra das Estrelas», que visava a criação de um escudo antimíssil capaz de conter a força nuclear soviética. A ter sucesso, a sdi significaria uma verdadeira rutura estratégica, fazendo com que um primeiro ataque americano fosse exequível ao tornar o seu território praticamente inexpugnável. Porém, não só tal nunca foi consensual entre os especialistas, como surgiram várias críticas de outra natureza. Por exemplo, Richard Betts defendeu que a SDI era ineficaz pois o poder nuclear da URSS conseguiria sempre saturar o “escudo antimíssil”. Para Robert Osgood, o sistema apresentava poucas vantagens e muitos perigos, destruindo o Tratado abm e a política de controlo de armamentos. Do lado dos defensores do projeto, Henry Kissinger escreveu que ele aumentava a capacidade de dissuadir a União Soviética porque ampliava os seus riscos de iniciar uma guerra nuclear27. A curto prazo, os críticos pareceram ter razão. Como resposta à Iniciativa de Defesa Estratégica, bem como aos «euromísseis», o Kremlin rompeu as negociações inf (Intermediate Nuclear Force) e START (Strategic Arms Reduction Talks). Segundo Beth Fischer, «no final de 1983, as relações entre as superpotências eram mais hostis do que em qualquer outro período desde a crise dos mísseis de Cuba»28. Porém, a médio prazo estas políticas contribuíram para o renovado interesse negocial da URSS dada a sua incapacidade económica para uma redobrada corrida militar. Mas a administração Reagan não olhava para o conflito com Moscovo apenas numa perspetiva geopolítica. Para ela, a ideologia era uma variável fundamental da ameaça soviética, e logo também da forma de lidar com ela, dadas as profundas e irreconciliáveis diferenças entre a democracia liberal e o comunismo. A sua abordagem neste plano era «uma versão simplificada» do pensamento de Woodrow Wilson, «enraizada na utopia americana» e traduzida na forma de «uma luta entre o bem e o mal»29. Contudo, acreditando na existência de um direito natural e universal à liberdade e na missão do seu país de defendê-lo em todos os continentes, «do Afeganistão à Nicarágua», Reagan levou a «Doutrina Wilson» até às últimas consequências. A América «não esperaria passivamente que as instituições livres se desenvolvessem, nem se limitaria a resistir a ameaças diretas à sua segurança», antes iria promover «de forma ativa a democracia, recompensando os países que cumprissem os seus ideais e punindo aqueles que não o fizessem»30. Como não podia deixar de ser, inicialmente esta ideia de uma competição ideológica, a par com a geopolítica, levou a um sério agravamento das relações entre as superpotências. Mas Reagan estava longe de defender que o conflito era a única alternativa. Pelo contrário, ele acreditava que seria capaz de converter o adversário, levando-o a reconhecer que a sua filosofia política estava errada e, uma vez ultrapassada a rivalidade ideológica, a disputa pelo poder entre as superpotências acabaria. A retórica do presidente americano baseava-se sobretudo na esperança de uma progressiva democratização da URSS, o que levaria a uma melhoria relevante no relacionamento Leste-Oeste31. Todavia, no início de 1984, começou um segundo momento do governo Reagan. No dia 16 de janeiro, num discurso sobre as relações entre os Estados Unidos e a União Soviética, ele anunciou a inauguração de uma nova política, designada de realistic reengagement, baseada na cooperação e no entendimento entre os dois países32. Esta tinha dois grandes objetivos. Antes de tudo, e mais importante, reduzir o enorme volume de armamentos estratégicos, diminuindo assim o risco de guerra total, principalmente de um conflito nuclear. Depois, terminar com os muitos conflitos regionais, da Ásia Central, a África, passando pela América Central. O presidente norte-americano deixou então de denunciar as políticas expansionistas de Moscovo e passou a afirmar que as superpotências «deviam analisar juntamente ações concretas que pudessem tomar para reduzir o confronto» nas várias partes do mundo33. Uma explicação para a alteração da política soviética dos Estados Unidos reside no facto de as estratégias ofensivas levadas a cabo entre 1981 e 1983 terem conduzido a um clima de hostilidade com poucos precedentes, sem qualquer ganho significativo para os dois países. Contra o que sustenta a escola triunfalista, dominante durante vários anos, têm surgido mais recentemente estudo s críticos que defendem justamente que as políticas do primeiro mandato de Ronald Reagan não tiveram muito êxito. A sua retórica e atuação duras reforçaram os setores mais radicais na URSS, criaram tensões dentro da Aliança Atlântica e contribuíram para o fortalecimento de alguns movimentos antiamericanos na Europa Ocidental. Para agravar, a sua política para o Terceiro Mundo não só não conseguiu muitos novos aliados, como acabou por estar na base de uma grave crise quando, em 1986, foi revelado publicamente que a administração estava a fornecer apoio aos anticomunistas na Nicarágua, violando a proibição imposta pelo Congresso, ao mesmo tempo que vendia armas para o Irão com o intuito de financiar aquela operação secreta e de conseguir a libertação dos reféns norte-americanos no Líbano34.

