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Relações Internacionais (R:I)
versão impressa ISSN 1645-9199
Relações Internacionais no.44 Lisboa dez. 2014
RECENSÕES
Para uma revisão da história dos laços entre o socialismo do Norte e Sul da Europa
Rui Lopes
Investigador no Instituto de História Contemporânea da FCSH-UNL e autor do livro West Germany and the Portuguese Dictatorship, 1968-1974: Between Cold War and Colonialism (Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2014). Deu aulas na London School of Economics and Political Science e na Goldsmiths, University of London. Entre 2011 e 2013, foi editor da revista Cold War History.
Antonio Muñoz Sánchez, El amigo alemán – El SPD y el PSOE de la dictadura a la democracia, Barcelona, RBA, 2012, 500 páginas.
O título deste livro esconde a riqueza do seu tema e abordagem. Tal como está formulado, identifica corretamente o objeto central do estudo, nomeadamente o apoio dado pelo partido social-democrata da Alemanha Ocidental, SPD, ao partido socialista espanhol, PSOE, durante a ditadura franquista e subsequente processo de democratização. Mais do que contribuir para um aprofundamento da história das relações institucionais destes dois partidos, no entanto, o trabalho de Antonio Muñoz Sánchez proporciona um olhar multifacetado e, nalguns aspetos, revisionista quer sobre os movimentos social democratas alemão e espanhol, quer sobre a evolução política de Espanha durante a mudança de regime. Tem ainda especial relevância para quem se interesse pelo período simultâneo em Portugal, dada a interligação entre os atores e eventos dos dois países.
UMA ABORDAGEM CALEIDOSCÓPICA E MINUCIOSA
O principal mérito do livro reside na sua preocupação em contextualizar e multilateralizar as relações do SPD e do PSOE. Embora os atores centrais sejam as elites destes partidos, Muñoz Sánchez tem em conta toda uma constelação de agentes periféricos mas relevantes, tais como os sindicatos, a comunidade emigrante espanhola na Alemanha, a Fundação Friedrich Ebert (associada ao SPD, mas com um estatuto semiautónomo) e os sucessivos governos de Bona e Madrid. Este esforço é tornado possível devido a um impressionante trabalho de pesquisa em vários arquivos públicos e privados, bem como uma vasta bibliografia e entrevistas a dois importantes intervenientes alemães (Veronika Isenberg, do Departamento de Relações Internacionais do SPD, e Günter Grunwald, o então diretor da Fundação Friedrich Ebert). O resultado é uma narrativa complexa, ainda que apresentada de forma clara, situando constantemente as estratégias dos dois partidos no labirinto político da época.
Embora no centro da obra esteja a transição pós-franquista, Muñoz Sánchez recua até 1962, ano em que o governo de Madrid solicitou negociações com a Comunidade Económica Europeia (cee). Este ato encorajou uma mudança de atitude no spd, partido tradicionalmente hostil perante o franquismo, cuja chegada ao poder era apresentada como fruto vergonhoso da intervenção nazi na Guerra Civil de Espanha (p. 19). O primeiro capítulo foca-se então nas diferentes perspetivas face à ditadura ao longo da década de 1960. Enquanto o psoe (dirigido no exílio por Rodolfo Llopis) mantinha uma posição combativa, exigindo a denúncia e isolamento do regime de Franco pela comunidade internacional, o spd desenvolveu uma doutrina segundo a qual a aproximação de Espanha às potências centrais do continente poderia traduzir-se numa progressiva «europeização» da sua economia e sociedade, estimulando aspirações democráticas (pp. 23-24). Estas posições divergentes, bem como a boa impressão causada por Enrique Tierno Gálvan, fundador do rival psi (Partido Socialista del Interior), conduziram a um distanciamento claro entre as elites do spd e o psoe.
O segundo capítulo aborda o início dos anos 1970, altura em que o psoe atravessou um processo de cisão e renovação, encarado com ceticismo pelos social-democratas alemães, que lideravam então uma coligação governamental sob a chancelaria de Willy Brandt. O autor detalha a complicada articulação por parte da direção do spd face à realpolitik do seu próprio governo, à tentativa da Internacional Socialista de conciliar as diversas forças do socialismo espanhol e ao ativismo interno encabeçado pelo político Hans Matthöfer (que entre outras iniciativas ajudou a fundar a fascinante e controversa revista Exprés Español – pp. 87-97).
