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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.46 Lisboa jun. 2015

 

QUE MODELO DE SEGURANÇA ENERGÉTICA

 

Nota introdutória: Que modelo de segurança energética?

 

Teresa Ferreira Rodrigues* e António Costa Silva**

* Professora no Departamento de Estudos Políticos da FCSH-NOVA de Lisboa e Professora Convidada da NOVA Information Management School. Auditora de Defesa Nacional, 2008. Professora Associada com Agregação em Relações Internacionais. Membro da Direção do IPRI-UNL onde coordena a área dos Estudos Prospetivos. Membro de várias associações nacionais e internacionais no âmbito dos estudos demográficos e das relações internacionais. Responsável e membro de projetos de âmbito nacional e internacional, financiados nomeadamente pelo Ministério da Defesa Nacional, pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e por fundos Comunitários. Autora de centena e meia de artigos e oito livros publicados nas áreas das migrações, envelhecimento, energia, análise prospetiva e planeamento, globalização e segurança.

** Professor no Instituto Superior Técnico de Lisboa onde fez a agregação em Planeamento e Gestão Integrada de Recursos Energéticos. Licenciado em Engenharia de Minas pelo Instituto Superior Técnico de Lisboa e Mestre em Engenharia de Petróleos no Imperial College (Universidade de Londres). Doutorado pelo Instituto Superior Técnico e pelo Imperial College, com uma tese sobre «O Desenvolvimento de Modelos Estocásticos aplicados aos Reservatórios Petrolíferos». É o atual Presidente da Comissão Executiva do Grupo Partex Oil and Gas.

 

O mundo do século XXI assistirá inevitavelmente à consolidação de um novo modelo energético, que poderá vir a ser o paradigma de um modelo de economia sustentável. Com efeito, torna-se indispensável inovar no modo como se produzem, consomem e gerem os recursos energéticos. Daqui decorrem as potencialidades, mas também as preocupações, nomeadamente de segurança. É certo que nenhum ator pode almejar à liderança absoluta do processo em termos mundiais ou manter-se à margem face ao desenvolvimento de novos modelos energéticos, pelo que o grande desafio será garantir o maior grau possível de independência (soberania) energética, num contexto de interdependência (inevitável)1.

A segurança energética está na ordem do dia, em particular na Europa2. Com a situação tensa que se vive na Europa Oriental e Central, a guerra na Ucrânia, a anexação russa da Crimeia, o passado recente de utilização pela Rússia do abastecimento do petróleo e gás à Europa como arma geopolítica (como aconteceu em 2006, 2007 e 2009), as preocupações são múltiplas.

Estas preocupações são ainda ampliadas devido à situação no interior da Rússia, país que fornece mais de 40 por cento do petróleo e cerca de 25 por cento do gás que a Europa consome3. A Europa tem fragilidades energéticas estruturais conhecidas. Detém apenas um por cento das reservas mundiais de petróleo convencional e cerca de dois por cento das reservas de gás e vê a Rússia, o seu principal fornecedor, enredada num complexo problema geopolítico, com algumas nações vizinhas e com a Europa no seu conjunto. Acresce ainda a situação de crise económica profunda vivida naquele país, com a queda significativa do valor do rublo, a descida do preço do petróleo, que representa mais de 90 por cento das exportações russas e parte significativa das receitas do Estado, e as dificuldades sérias criadas pelas sanções internacionais em curso. O passado já demonstrou que esta conjugação de efeitos é dramática para a Rússia, como sucedeu em 2008 (última grande queda do preço do petróleo) ou entre 1986 e 1990, quando o declínio acentuado do preço do petróleo contribuiu para exponenciar os problemas estruturais da antiga União Soviética, tendo provocado o seu colapso.

