SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número44A emergência da Índia e a ordem liberal americana: Notas sobre desafios futurosIndonésia: uma leitura das eleições de 2014 índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.44 Lisboa dez. 2014

 

POTÊNCIAS EMERGENTES E DEMOCRACIA

 

Balanço da política externa de Dilma Rousseff: perspectivas futuras?

Dilma Rousseff’s foreign policy assessment: what next?

 

Miriam Gomes Saraiva

Professora na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) no programa de pós-graduação em Relações Internacionais, e investigadora do CNPQ. Foi Visiting Fellow de pós-doutoramento no Instituto Universitário Europeu em Florença entre 2002 e 2003, e teve a cátedra Rio Branco em Relações Internacionais na Universidade de Oxford em 2013.

 

RESUMO

O governo de Dilma Rousseff herdou de seu predecessor, do mesmo partido, estratégias definidas de política externa: a trajetória revisionista das instituições internacionais, uma atuação ativa em fóruns multilaterais colocando-se como representante dos países do Sul, e uma orientação proativa para a dimensão sul-americana. O grupo dos autonomistas seguiu ocupando cargos-chave no Ministério de Relações Exteriores, e as tendências desenvolvimentistas foram reforçadas. O artigo defende que, apesar das continuidades, o comportamento brasileiro experimentou mudanças e uma visível redução no ativismo internacional. Essa mudança sofreu influência da conjuntura econômica internacional interna, assim como da nova dinâmica do processo decisório.

Palavras-chave: União Europeia, crise económica, federalismo, Portugal.

 

ABSTRACT

Dilma Rousseff’s government inherited clearly defined foreign policy strategies from her political party predecessor: a revisionary approach to international institutions, an active stance in multilateral forums as a representative of southern countries, and an orientation towards the South American dimension. The autonomist group remains holding key posts in the Foreign Ministry, and the developmentalist tendencies have been reinforced. However, this article argues that despite the continuities, the Brazilian behaviour has experienced changes and a visible reduction of its international activism. These changes have been affected by the international and the domestic economic scenarios and by the new foreign policymakers’ dynamic.

Keywords: Brazil, Dilma Rousseff, 2014 Presidential Elections, Emerging Powers.

 

O governo de Dilma Rousseff, desde 2011, herdou do governo de Lula da Silva (2003-2010), do mesmo partido – o Partido dos Trabalhadores (pt) –, estratégias definidas de política externa: uma trajetória revisionista das instituições internacionais, uma atuação ativa em fóruns multilaterais colocando-se como representante dos países do Sul global, e uma orientação proativa para a dimensão sul-americana. Essas estratégias se materializavam em um intricado de diferentes coalizões internacionais e mecanismos de interação de política externa. A corrente política no interior do Itamaraty que havia predominado durante o governo de Lula, os autonomistas, seguiu nas principais posições do ministério, e a variedade de outras agências de governo envolvidas na política externa, conquistada durante o governo de Lula, se manteve1. A tendência desenvolvimentista foi reforçada.

Mas, embora as estratégias e visões de mundo tenham seguido formalmente em vigor, assim como os policymakers da política externa, o comportamento brasileiro experimentou mudanças e uma visível redução na proatividade. O Brasil foi perdendo protagonismo da política global e seus movimentos assumiram um caráter reativo. Essa mudança sofreu influência da conjuntura econômica internacional e da situação econômica interna, assim como da nova dinâmica do processo decisório.

 

AS CONJUNTURAS ECONÔMICAS INTERNA E INTERNACIONAL

Os cenários internacional e nacional enfrentados pelo governo de Dilma Rousseff foram mais áridos que os que enfrentou o governo anterior. Durante o período a crise económica deu lugar à recuperação econômica norte-americana e, progressivamente, ao controle da crise por parte da zona euro. Essa mudança reforçou a centralidade do G7 e reduziu os espaços de atuação dos países emergentes no interior do G20 financeiro. A incapacidade da Organização Mundial do Comércio (omc) de levar a cabo a Rodada Doha marcou a agenda do comércio internacional, e os avanços em termos da formação de grandes blocos de livre comércio junto com o desenvolvimento da área Ásia-Pacífico a partir de acordos coletivos e bilaterais dificultaram a inserção do Brasil na economia internacional2.