O livro põe assim em causa o lugar-comum segundo o qual a cee e os partidos socialistas europeus auxiliaram o combate do psoe contra a ditadura de Franco (pp. 73-74). Por um lado, conclui-se que «o enorme caudal de solidariedade da esquerda europeia e alemã foi desperdiçado pelo socialismo espanhol por causa do sectarismo desta família antifranquista» (pp. 396-397). Por outro lado, revela-se que o spd, o mais poderoso desses partidos, considerou que uma postura branda para com Madrid seria a melhor via para promover a reforma do sistema espanhol – uma variação da estratégia que o spd viria a aplicar em relação os países do Leste europeu, a chamada ostpolitik. Consequentemente, Muñoz Sánchez vê na colaboração que se dá entre estes dois partidos a partir de 1974, não a sequência lógica de longas e frutíferas relações históricas – ao contrário do que afirma a historiografia tradicional –, mas sim o fruto da súbita crise política no Sul europeu. Este ponto é ilustrado no terceiro capítulo, que trata da reaproximação entre o spd e o psoe (a fação renovada de Felipe González) nos últimos meses de liderança franquista, motivada em grande parte pela preocupação alemã com uma potencial ascensão comunista na sequência da revolução de 25 de abril em Portugal, preocupação essa que foi habilmente explorada por González.
Para Muñoz Sánchez, se o apoio externo durante a ditadura é tipicamente sobrevalorizado, já no que se refere ao período da transição a memória histórica socialista tende a desvalorizá-lo, atribuindo quase exclusivamente à direção do psoe o notável renascimento do partido (p. 400), mito que este estudo procura corrigir ao elucidar o contributo crucial dos social-demo-cratas alemães. Assim, a segunda metade do livro dedica-se ao período que vai desde a morte de Franco em novembro de 1975 às eleições gerais de junho de 1977. O quarto capítulo examina o contributo da Fundação Friedrich Ebert para a reconstrução do psoe, com o objetivo de o tornar uma força hegemónica de esquerda que contivesse o Partido Comunista de Espanha (pce). Aqui, Muñoz Sánchez descreve não apenas o papel concreto da fundação em termos de financiamento e formação de quadros, mas também um efeito mais profundo: este apoio, argumenta o autor, promoveu no grupo de Felipe González a convicção de que o psoe estaria bem posicionado para as primeiras eleições democráticas, reforçando a sua confiança nas virtudes do processo de reforma em curso e a sua aversão a uma rutura frentista ao lado do pce (p. 264). Por fim, o último capítulo realça o impacto do partido espanhol na política externa da coligação governativa de Bona (ainda encabeçada pelo spd, mas agora dirigida pelo chanceler Helmut Schmidt). O Governo alemão intercedeu quer junto da cee quer junto de Madrid para salvaguardar os interesses do psoe e da central sindical socialista ugt, gestos particularmente importantes num clima em que o reformismo madrileno era ainda vacilante – foi graças a esta triangulação, por exemplo, que se negociou um vantajoso compromisso secreto relativamente à autorização de realização do congresso do psoe em território espanhol, em dezembro de 1976 (pp. 339-351).
Em geral, Muñoz Sánchez encontra um balanço eficaz entre a multidão de agentes. Apesar do destaque na pitoresca capa do livro, Willy Brandt é apenas mais uma peça no xadrez diplomático, não o principal protagonista (aliás, os seus governos recebem relativamente pouca atenção). O autor capta os traços gerais de várias figuras-chave, tais como a intransigência de Llopis, o engajamento idealista de Matthöfer, a capacidade de adaptação de Hans-Eberhard Dingels (funcionário responsável pelas relações internacionais do spd) e a posição simultaneamente antifascista e pró-espanhola de Brandt, este último adequadamente descrito como sendo «capaz como poucos estadistas do seu tempo de combinar harmoniosamente o mais puro pragmatismo com projetos visionários de paz e democracia planetária» (p. 66). O espaço dado a cada um dos atores é justificável, ainda que natural-mente discutível – as descrições detalhadas dos múltiplos relatórios e encontros fazem com que longas passagens sejam de interesse bastante específico. Note-se ainda que, alternando entre as perspetivas dos dois partidos, o autor reconhece o caráter assimétrico da sua relação mas evita retratar o psoe como inteiramente submisso face ao apoio externo. No equilibrado relato de Muñoz Sánchez, o partido espanhol aparece como agente autónomo e não como mero instrumento da agenda dos alemães, ainda que sejam parcialmente validadas as acusações de dependência financeira feitas na altura (as quais, aliás, levaram os socialistas a manter a colaboração o mais discreta possível – pp. 256, 259-262).
