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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.47 Lisboa set. 2015

 

PORTUGAL E AS NAÇÕES UNIDAS

 

«A crise da paz»1 – Portugal e a Organização das Nações Unidas: das origens à admissão (1945-1955)

«The peace crisis» – Portugal and the United Nations. Since the beginning to admission (1945-1955)

 

Fernando Martins

Doutorado em História pela Universidade de Évora. Professor de História Contemporânea naquela Universidade. Investigador do CIDEHUS-UÉ (UID/HIS/0057/2013). Desenvolve investigação e atividade docente nos domínios da História do Império Colonial Português (1926-1975); História da Diplomacia e da Política Externa Portuguesa (1910-1976); História Política Portuguesa (1910-1976); História das relações entre o poder civil e o poder militar (1917-1976); História Internacional e Biografia Histórica.

 

RESUMO

Este texto pretende perceber e explicar de que forma algumas personagens e instituições que determinavam o modo como era definida e executada a política externa portuguesa entre 1941 e 1955, enfrentaram circunstâncias internacionais que não controlavam e os vários desafios decorrentes da formação e, mais tarde, da existência da Organização das Nações Unidas.

Palavras-chave: ONU, Segunda Guerra Mundial, Guerra Fria, Portugal.

 

ABSTRACT

This paper aims to understand and explain how some characters and institutions that determined how it was defined and implemented the Portuguese foreign policy between 1941 and 1955, faced overwhelming international circumstances and several challenges arising from the making and, later on, the existence of the United Nations.

Keywords: UN, Second World War, Cold War, Portugal.

 

Durante a Segunda Guerra Mundial, especialmente após a entrada dos Estados Unidos em dezembro de 1941, as três grandes potências aliadas – Estados Unidos, Império Britânico e União Soviética – foram reunindo e aprofundando esforços com o intuito de prepararem uma paz duradoira para o dia seguinte ao fim do conflito iniciado com um ataque alemão à Polónia a 1 de setembro de 1939. Ao contrário daquilo que muitas vezes se pensa e diz, a ONU não foi o único nem eventualmente o principal testemunho daqueles esforços, embora tenha sido um dos mais importantes e certamente o mais duradoiro. E isto porquê? Porque apesar de os «Três Grandes» terem a noção de que garantir a segurança era essencial para a preservação da paz, havia outras dimensões da vida das sociedades, dos estados e do sistema internacional que necessitavam de uma atuação coesa, determinada e eficaz para que o mundo pudesse tornar‑se e manter‑se mais seguro. Era o caso da aplicação da justiça no caso dos crimes de guerra e contra a humanidade cometidos pelos vencidos (foi o que se pretendeu fazer aplicando um sistema de justiça especial nos julgamentos de Nuremberga); da criação de estruturas que tratassem da assistência imediata às populações e da ajuda à reconstrução (instituiu-se a UNRRA, substituída parcialmente mais tarde pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial); e da construção de um sistema económico global assente em estruturas monetárias sólidas e num comércio internacional próspero e crescente (daqui nasceu o chamado sistema de Bretton Woods que regulou, direta ou indiretamente, as relações económicas e financeiras internacionais até finais da década de 1960)2.

Este texto não pretende, embora essa análise possa e deva ser feita, estudar o modo como o Estado português encarou, por um lado, e participou, por outro, no processo de construção de uma ordem internacional tão complexa e multifacetada como foi aquela concebida e aplicada, em parte, ainda no decurso da Segunda Guerra Mundial, mas sobretudo após o seu desfecho. O que aqui se faz é tentar perceber e explicar de que forma algumas personagens e instituições ligadas ao modo como era definida e executada a política externa portuguesa entre 1941 e 1955, enfrentaram vários desafios decorrentes da criação e, mais tarde, da existência da Organização das Nações Unidas (ONU).

 

DAS ORIGENS À CONFERÊNCIA DE SÃO FRANCISCO

No decurso da Segunda Guerra Mundial, o Governo português seguiu atentamente os desenvolvimentos políticos e militares que conduziriam à criação e consolidação de uma nova ordem internacional após a conclusão do conflito. Até à primeira queda de Mussolini, a 24 de julho de 1943, as autoridades lusas teriam dúvidas legítimas sobre quem sairia vencedor da confrontação, ou se haveria sequer um campo vencedor, nomeadamente nos cenários europeu e atlântico3. Apesar de, em finais de abril daquele ano, Salazar, num importante discurso4, ter tecido considerações e veiculado preocupações sobre o modo como uma nova ordem internacional iria nascer, não era fácil perspetivar uma Europa novamente em paz segundo a vontade imposta pelos vencedores ou resultante de negociações entre beligerantes. Isto apesar de o Executivo português ter sempre pugnado por uma solução diplomática do conflito. Nomeadamente entre alemães e italianos, de um lado, e britânicos e, mais tarde, norte‑americanos, do outro. Em resultado dessa sua convicção, o presidente do Conselho teorizou e pretendeu pôr em prática, até ao verão de 1942, o «conceito de zonas de paz, que pudessem ser úteis a todos os beligerantes durante a guerra e ao mundo depois da luta (…)». Naquele conceito incluía Salazar, em primeiro lugar, Portugal e Espanha, «e como prolongamento» destes «toda a América Latina»5.

