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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.43 Lisboa set. 2014

 

RECENSÕES

 

Caminho sem retorno?

 

Ana Paula Pires

Investigadora e membro da Direção do Instituto de História Contemporânea da FCSH-UNL. Doutorada em História, especialidade História Económica e Social Contemporânea pela FCSH-UNL. É atualmente editora de 1914-1918-online. International Encyclopedia of the First World War, projeto coordenado pela Freie Universitat, de Berlim. Alguns dos principais textos publicados incluem Portugal e a I Guerra Mundial. A República e a Economia de Guerra (2011), António José de Almeida. O Tribuno da República (2011) e, com Maria Fernanda Rollo, A Ordem dos Engenheiros – 75 Anos de História. Inovação e desenvolvimento em Portugal: o lugar dos engenheiros (2012).

 

Christopher Clark

The Sleepwalkers How Europe went to war in 1914 Penguin Books, Londres, 2013, 696 páginas

 

Desde a sua primeira edição, no segundo semestre de 2012, o livro The Sleepwalkers. How Europe went to war in 1914, do historiador australiano Christopher Clark, vendeu mais de 300 000 cópias, publicadas em 17 línguas. Só na Alemanha foram vendidos 160 000 exemplares da obra. No ano em que se assinala a passagem do primeiro centenário da eclosão da Grande Guerra o debate em torno das origens do conflito continua a despertar o interesse dos historiadores um pouco por todo o mundo. O contributo de Christopher Clark para esse debate é enriquecedor; desde logo porque, segundo a sua tese, o caminho que iria conduzir a Europa à guerra no verão de 1914 teve início, onze anos antes, a 11 de junho de 1903, quando 28 oficiais do exército sérvio invadiram o palácio real, em Belgrado, e assassinaram o rei Alexander e a rainha Draga. O assassínio de Alexander colocou assim um ponto final na dinastia pró-austríaca Obrenovic. Foi a imagem do assassínio do monarca sérvio, e da sua consorte, e os respetivos impactos no equilíbrio de poderes na região dos Balcãs que o autor escolheu para iniciar o volume.

 

A CENTRALIDADE DOS BALCÃS

Clark descreve a Sérvia do início do século xx como um Estado fracassado, um país assente numa economia camponesa, a quem faltava – sem uma aristocracia ou uma classe média para se apoiar – a estrutura económica e social necessária para sustentar tanto o aparelho governamental, como o parlamento. Os sérvios ambicionavam a construção de «uma grande Sérvia», objetivo que passava pela conquista das províncias eslavas do império austro-húngaro e que, para ser alcançado, necessitava do apoio da Rússia. Neste contexto importa equacionar o papel das províncias da Bósnia e da Herzegovina, administradas pelo império austro-húngaro, desde a assinatura do Tratado de Berlim em julho de 1878, e anexadas em outubro de 1908, e a necessidade, crescente, demonstrada pela Áustria de impedir uma possível unificação eslava a sul do império.

A ênfase que Clark coloca na situação instável vivida nos Balcãs na primeira década do século XX surge indissociada do papel desempenhado pela Rússia na crise de julho de 1914, o autor prossegue, de resto, uma linha de investigação semelhante à que tinha sido desenvolvida, em 2011, por Sean McMeekin1. Tal como McMeekin, Clark analisou detalhadamente a política e as ações expansionistas levadas a cabo pelo regime czarista, em direção a sul, demonstrando, por um lado, que as ambições expansionistas no continente europeu na primeira década do século XX estavam longe de se circunscrever à Alemanha e, por outro, a centralidade ocupada pelos Balcãs nas relações diplomáticas, políticas e económicas das principais potências europeias. A estratégia russa passava – e a criação da Liga Balcânica2 era disso um bom exemplo – pela ocupação do vazio de poder que se fazia sentir na região desde o início do século XIX, coincidente com o declínio do império turco-otomano, e por uma ameaça cada vez mais premente à estabilidade «secular» de um império austro-húngaro cercado pelas ambições expansionistas (como a Sérvia se encarregaria de demonstrar invadindo a Albânia) dos Estados balcânicos emergentes. Para a diplomacia russa, o desmembramento do império austro-húngaro dar-lhe-ia a posse de territórios que lhe permitiriam «alimentar as ambições dos seus satélites húngaros»3.

