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Relações Internacionais (R:I)
versão impressa ISSN 1645-9199
Relações Internacionais no.45 Lisboa mar. 2015
A GUERRA NA UCRÂNIA
As dimensões interna e internacional da crise na Ucrânia
Domestic and external dimensions of the Ukrainian crisis
Vanda Amaro Dias
Aluna do Programa de Doutoramento em Política Internacional e Resolução de Conflitos da Universidade de Coimbra e bolseira da Fundação de Ciência e Tecnologia (SFRH/BD/72865/2010). Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais, especialização em Estudos Europeus, e licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Nova de Lisboa.
RESUMO
Em novembro de 2013, as ruas de Kiev foram palco de uma onda de manifestações que reclamavam uma maior aproximação da Ucrânia à União Europeia, bem como um compromisso real com reformas institucionais. Não obstante a clara conexão à situação interna do país, a crise da Ucrânia não pode ser dissociada do quadro geopolítico e de segurança em que Kiev se insere. Com o objetivo de lançar um olhar sobre a imbricada relação entre as dinâmicas endógenas e exógenas em jogo na crise da Ucrânia, este artigo começa por desconstruir a dimensão interna do conflito, para depois analisar como a dimensão externa contribuiu para o desenrolar dos eventos. O artigo termina com algumas reflexões finais sobre a crise ucraniana e as suas consequências para a paz e segurança europeia.
Palavras-chave: Ucrânia, Rússia, União Europeia, NATO.
ABSTRACT
In November 2013, Kiev was the stage of a wave of demonstrations demanding Ukraine’s association with the European Union, as well as a commitment with institutional reforms in the country. Despite the straight connection to Ukraine’s internal situation, this crisis cannot be dissociated from the country’s broader geopolitical and security framework. In that regard, and aiming at shedding light on the Ukrainian crisis exogenous and endogenous dynamics, this paper starts by deconstructing the conflict’s internal dimension. It follows by analysing how its external dimension has contributed to the events’ unfolding. The paper finishes with some final reflexions on the Ukrainian crisis and its overall consequences for European peace and security.
Keywords: Ukraine, Russia, European Union, NATO.
Em novembro de 2013, as ruas de Kiev foram palco de uma onda de manifestações que reclamavam uma maior aproximação da Ucrânia à União Europeia (UE), bem como um compromisso real com reformas institucionais, nomeadamente o combate à corrupção, ao abuso de poder, ao nepotismo, à desigualdade socioeconómica e à violação de direitos humanos no país.
O movimento «Euromaidan», como ficou conhecido, parece ter sido despoletado pela decisão das elites políticas em Kiev adiarem a assinatura do Acordo de Associação com a UE, que coincidiu com a celebração de um generoso, ainda que pouco transparente, acordo económico com a Rússia1.
Após três meses de confrontos marcados por um escalar da violência no terreno e uma gestão pouco eficaz do conflito, a 21 de fevereiro de 2014, o então Presidente Viktor Yanukovitch e os líderes da oposição assinaram um acordo mediado pela UE, que visava colocar termo à crise política na Ucrânia. Todavia, nos dias seguintes, Viktor Yanukovitch partia para o exílio e o Parlamento ucraniano votava a destituição dos seus poderes, ao mesmo tempo que elegia o governo interino que haveria de gerir o país até às eleições legislativas de maio de 2014.
Percecionando os eventos na sua vizinhança próxima como um esquema ocidental para promover reformas em Kiev contrárias aos interesses russos e promover a aproximação da Ucrânia às instituições euro-atlânticas, Moscovo envolveu-se desde cedo nesta crise. O objetivo era reverter as dinâmicas em curso na Ucrânia e assegurar a manutenção do país na sua esfera de influência. O político e militar a movimentos separatistas no Leste e Sul da Ucrânia e a anexação da Crimeia a 18 de março de 2014 constituem os pontos mais altos da estratégia russa na região.
Não obstante a clara conexão à situação interna do país, a crise da Ucrânia não pode ser dissociada do quadro geopolítico e de segurança em que Kiev se insere. Este artigo visa explorar a complexidade inerente a este fenómeno. Como tal, e a fim de lançar um olhar sobre a imbricada relação entre as dinâmicas endógenas e exógenas em jogo nesta crise, o artigo começa por desconstruir a dimensão interna do conflito, para depois analisar como a dimensão externa contribuiu para o desenrolar dos eventos. O artigo termina com algumas reflexões finais sobre a crise ucraniana e as suas consequências para a paz e segurança europeia.