A resposta encetada pela União Europeia (UE) para aumentar a sua segurança energética, que há muito deveria ter acontecido, é apostar de facto na criação do Mercado Único da Energia ou na União Energética. Não sabemos se desta vez a UE será capaz de passar da retórica à ação, uma vez que as tentativas no passado recente fracassaram4. Na verdade, a União Energética ou o Mercado Comum da Energia têm defrontado obstáculos diversos, que decorrem das diferenças nas políticas energéticas nacionais, da ausência de uma estratégia comum e de uma visão para o futuro, da ligação umbilical que existe entre alguns monopólios europeus (em particular alemães, franceses e italianos) e a Gazprom e do consequente domínio do mercado energético europeu pelos grandes monopólios. Existem propostas interessantes no novo projeto para a União Energética5, que pretendem evitar que os governos estabeleçam preços-limite abaixo do custo da energia e visam estabelecer planos regionais para lidar com interrupções da oferta e aumentar as ligações transfronteiriças. Estas ligações podem ser importantes para os países bálticos e para a Península Ibérica, que são de facto uma espécie de ilhas energéticas separadas do resto do Continente. No entanto, na Cimeira de Barcelona de 2002, a UE tinha fixado para 2014 a meta de 14 por cento das ligações transfronteiriças realizadas na Península Ibérica (em relação à capacidade total instalada) e o que aconteceu é que essas ligações se cifraram em 2014 em apenas 1,6 por cento, porque a França, para defender a sua indústria nuclear, sempre se opôs a esse objetivo. A realidade vai demonstrar nos próximos anos se algo mudou «no reino da Dinamarca». De qualquer forma, a União Energética ou o Mercado Energético Comum na Europa é uma resposta estratégica e estrutural profunda para aumentar a segurança energética do Continente e para dar mais competitividade à sua economia. Um mercado único aumenta a segurança da oferta e da procura, através da diversificação e do smoothing dos picos perturbadores, facilita as sinergias e as economias de escala e trava as manobras dos grandes abastecedores da Europa, em particular da Gazprom, que procuram sempre «dividir para reinar»6.

O conjunto de artigos sobre a segurança energética que a seguir são apresentados procuram discutir todos estes desenvolvimentos e avaliar o seu impacto em termos de futuro, para o continente europeu no seu conjunto e em particular para Portugal. Retoma-se a questão da segurança energética, o conceito ou conceitos atuais e a discussão de como os novos conteúdos que se desenham neste conceito estão a adaptar-se a uma nova era da energia, que se pretende que seja mais barata e mais abundante. Abordamos também o tema das componentes essenciais da segurança energética: a estabilidade dos preços, a segurança do abastecimento e a sustentabilidade ambiental. É discutida a necessidade de uma nova reformulação do conceito de segurança energética à luz das ameaças mais recentes, como a pirataria ou o ciberterrorismo, e as implicações para a segurança das redes, a influência dos desafios tecnológicos, as mudanças em curso, a pressão sobre os modelos tradicionais de negócio e a «guerra digital». Realiza-se uma breve análise sobre os desafios ao nível da Europa e de Portugal, numa ótica atual e prospetiva.

A Europa enfrenta hoje uma situação que pode ser favorável para resolver de vez as questões da sua segurança energética e da sua competitividade, na sequência da baixa do preço do petróleo (em função do excesso de oferta no mercado do shale gas e do shale oil nos Estados Unidos), das baixas taxas de juro (em função do programa de «Quantitative Easing» do Banco Central Europeu com a compra da dívida dos países europeus) e da depreciação do euro (que nunca esteve tão perto da paridade com o dólar, o que poderá constituir um estímulo adicional para a competitividade das exportações europeias).

Neste contexto, os preços da energia são essenciais. Mas apesar da queda do preço do petróleo, é possível afirmar que existe um fosso transatlântico nos preços da energia. O petróleo é cerca de 12 por cento mais barato nos Estados Unidos do que na Europa; o gás é cerca de duas vezes mais barato nos Estados Unidos do que na Europa e a eletricidade nos Estados Unidos é duas vezes mais barata do que em França e três vezes mais barata do que na Alemanha. Isto é, o facto de os Estados Unidos terem empreendido uma grande revolução tecnológica para desenvolver os seus recursos internos de shale gas e shale oil, quando a Europa rejeitou essa abordagem e, inclusive, o Parlamento francês aprovou uma lei a proibir uma das técnicas de produção, significa que a Europa tem uma espada de Dâmocles a pender sobre a sua competitividade.

A questão do abastecimento pode resolver-se no caso europeu com a diversificação dos fornecedores, a menor dependência da Rússia e a criação de um eixo energético no Atlântico potenciando o papel da Península Ibérica, que já concentra cerca de 50 por cento da capacidade de receção de gás natural liquefeito (GNL) na Europa. Mas tal exige a criação efetiva da União Energética ou do Mercado Comum Europeu da Energia e o reforço das interconexões transfronteiriças, em particular da Península Ibérica e desta à restante rede europeia. E não só das redes elétricas, mas também do sistema de pipelines para o escoamento do gás. Se tal não suceder, a Europa continuará muito dependente da Rússia e esta não hesitará em utilizar de novo a energia como arma geopolítica, a exemplo do que fez no passado. É evidente que esta arma pode não ser hoje tão poderosa como outrora, em termos dos efeitos multiplicadores que pode gerar, porque nos últimos anos os países europeus ampliaram a sua capacidade de armazenamento e podem hoje lidar de forma diferente com estas questões. Mas é imperioso resolver de facto a questão de forma estrutural7.

