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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.44 Lisboa dez. 2014

 

POTÊNCIAS EMERGENTES E DEMOCRACIA

 

Nota introdutória: Potências emergentes e democracia

 

Carmen Fonseca* e Diana Soller**

* Professora Auxiliar na FCSH/NOVA e Investigadora do IPRI-UNL. Doutorada em Relações Internacionais pela FCSH/NOVA.

** Doutoranda no Departamento de Estudos Internacionais da Universidade de Miami. Assistente de Investigação no Centro de Excelência da União Europeia da Universidade de Miami. Investigadora no IPRI-UNL.

 

A menos que seja despoletada por uma guerra, nunca se sabe muito bem quando é que verdadeiramente ocorrem as mudanças sistémicas. Não se trata de um acontecimento isolado, mas de vários que, em conjunto, demonstram que determinado equilíbrio de forças deu lugar a outro. A data simbólica do início do sistema internacional pós-Guerra Fria pode ser a queda do Muro de Berlim que uniu a Europa (1989), a I Guerra do Golfo que reuniu a comunidade internacional no apoio a uma causa comum (1990) ou o colapso da União Soviética (1991) que fez dos Estados Unidos a potência restante. Há vinte e cinco anos, começava, inesperadamente, o sistema unipolar.

O sistema desencadeou múltiplos debates: afirmou-se que a história tinha acabado, que o unipolarismo seria um momento, uma vez que outros estados não tardariam a aliar-se para criar novos polos de poder; que o momento unipolar devia ser usado para tornar o mundo mais democrático. Assentou-se que os anos 1990 marcavam uma nova fase das relações internacionais caracterizada pela liderança da «hegemonia americana» e que, na generalidade, o sistema internacional se tinha tornado mais democrático e a economia de mercado mais globalizada. Reforçaram-se, ainda, as instituições e normas da ordem liberal internacional. Os ataques do 11 de setembro interromperam estas reflexões e levaram os Estados Unidos a mudar a trajetória da sua política externa. A Guerra do Afeganistão e, principalmente, a Guerra do Iraque deram origem ao questionamento da legitimidade da liderança americana.

Desde 2008 e do início da crise financeira e depois económica, já ultrapassada nos Estados Unidos, e transformada em crise política na Europa, as perceções de que a hegemonia estaria fragilizada começaram a ganhar forma. Não se tratava de um problema apenas absoluto, mas também relativo. O eventual declínio dos Estados Unidos vinha acompanhado da eventual ascensão ou ressurgimento de outras potências. No topo da lista vinha a China, que tinha adquirido uma parte substancial da dívida norte-americana, e que se prefigurava para igualar a economia dos Estados Unidos em pouco mais de uma década. Nos últimos anos, uma parte significativa do debate nas relações internacionais tem-se centrado em possíveis cenários de uma transição de poder entre estes dois estados, que se têm tornado mais pessimistas à medida que se torna claro que Pequim escapou à fórmula da integração económica. Em vez de se tornar mais livre e democrática com o crescimento da classe média, a China criou um modelo económico alternativo ao ocidental – o capitalismo de Estado – e criou formas alternativas de legitimidade interna. A centralidade deste debate tem ofuscado outras questões importantes, entre elas, o alinhamento dos restantes estados emergentes. A anexação da Crimeia clarificou a posição da Rússia relativamente aos Estados Unidos e à Europa, mas pouco se tem estudado a Índia e o Brasil, as duas potências emergentes democráticas. Depois de ter esmorecido a ideia do alargamento da aliança das democracias, relativamente popular nos anos 2000, e apesar de muito se escrever quer sobre Nova Deli quer sobre Brasília como casos de economias emergentes e democracias consolidadas, pouco se relacionam esses estudos com questões de transição de poder ou ordem internacional. O mesmo se aplica a estados como a África do Sul, a Turquia ou a Indonésia, que têm um impacto significativo nos seus sistemas regionais. Até agora, as potências democráticas emergentes têm sido abordadas de duas formas: ou como parte de um bloco que se opõe aos Estados Unidos na lógica do equilíbrio de poder (onde se menciona regra geral e como um todo os brics) ou como estados pivot na sua área de influência – comparados a outros estados com relações de aliança com os Estados Unidos, como a Austrália ou o Canadá. Por outras palavras, ou são estudadas como revisionistas ou como aliadas. Como pretendemos demonstrar no dossiê «Potências Emergentes e Democracia», a realidade é muito mais complexa e matizada do que estas duas visões opostas levam a acreditar. Os textos reunidos neste dossiê incluem a análise de cinco potências emergentes – Índia, Brasil, Indonésia, Turquia e África do Sul – que foram palco de eleições em 2014, apesar das marcas distintas que caracterizam cada um destes estados e do diferente estado de desenvolvimento económico e democrático.

O artigo de Diana Soller argumenta que estudar a transição de poder à luz da Teoria da Paz Democrática é uma abordagem redutora. Em seu entender «os pressupostos teóricos que têm levado à conclusão de que as democracias emergentes tenderão a reforçar a ordem liberal americana estão, em parte, ultrapassados. Ter o mesmo tipo de regime não é condição suficiente para alinhamento em contexto de transição de poder». Neste sentido, a autora refere que tanto o Brasil como a Índia não definiram uma estratégia de aliança automática com os Estados Unidos. Recorrendo ao estudo de caso da Índia o artigo elenca três fatores, de nível identitário e político, que distinguem a democracia dos Estados Unidos e a democracia da Índia: «os fatores de carácter interno, as relações dos estados emergentes com a grande potência e as perceções que daí advêm, e as conceptualizações de justiça relativamente às normas do sistema internacional». Ao explorar aqueles elementos Diana Soller demonstra simultaneamente que muitos dos valores da política externa indiana «estão muito longe dos verificados nos estados liberais que foram estudados pela Teoria da Paz Democrática».