A ascensão da China introduziu um novo elemento de desequilíbrio e ainda se delineia o impacto que terá na ordem econômica internacional. A bonança dos altos preços dos commodities exportados pelo Brasil recuou.

Na América do Sul, o Governo norte-americano seguiu sem uma política externa estruturada para a região, mas o manejo dos fortes traços de assimetria e divergências no interior da região em termos de visões sobre a política e políticas macroeconômicas tornou-se mais difícil.

Em termos políticos, embora o multilateralismo tradicional de base ocidental estivesse em crise, os emergentes não conseguiram estabelecer uma agenda para a política global. As crises da Síria e, particularmente, da Ucrânia «restauraram a agenda das grandes potências em detrimento dos países emergentes»3.

O cenário econômico interno sofreu mais profundamente os impactos da crise financeira internacional, que comprometeu o balanço de pagamentos. A média de crescimento do pib foi menor que a do governo de Lula e que as médias de crescimento de outros países emergentes. A previsão para 2014 é que o crescimento fique abaixo de um por cento. A taxa de emprego foi mantida, mas o coeficiente gini não sofreu alterações relevantes. As contas internas ficaram fora do controle e a inflação chegou perto do limite estabelecido pelo Governo. O projeto desenvolvimentista brasileiro de alavancar obras de infraestrutura no Brasil e na América do Sul (nesse caso com recursos do Bndes4), assim como as empresas brasileiras que começaram a se internacionalizar durante o período de Lula, foi mantido, mas sofreu com a difícil situação econômica e diversas iniciativas não foram concluídas. A conjuntura econômica teve impacto no campo político: a reeleição foi possível, mas depois de uma campanha eleitoral que mobilizou e dividiu o país.

 

NOVA DINÂMICA DO PROCESSO DECISÓRIO

Desde o início de seu governo, a Presidente Dilma Rousseff manteve o grupo dos autonomistas em postos-chave no Itamaraty. A assessoria da Presidência em assuntos internacionais de um importante líder do Partido dos Trabalhadores – Marco Aurélio Garcia – também foi mantida. O primeiro chanceler, Antonio Patriota, terminou o governo de Lula como secretário-geral do Itamaraty. Na passagem do mandato parecia, então, que não haveria mudanças no processo decisório.

Mas desde muito cedo as diferenças começaram a se fazer sentir, ampliando-se no decorrer do mandato. A diplomacia presidencial e o papel da Presidência como elemento incentivador e equilibrador de diferentes visões de política externa, que havia acontecido durante o governo de Lula, foram abandonados. A vontade política demonstrada pelo Presidente Lula de articular visões favoráveis à projeção global do país e à construção de uma liderança na região não teve continuidade. A Presidente Rousseff mostrou sua preferência pela solução dos problemas internos, junto com seu pouco interesse por temas externos, particularmente aqueles que apresentassem ganhos difusos, não tangíveis em um curto prazo.

Os atores participantes do processo de formulação e implementação da política externa introduzidos no governo de Lula – lideranças políticas, outras agências de governo – seguiram. Mas pouco a pouco outras agências foram se fazendo responsáveis por temas técnicos da política externa econômica – com destaque para as lideranças políticas mais próximas ao desenvolvimentismo –, assim como a assessoria da presidência ocupou-se das crises políticas na América do Sul. O Itamaraty, como defensor de uma política externa com ganhos progressivos através de um aumento constante da participação do Brasil nos debates de diferentes temas da política global, foi perdendo espaços. Segundo Veiga e Rios (2011)5, questões econômicas de curto prazo teriam voltado a ocupar um papel central na política externa em detrimento de ações políticas de projeção internacional e de um comportamento estratégico mais geral.

A relação entre a Presidente e o Itamaraty foi se deteriorando no decorrer do mandato. O orçamento do ministério foi reduzido e o número de vagas para o concurso para a carreira diplomática passou de 100 (o ponto máximo durante o governo de Lula) para 18, em 2014. A diminuição do orçamento e do número de novos diplomatas que entram na carreira apontam para uma redução da participação brasileira de discussões de temas internacionais. Em seu último ano de governo a Presidente não recebeu mais credenciais de embaixadores estrangeiros.