A DIMENSÃO INTERNA DA CRISE UCRANIANA
O final da Guerra Fria implicou consideráveis transformações geoestratégicas e geopolíticas a nível regional e global. Desde logo, o desmembramento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) deu origem a uma série de novas entidades políticas. Neste contexto, a Ucrânia emergia como um Estado independente, não obstante a sua significativa diversidade geográfica e social.
Desde então, este país de suma importância estratégica no quadro geopolítico e geoestratégico europeu alargado embarcou numa quádrupla transição: política, económica, institucional e identitária2. No que concerne à política externa, Kiev tem oscilado entre uma maior aproximação ora à UE, ora à Rússia, consoante os seus interesses e perceções nos diferentes momentos.
Não obstante este processo de transição, o que se verificou na prática foi que os líderes políticos ucranianos falharam na modernização política e económica do país. A corrupção e a desigualdade socioeconómica escalaram para níveis inaceitáveis e o fosso entre pró-europeus e pró-russos aumentou consideravelmente3. Por outro lado, as ligações pouco transparentes dos oligarcas ucranianos à Rússia, sobretudo no setor energético, agravaram os níveis de dependência do país, deixando-o vulnerável a pressões políticas e económicas por parte de Moscovo4.
A débil situação socioeconómica, aliada às flutuantes opções de política externa da Administração de Viktor Yanukovitch, que levaram à recusa em assinar o Acordo de Associação com a UE em prol de uma maior aproximação à Rússia, abriu caminho para a mobilização da sociedade civil ucraniana na praça Maidan, em Kiev.
O movimento «Euromaidan» destaca-se pela sua heterogeneidade, bem como pela visibilidade que atribui à sociedade civil na escolha dos rumos políticos da Ucrânia. Este movimento juntou classes trabalhadoras, oligarcas e ativistas políticos nos protestos contra o Governo. Ainda que este movimento tenha sido inicialmente associado a um sentimento nacionalista exacerbado, uma desconstrução das dinâmicas e discursos que dele emanaram demonstra que, mais que um sentimento de ódio ou descriminação, o que uniu a sociedade civil ucraniana foi a vontade generalizada de encontrar um espaço onde a identidade ucraniana pudesse florescer de forma sustentada, independentemente dos interesses particulares das classes políticas corruptas que têm governado o país desde o fim da Guerra Fria5. Neste sentido, a crise ucraniana assume-se como uma tentativa de construir uma identidade nacional e definir o rumo político, económico e regional do país6. Por outro lado, este processo de maturação de uma consciência nacional e de reforma política institucional parece ser identificado com uma maior aproximação à UE. Apesar de as massas reunidas em Kiev demonstrarem um diminuto conhecimento das implicações inerentes à assinatura do Acordo de Associação com a UE que esteve na origem dos protestos, estas parecem associar a integração europeia a democracia, primado do direito, direitos humanos e boa governação7.
Os protestos massivos por parte da sociedade civil ucraniana despoletaram uma forte e violenta resposta por parte das forças policiais ligadas ao regime de Viktor Yanukovitch. Seguiram-se três meses de confrontos entre os manifestantes e as forças policiais. O escalar dos níveis de violência no terreno e a gestão pouco eficaz do conflito levaram o então Presidente Viktor Yanukovitch e os líderes da oposição a assinar um acordo mediado pela UE que visava colocar termo à crise política na Ucrânia. Este acordo, assinado a 21 de fevereiro de 2014, previa a limitação dos poderes presidenciais, a realização de eleições e a desmobilização das forças da oposição ao Governo de Kiev. Todavia, nos dias seguintes, o Presidente em funções partia para o exílio e o Parlamento ucraniano votava a destituição dos seus poderes, ao mesmo tempo que elegia o governo interino que haveria de gerir o país até à realização de novas eleições legislativas.