Outra explicação para a mudança está no facto de a própria URSS ter mudado. A ascensão de Gorbachev ao poder, para além das reformas internas já referidas, significou não apenas a existência de um interlocutor do outro lado do muro, mas também uma profunda revisão da política externa soviética, traduzida em quatro objetivos ambiciosos. Primeiro, sair do Afeganistão, o que levou o Kremlin a começar um processo negocial, sob os auspícios da onu, que culminou numa série de acordos, na primavera de 1988, prevendo a retirada das tropas para o início do ano seguinte. Segundo, reduzir os compromissos um pouco por todo o Terceiro Mundo, de Angola à Nicarágua, passando, por via indireta, pelo Iémen do Sul e pelo Cambodja35. Terceiro, como já foi dito, acabar com a «Doutrina Brejnev», deixando claro aos líderes comunistas da Europa de Leste que não haveria mais intervenções militares de Moscovo e que cada um era livre de seguir a sua própria via36. Quarto, reduzir substancialmente o armamento nuclear, quer por razões económicas, quer pelo seu receio de que «a Guerra Fria se tornasse quente», mesmo que por mero erro de cálculo ou acidente.37Importa sublinhar que o segundo momento do governo de Ronald Reagan não se deveu apenas às mudanças no Kremlin, o que, de resto, pode ser visto desde logo pelo simples facto de a data do seu início ser anterior a Gorbachev se tornar secretário-geral. Além disso, sabemos hoje que apenas quatro meses depois do seu discurso do eixo do mal o presidente norte-americano enviou uma carta escrita à mão ao então líder soviético, Yuri Andropov, sugerindo conversações e oferecendo uma comunicação ao mais alto nível e de caráter privado entre ambas as partes. Contudo, Reagan não encontrou nessa altura um interlocutor no Kremlin, o que muito se deveu às várias mudanças de liderança. Nos primeiros quatro anos na Casa Branca, e antes que Gorbachev chegasse ao poder, a URSS teve três secretários-gerais – Brejnev, Andropov e Chernenko – que, por motivos de saúde, estiveram muito pouco tempo em funções38. Mas Gorbachev fez a diferença, desde logo no campo essencial dos armamentos estratégicos. Como o próprio afirmou em 1987, um dos principais objetivos do seu governo era conseguir um extenso acordo com os EUA sobre os respetivos arsenais nucleares39. Para além dos motivos já enunciados, tal deveu-se à sua convicção, partilhada por Reagan, de que a dissuasão baseada no conceito de «Destruição Mútua Assegurada» não fazia sentido quando os dois lados tinham armas nucleares suficientes para resistirem a um ataque e retaliar em proporções ainda assim apocalípticas40. O ponto de viragem deu-se na Cimeira de Reiquiavique. Em outubro de 1986, os líderes das duas superpotências encontraram-se na capital islandesa e chegaram a um acordo de princípio sobre a redução das forças estratégicas em cinco anos e a destruição de todos os mísseis balísticos em dez anos. Reagan chegou mesmo a afirmar que estava preparado para aceitar a proposta de Gorbachev de eliminar todas as armas nucleares. Contudo, o acordo falhou à última hora por causa da insistência soviética em ligá-lo ao abandono, por parte dos norte-americanos, da Iniciativa de Defesa Estratégica.