Este movimento de recuo atingiu não apenas aqueles diplomatas próximos da corrente institucionalista, que havia vigorado no último governo do psdb e compunha a linha de oposição, mas também os autonomistas, que defendem um comportamento proativo na esfera internacional. Segundo Helena Celestino, as críticas apontariam para um sucateamento do Itamaraty, assim como uma perda de funções6.

 

O BRASIL NO MULTILATERALISMO

Em termos propriamente de política externa as mudanças foram progressivas. O primeiro movimento da diplomacia foi de continuidade e, segundo Spektor, a diplomacia de Dilma Rousseff não teria tido uma «distinção conceitual» da política do Presidente Lula7. Mas a redução na diplomacia presidencial afetou a participação proativa do Brasil na política global.

Nos marcos do multilateralismo, as posições brasileiras mantiveram continuidade e, portanto, algumas divergências com as potências ocidentais se sucederam. A defesa de um multilateralismo apoiado na ideia de revisar as instituições internacionais foi constante. Em relação à defesa dos direitos humanos, apesar do apoio brasileiro a algumas resoluções do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas contra o Irã e a Coreia do Norte, em pouco tempo a posição brasileira convergiu com as posições de outros parceiros emergentes mantendo a distância das posições europeias e norte-americanas. A tensão entre a defesa dos direitos humanos e a defesa da soberania dos países em situações de crise seguiu presente na agenda da diplomacia brasileira, assim como a preferência por um cenário não hegemônico com poucas regras e um sistema internacional pluralista de estados soberanos. Houve também preocupações de resguardar o país de críticas por desrespeito aos direitos humanos em situações internas, como o caso do sistema prisional8.

Frente a questões relativas à segurança internacional, a diplomacia brasileira procurou manter, inicialmente, a estratégia de assumir um papel de liderança. Sem desprezar o princípio da «responsabilidade de proteger», Dilma Rousseff, no início de seu mandato e depois da crise na Líbia, propôs uma ideia correlata, mas diferente – «responsabilidade ao proteger» – como estratégia mais adequada capaz de garantir a proteção de indivíduos em casos de crise. A «responsabilidade ao proteger» sugeria que medidas de coerção violenta deveriam ser implementadas apenas como última alternativa e, em caso de intervenção militar, o Conselho de Segurança deveria monitorar sua implementação. Essa ideia não teve apoio das potências estabelecidas que defendem que, em situações de crise, é importante haver flexibilidade para se poder mobilizar diferentes instrumentos de assistência e coerção (incluindo recursos militares)9. Os parceiros do brics10também não demonstraram apoio explícito, com exceção da África do Sul. Assim, a proposta foi caindo no esquecimento.

Em termos gerais, a posição brasileira adotada durante todo o período foi de não intervenção militar e solução diplomática de controvérsias. Em temas importantes da agenda internacional, houve iniciativas de articulação de posições nas Nações Unidas com outros países emergentes, que se materializaram na convergência de votos no Conselho de Segurança em temas como os enfrentamentos internos na Líbia e na Síria. No caso da Ucrânia, mais ao final do mandato, o Governo seguiu a linha dos parceiros do brics e se limitou a propor uma solução através da diplomacia.

Em discurso de abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas de 2014, a Presidente reforçou a importância da não utilização de instrumentos militares e o reforço do diálogo em casos de conflito e terrorismo, incluindo indiretamente o caso do Estado Islâmico, o que causou protestos tanto nos marcos das Nações Unidas quanto de atores da oposição dentro do país. A posição do Brasil foi que o terrorismo deve ser enfrentado através de um diálogo entre os estados-membros da onu orientando para as suas causas11. Em relação a questões ambientais, a ideia da responsabilidade e da afirmação ao direito do país – e dos países emergentes em termos gerais – ao desenvolvimento foi mantida mas, como em outras áreas, as iniciativas foram reduzidas. A formulação do documento da Rio+20, que teve lugar no Brasil em 2012, não exprimiu uma liderança brasileira no tema. O texto foi considerado vago por acadêmicos e cientistas e não redundou em um capital diplomático para o Brasil como havia sido a Conferência do Rio 92. A aprovação de um novo Código Florestal no Brasil, mais permissivo, junto com o crescimento do desmatamento na Amazônia, criou obstáculos para ações brasileiras nesse campo. O documento sugerido na cúpula do clima, em 2014, de combate ao desmatamento, não foi assinado pelo Brasil.