Moscovo viu com desconfiança os eventos na sua vizinhança próxima, que considerou serem parte de um esquema ocidental para promover reformas contrárias aos interesses russos e promover a aproximação da Ucrânia às instituições euro-atlânticas. Visando reverter as dinâmicas em curso na Ucrânia e assegurar a manutenção do país na sua esfera de influência, a Rússia envolveu-se desde cedo nesta crise. Apesar de ter usado um vasto leque de instrumentos económicos e diplomáticos para atingir os seus objetivos, o apoio político e militar a movimentos separatistas no Leste e Sul da Ucrânia e a anexação da Crimeia a 18 de março de 2014 constituem os pontos mais significativos da sua estratégia na região.
Não colocando fim à crise ucraniana, a anexação da Crimeia veio contribuir para um escalar dos níveis de tensão no Sul e Leste da Ucrânia. À medida que movimentos separatistas pró-russos, apoiados por Moscovo, desencadeavam conflitos violentos, o novo Presidente em funções na Ucrânia, Petro Poroshenko, começou a armar uma nova «guarda nacional» para defender o país de investidas de «grupos extremistas»8. Para além disso, o novo Governo em Kiev comprometeu-se a encetar uma série de reformas com vista a melhorar a situação do país e minorar os níveis de descontentamento da sua população. No entanto, estas reformas são difíceis de implementar e requerem um esforço para dar resposta aos múltiplos desafios políticos e económicos que Kiev está com dificuldades em gerir9.
Simultaneamente, Moscovo reunia uma considerável força militar na fronteira com a Ucrânia e encetava esforços para desestabilizar uma economia já de si fragilizada10. O conflito na região de Donbas acabou por alterar ainda mais as características da crise ucraniana. Se até então os conflitos assumiam uma natureza híbrida, integrando simultaneamente forças voluntárias e irregulares, com a eclosão de conflitos nesta região parece assistir-se à emergência de uma guerra convencional de facto entre forças armadas regulares ucranianas e o exército russo. Ainda que Moscovo negue oficialmente a presença de forças militares em solo ucraniano, informações recentes apontam para o facto de os rebeldes pró-russos disporem de armamento que só pode ser proveniente das Forças Armadas russas. Para além disso, análises sobre o conflito indicam que os separatistas pró-russos admitem o envolvimento das Forças Armadas russas no conflito, tanto ao nível do fornecimento de armas como da disponibilização de militares no terreno.
Após algumas tentativas falhadas de chegar a um acordo político que estabelecesse o cessar-fogo nas zonas de conflito no Sul e Leste ucraniano11, os líderes da Rússia, da Ucrânia, da Alemanha e da França conseguiram promover um acordo com os separatistas ucranianos, na cidade de Minsk, a 11 de fevereiro de 2015. O acordo de Minsk foi estabelecido na base do respeito pela integridade territorial e a soberania da Ucrânia e previa um cessar-fogo a partir de 15 de fevereiro, a retirada de artilharia pesada, a criação de uma zona de segurança e a entrega do controlo total da fronteira à Ucrânia até ao final de 201512. Contudo, o sucesso desde acordo ficou desde logo comprometido por uma ofensiva lançada pelos rebeldes pró-russos imediatamente após a assinatura do mesmo e por relatos que testemunham a entrada de equipamento pesado russo na Ucrânia13.
O envolvimento da comunidade internacional na gestão do conflito tornou-se claro. Quer pelo peso que a Ucrânia tem no xadrez político e de segurança europeu alargado, quer pelo envolvimento direto ou indireto da Rússia nestes eventos, a verdade é que a crise ucraniana extravasou os limites nacionais e assume-se hoje como um episódio incontornável das relações internacionais. A secção seguinte deste artigo visa analisar a dimensão externa da crise ucraniana, a fim de lançar um olhar mais esclarecido sobre as múltiplas dinâmicas em jogo neste cenário.
A DIMENSÃO EXTERNA DA CRISE UCRANIANA: O PAPEL DA RÚSSIA, DA UE E DA NATO
Desde o início da crise ucraniana, vários foram os atores internacionais que se envolveram nos eventos despoletados a partir das manifestações na praça Maidan, em Kiev, em novembro de 2013, desde líderes nacionais a organizações internacionais. A própria origem do movimento «Euromaidan» não pode ser dissociada da dimensão internacional, uma vez que um dos seus principais motores foi a oscilação das elites em Kiev entre a adoção de um rumo pró-europeu ou pró-russo para o país. Ainda que a UE e a Rússia sejam os atores envolvidos de maior relevo, muitos outros estão atualmente associados à gestão desta crise, nomeadamente os eua, a NATO, a OSCE e os líderes nacionais de vários estados. Para efeitos do presente artigo, e dada a complexidade inerente à desconstrução do contributo de cada um destes atores para o desenrolar dos eventos, optou-se por limitar a análise ao contributo de três atores centrais na eclosão e desenvolvimento da crise ucraniana: a Rússia, a UE e a NATO.
