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Relações Internacionais (R:I)
versão impressa ISSN 1645-9199
Relações Internacionais no.44 Lisboa dez. 2014
POTÊNCIAS EMERGENTES E DEMOCRACIA
A emergência da Índia e a ordem liberal americana. Notas sobre desafios futuros
The emergence of India and the American liberal order: notes on future challenges
Diana Soller
Doutoranda no Departamento de Estudos Internacionais da Universidade de Miami. Assistente de Investigação no Centro de Excelência da União Europeia da Universidade de Miami. Investigadora no IPRI-UNL.
RESUMO
A aplicação da Teoria da Paz Democrática à literatura da transição de poder bem como o posicionamento da China como a mais poderosa potência emergente tem levado a relegar para segundo plano o estudo de democracias emergentes e o seu papel na futura ordem internacional. Este artigo estuda o caso da Índia que sugere que as democracias também colocam desafios à ordem liberal, ainda que de natureza diferente dos das autocracias. As posições recentes de Nova Deli relativamente a um conjunto de temas centrais para a ordem internacional leva ao questionamento de pressupostos teóricos e à procura de variáveis alternativas que justifiquem a política externa indiana.
Palavras-chave: Estados Unidos, Índia, transição de poder, Teoria da Paz Democrática.
ABSTRACT
The direct or indirect use of the democratic peace thesis with power transition theory and the preeminent rise of China among emergent powers led to a systematic disregard of the role of rising democracies in the upcoming international order. This article studies India’s case and concludes that rising democracies also challenge the current normative basis of states’ relations, in a different way than autocracies. New Delhi’s foreign policy in recent years suggests that the theoretical tools are not fully adequate to address these cases.
Keywords: United States, India, power transition, Democratic Peace Thesis
INTRODUÇÃO: QUEM TEM MEDO DE UM MUNDO MULTIPOLAR?
Amitav Acharya, um proeminente construtivista crítico da American University, publicou recentemente um livro-panfleto na senda de Kishore Mabhubani1 onde faz dois argumentos centrais. O primeiro é que, independentemente de questões quantificáveis de declínio e ascensão, a narrativa da indispensabilidade da hegemonia americana tem os dias contados2. Não será fácil para os Estados Unidos continuarem a defender a ideia de que o mundo beneficia da sua primazia (da «nação indispensável») depois da Guerra do Iraque, que pôs em causa a legitimidade da liderança e da crise económica internacional, que teve início nos Estados Unidos, contaminou o mundo, e pôs seriamente em causa a validade do modelo económico internacional liberal3. Para os países que compõem os brics, um grupo que cada vez mais se apresenta como uma coligação que pretende criar alternativas para a ordem internacional económica, os acontecimentos de 2008, diz Acharya, provaram que o modelo americano está esgotado. O segundo argumento é que o mundo ocidental desenvolveu a ideia falsa de que a unipolaridade é condição necessária para a estabilidade internacional4. O Ocidente tem defendido a validade da teoria da estabilidade hegemónica5 que contém a ideia essencial de que o mundo beneficia da existência de uma potência organizadora6 sem a qual a paz internacional e a cooperação entre os estados é muito mais difícil de obter. E que a liderança americana tem tido um papel preponderante quer pelo seu carácter benigno, quer pela sua inclusividade e flexibilidade7.
Do ponto de vista de Acharya, esta tese tem dois problemas fundamentais que a põem em questão. Por um lado, o sistema unipolar sofre da ausência de checks and balances.
Assim, o Estado hegemónico tem um poder discricionário que, mal usado, põe em risco a paz do sistema. Por outro, não há modelos para um mundo multipolar no século xxi. A última vez que o sistema internacional foi multipolar (e instável), no século xix, os protagonistas eram outros (os beligerantes estados europeus), os pressupostos ideológicos eram diferentes, e as tecnologias que hoje facilitam o entendimento entre os estados (institucionais e científicas) ainda não tinham sido desenvolvidas. Assim, não se pode esperar que o passado multipolar seja um guia fidedigno para o futuro multipolar. Acharya não diz, mas leva o leitor a subentender, que os estados emergentes são inerentemente pacíficos e, acima de tudo, responsáveis e respeitadores do direito internacional na sua vertente mais soberanista8. Saberão, portanto, partilhar o poder do sistema internacional de forma pacífica e tenderão a organizar-se para estabelecer novas regras na ordem internacional (ou restabelecer regras antigas) que, por se oporem às da ordem americana, tenderão a ser mais pluralistas e menos solidaristas9. Mais, um sistema multipolar permitirá que os estados se vigiem uns aos outros, garantindo assim um menor risco de conflitos armados.
Apesar do tom persecutório de Acharya neste livro não ser partilhado por muitos, as duas ideias centrais do seu livro – de que (1) a ordem internacional política e económica americana está esgotada e que (2) um sistema unipolar é inerentemente mais perigoso que um sistema multipolar – são subscritas por cada vez mais decisores políticos e académicos dos estados democráticos emergentes, nomeadamente da Índia e do Brasil10. Decisores, diplomatas e académicos vão afirmando que não existe nenhum problema fundamental nas relações diplomáticas entre os seus países e Washington, mas vão simultaneamente procedendo a estratégias de soft balancing11que, na prática, enfraquecem a posição norte-americana e a ordem internacional liberal construída pelos Estados Unidos e os seus aliados nos anos 1940 e reforçada pela vitória na Guerra Fria. No entanto, as preocupações dos declinistas americanos têm-se concentrado em Pequim, votando a Índia e o Brasil a um quase esquecimento. Joseph Nye diz mesmo que a Índia é «um poder prematuro»12. Apesar de Nova Deli e Brasília darem cada vez mais sinais de descontentamento relativamente às decisões norte-americanas, o que tem levado, simultaneamente, ao uso das instituições internacionais para denunciar o comportamento internacional norte-americano, e ao alinhamento ocasional com a China com o objetivo de conter a evolução de regimes internacionais menos favoráveis aos interesses do Sul global13, muito pouco se tem investigado sobre a especificidade do seu comportamento que, até certo ponto, contraria as previsões teóricas.
Três razões explicam a ausência destas análises. Primeiro, o tema da emergência chinesa sobrepõe-se a todos os outros. Tanto porque Pequim é mais poderosa do que as restantes potências emergentes como porque as suas posições normativas estão tão distantes das americanas, a China tem sido considerada o rival natural dos Estados Unidos em cenário de transição de poder14. Segundo, porque frequentemente se estuda a ascensão de potências não ocidentais em conjunto – como se os casos não tivessem especificidades suficientes para que as trajetórias dos países e as suas posições na política internacional sejam também elas muito diferentes. Terceiro, quando se estuda a Índia e o Brasil separadamente dos outros brics, as questões de transição de poder entre democracias e alinhamento em contexto de transição têm sido abordadas à luz da Teoria da Paz Democrática. Autores das diversas escolas de relações internacionais consideram que as democracias tendem a (1) criar contextos de transição pacíficos por estarem de acordo com os valores vigentes da ordem internacional15e/ou (2) alinhar-se entre si para conter a emergência de potências autocráticas, naturalmente revisionistas dos valores internacionais partilhados pelos estados democráticos16. Assim, prevê-se que o Brasil, e especialmente, a Índia, com uma história de rivalidade com a China, tendam a alinhar-se com os Estados Unidos para conter Pequim.