Em relação à sustentabilidade ambiental, a Europa tem sido o paladino da redução de emissões de co2. Mas apesar de todos os esforços, a retórica política, se não está ancorada em mecanismos de mercado, pode funcionar ao contrário. O que é extraordinário é que o continente europeu, que está na primeira linha da luta pela redução das emissões de co2 e cujos esforços têm sido notáveis, está nos últimos anos a aumentar as suas emissões, porque está a importar carvão barato dos Estados Unidos. Por seu turno, neste país a economia está em processo de gaseificação, isto é, de penetração acelerada do gás na geração elétrica e térmica (substituindo as centrais a carvão), mas também no sistema de transportes (em particular nos camiões de longo curso, nas frotas de táxis das grandes cidades e nos navios). O gás é o mais limpo dos combustíveis fósseis, produz 60 por cento menos emissões de co2 do que o carvão e cerca de 30 por cento menos que a gasolina e o gasóleo, quando utilizado nos veículos de transporte. Desta forma, os Estados Unidos, um país que não assinou o Protocolo de Quioto, tem visto as suas emissões de co2 diminuírem, enquanto a Europa as aumenta. Estas novas tendências mostram a importância do funcionamento da economia e da competitividade das fontes energéticas, com vista a permitir o desenvolvimento de políticas públicas eficazes8.

O dossiê «Que modelo de segurança energética?» é constituído por seis artigos, os quais procuram discutir alguns dos desenvolvimentos recentes sobre a questão energética e avaliar o seu impacto em termos futuros para o continente europeu no seu conjunto e em particular para Portugal.

O primeiro artigo, da autoria de António Costa Silva e Teresa Ferreira Rodrigues, retoma o conceito de segurança energética e a discussão de como os novos conteúdos que se desenham neste conceito se estão a adaptar a uma nova era da energia, que se pretende que seja mais barata e mais abundante. Retoma as componentes essenciais da segurança energética (estabilidade dos preços, segurança do abastecimento e sustentabilidade ambiental) e discute a necessidade de reformulação do conceito à luz de ameaças recentes, como a pirataria ou o ciberterrorismo, as implicações para a segurança das redes, a influência dos desafios tecnológicos, as mudanças em curso, a pressão sobre os modelos tradicionais de negócio e a «guerra digital». Na parte final apresenta alguns desafios atuais e futuros para a Europa.

No segundo artigo, José Félix Ribeiro efetua uma descrição muito breve do ecossistema do petróleo e gás natural mundial, quer das funções e padrões de comportamento de alguns dos seus atores principais, quer do funcionamento do conjunto. Na sua abordagem destaca o papel central dos Estados Unidos na organização e gestão desse ecossistema. O artigo termina com a apresentação de três exemplos de intervenção dos Estados Unidos, no sentido de aumentar a oferta de petróleo a nível mundial, fora e dentro da OPEP, por parte da Administração norte-americana e das grandes empresas de petróleo e gás.

De seguida o caso português é tratado por Catarina Mendes Leal. A autora avalia a situação de forte dependência nacional e a influência atual e futura do Norte de África e da África Ocidental no abastecimento do País, sublinhando as vantagens e vulnerabilidades existentes e o potencial para o futuro, num contexto de desenvolvimento de novos meios tecnológicos de comunicação, de persistência de fraquezas socioeconómicas, do falhanço da implementação de pilares de governança e de democracia nos países abastecedores aí situados.

O artigo de Carlos Nunes centra-se precisamente na última dessas regiões. O artigo aborda a relevância dos hidrocarbonetos do Golfo, salientando os fatores de atratividade e os riscos associados. Destaca as idiossincrasias locais e a recente mudança de ciclo do upstream destas indústrias, que estão a afetar as decisões de investimento e a reorientar os fluxos de troca destas matérias-primas energéticas. É neste contexto que a região ganha importância para o aprovisionamento de Portugal, com destaque para as importações nacionais de crude de Angola.