Uma área de atuação importante do Brasil nos marcos do multilateralismo foi o trabalho para criar uma governança global no campo da internet. A iniciativa brasileira contou com o apoio da Alemanha, mas teve que ser flexibilizada para sua aprovação. Já com um perfil mais conciliatório, a Assembbleia Geral das Nações Unidas de 2013 aprovou uma resolução sobre o direito à privacidade na era digital.

No campo do comércio internacional, nas negociações da Rodada Doha, se durante o primeiro mandato de Lula o G20 comercial foi uma iniciativa importante, com Dilma Rousseff as negociações foram marcadas por dificuldades de unificar posições ou manter uma rede sólida que pudesse articular os países emergentes ou modificar as preferências das potências estabelecidas. O combate contra o protecionismo dos países desenvolvidos foi o elemento de convergência, mas sem maiores desdobramentos. A grande conquista do Brasil, foi a vitória para o cargo de diretor da omc do diplomata brasileiro Roberto Azevedo. Azevedo contou com votos de diferentes continentes, com destaque para a África e América do Sul.

 

AS INICIATIVAS DE MINILATERALISMO – O IBAS E O BRICS

A busca pelo assento permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que havia ocupado um lugar de destaque durante o governo de Lula, não foi deixada de lado, mas perdeu impulso. O Fórum ibas (Índia, Brasil e África do Sul) reduziu seu foco de ação no tema, apesar das declarações genéricas que defendem a participação de seus membros no Conselho. E o brics, embora tenha avançado durante o período no que diz respeito a articulações em fóruns multilaterais (com destaque para questões de segurança), não formulou uma posição conjunta de apoio à entrada permanente do Brasil no Conselho de Segurança; Rússia e China não manifestaram claramente o apoio para tal.

A incorporação da África do Sul ao então bric limitou as áreas de atuação do ibas, causando uma sobreposição de agendas na qual o primeiro mecanismo se fortaleceu em detrimento do segundo. Para a diplomacia brasileira, as ações nos marcos do brics foram consideradas prioritárias, enquanto as iniciativas do ibas ficaram restritas ao Fundo IBAS e à interação entre as respectivas sociedades civis. Em 2013, por falta de empenho da presidência brasileira, a cúpula entre os três parceiros não foi realizada. A atuação do Brasil no brics, porém, foi o foco principal e renovado da política de Dilma Rousseff. As cúpulas ocorreram e foram assinados diversos acordos, embora sempre mantendo uma baixa institucionalidade. Mas foi no campo financeiro que o brics avançou mais. A criação do banco para financiar iniciativas de desenvolvimento de infraestrutura nos países do bloco foi consolidada na cúpula de 2014, junto com o estabelecimento de mecanismos de cooperação entre os respectivos bancos de desenvolvimento nacionais. Foi criado um fundo de apoio aos países do bloco caso venham a experimentar dificuldades em seus respectivos balanços de pagamentos.

No interior do G20 financeiro, o Brasil estruturou, junto de seus parceiros do brics, uma coligação que resistiu às tentativas das potências ocidentais de introduzir regulamentações para controle do fluxo de capitais. Mas não conseguiram flexibilizar as potências estabelecidas no sentido de implementar decisões tomadas referentes a mudanças nas instituições financeiras internacionais. A recomposição das economias norte-americana e de parte dos países da zona euro reduziu os espaços de manobra dos países emergentes nas negociações do Grupo. A presença da Argentina no Grupo não significou uma atuação convergente com um selo Mercosul.