Mas Reiquiavique estabeleceu um clima de diálogo que iria durar até ao fim da Guerra Fria. A seguir ao encontro na Islândia, a URSS alterou a sua posição e deixou de exigir que um acordo sobre o SDI fosse um pré-requisito para o avanço das negociações. Os Estados Unidos, por seu lado, avançaram com a redução das suas forças estratégicas em 50 por cento. E, em dezembro de 1987, na Cimeira de Washington, os dois países assinaram o Tratado INF (Intermediate-Range Nuclear Forces) que estabelecia a eliminação dos mísseis de alcance intermédio41. O novo estado das relações entre os Estados Unidos e a União Soviética ficou retratado de forma exemplar no encontro entre os líderes dos dois países em Moscovo, na primavera de 1988. De acordo com as transcrições das conversas então mantidas, Ronald Reagan expressou apoio a Gorbachev e às suas políticas e, num comportamento pouco usual neste tipo de situações, chegou a tentar persuadi-lo da existência de Deus42. Já na conferência de imprensa dada ainda em Moscovo, o presidente norte-americano disse aos jornalistas que tinha mudado a sua perceção da URSS devido a Gorbachev, que ele achava diferente de todos os anteriores dirigentes do Kremlin, confidenciando ainda que tinha lido o livro Perestroika e concordava com muitas das coisas escritas nele43. Indo ainda mais longe nas suas declarações, confrontado com a questão se a Guerra Fria tinha terminado, Reagan, depois de um momento de hesitação, respondeu que naquele momento, de facto, a Guerra Fria tinha acabado44. Mas se a narrativa convencional da escola de pensamento que considera que a Guerra Fria terminou maioritariamente devido a causas norte-americanas é a de que tal se deveu sobretudo a Ronald Reagan, vários autores não esquecem George H. Bush. Por exemplo, para Beth Fischer, Bush desempenhou igualmente um papel importante neste contexto ao apoiar Gorbachev e ao manter o bom relacionamento entre as superpotências, resistindo à tentação de fomentar a queda da URSS, o que tornou, apesar de tudo, a vida menos difícil ao líder soviético para prosseguir com as suas reformas durante mais algum tempo45. De facto, coube a este presidente gerir a fase final do conflito bipolar, bem como fazer a transição para o pós-União Soviética, tendo de lidar com problemas tão difíceis e perigosos quanto a queda do muro de Berlim e a subsequente reunificação alemã, as ondas de choque da implosão da URSS nas suas antigas repúblicas e satélites da Europa de Leste, o que fazer com os arsenais nucleares espalhados por mais do que um país, sem esquecer outra dinâmica distinta, mas igualmente séria e interligada, como seja o colapso da Jugoslávia. Depois de inicialmente ter colocado as relações com Moscovo «em espera», quer pela desconfiança que ainda tinha relativamente às intenções de Gorbachev, quer por ter decidido levar a cabo uma profunda revisão da política externa dos eua, consciente dos vários perigos a administração Bush adotou uma estratégia cautelosa, defendendo uma mudança controlada e gradual em todo o bloco comunista. Para isso, acreditava o presidente norte-americano, era vital que a URSS se mantivesse unida e a posição de Gorbachev permanecesse forte, razão pela qual acabou por dar-lhe todo o apoio possível46.