Mas a verdade é que a Índia e o Brasil se têm oposto sistematicamente a Washington em questões estratégicas e normativas com profundas implicações na ordem internacional liberal17. Mais, esta oposição tem tido maior impacto internacional devido a três fatores: (1) o retraimento estratégico norte-americano criou um vazio de poder que as potências emergentes têm sabido ocupar; (2) as atuais ameaças transnacionais requerem soluções conjuntas, aumentando o poder negocial dos estados emergentes; e (3) a estratégia destas potências tem sido a de usar as estruturas institucionais criadas pela ordem liberal norte-americana para questionarem a legitimidade de ação do Ocidente. Caso esta tendência se mantenha, os alinhamentos das potências emergentes democráticas poderão não ter um carácter revisionista clássico, mas terão um impacto negativo na ordem internacional liberal. Mesmo que se mantenha um registo revisionista soft, esta política tenderá a contribuir para o enfraquecimento das estruturas da ordem vigente.
Este artigo argumenta que os pressupostos teóricos que têm levado à conclusão de que as democracias emergentes tenderão a reforçar a ordem liberal americana estão, em parte, ultrapassados. Ter o mesmo tipo de regime não é condição suficiente para alinhamento em contexto de transição de poder. Poderá até ter um efeito contraproducente, uma vez que se criam expectativas que não são cumpridas. Este tem sido o caso das relações Estados Unidos-Índia18. O argumento será desenvolvido em três partes: a primeira escrutina a Teoria da Paz Democrática e os seus pressupostos, que teoricamente se deveriam aplicar às relações indo-americanas. A segunda procura encontrar explicações alternativas através das críticas à Teoria da Paz Democrática, que serão testadas na terceira parte, em que argumentos empíricos serão expostos. O artigo conclui sugerindo que estes problemas não se aplicam apenas ao estudo de caso, e que, com as devidas especificidades, poderão ser encontrados noutras potências democráticas emergentes cujo processo de desenvolvimento económico (e político) tem decorrido à margem da ordem internacional democrática fundada pelos Estados Unidos nos anos 1940.
DESAFIANDO A VALIDADE DA TEORIA DA PAZ DEMOCRÁTICA: PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
Quando enunciou os princípios da Teoria da Paz Democrática (tpd), o realista Jack Levy fez duas advertências: a primeira é que a tese que estava a enunciar não se limitava ao princípio mais prontamente observável e empiricamente comprovado de que as democracias raramente fazem guerra entre si, mas continha uma série de outros elementos que não faziam das democracias estados inerentemente pacíficos. Por outras palavras, Levy distinguiu entre um espaço de paz criado pelos estados democráticos e as relações conflituosas entre democracias e estados com outros tipos de regime. Segundo, Levy sugeriu que o processo que desencadeava todos os princípios da paz democrática tinha origens na política interna dos estados19. Contudo, a investigação do autor não foi conclusiva relativamente a que mecanismos internos explicavam o comportamento atípico dos estados democráticos no sistema internacional.
Ao todo, a tpd é composta por cinco princípios: (1) as democracias resolvem os seus conflitos de forma pacífica, evitando a guerra; (2) os estados democráticos nunca se encontraram em lados opostos de conflitos armados; (3) as democracias são menos propensas a iniciar conflitos armados, mas quando entram em guerra tendem a transformar conflitos de interesses em «cruzadas morais»20. Assim, (4) as democracias envolvem-se em «intervencionismo liberal» – a «promoção da sua própria visão moral da ordem internacional» e (5) por isso mesmo tendem a não formar alianças com «estados ideologicamente hostis» que tenderiam a ser rejeitadas pelas suas opiniões públicas.
A questão da identificação das causas da TPD (i.e. os mecanismos que desencadeiam o fenómeno descrito) foi estudada por diversos autores que encontraram explicações complementares. Michael Doyle, recorreu à teoria política da Immanuel Kant para explicar porque é que as democracias «poderão ter escapado do mais perigoso desafio tradicional das mudanças sistémicas – a transição entre líderes hegemónicos»21.
Os Artigos Definitivos da Paz Perpétua, na leitura de Doyle, contêm quatro elementos essenciais: (1) estados com o regime interno «republicano» (i.e. um regime constitucional); tendem a formar uma «liga para a paz» (a que estes regimes aderem livremente e que tenderá a alargar-se a cada novo regime democrático), que garante o (3) «respeito mútuo» entre os estados (condição fundadora do direito internacional) e que se transforma na (4) origem de uma «ordem cosmopolita» com base no «direito à hospitalidade». Este último direito confere ao indivíduo o papel de unidade mais relevante na ordem internacional democrática (i.e. na hierarquia de justiça o indivíduo sobrepõe-se ao Estado), independentemente da sua origem nacional22.
Assim, o processo causal da Paz Democrática desenvolve-se na seguinte lógica: os governos republicanos desenvolvem regimes internos constitucionais nos quais a liberdade individual é o valor mais importante. No sistema internacional os estados comportam-se de acordo com os seus valores internos, reconhecendo e aliando-se a estados com regimes semelhantes por razões de confiança e respeito mútuo. O oposto acontece na relação internacional das repúblicas com estados não-democráticos: a desconfiança é justificada pelo facto de as autocracias tenderem a violar o «direito natural», a «legitimidade moral» e estarem em «permanente estado de agressão», uma vez que as elites frequentemente desvalorizam o interesse público e não são forçadas a atenderem às suas opiniões públicas23. Consequentemente, as democracias desenvolveram uma «estratégia de libertação» que se traduz na proteção mútua dos aliados liberais («ocidentais», na designação datada de Doyle) que em casos extremos pode levar à intervenção militar contra excessos de estados autocráticos24. Este processo causal foi reforçado pela liderança hegemónica norte-americana, cuja estratégia internacional passa, desde os anos 1940, pela criação de uma estabilidade democrática (através das instituições internacionais) e pela promoção da democracia25.
Já Bruce Russett reafirma que «quanto mais democracias houver no mundo, menos adversários as democracias terão de enfrentar e mais vasta será a zona de paz». Foi este princípio que norteou o desenvolvimento da comunidade de segurança ocidental na Guerra Fria, cujo «princípio unificador» era a democracia26. Tomando este exemplo mais empírico, o autor identifica três condições necessárias para a ocorrência da tpd: os estados têm que se reconhecer como estados democráticos, o que implica a perceção de «culturas normativas» e «estruturas comportamentais» idênticas. São estas três condições que permitem uma «cultura democrática transnacional» com base na ideia de enlightened self interest27.