A China, além de membro do brcis, é um parceiro importante a ser destacado em termos individuais. Em 2009 passou a ser o principal país parceiro comercial do Brasil e, no ano seguinte, ocupou a posição de maior investidor no país12. Mas é comprador basicamente de matérias-primas com destaques para commodities, estabelecendo uma relação de estilo Norte-Sul e criando uma dependência das exportações brasileiras do mercado chinês. Mas desenvolveram-se também parcerias em outras áreas – com destaque para a área tecnológica – e houve uma série de visitas cruzadas, além dos encontros nos marcos do brics.

 

A «PARCERIA ESTRATÉGICA» COM A UNIÃO EUROPEIA E A DIFÍCIL RELAÇÃO COM OS ESTADOS UNIDOS

A parceria estratégica assinada durante o governo de Lula com a União Europeia (ue) não rendeu frutos significativos durante o período em análise. Incluía o reforço do multilateralismo e a busca de ações conjuntas em temas de direitos humanos, pobreza, questões ambientais. Como razões para esta iniciativa, os formuladores brasileiros identificavam inicialmente a parceria com a ue como instrumento para fortalecer o prestígio internacional do país, junto à ideia de que a ue e seus estados-membros poderiam ser aliados em uma eventual revisão da ordem internacional liderada pelos Estados Unidos. Entretanto, embora tenham se desenvolvido diálogos bilaterais, frente a temas da agenda global, a parceria não proporcionou resultados relevantes. Em pouco tempo, ficou claro para a diplomacia brasileira que as concepções dos dois lados não encontravam muitas convergências. No campo bilateral propriamente, o intercâmbio de acadêmicos e estudantes foi a área que mais cresceu, recebendo especial atenção da Presidente Dilma Rousseff.

A crise financeira da zona euro também impactou sobre o potencial de ações comuns em fóruns econômicos internacionais. O papel normativo da ue como modelo econômico foi posto em xeque, e a capacidade europeia de gerir uma ordem econômica mundial começou a ser ameaçada por iniciativas alternativas sugeridas por países emergentes, incluindo o Brasil. A criação do Banco de Desenvolvimento do brics é um primeiro exemplo. Nas relações bilaterais do Brasil com estados-membros da ue, a crise limitou as expectativas de um crescimento dos investimentos europeus no país, que era um dos principais objetivos das tratativas diplomáticas com esses países.

No que diz respeito à relação com os Estados Unidos, a primeira ação do governo de Dilma Rousseff foi de aproximação. A Presidente assinou no início de seu mandato uma parceria com os Estados Unidos junto com o estabelecimento da cooperação em vários campos como educação, inclusão social, investimentos e comércio, temas ambientais, energia e ciência e tecnologia13. Mas em 2013 as relações azedaram quando veio à tona a espionagem da agência norte-americana de segurança que incluia, dentre seus espionados, a própria Presidente e empresas brasileiras. Uma reunião de cúpula prevista para esse ano foi cancelada na espera de um pedido formal de desculpas que nunca veio. A diplomacia norte-americana limitou-se a explicações vagas. Houve uma tentativa de agendar uma reunião nos marcos da Assembleia Geral das Nações Unidas de 2014, mas que foi cancelada de última hora. Até hoje não foi remarcada.

 

A COOPERAÇÃO COM A ÁFRICA

No campo da cooperação com a África, o governo de Rousseff seguiu a política do governo anterior de dedicar-lhe um papel importante, mas com recuo em novas iniciativas e não implementação de assistências previstas. Houve reduções também nos campos do comércio e de investimentos. A prioridade do Governo no que diz respeito à cooperação Sul-Sul definida no princípio do mandato foi a busca de ganhos imediatos para o desenvolvimento em detrimento de iniciativas de ganhos difusos14. A legislação brasileira coloca entraves para envio de recursos ao exterior, tirando a agilidade do processo. Com este perfil, em 2011 o orçamento da Agência Brasileira de Cooperação recuou limitando a expansão das ações de cooperação técnica.

Por outro lado, Gratius e Grevi assinalam que o Brasil implementou iniciativas nos marcos do ibas, e a cúpula presidencial do brics de 2013 foi dedicada ao desenvolvimento da cooperação e de infraestrutura na África15. A política brasileira de cooperação seguiu apresentando-se como alternativa ao modelo Norte-Sul, e atendendo ao que a diplomacia brasileira denomina de cooperação Sul-Sul, isenta formalmente de condicionalidades.