Todavia, a velocidade das mudanças que aconteceram na Europa de Leste, primeiro, e na própria União Soviética, depois, alterou completamente a equação de Washington, bem como a de Moscovo, merecendo um especial destaque a questão da reunificação alemã, pois se nos outros casos o papel Estados Unidos foi secundário, na Alemanha foi o principal, a par com o de Helmut Kohl47. Compreendendo rapidamente o novo ambiente, sobretudo depois de 58% dos alemães ocidentais se ter pronunciado a favor de uma Alemanha unida e neutral numa sondagem de fevereiro de 1990, precisamente o que os norte-americanos mais temiam, a administração Bush decidiu dar um «apoio total» à reunificação48. Nesse mesmo mês, num encontro em Camp David, Bush, o secretário de Estado, James Baker e Kohl alinharam o plano para a Alemanha49. Ficou decidido que as conversas deviam envolver os dois Estados alemães num fórum quadripartido e não no âmbito da Conferência de Segurança e Cooperação na Europa (CSCE). O presidente dos Estados Unidos deixou ainda claro que, para o seu país, a continuação da Alemanha na nato era fundamental e condição ao seu apoio. Foi também acordado que a URSS devia estar envolvida nas negociações mas sem poder bloquear o processo, além de que as conversas com Gorbachev seriam feitas diretamente por George H. Bush50. Ainda em fevereiro, os Estados Unidos puseram em marcha este plano. Baker convenceu os líderes do Reino Unido, da França, da União Soviética e das duas Alemanhas a participar nas chamadas conversações «dois mais quatro» para analisarem o futuro da Alemanha. Seguiram-se cinco meses de intensa atividade diplomática, incluindo uma reunião de cúpula entre Washington e Moscovo para convencer Gorbachev a aceitar a unificação e a continuação dos alemães na NATO, bem como vários encontros com Londres e Paris51. Não foi fácil convencer soviéticos, britânicos e franceses a aceitarem a reunificação alemã, tendo aqui o papel de Bush – e Kohl – sido decisivo. A estratégia passou por convencer em primeira instância o Reino Unido, recorrendo à «relação especial» e ao facto de que Thatcher «nada tinha a propor como alternativa». Seguiu-se a França, que só cedeu a muito custo e em troca do compromisso de Helmut Kohl de inserir a Alemanha no seio de uma união «mais estreita do que nunca», o que se traduziu na criação da União Europeia, em Maastricht, em fevereiro de 199252. Faltava a URSS. O essencial das negociações com os soviéticos ocorreu à margem dos «dois mais quatro», nomeadamente em encontros bilaterais envolvendo numa geometria variável três atores-chave: Bush, Gorbachev e Kohl. O ponto mais difícil era o da inclusão, ou não, da Alemanha unificada na NATO. O Kremlin exigiu que o futuro Estado alemão fosse neutro, ou alternativamente parte da Organização do Tratado do Atlântico Norte e do Pacto de Varsóvia. Além disso, ele insistiu que a reunificação só ocorresse no quadro mais vasto de uma «casa europeia» inserida na CSCE. Por fim, as fronteiras tinham de ser garantidas e o estatuto alemão estabelecido e reconhecido através de um tratado internacional53. No final, Bush e Kohl conseguiram convencer Gorbachev de que não tinha outra escolha que não aceitar a unificação alemã e a sua presença na NATO. Efetivamente, o que o líder soviético «pôde fazer foi, literalmente, estabelecer um preço para as suas concessões», mostrando-se «recetivo à persuasão financeira»: esta custou 71 mil milhões de dólares54. O acordo final sobre a Alemanha foi assinado pelos ministros dos Negócios Estrangeiros dos “dois mais quatro”, a 12 de setembro de 1990, em Moscovo. A respeito deste resultado final, George H. Bush escreveu: «em menos de um ano nós realizamos a mais profunda mudança na política e na segurança europeia em muitos anos, sem confrontação, sem ter dado qualquer tiro (…). Provavelmente não haverá outro tempo na história onde eventos de tal magnitude ocorrerão sem conflito. (…) Estou convencido de que se os Estados Unidos tivessem ficado à margem, os resultados poderiam ter sido desastrosos.»55

 