Russet, que em conjunto com Zeev Moaz desenvolveu um exaustivo estudo quantitativo para provar algumas das premissas de Levy28, tem vindo a ser criticado por definir «democracia» de uma forma muito lata. Os estados estudados têm quatro características comuns: eleições periódicas e livres, respeito pelos direitos e liberdades civis, liberdades económicas, e estabilidade e longevidade do regime29. Também alguns dos conceitos de Russett são vagos: o elemento normativo não tem premissas concretas, deixando por explicar o que quer dizer concretamente «cultura democrática» – um elemento essencial para fazer exclusões e inclusões teóricas.
John Owen tenta corrigir esta questão introduzindo uma nova variável independente. No seu estudo Liberal Peace, Liberal War o autor afirma que o que causa a Paz Democrática é o liberalismo. Owen mantém a variável interveniente de Russett (perceções) e define liberalismo como a ideologia que modela as instituições dos estados democráticos, que são essencialmente duas: «liberdade de discussão» e «eleições livres e concorridas dos agentes que têm o poder de fazer a guerra». Estes dois elementos constituem a «identidade institucional» que é, por natureza, duradoura – ainda que não imutável. E é esta identidade que outros estados irão percecionar e sobre a qual irão decidir se estão perante um aliado natural30. O efeito da tpd – resumida nas cinco observações de Levy, que Owen não contesta – depende, então, da seguinte lógica de causalidade: estados liberais percecionam os outros como estados liberais ou estados não liberais, e tomam as suas decisões políticas com base nesse julgamento.
Uma ressalva – acrescenta Owen: os conceitos de liberalismo e democracia (ou de democracia-liberal, uma vez que o autor nunca faz uma distinção precisa) vão evoluindo temporal e espacialmente. Assim, todos os casos têm que passar pelo escrutínio do seu próprio contexto. Sem estudos de caso precisos, como os que faz no seu livro, a tpd será uma mera abstração e apenas uma probabilidade, uma vez que as estatísticas não captam as perceções. E se por um lado, o caso da Índia se ajusta a qualquer das definições apresentadas pelos principais autores que estudaram o assunto, a reserva deixada por Owen obriga a um estudo mais aprofundado dos elementos contextuais dos Estados Unidos e do maior estado do subcontinente asiático. Mas antes, importa rever as críticas à tpd, para procurar os elementos que poderão determinar uma aproximação ou um afastamento da «mais antiga democracia do mundo» e da «maior democracia do mundo».
DESAFIANDO A VALIDADE DA TEORIA DA PAZ DEMOCRÁTICA: CRÍTICAS TEÓRICAS E EXPECTATIVAS NORTE-AMERICANAS
Ainda que a Teoria da Paz Democrática seja aceite por um largo espetro académico, não tem estado isenta de críticas31. Pelo menos três tipos de problemas têm sido recorrentemente apontados e nunca ficaram definitivamente resolvidos32.
O primeiro é a ausência de coesão entre definições e bases de dados33. A secção acima já demonstrou que as definições são vagas, ao que se acrescenta o facto de as amostras estatísticas serem reduzidas, uma vez que a democracia é um fenómeno recente34. O segundo é o problema da variável omitida: até recentemente, os estados democráticos partilhavam uma série de atributos para além do tipo de regime comum. Todos se encontravam em posições económicas estáveis e obtidas através do modelo da economia de mercado35, e gozavam de uma certa «uniformidade cultural» e, na maioria dos casos, partilhavam «um conjunto particular de circunstâncias histórica»36. Segundo os críticos da tpd estas semelhanças podem ter tido um papel preponderante no resultado atribuído ao regime político comum.
Uma terceira crítica está relacionada com a advertência de John Owen. O problema da Paz Democrática será o facto de ser uma tese apresentada como se a «democracia fosse um conceito a-histórico»37. Por outras palavras, é entendido que as democracias não fazem a guerra entre si independentemente de critérios de espaço e tempo. No entanto, não só se pode identificar uma evolução no conceito de democracia38, como a democracia tem características diferentes no mesmo tempo e em espaços distintos, quer na sua vertente institucional doméstica, quer na projeção dos valores internos na ordem internacional. Por exemplo, quando o Reino Unido era o Estado mais poderoso do sistema internacional, não fez qualquer tentativa de transformar a ordem westfaliana, herdada do século xvii e aceite pela maioria dos estados europeus.
Atualmente, como no passado, a visão do que significa ser uma democracia para efeitos de relações pacíficas é determinada pelos estados mais poderosos, os que criaram e mantém a ordem internacional. Por conseguinte, «os Estados Unidos são a norma relativamente à qual outras ordens políticas são comparadas»39. Quando um estado democrático se afasta dos valores normativos democráticos implementados no sistema internacional pelos Estados Unidos e os seus aliados, a tpd perde parte da sua validade. Assim, se é muito pouco provável que os Estados Unidos e a Índia usem a força um contra o outro, é possível que as outras premissas enunciadas por Levy estejam postas em causa. Assim, questões internas das tradições de política externa dos Estados Unidos e da Índia, bem como as relações históricas dos dois países, e a forma como cada um conceptualiza justiça e ordem no sistema internacional parecem ser variáveis mais precisas para estudar as questões de alinhamento ou afastamento entre os dois países.
À luz deste contexto teórico, restam duas perguntas fundamentais: em que consiste o modelo de organização internacional norte-americano, e em que é que ele é contestado pelos regimes democráticos emergentes, nomeadamente a Índia?
Antes de mais, existe uma questão basilar da ordem americana, inédita no sistema internacional contemporâneo: a universalidade. No seu recente livro, Henry Kissinger explica este fenómeno da seguinte forma: «a política externa americana tem refletido a convicção de que os seus princípios internos são evidentemente universais e que a sua aplicação é sempre salutar; que o verdadeiro desafio do envolvimento americano além-fronteiras não consiste na política externa no sentido tradicional, mas num projeto de expansão de valores que [os Estados Unidos] acreditam que todos os outros povos aspiram a replicar»40.
Este sentido de universalidade de valores explica dois elementos fundamentais da política externa norte-americana: por um lado, os Estados Unidos aceitam a condição de soberania dos estados (uma herança da ordem de Westfalia) atuando eles próprios muitas vezes sob o signo da autonomia e da independência da política externa com a intenção de proteger a paz kantiana da ordem internacional41, mas não atribuem o mesmo grau de legitimidade a todas as unidades, desvirtuando o conceito de «igualdade internacional» (no sentido que as regras são igualmente aplicadas a todos os estados) – a pedra basilar do direito internacional42. Os países que não têm regimes democráticos são menos legítimos e, por conseguinte, mais vulneráveis à intromissão de agentes da ordem internacional, do que os estados democráticos.