A importância atual da bacia do Cáspio para a segurança de aprovisionamento da UE é analisada por Carla Fernandes. A autora destaca sobretudo as potencialidades da região, num contexto em que se prevê o aumento do consumo de gás natural na Europa, o que poderá agravar a dependência energética face à Rússia. A bacia do Cáspio pode deste modo vir a representar uma das regiões-chave para a estratégia de segurança de aprovisionamento da Europa, particularmente com a construção do corredor de gás meridional. São igualmente analisadas as oportunidades de Portugal intervir no abastecimento energético da Europa.

Finalmente, o artigo de Miguel Moreira da Silva expõe o papel do sistema elétrico na transição energética e identifica os desafios-chave que os sistemas de energia enfrentarão nos próximos anos. O autor refere os problemas operacionais para a gestão de redes elétricas, no contexto da construção de um novo modelo energético, e sugere um modelo possível para as redes elétricas do futuro. O artigo termina com uma identificação das ameaças e oportunidades para o sistema elétrico nacional relacionadas com a transição energética e conclui como nota positiva que, não obstante a complexidade associada à construção de uma rede inteligente e segura, as oportunidades superam as ameaças.

 

BIBLIOGRAFIA

BP Statistical Review of World Energy, bp, junho de 2014. (Consultado em: 21 de março de 2015). Disponível em: http://www.bp.com/content/dam/bp-country/de_de/PDFs/brochures/BP-statistical-review-of-world-energy-2014-full-report.pdf

Comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu. Uma Política Energética para a Europa, Comissão Europeia, 2007. (Consultado em: 10 de março de 2015). Disponível em: http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:52014AE0917

European Security Strategy. Luxemburgo: Office of UE Publications, 2003Ribeiro, José Félix – «Portugal, a Europa e a segurança do abastecimento energético». In Conceito Estratégico de Defesa Nacional 2013. Contributos e Debate Público. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, pp. 238-239.

Rodrigues, Teresa Ferreira, Leal, Catarina Mendes, e Ribeiro, José Félix – Uma Estratégia de Segurança Energética para o Século XXI em Portugal. Lisboa: Instituto da Defesa Nacional, 2012, pp. 13-14.

Silva, António Costa – «A segurança energética da Europa». In Nação e Defesa. N.º 116, 3.ª série, 2007, pp. 31-72. (Consultado em: 12 de março de 2015). Disponível em:http://comum.rcaap.pt/bitstream/123456789/1231/1/NeD116_AntonioCostaSilva.pdf

Silva, António Costa, e Alves, F. Barata – «Partex Oil and Gas: a vision of the world world market and the role of gas as the future of oil». In ASPO, maio de 2005.

The Outlook for Energy: A View to 2030. Exxonmobil, 2010. (Consultado em: 21 de março de 2015). Disponível em: http://www.assoelettrica.it/wp-content/uploads/2013/01/Exxonmobil-Energy-Outlook-A-view-to-2030.pdf

 

NOTAS

1 RODRIGUES, Teresa Ferreira, LEAL, Catarina Mendes, e RIBEIRO, José Félix – Elementos para Uma Estratégia de Segurança Energética para o Século XXI em Portugal. Lisboa: Instituto da Defesa Nacional, 2012, pp. 13-14.

2 SILVA, António Costa – «A segurança energética da Europa». In Nação e Defesa. N.º 116, 3.ª série, 2007, pp. 31-72. (Consultado em: 12 de março de 2015). Disponível em: http://comum.rcaap.pt/bitstream/123456789/1231/1/NeD116_AntonioCostaSilva.pdf

3 BP Statistical Review of World Energy, bp, junho de 2014. (Consultado em: 21 de março de 2015). Disponível em: http://www.bp.com/content/dam/bp-country/de_de/PDFs/brochures/BP-statistical-review-of-world-energy-2014-full-report.pdf

4 European Security Strategy. Luxemburgo: Office of UE Publications, 2003

5 The Outlook for Energy: A View to 2030.EXXonmobil, 2010. (Consultado em: 21 de março de 2015). Disponível em: http://www.assoelettrica.it/wp-content/uploads/2013/01/Exxonmobil-Energy-Outlook-A-view-to-2030.pdf

6 Comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu. Uma Política Energética para a Europa. Comissão Europeia, 2007. (Consultado em: 10 de março de 2015). Disponível em: http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=celex:52007DC0001

7 RIBEIRO, José Félix – «Portugal, a Europa e a segurança do abastecimento energético». In Conceito Estratégico de Defesa Nacional 2013. Contributos e Debate Público. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, pp. 238-239.

8 SILVA, António Costa, e ALVES, F. Barata – «Partex Oil and Gas: a vision of the world world market and the role of gas as the future of oil». In ASPO, maio de 2005.

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