CONCLUSÃO

Numa síntese certeira, Raymond Garthoff escreveu: «(…) o Ocidente e, sobretudo, o papel americano no fim da Guerra Fria foi necessário, mas não fundamental»56. Efetivamente, apesar de terem participado no desfecho do conflito bipolar, tanto Reagan como Bush foram atores secundários, o que se explica pelo facto de os próprios Estados Unidos terem tido um papel relativamente pequeno na revolução de 1989/1991. É certo que há várias decisões tomadas pelo governo norte-americano que contribuíram para o colapso da URSS. Desde o início de uma nova corrida aos armamentos estratégicos, que esta não podia acompanhar económica e tecnologicamente, até a auxílio às forças anticomunistas nos países clientes de Moscovo, da Nicarágua ao Afeganistão (na célebre expressão de Reagan), passando pelo amplo financiamento dado ao «Solidariedade» na Polónia e pelo apoio oficial aos manifestantes nas ruas de Berlim e de outras cidades da Europa de Leste. Contudo, dito de forma simples, não foram os Estados Unidos que ganharam a Guerra Fria mas sim a URSS que a perdeu. E aqui Gorbachev foi o grande protagonista. Como defendeu Tony Judt, apesar dos custos da corrida aos armamentos, do desastre do Afeganistão e das sublevações europeias, «não havia nenhuma autoridade compensadora, nenhum movimento dissidente – quer na União Soviética, quer nos Estados seus clientes – que a tivesse podido abater. Só um comunista o poderia fazer. E foi um comunista que o fez.» Gorbachev levou a cabo a Perestroika e a Glasnost para salvar a URSS, mas, ironicamente, foi essa tentativa de reforma que a fez implodir57. Os Estados Unidos foram fundamentais não no fim mas no pós-Guerra Fria. Foram-no, como vimos, desde logo no processo de reunificação alemã. Mas, mais importante ainda, a transição do sistema internacional bipolar para o unipolar, restando apenas a América como única superpotência e com uma concentração de poder só comparável historicamente ao império romano, fez com que Washington tivesse mais do que nunca em condições de definir o mundo que queria ter. A grande questão do pós-1989/91 era o que os Estados Unidos pretendiam fazer com o novo poder esmagador. O primeiro esboço de resposta surgiu a 1 de outubro de 1990. Nesse dia, num discurso na onu, George H. Bush anunciou o que chamou de nova ordem mundial, cujo conteúdo se inscrevia no quadro de uma estratégia conservadora de manutenção do status quo internacional, ou seja, de preferência pela ação multilateral, de valorização das organizações internacionais – incluindo a subordinação da ação externa dos Estados Unidos ao Conselho de Segurança da onu – e de respeito pelo direito internacional58. Esta orientação estratégica conservadora foi seguida pela administração Bill Clinton, ainda que com a introdução de algumas variantes importantes. Desde logo, uma visão pós-soberanista das relações internacionais, refletida nas intervenções humanitárias na Somália (embora esta tivesse começado por ser uma decisão de George Bush, ainda que com uma natureza diferente daquela que veio a adquirir), na Bósniae no Kosovo. Depois, uma nova doutrina, designada de «Alargamento» (Enlargement), definida por Anthony Lake, o conselheiro de segurança nacional de Clinton, como «o alargamento da comunidade mundial das democracias de mercado» e que se traduziu em concreto na expansão do modelo democrático liberal à escala global e no alargamento da NATO, bem como da União Europeia com o apoio de Washington, a vários países do antigo bloco soviético, aspeto decisivo da ordem europeia no pós-colapso do comunismo. Ainda uma conceção mitigada do multilateralismo, traduzido na famosa declaração de Madeleine Albright «Act multilaterally if we can, act unilaterally if we must.»59Também uma menor subordinação da ação norte-americana à onu, como prova a intervenção militar no Kosovo sem mandato do Conselho de Segurança (por oposição da Rússia e da China). Finalmente, a não exclusão da adoção de uma política de «Mudança de Regime» (Regime Change) no Iraque, ainda que ela não tenha chegado a ser posta em prática, apesar da operação militar Desert Fox em 199860. Os ataques às Torres Gémeas e ao Pentágono, a 11 de setembro de 2001, marcaram uma profunda mudança na política externa norte-americana, com a adoção de uma orientação estratégica revisionista. A nova política de alteração da ordem internacional ficou consagrada na Estratégia de Segurança Nacional de 2002, mais conhecida por «Doutrina Bush», que introduziu um conjunto de conceitos em larga medida contrários à visão de relações internacionais dos Estados Unidos pelo menos desde 1945: o unilateralismo, que substituiu a preferência pelo multilateralismo; a «guerra preventiva», que substituiu o conceito tradicional de «contenção»; as «coligações variáveis», em substituição das «coligações institucionais» ou «permanentes»; a subalternização das Nações Unidas e do Direito Internacional à liberdade de ação dos Estados Unidos; a «Mudança de Regime» pela força, com o seu extremo de democratização do grande Médio Oriente, a começar pelo Iraque61.