Por outro, a universalidade explica os esforços desenvolvidos pelas várias administrações americanas desde a presidência de Woodrow Wilson para inverter as regras do equilíbrio de poder e substituí-las por outras de carácter mais normativo, refletindo os valores da democracia liberal americana43. O Presidente norte-americano que presidiu à Conferência de Versalhes com 14 pontos que pretendiam iniciar uma nova forma de ordem internacional, trazia também uma «teoria liberal da história»44(ou uma teoria da modernização45) enraizada na tradição americana que vê os valores da paz, democracia e prosperidade económica como indivisíveis e progressivos46e a visão kantiana de que as democracias não fazem a guerra entre si.
De acordo com a visão wilsoniana, «a paz duradoura requeria governos de consentimento popular»47porque os povos livres tenderiam a escolher a democracia como tipo de regime. Para facilitar este progresso, era necessário criar instituições que punissem os estados infratores (a ordem baseada no equilíbrio de poder não fora, nesse aspeto, efetiva) e que garantissem a «segurança coletiva». A estrutura internacional inventada por Wilson, a Liga das Nações, deveria ter o papel de regular as relações entre os estados, sob o signo dos princípios da interpretação americana dos princípios kantianos.
É sabido que Wilson não foi capaz de implementar a sua visão para uma nova ordem internacional, mas a sua conceção manteve-se, manifestando-se de várias formas ao longo da história da política externa americana, especialmente desde que os Estados Unidos se tornaram a potência organizadora, primeiro da esfera ocidental nos anos 1940 e depois à escala global cinquenta anos mais tarde. As mais importantes materializações dos ideais wilsonianos são três: (1) a criação de um conjunto de instituições internacionais conducentes ao desenvolvimento da democracia e da economia de mercado; (2) a criação de estruturas de segurança coletiva (em organizações internacionais como a nato e alianças bilaterais) que defendam os estados democráticos dos estados hostis: (3) e o uso de diversos instrumentos, diplomáticos, políticos, económicos e até militares para a promoção da democracia – como a reposição de um Estado natural de que determinados estados estão excluídos.
Desde 1990, a expressão da faceta liberal da política externa americana e a projeção dos valores no sistema internacional aumentou significativamente por duas razões: a vitória ocidental na Guerra Fria deu um novo impulso às ideias liberais, incentivando a prática do liberalismo internacionalista, e o sistema internacional unipolar que se seguiu permitiu aos Estados Unidos um reforço da vertente da sua política externa liberal. As organizações internacionais universalistas foram reforçadas com novos orçamentos e poderes48; foram criadas novas normas internacionais com vista a defender o indivíduo (sendo a responsabilidade de proteger a mais ousada e contestada)49, criaram-se ou reforçaram-se regimes internacionais, alargou-se a comunidade de segurança entre as democracias. Também aumentou exponencialmente o número de intervenções militares por razões humanitárias.
Já nos anos 2000, o entusiasmo pela agenda liberal esmoreceu, não menos por ela ter sido evocada como justificação para a Guerra do Iraque. No entanto, a ideia do modelo norte-americano de democracia e ordem liberal cristalizou-se num concreto número de princípios expresso num modelo visto pelas elites americanas como inclusivo, acessível a todos os estados que quisessem aderir à mais restrita ordem democrática liberal50. E se a hegemonia americana foi avaliada como um êxito especialmente entre as democracias ocidentais, a liderança dos Estados Unidos começa a ser contestada pelas democracias emergentes, pelo elemento que mais a caracteriza: o universalismo.
DESAFIANDO A VALIDADE DA TEORIA DA PAZ DEMOCRÁTICA: O CASO DA ÍNDIA
Apesar das precauções académicas que sublinham que a Índia ainda tem grandes desafios a enfrentar no que diz respeito à capacidade do Estado e ao desenvolvimento económico51, cada vez é mais frequente a consideração de que Nova Deli terá um papel importante no sistema internacional do futuro próximo. Já correntemente, a «Índia é o swing state global por excelência»52, uma vez que ocupa uma posição económica que lhe permite ter uma palavra a dizer nas questões globais, enquanto passa por um sério debate interno sobre qual deverá ser o seu papel internacional.
Ainda que muito esteja por definir neste papel internacional e que haja cada vez mais autores a destacar diferenças entre tradições da política externa indiana53, alguns conceitos parecem reunir um certo consenso. Destacam-se seis: (1) a Índia tem como «destino» tornar-se uma grande potência54; (2) a ordem internacional é desigual e por isso não inteiramente justa; (3) o valor central da política externa indiana é a autonomia estratégica55 – «independência» e «liberdade de ação e decisão», no vocabulário indiano56, o que leva Nova Deli a ter (4) preferência pelos valores soberanistas no que respeita à ordem internacional. A Índia atribui um «conteúdo moral» importante ao sistema soberanista como o único que «proporciona um contexto para o pluralismo e um quadro de proteção para a diversidade» e a «autodeterminação»57.
Assim, (5) na ótica indiana, os valores centrais do sistema internacional deveriam ser a «igualdade entre estados» (na lógica Vattel58), a reciprocidade (os estados devem ser tratados e percecionados segundo o seu comportamento internacional e não a partir de outros parâmetros como o poder) e o «pluralismo» (cada Estado deve ser respeitado de igual maneira à luz do direito internacional, independentemente do tipo de regime, sistema religioso e outros critérios sócio-culturais). (6) Estes valores dariam à Índia a possibilidade de desempenhar na sua vocação internacionalista o papel de mediador, mais concretamente «ponte entre mundos diferentes»59, papel em que historicamente se sente confortável, e que justificaria a sua posição de potência «avessa ao risco» e ao uso de força militar60. Estes valores estão muito longe dos verificados nos estados liberais que foram estudados pela tpd.
A revisão da literatura na secção anterior permitiu encontrar importantes elementos que podem explicar as diferenças entre os Estados Unidos democráticos e a Índia democrática: (1) os fatores de carácter interno, (2) as relações dos estados emergentes com a grande potência e as perceções que daí advêm, e (3) as conceptualizações de justiça relativamente às normas do sistema internacional.
No primeiro caso – a origem interna do afastamento ou alinhamento entre estados avançada por Jack Levy – dois elementos explicam a postura indiana. O primeiro é o anticolonialismo, relacionado com a história do nacionalismo indiano. Como refere Ganguly, existe uma «aversão profundamente enraizada relativamente ao colonialismo e imperialismo» que são associados a questões de promoção de democracia. «Mesmo 60 anos depois do fim do colonialismo britânico, as memórias da lógica colonial e pós-colonial empregue nas intervenções militares no estrangeiro permanecem vivas» e a Índia rejeita associar-se-lhes61.