Clark defende que a mobilização da Rússia, após o assassínio de Francisco Fernando, foi uma das decisões que mais marcou a crise de julho, por ter sido a primeira de uma série de mobilizações gerais. Recorde-se, aliás, que, não raras vezes, nos primeiros anos do século XX a própria Grã-Bretanha tinha procurado – primeiro junto da Alemanha e depois do Japão – aliados contra a Rússia.

O autor defende assim a existência de uma ligação direta entre o regicídio de Belgrado e o assassínio do arquiduque Francisco Fernando, em Sarajevo, a 28 de junho de 1914. No centro desta ligação encontra-se, segundo a sua tese, o Tenente Dragutin Dimitrijevic – «APIS» – como era conhecido, um dos principais impulsionadores da conspiração de Belgrado e um dos fundadores da organização ultranacionalista «Mão Negra», criada em 1911 precisamente com o objetivo de promover a união dos eslavos do sul (Bósnia-Herzegovina, Croácia e Eslovénia), tendo em vista a formação de um novo Estado: a Jugoslávia4. «Apis» acabaria por ser nomeado chefe dos serviços secretos sérvios, em 1913, a sua escolha para o cargo foi, como demonstra o autor, essencial no desenrolar da conspiração que conduziu ao assassínio do herdeiro do trono austro-húngaro, no final de junho de 1914. Recorde-se ainda que o primeiro-ministro sérvio, Nikola Paic, que acabaria por chegar ao poder na sequência do regicídio de Belgrado, ainda ocupava o cargo em 1914.

O livro fornece-nos um conjunto de pistas, inovadoras, que ajudam o leitor a indentificar, integradamente, os fatores que determinaram o fim da Belle Époque e que marcaram, na expressão do historiador britânico Eric Hobsbawm, o começo do século XX5. O tema central e a pergunta a que Clark procura dar resposta em Sleepwalkers passa assim por explicar como – e não porque – é que a guerra eclodiu na Europa no verão de 1914. Christopher Clark é professor de história contemporânea da Europa na Universidade de Cambridge. Nascido em Sidney, dividiu a sua formação académica entre aquela cidade australiana, Berlim, onde frequentou a Freie Universitat, e Cambridge, onde acabaria por se doutorar. Os dois anos que passou em Berlim, entre 1985 e 1987, acabaram por marcar intensamente o seu percurso académico; na introdução do seu livro Iron Kingdom6, diz ter sido a sua vivência na cidade alemã que lhe permitiu aprofundar o seu conhecimento da história da sociedade alemã contemporânea.

Nestes anos iniciais, do ponto de vista académico o seu percurso é muito marcado pelo estudo da história política e cultural da religião, em particular das relações, nem sempre pacíficas, entre o Estado e as instituições religiosas ao longo dos séculos XIX e XX. Clark acabaria mesmo por se especializar em história da Prússia. A sua primeira publicação relacionada, diretamente, com a história da Primeira Guerra Mundial surgiu em 2000, ano em que publicou uma biografia do kaiser Guilherme II7. Ao longo da obra, Clark acompanha o percurso dos quarenta e oito anos de reinado do imperador alemão, e, com base em fontes originais, questiona qual o seu verdadeiro papel nos acontecimentos que estiveram na origem da Grande Guerra, discutindo os objetivos, reflexos e impactos das suas ações no continente europeu no seu todo. Segundo a conclusão de Clark, Guilherme II era um homem inteligente mas com pouco discernimento, que agia, frequentemente, por impulso8. A crise de 1914 surge transversalmente no livro, mas, tal como no recente Sleepwalkers, Clark não caiu na tentação de propor uma explicação simples para a origem do conflito.

 

A EUROPA E O INÍCIO DA GRANDE GUERRA

Sleepwalkers encontra-se dividido em três partes: i) «Roads to Sarajevo»; ii) «One continent divided» e iii) «Crisis». É precisamente na primeira parte do livro, sem dúvida a mais inovadora, que Clark desmonta o sistema de alianças em que a Europa se encontrava dividida desde o final do século xix e defende que as teorias tradicionais que têm apresentado a polarização do continente como uma verdade inabalável tenderam a menosprezar a existência, antes de agosto de 1914, de várias iniciativas com vista à aproximação dos países da Tríplice Entente e da Entente Cordiale. O historiador australiano refere em particular o acordo entre franceses e alemães relativamente a Marrocos, realizado em 1909 e, um ano mais tarde, os encontros realizados entre a Rússia e a Alemanha, procurando conciliar os interesses dos dois países na Turquia e na Pérsia9. As iniciativas diplomáticas, tendo em vista a estabilidade do sistema internacional, procuravam, assim, demonstrar, aos olhos da opinião pública, que a paz entre as grandes potências, apesar de ameaçada por várias vezes, sobretudo durante as crises de 1911 e de 1913, era estável10. Sublinhe-se a propósito as posições antiguerra da City londrina e a postura do governo inglês, ao considerar, inicialmente, que a única forma de evitar um colapso total no crédito europeu era, num cenário de guerra na Europa, a Grã-Bretanha optar pela neutralidade.