A partir de 2006, a América regressou à orientação conservadora, ainda que com uma variante de retraimento estratégico, traduzida, por exemplo, no início do processo de saída do Iraque. Embora isso tenha acontecido ainda durante o mandato de George W. Bush (com a Estratégia de Segurança Nacional 2006), acentuou-se após a eleição de Barack Obama. Inscrevendo-se na escola «declinista», segundo a qual estamos a assistir a uma nova transição de poder no sistema internacional, agora da unipolaridade para a multipolaridade, em resultado da combinação do declínio relativo dos Estados Unidos com a «ascensão do resto», destacando-se aqui a China, a administração Obama adotou uma Grande Estratégia de Offshore Balancing traduzida numa significativa redução do perímetro de envolvimento norte-americano no exterior, agora limitado às três regiões estrategicamente vitais para Washington, como sejam, a Europa, o Nordeste Asiático e o Golfo Pérsico, bem como no abandono da preferência pela colocação do seu poder militar Inshore62. A grande questão que se coloca na atualidade é então a de saber se estamos a assistir a uma nova transição de poder e qual o seu impacto na ordem internacional liberal estendida à escala global pelos Estados Unidos após a implosão da União Soviética63.

 

Data de receção: 7 de julho de 2014

Data de aprovação: 29 de agosto de 2014

 

NOTAS

1 KISSINGER, Henry – Diplomacia, 3ª edicao, Lisboa: Gradiva, 2007, p. 666.

2 A este respeito, ver, por exemplo: GARTHOFF,Raymond – A Journey Through theCold War: A Memoir of Containment and Coexistance, Nova Iorque, Brookings Institution, 2001

3HASS, Mark L. – The Ideological Originsof Great Power Politics, 1789-1989, Ithaca, Cornell University Press, 2005, p. 176.

4 Como, por exemplo, o Tratado INF (Intermediate Nuclear Force), assinado durante a Cimeira de Washington de Dezembro de 1987.

5 FISCHER, Beth A. – «US Foreign Policy under Reagan and Bush»

6 FISCHER, Beth A. – «US Foreign Policyunder Reagan and Bush».

7 FISCHER, Beth A. – «US Foreign Policy under Reagan and Bush», In LEFFLER, Melvyn P. e WESTAD, Odd Arne – The Cambridge History of The Cold War, Volume 3, Cambridge: Cambridge University Press, 2010, pp. 267-269.

8 JUDT, Tony – Pos-Guerra. Historia da Europa desde 1945.

9 JUDT, Tony – Pos-Guerra. Historia da Europa Desde 1945, Lisboa, p. 672

10JUDT, Tony – Pos-Guerra. Historia da Europa desde 1945, Lisboa, Edicoes 70, 2005, pp. 671-674

11ANDREW Christopher e MITROKHIN Vasiki – The Mitrokhin Archive II, The KGB and the Word, Penguin, 2006, p. 24.

12 WESTAD, Odd Arne – The Global Cold War, Third World Interventions and the Making of Our Time, Cambridge: Cambridge University Press, 2007; GLEIJESES, Piero – Conflicting Missions: Havana, Washington and Africa 1959-1976, Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2002.

13 JUDT, Tony – Pos-Guerra. História da Europa desde 1945, 2005, pp. 672-673

14 ZUBOK, Vladislav M. – «Why did the Cold War end in 1989? Explanations of “The Turn”», In W ESTAD, Odd Arne (ed.) – Reviewing the Cold War: Approaches, Interpretations, Theory, Londres, Frank Cass, 2000, p. 349

15STOKES, Gale – The Walls Came Tumbling Down. The Collapse of Communism in Eastern Europe, Oxford, Oxford University Press, 1993.

16 JUDT, Tony – Pós-guerra. Historia da Europa desde 1945.

17 JUDT, Tony – Pós-guerra. Historia da Europa desde 1945, 2005, pp. 661-666 e 683-686.

18 Para a questão do contágio nas transições de regime ver, em especial: WHITEHEAD, Laurence, (ed.) – The International Dimensions of Democratization: Europe and America, Oxford: Oxford University Press, 1996, pp. 2-14; PRIDHAM, Geoffrey – Encouraging Democracy: The International Context of Regime Transition in Southern Europe, Nova Iorque, St. Martin’s Press, 1991, pp. 2-29.