O segundo, o pluralismo, está relacionado com a experiência interna da diversidade indiana: a Índia integrou no seu território 562 principados, uma população de quase um bilião de pessoas falantes de mais de vinte línguas e origens histórico-culturais diferentes, bem como uma multiplicidade de religiões, num «Estado unitário» e «dentro de um sistema democrático bem-sucedido e dotado de uma Constituição secular»62. A Índia, tal como os Estados Unidos, prefere que os seus valores internos tenham ressonância no sistema internacional. E o anticolonialismo e o pluralismo têm mais cabimento num sistema semelhante ao criado em Westfalia em 1648 – onde o universalismo religioso foi deliberadamente destituído e substituído por uma estrutura mais inclusiva e pluralista63.
Relativamente ao segundo elemento – a origem relacional do afastamento ou alinhamento entre estados, cristalizada nas perceções, importantes para Russett e Owen – a Índia tem duas ideias centrais relativamente aos Estados Unidos. A primeira é que, relativamente a Nova Deli, o fator democracia nunca foi relevante nas decisões de Washington. De todas essas decisões que terão, na ótica indiana, prejudicado Nova Deli, nas três mais importantes – o acordo com o Paquistão em 1954, a política de aproximação da China no início dos anos 1970, e as sanções impostas à Índia em 1998 devido aos testes nucleares – o comportamento americano favoreceu os estados autocráticos rivais da Índia64. Stephen Cohen vai mais longe, garantindo que há «uma institucionalização da desconfiança indiana por Washington», porque «a América armou o Paquistão nos anos 1950 e 1960; opôs-se ao apoio justo que a Índia prestou ao movimento bengueli em 1971, e aliou-se com a China nos anos 1970 e 1980»65. A desconfiança que advém deste período era reciprocada por Washington, que via o movimento dos Não-Alinhados como um desafio aos Estados Unidos, confirmado pela assinatura do tratado de 1971, que oficializou as relações de cooperação estreita entre a Índia e a União Soviética. No entanto, presentemente, as questões políticas levantadas pela Guerra Fria parecem ter maior impacto na memória coletiva indiana que na americana.
A segunda ideia é que, para a Índia, um dos mais importantes valores internacionais nas relações bilaterais é a reciprocidade66. O conceito incluiu dois elementos inter-relacionados. Por um lado, a rejeição de uma hierarquia internacional, no sentido em que a Índia considera que os estados devem ser julgados pelo seu comportamento internacional e não pelas suas capacidades militares latentes ou efetivas. Por outro, cria uma forma inovadora – e de difícil apreensão por outros estados com menor sentido histórico – de escolher que estados fazem parte da rede de confiança indiana. Da perspetiva de Deli, os Estados Unidos nunca trataram a Índia como um Estado igual e apesar do seu comportamento pacífico na região asiática.
Dois fatores mais recentes suavizaram o elemento relacional entre os Estados Unidos e a Índia: Washington tem vindo a reconhecer a importância estratégica de Nova Deli quer como potência nuclear, quer como estado central no equilíbrio de forças regional. Esta aproximação teve início com a visita oficial de Bill Clinton à Índia em 1999, foi reforçada pela solidariedade entre os dois países no pós-11 de setembro67, e teve o seu ponto mais alto na assinatura do acordo nuclear entre Washington e Nova Deli em 2006 (acordo esse que passou por intensos debates entre os membros do governo do Partido do Congresso68). Por outro, existe uma nova geração de académicos que tem optado por estudar a política externa indiana usando instrumentos teóricos liberais e realistas (menos enraizados em tradições históricas indianas), que defendem uma relação mais próxima com os Estados Unidos – ainda que, a maioria das vezes, por razões meramente estratégicas. Poderá ser o início de uma nova elite com características diferentes da contemporânea69.
No entanto, por agora, a maioria da elite indiana – especialmente decisores e diplomatas – ainda se identifica quer com os princípios acima descritos, quer com a narrativa nehruviana – que estabelece o terceiro elemento – as conceções de justiça da ordem internacional do Estado em declínio (ainda o modelo de comparação) e o Estado emergente, para os quais Ido Oren chamou a atenção. Neste contexto, os seis princípios consensuais entre as elites indianas – a Índia como grande potência com papel de mediador internacional, a autonomia estratégica como pedra basilar da política externa indiana, e os valores soberanistas (conducentes à igualdade entre estados, à reciprocidade e ao pluralismo), e a ideia de existir uma certa injustiça internacional relativamente à Índia estão enraizados na história indiana. Foram, com a devida contextualização, formulados por Jahawarlal Nehru e pelos seus conselheiros ainda antes de a Índia se tornar independente70 revestem-se da maior importância por terem resistido às mudanças internas e sistémicas porque Nova Deli passou – sendo as mais importantes o tratado de amizade com a União Soviética em 1977, que desvirtuou a doutrina do Não-Alinhamento e a abertura indiana à globalização no início dos anos 1990, que desacreditou o modelo de desenvolvimento baseado na centralização da economia71.
Estes princípios, aliados à ideia de que a ordem internacional vigente não é justa para os países do Sul e a simultânea perceção que a Índia tem a oportunidade de ascender ao estatuto de grande potência, tem levado à atualização da «metanarrativa» indiana, inspirada no nehruvianismo. Por um lado, diversos historiadores têm-se encarregue de desfazer o mito de que Jawaharlal Nerhu centrou a sua política externa em princípios meramente idealistas. Não se têm poupado esforços para resgatar a faceta mais pragmática do líder histórico indiano72, tornando a sua herança mais adequada aos problemas do século xxi e às exigências de uma política externa mais «pragmática», mais relacionada com a concretização do «enlightened self-interest» indiano73.
Por outro, a herança de Nehru tem sido adaptada às condições sistémicas atuais74. Certos valores têm sido menos valorizados (o pan-asianismo, o idealismo), outros adaptados a temas recentes. Por exemplo, o não-alinhamento tem passado por reinterpretações e é, hoje essencialmente visto como uma estratégia de transformação da ordem global, e como «contribuição para o reforço dos fora internacionais», do enfraquecimento «do uso da força na política internacional», e como fator que contribui para «reduzir a desigualdade global»75. Já a figura de Nehru é por vezes evocada por ter contribuído para um sistema internacional mais ético, por ter ganho espaço internacional pela justiça dos seus argumentos (espaço esse superior às suas capacidades militares indianas) e de ter elevado a política externa indiana a um estatuto internacional que pode ser recuperado agora.
A narrativa está presente no debate atual na seguinte lógica: um sistema multipolar com regras soberanistas seria mais justo, porque diluiria as «desigualdades da ordem internacional»76. As potências emergentes saberiam conviver num sistema internacional multipolar organizado à volta dos valores da panch sheel (os cinco princípios da coexistência pacífica)77tornando o sistema internacional mais harmonioso. Este sistema também beneficiaria os interesses nacionais indianos porque seria mais condicente com um perfil indiano, «internacionalista»78, e criaria espaço para uma maior liberdade de exercer uma política externa sem constrangimentos ou dependências de outros atores79. Também permitiria à Índia manter a sua política externa multivetorial – de relações cordiais com todas as potências sem dar preferência a nenhuma.