CONTRIBUTOS PARA ALÉM DO CASO ESPANHOL
Como vimos, as principais conclusões do livro referem-se ao peso do exterior no processo de transição espanhol, pelo que serão particularmente úteis para historiadores especializados neste tema, bem como para estudiosos de relações internacionais interessados em teorias sistémicas sobre transição. Não obstante, dado o caráter inovador das descobertas, pedem talvez uma análise mais ambiciosa. Aproveitando o esforço de reconstrução das ações e motivações do lado alemão, valeria a pena interrogar o potencial deste caso de estudo para ilustrar as dinâmicas do próprio spd. Nesse sentido, as disputas internas propiciadas pela radicalização da sua juventude partidária mereceriam um olhar mais atento, em particular o congresso de abril de 1973 em Hamburgo, onde as relações de Bona com Madrid foram objeto de votação. Poderiam também ter sido alvo de reflexão mais profunda as implicações da convicção das elites do spd de que a social-democracia alemã possuía um modelo exportável de modernidade socioeconómica. Para além disso, a par do paralelo – perspicazmente identificado pelo autor – entre a política para com a ditadura espanhola e a ostpolitik, seria também de ter em conta o encadeamento entre estas políticas: no contexto da Guerra Fria, a República Federal da Alemanha dificilmente poderia adotar em relação aos regimes de Leste uma abertura significativamente maior do que aquela reservada para um regime enraizado no bloco ocidental, como era o caso de Espanha (ainda para mais naquele que foi provavelmente o período áureo das relações internacionais do franquismo). Mais tarde, a articulação do spd com os seus parceiros na Internacional Socialista e na cee permitiria um olhar privilegiado sobre o anticomunismo (neste caso, antieurocomunismo) da social-democracia europeia em plena détente. Tais pontos, ora implícitos, ora mencionados de passagem no texto, se explorados de modo mais desenvolvido e sistemático, poderiam ter robustecido o valor deste estudo.
A par do referido, esta obra tem importantes mais-valias para um público nacional ou interessado na história de Portugal. Antes de mais, tal como em outros contextos, Espanha é um ponto de comparação imprescindível para quem queira pôr em perspetiva o caso português. Para além disso, embora o livro acrescente pouco no que toca ao período tardio do salazarismo e marcelismo1, aprofunda o conhecimento sobre o papel da Alemanha no movimento socialista português durante a revolução. O contributo nessa matéria não é tão original: ao contrário do que se passa com o psoe, em Portugal a memória histórica do Partido Socialista continua a enfatizar o legado dos seus apoios internacionais durante este período (aliás, o contraste parece ter sido notório já na altura – pp. 189-190). Ainda assim, ao abordar a ajuda do spd nas campanhas eleitorais de Mário Soares em 1975 e 1976, Muñoz Sánchez complementa e corrobora os poucos estudos significativos realizados sobre esse tema, em particular os trabalhos da historiadora Ana Mónica Fonseca. Numa outra perspetiva, o livro identifica também pontos de interseção entre os eventos em Portugal e a sua narrativa principal. Por exemplo, foi durante a visita a Lisboa em outubro de 1974 que Willy Brandt conheceu pessoalmente Felipe González (pp. 159-160).Acima de tudo, o autor dá particular destaque ao filtro da experiência portuguesa como fator determinante para compreender a posição alemã. Para além do medo da «portugalização» de Espanha no sentido de erupção revolucionária e esquerdista (pp. 150-158, 306), a preocupação sobre a postura hesitante de Madrid levou a elite do spd a comparar a sucessão de Franco pelo rei Juan Carlos com a de Salazar por Marcelo Caetano (pp. 312-313). Adensa-se deste modo a crescente historiografia sobre o impacto do 25 de abril na transição espanhola. Por tudo isto, o livro de Antonio Muñoz Sánchez é recomendável não apenas a quem estuda a história recente de Espanha, do psoe ou do spd, mas também a quem procura enquadrar a dimensão internacional da Revolução dos Cravos.
NOTAS
1 A esse respeito, leia-se antes, do In Portuguese Studies Review. N.º 13, mesmo autor, «La socialdemocracia Vol. 1-2, 2005, pp. 477-503.alemana y el Estado Novo, 1961-1974».