O artigo de Miriam Gomes Saraiva concentra-se na análise da política externa brasileira durante o primeiro mandato de Dilma Rousseff. O argumento da autora é o de que embora se tenha registado uma tendência de continuidade nas estratégias e nos formuladores da política externa do Brasil e na visão do mundo, observou-se, em contrapartida, uma alteração na atitude proativa do país com impacto no seu protagonismo internacional. As eleições de 5 de outubro de 2014 que reelegeram a Presidente Dilma deixaram portanto em aberto a trajetória de política externa que será seguida pelo Brasil, sendo este um tema pouco caro à Presidente então reeleita. Como Saraiva adianta, «A diplomacia presidencial e o papel da presidência como elemento incentivador e equilibrador de diferentes visões de política externa, que havia acontecido durante o governo de Lula, foram abandonados. […] A Presidente Rousseff mostrou sua preferência pela solução dos problemas internos».

Em 2014, a Indonésia foi palco de eleições presidenciais e legislativas. Nuno Canas Mendes analisa os contextos em que estas eleições se desenvolveram e o impacto dos seus resultados, num momento em que a Indonésia reivindica uma mudança no statu quo. Canas Mendes argumenta que a par das reformas empreendidas desde 1998, com a democratização, subsistem ainda elementos do período autoritário. Ao mesmo tempo, desde o período do Presidente Susilo que se verifica a coexistência de indicadores positivos ao nível económico e político com problemas estruturais que dificultam a implementação de reformas. A campanha presidencial que opôs Joko Widodo e Prabowo Subianto, «símbolos de uma velha e de uma nova Indonésia», não representou contudo a existência de programas eleitorais radicalmente opostos, «a agenda doméstica e a tónica numa Indonésia forte em termos económicos foram os tópicos dominantes na campanha de um e de outro». Todavia, não ficou claro o rumo que a política externa indonésia iria seguir pois «conhece-se mal o pensamento de Jokowi acerca das relações com a China, os Estados Unidos, a Austrália ou o posicionamento da Indonésia na asean, sobre as disputas no mar do Sul da China e outros temas polémicos».

O artigo de Laura Bastos e André Barrinha destaca o reforço do poder por parte de Erdogan nas eleições autárquicas e presidenciais realizadas em 2014. Se um ano antes, devido aos protestos e aos escândalos de corrupção, se previa o «quase colapso» de Erdogan e do akp, as eleições vieram confirmar «o domínio hegemónico deste e do seu partido na cena política turca». Os autores argumentam que o contexto político e económico da Turquia é atualmente de «enorme instabilidade externa e incerteza». A par dos desafios internos de natureza institucional, somam-se os desafios externos que exigem tomadas de posição por parte do Governo turco – como sejam os casos da Síria ou do Iraque – e influenciam a imagem internacional do país.

Quraysha Ismail Sooliman desenvolve o argumento de que a democracia sul-africana está num estado crítico. Este cenário foi demonstrado com a fraca afluência às urnas nas eleições de maio de 2014, embora os dados oficiais omitam este facto. Apesar da liberdade política alcançada com o fim do apartheid, Sooliman questiona o tipo de democracia que se está a desenvolver na África do Sul considerando que «a maior apatia dos eleitores combinada com um maior apoio à oposição indicia uma lenta erosão da legitimidade do anc enquanto único partido de opção dos sul-africanos que vivenciaram o apartheid». Ainda assim, a política externa permanece, no entender de Sooliman, relativamente independente continuando a ser orientada por cinco princípios históricos: «democracia e respeito pelos direitos humanos, África e o impulso africanista; uma abordagem pacífica à resolução de conflitos; multilateralismo; e, finalmente, um entendimento holístico do conceito de segurança».

A soma destes artigos leva a duas possíveis generalizações: as democracias emergentes não serão abertamente revisionistas – estão longe de ter comportamentos semelhantes aos da China ou da Rússia – mas colocam reticências à hegemonia norte-americana e à ordem internacional liberal (especialmente a Índia, o Brasil e a Turquia que debatem o seu papel no sistema internacional/regional). Outra possível generalização relaciona--se com a evolução da política doméstica de alguns destes países, que podem estar a sofrer um retrocesso democrático com impacto nas suas relações com o Ocidente.

Vinte e cinco anos depois, o tema da unipolaridade volta às relações internacionais, desta vez relacionado com uma possível transição de poder – que não pode ser ainda confirmada, mas que já influencia profundamente as decisões políticas, incluindo em Washington. Assim, e como os artigos deixam antever, o desenho da ordem internacional está em construção, e a sofrer influências de vários estados que possuem papéis e objetivos distintos. Esta transição de poder, como a anterior, também tenderá a ser difícil de datar. É certo, porém, que estão em curso diversos processos que contribuirão para o reforço do poder de uns estados e para a diminuição do poder de outros.

Saber se a unipolaridade voltará ou se se consolidará um sistema multipolar e/ou regionalizado são cenários que dependem não apenas da evolução da potência preponderante, os Estados Unidos, e das atuais potências emergentes, mas de outros fatores, exógenos aos próprios estados.