 

A DIMENSÃO REGIONAL

Em relação à América do Sul, Dilma Rousseff procurou manter as estratégias de política externa então em vigor de manutenção da estrutura de governança regional criada e adaptada durante o mandato do Presidente Lula. As afinidades com governos com matizes progressistas, assim como a ideia de transformar a região em um espaço geopolítico separado da América Latina foram mantidas16. Mas a vontade política demonstrada por Lula de articular visões favoráveis à construção de uma liderança regional não foi mais sustentada. A ascensão de Rousseff esvaziou a dimensão política do comportamento brasileiro frente à região no que diz respeito às ações do Brasil como ator estruturador das instituições regionais e definidor de agendas, embora a UNASUL tenha seguido sendo a referência de atuação brasileira frente a situações de crise. A importância de atores políticos nesses episódios, com particular destaque para as ações de Marco Aurélio Garcia, colocou o Governo brasileiro alinhado com governos de tendência à esquerda, embora abaixo das expectativas dos países vizinhos17.

No caso da crise política vivida pela Venezuela, houve um consenso em torno de uma frágil iniciativa que não apresentou resultados. A tradição brasileira de não intervenção; as dificuldades do Brasil em construir uma liderança em um tema aonde há divergências sobre a melhor forma de governo; o fato de, frente a situações de crise na região, as lideranças do Partido dos Trabalhadores (pt) terem sido atores importantes do governo; e a falta de interesse da Presidência da República em empenhar-se em construir um consenso substantivo, tem dificultado o exercício, por parte do Brasil, do papel de liderança.

As iniciativas brasileiras no Conselho de Defesa Sul-Americano (cds), criado por indicação do governo de Lula, e em outros comitês da organização ficaram em compasso de espera. As ações brasileiras melhor se conectaram com o desenvolvimentismo, priorizando os vínculos bilaterais com países vizinhos através da cooperação técnica e financeira, enquanto os investimentos propriamente ditos recuaram no final do mandato18. A economia brasileira atravessou um período difícil e movimentos com vista a arcar com custos da cooperação regional não oram vistos com bons olhos pelo Governo. A perspectiva de se construir uma economia de escala não foi implementada.

Como elemento agravante, a combinação de expectativas brasileiras de receber apoio na região às aspirações globais do país com a rejeição de uma institucionalização que restringisse a autonomia de ação brasileira nos marcos tanto regional quanto internacional aumentou os custos da liderança brasileira para um patamar que o novo governo não se mostrou disposto a atender. A perspectiva de arcar com custos da cooperação regional passou a ser vista com reticências pelo novo governo.

A criação da Aliança do Pacífico, por sua vez, não foi recebida de forma consensual pela diplomacia brasileira o que favoreceu uma ausência de um posicionamento claro por parte do Governo brasileiro. Mas, fora dos discursos oficiais, fomentou um debate sobre a relação de um Mercosul ampliado com os países que compõem a Aliança do Pacífico. A Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (celac) foi criada em 2010 e começou a funcionar em 2011, mas sem receber atenção dos círculos diplomáticos brasileiros. As situações de crise, como o caso do impeachment do Presidente paraguaio, em 2012, e a crise política na Venezuela, foram tratadas nos marcos da unasul e a celac não teve um papel relevante. Além de a celac ter maior dificuldade em acomodar as diferenças existentes entre os países latino-americanos, a situação da celac e da usanul é de sobreposição, onde a principal lealdade brasileira se orienta para a América do Sul19. A parceria estratégica entre a ue e a celac, que é um instrumento importante do inter-regionalismo europeu, não é vista como prioridade pelo Brasil: o Brasil buscou um comportamento regional autônomo; e a parceria estratégica Brasil-UE é considerada pelos brasileiros como o melhor mecanismo de interação com a ue.

Por fim, apesar dos limites, a rede de instituições e padrões de comportamento construída no decorrer dos mandatos de Lula não foi posta em xeque e seguiu sendo considerada um instrumento importante no campo da cooperação regional e, em caso de crises políticas, seguiu sendo utilizada como mecanismo de busca de consensos. Os vínculos brasileiros com países vizinhos estão estabelecidos e ramificados por diferentes esferas governamentais dando um caráter de longo prazo para as ações brasileiras na região.