A Rússia tem tido um papel incontornável na crise ucraniana, encetando uma estratégia que visa proteger os interesses russos na região e enfraquecer o poder e legitimidade do novo Governo de Kiev. Análises sobre a temática oferecem explicações variadas sobre a atuação de Moscovo. Entre estas contam-se a necessidade de Vladimir Putin reforçar a sua popularidade doméstica; as ambições regionais russas que privilegiam a edificação de um bloco económico euro-asiático, cujo sucesso depende em certa medida da participação ou pelo menos da lealdade da Ucrânia; e a responsabilidade de proteger russos étnicos no espaço pós-soviético14. A par destas justificações para a intervenção política, económica e militar da Rússia no espaço pós-soviético, é de realçar uma linha de análise que vislumbra a anexação da Crimeia e o apoio russo a movimentos separatistas como um movimento reativo, despoletado pelos acontecimentos de novembro de 2013, ou ainda como uma extensão de um novo imperialismo russo, cujo objetivo último é a reunificação do espaço que outrora pertencera à URSS. Nesta última visão, a intervenção russa no conflito pode ainda ser interpretada como um aviso a todos os países do espaço pós-soviético que pensem em abandonar a órbita de influência russa em prol de uma maior aproximação às instituições euro-atlânticas15.
Ainda que o papel da Rússia na crise ucraniana possa ser visto como uma reação ao movimento «Euromaidan» e à ameaça que o mesmo parece representar para os interesses russos no espaço pós-soviético, reduzir a análise a esta dimensão acaba por negligenciar uma série de fatores que enriquecem a compreensão dos eventos na região. Muito embora a intervenção russa nesta crise tenha sido projetada como um evento inesperado, uma análise contextual das relações de Moscovo com os países da sua vizinhança demonstra que o Kremlin tem apostado na criação de condições favoráveis à sua intervenção no espaço pós-soviético, com o intuito de salvaguardar os seus interesses políticos e de segurança. Neste sentido, o papel da Rússia na crise ucraniana pode ser percecionado como um prolongamento da sua política externa tal como vem sendo desenvolvida desde os anos 2000.
Efetivamente, a Rússia tem-se revelado assertiva nas suas opções de política externa. Moscovo não está interessada em ter nas suas fronteiras qualquer clima de instabilidade política ou económica ou um reforço do poder de forças políticas russófobas que pos-sam colocar em causa a sua segurança nacional e regional. Para além disso, Moscovo quer evitar precedentes de remoção de governos em funções, sobretudo em prol de elites pró-europeias, de modo a não permitir um efeito de contágio na sua vizinhança que tenha potencial para colocar em perigo a sua posição de supremacia nas dinâmicas de poder e segurança no espaço pós-soviético16.
Isto sucede porque Moscovo tende a percecionar a independência e aproximação dos países da sua vizinhança às instituições euro-atlânticas como uma ameaça aos seus interesses regionais. Como tal, tem desenvolvido uma estratégia que passa pela utilização de recursos económicos, políticos e militares para assegurar que os mesmos se mantenham na sua esfera de influência17.
No seguimento desta lógica, Moscovo foi perentória a declarar o Governo de transição na Ucrânia, estabelecido no final de fevereiro de 2014, como ilegal e extremista18. Da mesma forma, ao sentir os seus interesses ameaçados, Moscovo não hesitou em usar as suas vantagens na península da Crimeia e no Sul e Leste ucraniano para influenciar as decisões políticas de Kiev. O objetivo primordial foi não só coagir os líderes políticos em Kiev a acomodar os interesses russos, mas também garantir o controlo de uma das mais importantes mais-valias para a Rússia na Ucrânia: o acesso ao mar Negro19.