Em 1913 o herdeiro do trono austro-húngaro, Francisco Fernando, terá mesmo lembrado ao comandante das Forças Armadas da Aústria-Hungria, Conrad von Hötzendorf, que era dever do governo preservar a paz11.  De uma forma mais genérica Clark apresenta Francisco Fernando como o líder de uma fação do governo austríaco que há mais de uma década vinha perseguindo a resolução pacífica do problema dos Balcãs12. Ironicamente o seu assassínio, marcaria o deflagrar de uma guerra sem precedentes na Europa e no mundo.

A Europa que Clark nos descreve ao longo de quase setecentas páginas de texto é um continente governado por políticos «sonâmbulos», estadistas que, segundo a interpretação do autor, teriam testado in loco o funcionamento de um sistema de alianças defensivas cuja compreensão estava muito para além do seu entendimento: «(...) the protagonists of 1914 were sleepwalkers, watchful but unseeing, haunted by dreams, yet blind to the reality of the horror they were about to bring into the world»13. Deste modo, o início da guerra, nos primeiros dias de agosto de 1914, não foi uma consequência direta dos dois sistemas de alianças em que a Europa se encontrava dividida no início do século XX, mas antes a demonstração cabal da sua fraqueza e a constatação da incerteza quanto ao papel que cada parceiro poderia vir a ser chamado a desempenhar na respetiva aliança14. O que o livro de Clark nos relata com mestria é a forma como cada uma das principais potências europeias construiu a sua narrativa para justificar o seu envolvimento numa confrontação que no final de julho de 1914 era já praticamente inevitável. Trinta e sete dias depois da morte do herdeiro do trono da austro-hungria cinco das principais potências europeias (Grã-Bretanha, França, Rússia, Áustria-Hungria e Alemanha) estavam já em guerra, apenas a Itália conseguira permanecer neutral.

A Primeira Guerra Mundial, segundo a interpretação de Christopher Clark, foi uma tragédia, não um crime. Sleepwalkers é um dos melhores trabalhos historiográficos já publicados sobre as origens da Grande Guerra. Uma obra de leitura obrigatória.

 

NOTAS

1 MCMEEKIN, Sean – The Russian Origins of the First World War, s/l, Belknap Press, dezembro 2011.

2 Entre 1912 e agosto de 1913, data de assinatura do Tratado de Bucareste que pôs fim à Segunda Guerra Balcânica, a Europa presenciou o desenhar do mapa político, e geográfico, dos Balcãs; a Albânia tornou-se independente e aumentaram, de forma considerável, os territórios controlados pela Sérvia (Macedónia e Kosovo).

3 CLARK, Christopher – The Sleepwalkers. How Europe went to war in 1914, Londres: Penguin Books, 2013, p. 114.

4 STEVENSON, David – The outbreak of the First World War. 1914 in Perspetive, Londres: Macmillan, 1997.

5 HOBSBAWM, Eric – A Era dos Extremos. História Breve do século XX 1914-1991, Lisboa: Editorial Presença, 2002.

6 CLARK, Christopher – Iron Kingdom: the rise and downfall of Prussia 1600-1947, Cambridge: Belknap Press, 2006.

7 CLARK, Christopher – Kaiser Wilhelm II, Nova Iorque: Longman, 2000.

8 Ibidem.

9 Cf. LAQUEUR, Thomas – «Some Damn Foolish Thing» in London Review of Books, Vol. 35, n.º 23, 5 de dezembro de 2013, p.11-16.

10 MULLIGAN, William – The Origins of the First World War, Cambridge, Cambridge University Press, 2010, p.1-2. 

11 CLARK, Christopher – The Sleepwalkers. How Europe went to war in 1914, 2013, p.117.

12 LAQUEUR, Thomas – «Some Damn Foolish Thing», 2013.

13 Cf. CLARK, Christopher – The Sleepwalkers. How Europe went to war in 1914, p.562.

14 Ibidem.