No que diz respeito ao Mercosul, a posição adotada durante o governo de Lula foi mantida: não é prioridade, mas sua defesa é necessária para administrar as relações do Brasil com países vizinhos. E o bilateralismo que caracteriza as relações intrabloco seguiu em curso. Mas suas dificuldades comerciais cresceram trazendo um complicador para a dimensão de integração econômica. Os obstáculos às exportações brasileiras não foram resolvidos e as medidas estatizantes do Governo argentino afastaram investimentos brasileiros do país. O governo de Dilma Rousseff mostrou menos disposição para fazer concessões ao parceiro no campo econômico e os atritos não foram solucionados. Os avanços apontaram para áreas não comerciais e foi-se buscando espaços para a expansão industrial e o desenvolvimento de infraestrutura.

As negociações entre o Mercosul e a União Europeia para assinatura do acordo de associação são um exemplo a destacar. Na medida em que enfrentou dificuldades em avançar sobretudo por resistências da Argentina (a Venezuela ficaria fora do acordo, a priori), cresceram as pressões dentro do Brasil por agentes econômicos e, durante a campanha eleitoral, por políticos da oposição, para que o país abandonasse a Tarifa Externa Comum (tec) e assinasse um acordo sozinho com a ue. Esta alternativa, no entanto, foi afastada pelo Governo brasileiro pois significaria o fim definitivo da tec que, atualmente, apesar de todas as limitações, ainda atua como fator de coesão do bloco. A aproximação da Argentina com a China é visível e paira como uma ameaça aos produtos manufaturados brasileiros exportados para o país vizinho. Também a ue continua a rechaçar a principal demanda brasileira de abertura do mercado agrícola europeu, enquanto as reivindicações europeias de abertura em determinados setores de industrializados e de serviços e licitações públicas continuam sendo negadas pelo governo brasileiro.

O Parlasul, por sua vez, não avançou e teve a aplicação de seu tratado constitutivo adiada20. A crise e o afastamento temporário do Paraguai, assim como a entrada da Venezuela, refletiram na imobilidade do Parlasul. No campo político, porém, a aproximação a posições argentinas teve um importante papel compensador das diferenças econômicas. Seguiu sendo fundamental para o Governo brasileiro manter estreitos laços de cooperação com a Argentina que evitassem o renascimento de rivalidades. No início do governo de Rousseff os então três parceiros do Mercosul atuaram em conjunto frente à crise política no Paraguai, que resultou em afastamento temporário do país e, surpreendentemente, na incorporação definitiva da Venezuela como membro pleno. No entanto, frente à crise venezuelana, o Mercosul ficou paralizado e os intentos de solução partiram da unasul.

Apesar dos desencontros, o bloco seguiu uma perspectiva de ampliação. Além da Venezuela, a Bolívia solicitou a entrada no bloco também como membro pleno sem abandonar a Comunidade Andina. Guiana e Suriname assinaram acordos de associação completando o quadro marco para a formação de uma área de livre comércio coincidente com o subcontinente.

 

PERSPECTIVAS PARA O PRÓXIMO MANDATO

Em termos objetivos, o Brasil diminuiu seu peso na política internacional após os quatro anos do primeiro mandato de Dilma Rousseff. O papel proativo assumido durante o governo anterior e a participação em debates sobre diferentes temas da política internacional deram lugar a movimentos espasmódicos, sem uma continuidade, sem um projeto de inserção estratégica de mais longo prazo. No processo decisório, o papel de agenda setting que poderia ser da Presidência ou do Itamaraty, não ficou com nenhum dos dois.

Embora não seja objeto de consenso no país, na campanha eleitoral, a política externa brasileira não foi um tema debatido. Registaram-se apenas algumas breves menções críticas do candidato Aécio Neves, durante o período de campanha para o segundo turno sobre as relações brasileiras com Cuba e a questão da Tarifa Externa do Mercosul. Atores políticos da oposição acusaram a política externa de Rousseff de «ideológica» ou «partidarizada»21. A revista Política Externa publicou um número com entrevistas aos três principais candidatos à presidência sobre o tema, mas Dilma Rousseff não respondeu às perguntas endereçadas22. No discurso após o anúncio da vitória, falou de mudanças, mas não fez menção à política externa.