19 Da vasta literatura sobre as chamadas revoluções da Europa destacamos dois livros: STOKES, Gale – The Walls Came Tumbling Down. The Collapse of Communism in Eastern Europe; ASH, Timothy Garton – The Magic Lantern: The Revolution of ’89 Witnessed in Warsaw, Budapest, Berlin, and Prague, Nova Iorque: Vintage Books, 1993.

20 JUDT, Tony – Pós-guerra. História da Europa desde 1945, pp. 661-666 e 712-713.

21 A mais recente investigação sobre a administração Reagan acentua ainda mais esta versão, que não e nova, da existência

22 HASS, Mark L. – The Ideological Origins of Great Power Politics, 1789-1989, p. 194.

23 KISSINGER, Henry – Diplomacia, pp. 666-667. A revolução iraniana não teve a ver diretamente com a URSS, mas, na lógica de jogo se soma nula da Guerra Fria, o mero facto de ser uma perda muito importante para Washington fez dela um ganho para a URSS, não obstante as dificuldades que também colocou a esta última.

24GARTHOFF, Raymond – The Great Transition: American-Soviet Relations and the End of the Cold War, Washington D.C.: Brookings Institution, 1994, p. 29.

25 PAINTER, David S. e BL ANTON, Thomas S. – «The End of the Cold War», In AGNEW, Jean-Christophe e ROSENZWEIG, Roy (eds.) – A Companion to Post-1945 America, Malden: Blackwell Publishers, 2002, p. 481.

26 FISCHER, Beth A. – «US Foreign Policy under Reagan and Bush», p. 271. Os receios de um crescente nacionalismo e neutralismo alemão eram só em parte exagerados. Por essa altura, um destacado dirigente do SPD, Oskar Lafontaine, chegou a defender que a RFA abandonasse o comando militar integrado da NATO. KISSINGER, Henr y, Diplomacia, p. 687.

27 Ibidem, p. 672.

28 FISCHER, Beth A. – «US Foreign Policy under Reagan and Bush», p. 272.

29 KISSINGER, Henry – Diplomacia.

30 KISSINGER, Henry, – Diplomacia, p. 675.

31 HASS, Mark L. – The Ideological Origins of Great Power Politics, 1789-1989, p. 196.

32 George P. Shultz – Turmoil and Triumph, My Years as Secretary of State, Nova York: Prentice Hale, 1993.

33 FISCHER, Beth A. – «US Foreign Policy under Reagan and Bush», p. 273.

34 Ibidem, pp. 276-278.

35 PAINTER, David S. e BL ANTON, Thomas S. – «The End of the Cold War», pp. 483-484.

36 O que ficou conhecido como «Doutrina Sinatra», inspirada na célebre música «My Way» do cantor norte-ame-ricano Frank Sinatra. BROWN, Archie – «Gorbachev and the End of the Cold War», In HERRM A NN, Richard K. e LEBOW, Richard Ned (eds.) – Ending the Cold War: Interpretations, Causation, and the Study of International Relations, Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2004, pp. 47-49; BROOKS, Stephen e WOHLFORTH, William C. – «Power, Globalization and the End of Cold War: Reevaluating a Landmark Case for Ideas», In International Security, Vol. 53, N.º 3, 2000-2001, pp. 3-53.

37 BROWN, Archie – «Gorbachev and the End of the Cold War», pp. 47-48; FISCHER, Beth A. – «US Foreign Policy under Reagan and Bush», p. 277.

38 PAINTER, David S. e BL ANTON, Thomas S. – «The End of the Cold War», p. 482.

39 HASS, Mark L. – The Ideological Origins of Great Power Politics, 1789-1989, p. 196.

40 FISCHER, Beth A. – «US Foreign Policy under Reagan and Bush», p. 277.

41PAINTER, David S. e BL ANTON, Thomas S. – «The End of the Cold War», p. 483.

42MANN, James – The Rebellion of Ronald Reagan: A History of the End of the Cold War, p. 294.

43 Ibidem, p. 304

44 HASS, Mark L. – The Ideological Origins of Great Power Politics, 1789-1989, p. 198.

45FISCHER, Beth A. – «US Foreign Policy under Reagan and Bush», p. 287.