Em geral, e à semelhança do que acontece um pouco por todos os conflitos «gelados» no espaço pós-soviético, a Rússia tem pouco interesse em promover a resolução dos conflitos no Sul e Leste ucraniano, uma vez que tal implicaria a eliminação de uma importante força de influência sobre as decisões políticas de Kiev20. Do mesmo modo, ainda que a ideia de reconstrução da Novorossiya esteja a ser difundida no discurso político e nos meios de comunicação social21, parece pouco provável que Moscovo almeje uma verdadeira emancipação dos territórios em conflito, já que também isso diminuiria a sua capacidade de influenciar os rumos políticos da Ucrânia. Para além disso, a independência destes territórios iria resultar na emergência de uma série de novas entidades políticas no espaço pós-soviético, implicando esforços adicionais para garantir a segurança da sua vizinhança e uma posição política em conformidade com os seus interesses regionais e globais. Nesse sentido, a própria anexação da Crimeia pode ser encarada mais como um mecanismo de coerção face à tomada de posse do Governo de transição em Kiev e à sua propensão pró-europeia, do que como um verdadeiro encorajamento ao separatismo na região22.
O envolvimento russo nos confrontos no Sul e Leste ucraniano parece ser incontestável. Ao contrário do que sucedeu na praça Maidan, não há evidências claras que as manifestações e a ocupação de edifícios públicos nestas regiões tenham tido origem na sociedade civil. Todavia, Moscovo tem demonstrado uma posição ambígua face aos eventos na Ucrânia. À medida que as regiões do Sul e Leste ucraniano demonstravam o seu desejo por uma maior autonomia em relação a Kiev, a Rússia manifestava o seu respeito pelos resultados, mas evitava cautelosamente reconhecer estes territórios como autónomos ou independentes. Isto demonstra que o Kremlin não está verdadeiramente interessado na desintegração da Ucrânia, por um lado, e, por outro, que a sua ambiguidade no apoio aos separatistas está a levar ao crescimento do fosso entre os mesmos e Moscovo23. Apesar de várias análises realçarem que os próprios movimentos separatistas na região parecerem mais interessados em obter um maior grau de autonomia do que em promover uma integração na Rússia24, estes estão conscientes da sua vulnerabilidade política e militar perante o Kremlin e veem com desconfiança esta ambiguidade. No geral, a atuação russa na crise ucraniana representa uma manifestação de poder com o intuito de manter a Ucrânia na sua esfera de influência. Não obstante, o novo Governo em Kiev tem resistido a estas dinâmicas de poder e atuado no sentido de garantir o que considera ser melhor para o futuro do país. Nesta ótica, iniciou uma série de reformas estruturais e assinou em junho de 2014, o Acordo de Associação com a UE, que continua a ser vista como um motor de estabilidade e prosperidade. Como resposta a esta situação, Moscovo tem reforçado o seu apoio às forças separatistas, bem como as suas forças militares nas zonas fronteiriças, com o objetivo de acentuar a instabilidade no país e, desta forma, condicionar as decisões políticas em Kiev25. Todavia, se daqui parecem ter resultado algumas concessões políticas que passam pela reforma constitucional e a descentralização do poder de tomada de decisão em território ucraniano, os efeitos na agenda internacional de Kiev parecem ser limitados, uma vez que, oficialmente, esta continua a privilegiar a aproximação às instituições euro-atlânticas, em conformidade com as exigências da sociedade civil26.
Perante o cenário de anexação da Crimeia e do apoio a movimentos separatistas em solo ucraniano, a comunidade internacional condenou publicamente a posição de Moscovo. Porém, ainda que esta anexação seja ilegal do ponto de vista do direito internacional, e que os líderes ocidentais tenham sido perentórios na sua condenação dos eventos, na prática optou-se por uma aceitação da situação de facto e pela concentração de esforços na prevenção de novos desafios à estabilidade e soberania ucraniana e, por extensão, a todos os países do espaço pós-soviético onde este cenário se pudesse repetir27.