O encontro conceptual de uma ordem internacional mais pluralista (inspirada na ordem Europeia pré-I Guerra Mundial) com a narrativa nehruviana adaptada ao século xxi (sem idealismos exacerbados mas de teor internacionalista ético com base nos valores da justiça, reciprocidade e pluralismo) tem o triplo efeito de aproximar estrategicamente Nova Deli de outras potências emergentes, e de pressionar o sistema internacional num sentido mais multipolar, e de recolher o apoio da opinião pública indiana. E tem a consequência de, em muitas ocasiões, colocar Nova Deli numa posição distante da de Washington e da ordem liberal norte-americana.
NOTAS FINAIS
Num artigo escrito em 2012, Pu Xiaoyo, afirmou que «nas próximas décadas, o Ocidente tem de acomodar os poderes emergentes enquanto salvaguarda a ordem liberal ocidental»80. Ao contrário de Amitav Acharya, que acredita que a ordem liberal internacional está ultrapassada, Pu expressa o dilema que tem prevalecido, especialmente nos Estados Unidos: a ordem americana tem tido um impacto positivo para o sistema internacional, e seria benéfico preservá-la em período de transição de poder. Esta questão reflete-se, regra geral, no estudo das relações Estados Unidos-China, mas, como este artigo demonstrou, os desafios não se encontram exclusivamente nesta relação bilateral. As democracias emergentes não se têm posicionado como revisionistas no sentido clássico do conceito, mas têm vindo a colocar desafios importantes à ordem liberal. Este artigo centrou-se em alguns desses desafios, sendo que o primeiro passará por analisar as democracias emergentes, nomeadamente a Índia, através de pressupostos teóricos que vão além das antigas lentes da tpd. O fator democracia pode facilitar as relações entre estados com tipos de regime comum, mas no caso da relação Estados Unidos-Índia não parece ser o elemento determinante no que concerne a determinar razões de afastamento ao alinhamento no contexto da transição de poder.
Assim, este artigo chega a duas conclusões centrais. Por um lado, a tpd, tal como tem sido enunciada do ponto de vista teórico e posta em prática pelos decisores das democracias ocidentais, está posta em causa pela emergência de novas potências de regime democrático. Se por um lado não há razões para acreditar que as democracias passarão a fazer a guerra entre si, outros pressupostos enunciados por Levy e desenvolvidos pelos seus seguidores não se verificam no caso da Índia. Como afirma um grupo de proeminentes pensadores indianos,
«estamos comprometidos com as práticas democráticas e estamos convencidos que democracias robustas garantiriam a segurança da nossa vizinhança. Mas mesmo assim, a Índia não promove a democracia nem a vê como um conceito ideológico que serve como eixo polarizador na política internacional»81.
Esta determinação não se aplica apenas à promoção internacional da democracia; está presente noutras áreas das relações internacionais, em temas fundamentais para a ordem internacional como o regime económico e financeiro, o regime da proteção dos direitos humanos, e o regime das alterações climáticas, entre outros exemplos. Resumindo, o tipo de regime comum não é, no século xxi, condição suficiente para prever alinhamento em contexto de transição de poder. Os decisores indianos parecem querer manter a sua independência na tomada de decisão, criar uma política externa ao serviço do desenvolvimento interno do Estado82, e que assuma «mais responsabilidades na gestão dos problemas internacionais quando necessário». Para isso,
«[a Índia] deve tentar influenciar e configurar negociações globais no que respeita ao comércio, alterações climáticas e reforma do sistema financeiro global e da arquitetura de segurança internacional, reforçando a [sua] voz e construindo coligações flexíveis consoante cada questão»83.
Estas escolhas tanto históricas como renovadas deliberadamente ao longo das últimas décadas, colocam a Índia numa posição de princípio muito diferente da dos Estados Unidos e da ordem liberal.
A segunda conclusão do artigo é que os três fatores que explicam as divergências entre a Índia e os Estados Unidos são de carácter identitário e político. Estes elementos encontram-se ao nível interno (relacionado com a autoimagem de cada Estado e do seu papel no sistema internacional), relacional e do domínio da perceção (ação e reação a expectativas criadas quer pelos Estados Unidos, quer pela Índia), bem como nas diferenças entre conceções internacionais de justiça.
Deve acrescentar-se, no entanto, que estas disputas se têm manifestado essencialmente ao nível normativo, relacionado com o conteúdo da ordem internacional – ainda que tenham reflexos políticos evidentes, especialmente ao nível das instituições internacionais. O que não impede que os Estados Unidos e a Índia tenham tentado e conseguido encontrar posições setoriais comuns em áreas como a segurança (ainda que com ambivalências) especialmente na zona do oceano Índico, o terrorismo, e a proliferação nuclear. Os Estados Unidos também poderão ser parceiros nas coligações flexíveis e temporárias, mas não em alianças permanentes ou em quadros de segurança coletiva – como tem sido a preferência dos Estados Unidos, nas relações com democracias.
Nem quer dizer que os estados não tenham procurado estreitar as suas relações, como demonstra a visita de Barack Obama à Índia, em finais de janeiro de 2015, pelas comemorações do Dia da Independência. No entanto, este artigo sugere que Nova Deli terá preferência por manter relações bilaterais com os Estados Unidos, em parte por não subscrever inteiramente os valores internacionais americanos, o que poderá contribuir para o enfraquecimento da ordem internacional em contexto de transição de poder.
Data de receção: 15 de outubro de 2014. Data de aprovação: 29 de dezembro de 2014
NOTAS
1 Ver Mahbubani, Kishore – Can Asians Think?.Londres: Marshall Cavendish International, 3.ª edição, 2004; e Mahbubani, Kishore – The New Asian Hemisphere: The Irresistible Shift of Global Power to the East. Nova York: Public Affairs, 2008.
2 Acharya, Amitav – The End of American Order. Cambridge: Polity Press, 2014, p. 2.
3 É importante referir que Acharya não representa o mainstream da academia norte-americana. A esmagadora maioria dos autores argumentam que a ordem internacional liberal continua a ter validade independentemente da Guerra de 2003 – vista como um incidente associado a um momento muito específico da história dos Estados Unidos, e que os Estados Unidos provaram que, ultrapassando a crise internacional e voltando aos seus níveis de crescimento económico habituais em relativamente pouco tempo, o seu modelo económico está longe de estar ultrapassado. No entanto, as posições de Acharya refletem em grande medida a posição das elites dos países emergentes, nomeadamente da Índia.
4 Acharya, Amitav – The End of American Order, p. 18.
5 Keohane, Robert O. – After Hegemony: Cooperation and Discord in the World Economy. Princeton: Princeton University Press, 1984.
6 Ikenberry, G. John – Liberal Leviathan: The Origins, Crisis and Transformation of the American World Order. Princeton: Princeton University Press, 2011, p. 2.