46 PAINTER, David S. e BL ANTON, Thomas S. – «The End of the Cold War», p. 484; FISCHER, Beth A. – «US Foreign Policy under Reagan and Bush», p. 282.

47 Em rigor, como escreveu Tony Judt, «O mérito pela reunificação da Alemanha – caso único de fusão numa década de divisão – deve, antes de mais, ser atribuído a Helmut Kohl.» JUDT, Tony – Pós-Guerra. História da Europa desde 1945, p. 718.

48 JUDT, Tony – Pós-Guerra. História da Europa Desde 1945, p. 721; WOHLFORTH, William C. (ed) – Cold War Endgame: Oral Histor y, Analysis, Debates, Pennsylvania State University Press, 2003, p. 49.

49 HAFTTENDORN, Helga – «The Unification of Germany, 1985-1991».

50 HAFTTENDORN, Helga – «The Unification of Germany, 1985-1991», In LEFFLER, Melvyn P. e WESTAD, Odd Arne – The Cambridge History of The Cold War, Volume 3, Cambridge: Cambridge University Press, 2010, p. 343.

51 Ibidem, pp. 343-346.

52 JUDT, Tony – Pós-Guerra. História da Europa desde 1945, pp. 720-722.

53 HAFTTENDORN, Helga – «The Unification of Germany, 1985-1991», pp. 347-348.

54 JUDT, Tony – Pós-Guerra. História da Europa desde 1945, pp. 722-723. Outra concessão feita foi a promessa norte-americana de não alargar a NATO para Leste, o que, como é sabido, não foi cumprido. GADDIS, John Lewis – The Cold War, Londres: Penguin Books, 2007, p. 251.

55 BUSH, George e SCOWCROFT, Brent – A World Transformed, Nova Iorque: Vintage Books, 1998, p. 299.

56 GARTHOFF, Raymond – «Why Did the Cold War Arise, and Why it End?», In HOGAN, Michael J. (ed.) – The End of the Cold War: Its Meaning and Implications, Cambridge: Cambridge University Press, 1992, pp. 131-132.

57 JUDT, Tony – Pós-Guerra. História da Europa desde 1945, p. 671.

58 BUSH, George e SCOWCROFT, Brent – A World Transformed, p. 299; BAKER, James – The Politics of Diplomacy: Revolution, War and Peace 1989-1992, Nova Iorque: Perigee, 1995.

59 ALBROGHT, MadeleineMadam Secreary: A Memoir, Nova Iorque: Miramax Books, 2003.

60 LAKE, Anthony – From Containment to Enlargement, [Consultado a 12 de julho de 2014]. Disponível em: https://www.mtholyoke.edu/acad/intrel/lakedoc.html; CHOLLET, Derek e GOLDGEIER, James – America Between the Wars: From 11/9 to 9/11, Nova Iorque: Public Affairs, 2008.

61 National Securit y Strategy 2002, [Consultado a 12 de julho de 2014]. Disponível em: http://georgewbush-whitehouse.archives.gov/nsc/nss/2002/; DA ALDEER, Ivo e LINDSAY, James – America Unbound. The Bush Revolution in Foreign Policy, Washington D.C.: Brooking Institution Press, 2003. Para uma visão contrária ao argumento aqui defendido ver, em especial, LYNCH, Timothy J. e SINGH, Robert S. – After Bush: The Case for Continuity in American Foreign Policy, Cambridge: Cambridge University Press, 2008.

62 National Security Strategy 2010; INDYK, Martin S; LIEBERTHAL, Kenneth G. e O`HANLON, Michael E. – Bending History: Barack Obama´s Foreign Policy. Washington D.C.: Brookings Institution Press, 2012.

63 Para uma interessante reflexão sobre esta questão, ainda que refletindo apenas a visão institucionalista liberal, ver: DEUDNEY, Daniel e IKENBERRY, G. Jonh – Democratic Internationalism. An American Grand Strategy for a Post-Exceptionalist Era. [Consultado a 12 de julho de 2014]. Disponível em: http://www.cfr.org/grand-strategy/democratic-internationa-lism-american-grand-strategy-post-exceptionalist-era/p29417