No quadro da UE, numa cimeira extraordinária do Conselho Europeu, em 30 de agosto de 2014, apelou-se à retirada de todas as forças militares russas em território ucraniano, ao mesmo tempo que os líderes europeus se mostraram disponíveis para tomar medidas adicionais para resolver o conflito. Neste sentido, a UE impôs uma série de sanções económicas e entraves à emissão de vistos de oficiais russos e líderes separatistas no Leste e Sul ucraniano. É expectável que a UE continue a aplicar sanções económicas com o intuito de dissuadir as suas investidas na Ucrânia. Contudo, é incerto que os estados europeus consigam chegar a acordo noutras medidas a aplicar a Moscovo28. Ainda que os países que estiveram outrora sob dominação soviética, como a Polónia ou a Lituânia, reclamem uma estratégia mais dura, a Alemanha, a França e a Itália permanecem reticentes em agudizar as suas relações com a Rússia, por temerem retaliações políticas e, sobretudo, económicas. Por outro lado, o Presidente Putin já percebeu a hesitação e relutância europeia em avançar com medidas mais duras e parece estar preparado para absorver o choque económico imediato que possa advir das sanções impostas, pelo que estas correm o risco de se revelar ineficazes na resolução do conflito29. De facto, as sanções aplicadas até ao momento mostraram-se insuficientes quer para reverter a anexação da Crimeia, quer para atenuar a intervenção russa nos conflitos no Sul e Leste ucraniano30.
Desta forma, apesar de as declarações políticas irem no sentido de mostrar que a UE estava pronta para agir rapidamente, o que se tem verificado na prática é uma letargia nos processos de tomada de decisão e na sua capacidade para lidar com os eventos na sua vizinhança. No geral, a UE tem feito too little, too late no que respeita à crise ucraniana. Isto representa uma derrota da sua política externa e de segurança, não só por não conseguir assegurar a paz em solo europeu, mas também por ter revelado o seu fracasso na transformação da sua vizinhança numa zona de paz, estabilidade e prosperidade, baseada na aceitação de normas e valores europeus. Neste sentido, a Política Europeia de Vizinhança falhou no seu objetivo de transformar a vizinhança europeia e permanece incapaz de fornecer instrumentos ou mecanismos que permitiam lidar com a crise ucraniana de forma sustentada e eficaz31. Do mesmo modo, a crise ucraniana parece inaugurar uma nova fase das relações entre a UE e a Rússia, uma fase que substitui dinâmicas de cooperação por nuances de confrontação estratégica32.
Por seu turno, o papel da NATO na crise ucraniana tem sido mais nominal que efetivo. Isto deve-se, em parte, ao peso que os interesses norte-americanos têm na definição da agenda da organização. No contexto global, a Ucrânia representa um interesse marginal para Washington e é improvável que a situação se reverta nos anos vindouros. Neste sentido, é inócuo falar de uma estratégia norte-americana para a resolução do conflito ucraniano que vá para além da mera retórica política e da aplicação de sanções económicas33. No seio da NATO, tal como sucede na UE, os estados-membros demonstram interesses contraditórios no que toca a adotar medidas mais duras para penalizar a Rússia pela sua intervenção na Ucrânia. Por outro lado, o seu escopo de atuação é limitado, no sentido em que a ofensiva russa cai fora do âmbito do artigo v. Assim, ainda que a intervenção russa tenha levado o secretário-geral da NATO, Anders Fogh Rasmussen, a declarar a crise ucraniana como «a mais séria crise na Europa desde a queda do Muro de Berlim», uma atuação mais substancial por parte desta organização parece ser pouco provável a menos que isso coloque em risco direto algum dos seus estados-membros34.
A multiplicidade de atores envolvidos demonstra que a crise ucraniana é muito mais que um evento nacional. Trata-se de um conjunto de dinâmicas que englobam a insatisfação da sociedade civil ucraniana, mas também uma luta entre a Rússia e o Ocidente pela influência sobre um território de importância incontornável no quadro geopolítico europeu alargado. Contudo, a breve análise da intervenção de atores internacionais na crise ucraniana que aqui se efetuou demonstra que enquanto no plano europeu se traçam sanções contra Moscovo, se realizam avaliações do impacto da crise ucraniana e se engendram estratégias de coordenação entre a UE e a NATO, no terreno a Rússia constitui um dos principais motores do que pode ser considerado como verdadeira guerra em solo ucraniano35.
REFLEXÕES FINAIS
Os eventos que ocorreram na Ucrânia em novembro de 2013 parecem ter iniciado um novo capítulo no entendimento das relações de poder e de segurança no espaço europeu alargado. Com efeito, a particularidade desta crise alerta-nos para a complexidade dos conflitos do pós-Guerra Fria, sobretudo no espaço pós-soviético, ao mesmo tempo que deita por terra uma noção até então tomada como garantida: que a segurança em solo europeu era um dado adquirido36.