7 Ibidem, p. 20; Kagan, Robert – The World America Made. Nova York: Alfred A. Knopf, 2012, p. 26.
8 Krasner, Stephen D. – Sovereignty: Organized Hypocrisy. Princeton: Princeton University Press, 1999, p. 4.
9 Hurrell, Andrew – On Global Order: Power, Values, and the Constitution of International Order. Oxford: Oxford University Press 2007, p. 5
10 A lista é extensa. Apenas alguns exemplos: Tellis, Ashley, e Mirski, Sean – Crux of Asia: China, India and the Emerging Global Order. Washington DC: Carnegie Endowment for International Peace, 2013, pp. 5 e 10; Amorim, Celso – «Brazilian foreign policy under President Lula (2003-2012): an overview». In Revista Brasileira de Política Internacional. N.º 53, 2012, pp. 214-240; Burges, Sean – «Brazil: a bridge between old and new powers?». In International Affair s. Vol. 83, N.º 3, 213, pp. 577-594; Hurrell, Andrew, e Sengupta, Sandeep – «Emerging powers, North and South relations and global cli-mate politics». In International Affairs. Vol. 88, N.º 3, 2012, pp. 463-484; Narlicar, Amrita – «Introduction: negotiating the rise of great powers». In International Affairs Vol. 83, N.º 3, 2013, pp. 561-567.
11 Brands, Hal – Dilemmas of Brazilian Grand Strategy. Washington DC: ssi, 2010.
12 Nye, Joseph – The Future of Power. Nova York: PublicAffairs, 2011, p. 173.
13 Laidi, Zaki – «The brics against the West?». In CERI Strategy Papers. N.º 11, novembro de 2011. Disponível em file:///C:/Users/d.dossantos/Downloads/SSRN-id2315108.pdf, p. 9.
14 Shweller, Randal, e Pu, Xiaoyu – «After unipolarity: China’s visions of inter-national order in the era of u.s. decline». In International Security. Vol. 36, N.º 1, 2011, p. 43.
15 Kupchan, Charles A. – «Introduction: explaining peaceful power transition». In Power Transition: The Peaceful Change in International Order. Nova York: United Nations University Press, p. 8; Organski, A. F. K. – World Politics. Nova York: Alfred A. Knopf, 1958, p. 363; Gilpin, Robert – War and Change in World Politics. Cambridge: Cambridge University Press, 1981, p. 15.
16 Ver Doyle, Michael W. – Liberal Peace Selected Essays. Londres: Routledge, 2012.
17 Os exemplos são abundantes: tem-se verificado desafios relativamente a questões de segurança internacional (Declaração de Teerão), ordem económica (a Rodada de Doha da omc), direitos humanos (a votação da Resolução 1073 do Conselho de Segurança a autorizar o uso da força na Líbia), e do regime internacional de alterações climáticas (Cimeira de Copenhaga). Estas referências excluem as decisões políticas dos brics, que desde 2008 se tornaram crescentemente acertivas. No entanto, este artigo pretende estudar as políticas das potências emergentes democráticas, e o grupo não reflete esta realidade. Cf., por exemplo, Pu, Xiaoyu – «Socialisation as a two-way process: emerging powers and the diffusion of international norms». In The Chinese Journal of International Politics. 2012, pp. 1-27.
18 Hurrell, Andrew – «Hegemony, liberalism and global order: what space for would-be great powers?». In International Affairs. Vol. 82, N.º 1. 2006, p. 13; Cohen, Stephen P. – India: Emerging Power. Washington DC: Brookings Institution Press, 2001, p. 287.
19 Levy, Jack S. – «Domestic politics of war». In Journal of Interdisciplinary History. Vol. 18, N.º 4. 1998, p. 662.
20 Ibidem, pp. 659-660.
21 Doyle, Michael W. – Liberal Peace Selected Essays, p. 30.
22 Ibidem, pp. 26, 27, 28, 29.
23 Ibidem, p. 38.
24 Ibidem, p. 41.
25 Ibidem, p. 25; Ikenberry, G. John – After Victor y: Institutions. Strategic Restraint, and the Rebuilt of Order After Major Wars. Princeton: Princeton University Press, 2001, p. 163.
26 Russett, Bruce – Gasping the Democratic Peace: Principles for a Post Cold War World. Princeton: Princeton University Press, 1993, p. 4.
27 Russett, Bruce – Gasping the Democratic Peace: Principles for a Post Cold War World, pp. 31 e 32.
28 Ver Moaz, Zeev, e Russett, Bruce – «Normative and structural causes of democratic peace». In The American Political Science Review. Vol. 87, N.º 3. 1993, pp. 624-638.
29 Russett, Bruce – Gasping the Democratic Peace: Principles for a Post Cold War World, pp. 15-16.
30 Owen, John M. – Liberal Peace, Liberal War: American Politics and International Society. Ithaca: Cornell University Press, 1997.
31 Pugh, Jeff – Democratic Peace Theory: A Review and Evaluation. CEMPROC Working Paper Series. Cumming: Center for Mediation, Peace, and Resolution of Conflict International, 2005, p. 12.
32 Lynn-Jones, Sean M. – «Preface». In Debating the Democratic Peace. Cambridge: The MIT Press, 1996, p. xviii.
33 Spiro, David E. – «The insignificance of liberal peace». In Debating the Democratic Peace, 1996, 202-238, p. 203.
34 Layne, Christopher – «Kant or cant: the myth of democratic peace». In Debating the Democratic Peace, pp. 157-201, p. 159.
35 Scheweller, Randall – «Democracy promotion: realist reflections». In American Democracy Promotion: Impulses, Strategies , and Impact s. Oxford: Oxford University Press, 2000, pp. 41-61, p. 53.
36 Cohen, Raymond – «Pacific unions: a reappraisal of the theory that “Democracies do not go to war with each other”». In Review of International Studies. Vol. 20, N.º 3. 1994, p. 208.
37 Oren, Ido – «The subjectivity of democratic peace: changing u.s. perceptions of imperial Germany». In Debating the Democratic Peace, pp. 263-300, p. 267.
38 Owen, John M. – Liberal Peace, Liberal War: American Politics and International Society, p. 6.
39 Oren, Ido – «The subjectivity of democratic peace: changing u.s. perceptions of imperial Germany», p. 267.
40 Kissinger, Henry – World Order. Nova York: Penguin Press, 2014, pp. 32-33.
41 Cooper, Robert – The Breaking of Nations: Order and Chaos on the Twenty First Centur y. Nova York: Atlantic Monthly Press, 2003, p. 45.
42 Krasner, Stephan – Sovereignty: Organized Hypocrisy. Princeton: Princeton University Press, 1999, p. 14.
43 Ikenberry, G. John – «Introduction: Woodrow Wilson, the Bush Administration and the future of liberalism». In The Crisis of American Foreign Policy: Wilsonianism in the Twenty First Century. Princeton: Princeton University Press, 2008, pp. 1-24, p. 10.