 

Data de receção: 8 de outubro de 2014| Data de aprovação: 11 de novembro de 2014

 

NOTAS

1 Os autonomistas formam uma corrente de pensamento no Itamaraty que defende que o país tenha um comportamento mais proativo e autônomo na política internacional, que ganhou destaque durante o governo de Lula. Sobre o tema ver SARAIVA, Miriam G. – «Continuidade e mudança na política externa brasileira. As especificidades do comportamento externo brasileiro de 2003 a 2010». In Relações Internacionais, N.º 37, 2013, pp. 63-78.

2 Como o caso das negociações da União Europeia com os Estados Unidos (t tip) para o acordo transatlântico é um exemplo importante.

3 Spektor, Matias – «Diplomacia de transição». In Folha de São Paulo, 29 de outubro de 2014. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/matiasspektor/2014/10/1540019-diplomacia-da-transicao.shtml

4 Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social. O Bndes é uma empresa pública federal cuja função principal é o financiamento de investimentos a longo prazo em todos os segmentos da economia. As políticas do Bndes incluem dimensões sociais, regionais e ambientais.

5 Veiga, Pedro da Motta, e Rios, Sandra Polónia – «A política externa no governo Dilma Rousseff: os seis primeiros meses». In Brevíssimos CINDES, N.º 32, 2011.

6 Celestino, Helena – «Sedução, a falta que ela faz». In O Globo, 5 de outubro de 2014, p. 55.

7 Spektor, Matias – «Diplomacia de transição».

8 Ibidem.

9 Gratius, Susanne, e Grevi, Giovanni – «Brazil and the eu: partnership on security and human rights?». In Policy Brief N.º153, Fride, 2013, p. 4.

10 Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.

11 Luiz Alberto Fgueiredo é o chanceler brasileiro desde 2013. Cf.. Figueiredo, Luiz Alberto – «O uso da força nas relações internacionais». In Folha de São Paulo, 8 de outubro de 2014. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2014/10/1528992-luiz-alberto-figueiredo-o-uso-da-forca-nas-relacoes-internacionais.shtml

12 Jesus, Diego S. V. de – «The Benign Multipolarity: Brazilian foreign policy under Dilma Rousseff». In Journal of International Relations and Foreign Policy. Vol. 2, N.º 1, 2014, pp. 19-42.

13 Ibidem.

14 Leite, Iara C. – O Envolvimento da Embrapa e do Senai na Cooperação Sul-Sul: Da Indução à Busca pela Retroalimentação. Tese de doutoramento em Ciência Política, iesp/uerj, 2013.

15 Gratius, Susanne, e Grevi, Giovanni – «Brazil and the eu: partnership on security and human rights?».

16 Spek tor, Matias – «Diplomacia de transição».

17 Evo Morales se queixou da falta de uma visita oficial da Presidente Dilma Rousseff.

18 «América do Sul perde fatia nos investimentos externos do Brasil», 3 de agosto de 2013. In Folha de São Paulo, Caderno Mercado 2, p. 5: informa que a participação da América do Sul no total de investimentos externos brasileiros caiu de 14,3 por cento no primeiro semestre de 2012 para 5,7 por cento no mesmo período de 2013.

19 Cf. Malamud, Andrés, e Gardini, Gian Luca – «Has Regionalism peaked? The Latin American Quagmire and its les-sons». In The International Spectator: Italian Journal of International Affairs. Vol. 47, N.º 1, 2012, pp. 116-133.

20 Malamud, Andrés, e Dri, Clarissa – «Spillover effects and supranational parliaments: the case of Mercosur». In Journal of Iberian and Latin American Research. Vol. 19, N.º 2, 2013, pp. 224-238.

21 Embora não expliquem bem de que tipologia se trata.

22 Ver Política Externa. Vol. 23, N.º 1, julho/agosto de 2014, p. 10. Disponível em: http://www.politicaexterna.com.br.