Ainda que as estruturas estatais de poder na região continuem a desempenhar um papel primordial, não podemos ignorar a intervenção de outros atores, como a sociedade civil e as instituições internacionais (e.g. UE e NATO), nem tão-pouco as imbricadas relações de poder e jogos de interesses que ocorrem neste espaço. Neste sentido, uma compreensão abrangente e informada dos eventos só pode ter lugar quando se traz para a análise dos mesmos as suas dimensões endógenas e exógenas.
A crise ucraniana surge como muito mais do que um mero desacato interno ou um movimento reativo da parte de Moscovo. Ela resulta da evolução e interseção de questões identitárias, políticas, socioeconómicas e geoestratégicas. Desta forma, a sua compreensão não é possível sem a análise do quadro geopolítico mais vasto em que Kiev se insere, bem como das perceções e interesses dos vários atores envolvidos nestes acontecimentos. Para além disso, esta é uma situação em permanente evolução e os seus efeitos no médio e longo prazo são ainda difíceis de prever. As dinâmicas presentes nesta crise são múltiplas e interagem constantemente umas com as outras. Por conseguinte, é provável que estejamos apenas a assistir ao início de uma série de mudanças estruturais que terão um impacto nos planos local, regional e até mesmo global37.
Não obstante os esforços da comunidade internacional, e em particular da UE e da NATO, o que se verifica é que a Rússia está a jogar com regras e interesses distintos38. Moscovo continua a ter uma visão realista da cena internacional, onde a segurança absoluta é uma condição sine qua non para a sua sobrevivência. Os países ocidentais foram apanhados de surpresa com os eventos na Ucrânia e não têm conseguido dar resposta a este desafio de forma satisfatória. Com efeito, as soluções apresentadas têm tomado a forma de sanções económicas e de diálogo político que, ainda que possam ter efeitos benéficos no longo prazo, demoram tempo a produzir resultados e não parecem exercer uma pressão real contra atos agressivos no curto prazo. Desta forma, a resolução desta crise parece estar dependente de um delicado processo que responda aos desafios internos e externos que estão na sua origem.
Data de receção: 5 de janeiro de 2015 | Data de aprovação: 17 de março de 2015
NOTAS
1 Freedman, Lawrence – «Ukraine and the art of crisis management». In Survival: Global Politics and Society. Vol. 56, N.º 3, 2014, PP. 7-42.
2 Kuzio, Taras, e Moroney, Jennifer – «Ukraine and the West: moving from stability to strategic engagement». In European Security. Vol. 12, N.º 2, 2001, PP. 49-62.
3 Braithwaite, Rodric – «Russia, Ukraine and the West». In The RUSI Journal. Vol. 159, N.º 2, 2014, PP. 62-65.
4 Charap, Samuel, e Darden, Keith – «Russia and Ukraine». In Survival: Global Politics and Strategy. Vol. 56, N.º 2, 2014, PP. 7-14.
5 Carroll, Jennifer – «This is not about Europe: reflections on Ukraine’s Euro-Maidan revolution». In Perspetives on Europe. Vol. 44, N.º 1, 2014, PP. 8-15.
6 Freedman, Lawrence – «Ukraine and the art of crisis management», PP. 7-42.
7 Emerson, Michael – «After the Vilnius fiasco: who is to blame? What is to be done?». In CEPS Essay. N.º 8, 21 de janeiro de 2014, PP. 1-19.
8 Charap, Samuel – «Ukraine: seeking an elusive new normal». In Survival: Global Politics and Strategy. Vol. 56, N.º 3, 2014, PP. 85-94.
9 International risis roup – «Eastern Ukraine: a dangerous Winter». In Europe Report. N.º 235, 18 de dezembro de 2014. Bruxelas: International Crisis Group.
10 Freedman, Lawrence – «Ukraine and the art of crisis management», PP. 7-42.
11 Gressel, Gustav – «The Ukraine-Russia war». In European Council on Foreign Relations. Commentary, 26 de janeiro de 2015.