44 Mandlebaum, Michael – The Ideas that Conquered the World: Peace Democracy, and Free Markets in the Twenty-First Century. Nova York: Public Affairs, 2002, p. 11.
45 Kupchan, Charles – No One’s World: The West, the Rising Rest and the Coming Global Turn. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 5.
46 Huntington, Samuel P. – Political Order in Changing Societies. New Haven: Yale University Press, 1968, p. 5.
47 Manela, Erez – The Wilsonian Moment: Self-Determination and the International Origins of Anticolonial Nationalism. Oxford: Oxford University Press, 2007, p. 24.
48 Paris, Roland – At War’s End: Building Peace after Civil Conflict. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 8.
49 Ver Stuenkel, Oliver – «Rising powers and the future of democracy promotion: the case of Brazil and India». In Third World Quarterly. Vol. 34, N.º 2. 2013, pp. 339-355.
50 Ikenberry, G. John – Liberal Leviathan: The Origins, Crisis and Transformation of the American World Order, p. 20.
51 Kohli, Atul – Poverty Amid Plenty in the New India. Cambridge: Cambridge University Press, 2012, p. 65.
52 Kliman, Daniel M., e Fontaine, Richard – Global Swing State: Brazil, India, Indonesia, Turkey and the Future of International Order. Washington DC: The German Marshall Fund of the United States, 2012.
53 Ver, por exemplo, Ba jpai, Kanti – «Indian conceptions of order and justice: Nehruvian, Gandhian, Hindutva, and Neo-Liberal». In Order and Justice in International Relations. Oxford: Oxford University Press, 2003, pp. 237-262; e Ollapally, Deepa M., e Rajagopalan, Rajesh – «India: foreign policy perspetives of an ambiguous power». In Worldviews of Aspitin g Po wer s: Do m es tic For eig n Po lic y Debates in China, India, Iran, Japan and Russia. Oxford: Oxford University Press, 2012.
54 Khilnani, Sunil et al. – Nonalignment 2.0: A Foreign & Strategic Policy for India in the 21st Century. Gurgaon: Penguin Books, 2014, pp. xxix, 3.
55 Pardesi, Manjeet S. – «Understanding the rise of India: review essay». In India Review. Vol. 6, N.º 3. 2007, p. 210.
56 Tharoor, Shashi – Pax Indica: India and the World in the 21st Century. Nova Deli: Alan Lane, 2012, p. 9.
57 Hurrell, Andrew – «Order an justice at international relations: what’s at stake?». In Order and Justice in International Relations. Oxford: Oxford University Press, 2003, pp. 24-49, p. 29.
58 Krasner, Stephan – Sovereignty: Organized Hypocrisy, p. 14.
59 Khilnani, Sunil et al. – Nonalignment 2.0: A Foreign & Strategic Policy for India in the 21st Century, p. 78.
60 Pardesi, Manjeet S. – «Understanding the rise of India: review essay», p. 226.
61 Ganguly, Sumit – «India in the Liberal order». Transatlantic academy analysis, German Marshall Fund of the United States, novembro de 2013. Disponível em http://www.transatlanticacademy.org/sites/default/files/publications/Ganguly_IndiaLiberalOrder_Nov13_0.pdf
62 Pardesi, Manjeet S. – «Understanding the rise of India: review essay», p. 211.
63 Kissinger, Henry – World Order, p. 3.
64 Kapur, S. Paul – «India and the United States from World War II to the present: a relationship transformed». In India’s Foreign Policy: Retrospect and Prospect. Nova Deli: Oxford University Press, 2010, pp. 258-259.
65 Cohen, Stephen P. – India: Emerging Power, p. 42. Ver também Khilnani, Sumil – The Idea of India. Nova York: Farrar, Straus, Giroux, 1998, p. xiv.
66 A questão da reciprocidade muito raramente é analisada do ponto de vista conceptual. No entanto, há vários exemplos históricos em que se verifica este sentimento. Ver, por exemplo, Khilnani – The Idea of India, p. xii, e Chaudhuri, Rudra – Forged in Crisis: India and the United States since 1947. Noida: HarperCollins Publishers India, 2014, p. 128.
67 Mohan, Raja – Crossing the Rubicon: The Shaping of India’s New Foreign Policy. Nova York: Palgrave MacMillan 2004, p. xxii.
68 Baru, Sanjaia – The Accidental Prime Minister: The Making and Unmaking of Manmohan Singh. Nova Deli: Penguin, 2014.
69 Ollapally, Deepa M., e Rajagopalan, Rajesh – «India: foreign policy perspetives of an ambiguous power», p. 101; Cohen, Stephen P. – India: Emerging Power, p. 49.
70 Tharoor, Shashi – Nehru: The Invention of India. Nova Deli: Penguin Books, 2003.
71 Raghavan, Srinath – «Indira Gandhi: India and the world in transition». In Makers of Modern Asia. Boston: Harvard University Press, 2014, pp. 215-242, p. 240.
72 Ver, por exemplo, Raghavan, Srinath – War and Peace in Modern India: A Strategic History of the Nehru Years. Ranikhet: Permanent Black, 2012. Este também é o argumento subjacente ao supracitado Chaudhuri, Rudra – Forged in Crisis: India and the United States since 1947.
73 Ganguly, Sumit – «The genesis of Non-Alignment». In India’s Foreign Policy: Retrospect and Prospect. Nova Deli: Oxford University Press, 2010, p. 110, p. 4.
74 Tharoor, Shashi – Pax Indica: India and the World in the 21st Century, p. 15.
75 Ganguli, Sumit, e Mukherji, Rahul – India since 1980. Nova York: Cambridge University Press, 2011, p. 19.
76 Tharoor, Shashi – Pax Indica: India and the World in the 21st Century, p. 19.
77 Panch Sheel é o nome indiano para os cinco princípios da coexistência pacífica enunciado na Conferência de Bandung em 1955: o respeito pela soberania, a não-agressão, a não-interferência nos assuntos internos dos estados, a igualdade e coexistência pacífica. Ver Tharoor, Shashi – Nehru: The Invention of India. Nova Deli: Penguin Books, 2003, p. 158
78 Kalyanaraman, S. – «Nehru’s advocacy of internationalism and Indian foreign policy». In India’s Grand Strategy: History, Theory, Cases. Nova Deli: Routledge, 2014, pp. 151-175, p. 159.
79 Ollapally, Deepa M., e Rajagopalan, Rajesh – «India: foreign policy perspetives of an ambiguous power», p. 79.
80 Pu, Xiaoyu – «Socialisation as a two-way process: emerging powers and the difusion of international norms», p. 3.
81 Khilnani, Sunil et al. – Nonalignment 2.0: A Foreign & Strategic Policy for India in the 21st Century, p. 77.
82 Mohan et al. – Rebalance and Reform: An Agenda for the New Government. Nova Deli: Observer Research Foundation, 2014, p. 44.
83 Ibidem, p. 46.