12 «Acordo em Minsk para cessar-fogo, anuncia Vladimir Putin». In Observador. 12 de fevereiro de 2015. (Consultado em: 6 de março de 2015). Disponível em: http://observador.pt/2015/02/12/nao-ha-ainda-boas-noticias-em-minsk-russia-tem-exigencias-inaceitaveis/.
13 «Aplicação do acordo de Minsk “não será fácil”, diz Poroshenko». In DN Globo. 12 de fevereiro de 2015. (Consultado em: 6 de março de 2015). Disponível em: http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2015/02/12/kiev-e-rebeldes-assinam-acordo-para-aplicar-plano-de-paz-no-leste-da-ucrania.htm.
14 «Russia’s motives in Ukraine». In Strategic Comments. Vol. 20, N.º 4, 2014, PP. viii-ix.
15 Blank, Stephen – «From Eurasia with love, American foreign policy interests». In The Journal of the National Committee on American Foreign Policy. Vol. 36, N.º 3, 2014, PP. 162-174; Freedman, Lawrence – «Ukraine and the art of crisis management», PP. 7-42.
16 Charap, Samuel, e Darden, Keith – «Russia and Ukraine», PP. 7-14.
17 Dias, Vanda Amaro – «As relações da Rússia com a Ucrânia, Bielorrússia e Moldova: poder, dependências e assimetrias no espaço pós-soviético». In Freire, Maria Raquel, e Daehnhardt, Patrícia (eds.) – A Política Externa Russa no Espaço Euro-Atlântico: Dinâmicas de Cooperação e Competição num Espaço Alargado. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014, PP. 57-84.
18 Freedman, Lawrence – «Ukraine and the art of crisis management», PP. 7-42.
19 «Russia’s motives in Ukraine», PP. viii-ix.
20 Blank, Stephen – «From Eurasia with love, American foreign policy interests», PP. 162-174.
21 Blockmans, Steven – «How should the EU respond to Russia’s war in Ukraine?». In CEPS Commentary. 3 de setembro de 2014, PP. 1-5.
22 Freedman, Lawrence – «Ukraine and the art of crisis management», PP. 7-42.
23 International risis roup – «Eastern Ukraine: a dangerous Winter».
24 Hedenskog, Jakob – «Ukraine – challenges for the future». In Granholm, Niklas, Malminen, Johannes, e Persson, Gudrun – A Rude Awakening: Ramifications of Russian Aggression Towards Ukraine. Estocolmo: foi, 2014, PP. 51-55.
25 Freedman, Lawrence – «Ukraine and the art of crisis management», PP. 7-42.
26 Charap, Samuel – «Ukraine: seeking an elusive new normal», PP. 85-94.
27 Freedman, Lawrence – «Ukraine and the art of crisis management», PP. 7-42.
28 Blockmans, Steven – «How should the EU respond to Russia’s war in Ukraine?», PP. 1-5.
29 Dias, Vanda Amaro – «The EU and Russia: competing discourses, practices and interests in the shared neighbourhood». In Perspetives on European Politics and Society. Vol. 14, N.º 2, 2013, PP. 256-271.
30 Charap, Samuel – «Ukraine: seeking an elusive new normal», PP. 85-94.
31 Emerson, Michael – «After the Vilnius fiasco: who is to blame? What is to be done?», PP. 1-19.
32 Blockmans, Steven – «How should the EU respond to Russia’s War in Ukraine?», PP. 1-5.
33 Blank, Stephen – «From Eurasia with love, American foreign policy interests», PP. 162-174.
34 Brown, Bernard E. – «Europe – and NATO reack. In American Foreign Policy Interests: The Journal of the National Committee on American Foreign Policy. Vol. 36, N.º 3, 2014, PP. 201-209.
35 Blockmans, Steven – «How should the EU respond to Russia’s war in Ukraine?», PP. 1-5.
36 Blank, Stephen – «From Eurasia with love, American foreign policy interests», PP. 162-174; Freedman, Lawrence – «Ukraine and the art of crisis management», PP. 7-42.
37 Granholm, Niklas, e Malminen, Johannes – «A strategic game changer?». In Granholm, Niklas, Malminen, Johannes, e Persson, Gudrun – A Rude Awakening: Ramifications of Russian Aggression Towards Ukraine, PP. 9-15.
38 Braithwaite, Rodric – «Russia, Ukraine and the West», PP. 62-65.