Após a queda de Mussolini uma das perguntas que as autoridades portuguesas mais insistentemente faziam sobre o curso e o desenlace da guerra no velho continente dizia respeito àquele que seria o limite das capacidades que a Alemanha e os seus aliados europeus possuíam para resistirem à máquina política e militar aliada6. Ou seja, se até ao verão de 1943 uma vitória aliada, com a consequente imposição dos termos da paz pelos governos de Londres, Moscovo e Washington, era considerada em Lisboa (e não apenas em Lisboa) possível mas não inevitável, a partir daquele momento tal eventualidade tornou‑se, primeiro, numa probabilidade com cada vez maiores possibilidades de se concretizar, para, depois, a partir de meados de 1944, se tornar numa realidade incontornável7.

Isto significa que embora durante toda a Segunda Guerra Mundial, e em particular nos seus dois últimos anos e meio, apesar da atenção dedicada pelo Governo e pelo Estado português a outros acontecimentos no domínio da política externa, não deixaram ainda assim de tentar perceber, e até antecipar, em primeiro lugar, os termos em que os vencedores estariam a preparar uma nova ordem política para o pós‑guerra e, em segundo lugar, qual seria a posição e o papel que nessa nova ordem os vencedores reservariam aos pequenos países e, em particular, às potências neutrais: isto é, a Portugal8. É neste contexto que pode ser interpretada uma passagem da «exposição» apresentada pelo presidente do Conselho à Assembleia Nacional sobre a «concessão de facilidades nos Açores» aos britânicos (anunciada publicamente pelos jornais na tarde do dia 12 e na manhã do dia 13 de outubro), e ainda acerca da «situação das possessões portuguesas no extremo oriente». Antes de concluir a sua «exposição» Salazar afirmou, em primeiro lugar, que os portugueses, e presumivelmente todos os neutrais, se deviam «considerar» cada vez «menos livres» para se pronunciarem acerca da guerra uma vez que «esta» era «negócio dos beligerantes a liquidar como puder ser». Mas, e em segundo lugar, destacou que «a paz (…) interessa‑nos, como a todos, porque a paz não é o fim da guerra, é a organização da Europa, senão do mundo; é o novo estatuto das relações entre os povos, com os seus interesses económicos, suas reivindicações sociais, suas ideologias políticas». Crítico, alertou para o facto de existir apenas uma palavra capaz de traduzir o «estado de todos os espíritos – inquietação, ou pela ignorância dos princípios que hão-de presidir ao mundo novo ou pela descrença na eficácia de alguns que já têm sido enunciados». E ou porque pretendia produzir um certo dramatismo junto de quem o ouvisse ou lesse, ou porque realmente a sua preocupação relativamente ao desconhecido era grande, talvez demasiado grande, concluía:

«Temos vencido as outras crises; também venceremos, porque temos condições para isso, a crise da paz. Mas precisamos de estar preparados e decididos como se fosse para vencer a guerra.»9

Por finais de 1943, e assim continuaria por alguns anos, Salazar, grande parte da elite, das classes médias e da plebe que apoiavam o regime, tiveram sinceros e talvez fundados receios de que a «paz» seria mais ingrata para Portugal e, sobretudo, para o Estado Novo do que tinha sido, ou estava a ser, a guerra. Ou seja, havia que pesar seriamente a possibilidade de os vencedores poderem tomar a iniciativa de liquidar o regime, através de ataques diretos ou indiretos, ou de nada fazerem para impedir que este sucumbisse a ofensivas montadas e lançadas internamente. É claro que no final do quarto ano de guerra pouco se sabia em Lisboa sobre a forma como se iriam organizar a Europa e o mundo após a derrota do Eixo. Mas esta ignorância não podia atribuir‑se a qualquer inépcia da parte das autoridades portuguesas uma vez que os próprios aliados, ou seja os «Três Grandes», poucas certezas tinham sobre o modo como iriam arrumar o mundo uma vez terminado o conflito10. Apesar da importância de acontecimentos anteriores, nomeadamente a Conferência de Teerão11, apenas nas cimeiras de Ialta e Potsdam foram tomadas decisões definitivas respeitantes às derradeiras etapas do conflito e à organização política do mundo no pós‑guerra, em especial no que respeitava ao destino dos derrotados na Europa, a começar pela Alemanha12.

É verdade que em meados de agosto de 1941 Churchill e Roosevelt se tinham encontrado e conferenciado em Argentia Bay, ao largo da Terra Nova, decidindo no final da cimeira publicitar a depois célebre Carta do Atlântico. Neste documento avançavam‑se algumas indicações sobre os objetivos de guerra de uma potência beligerante (o Império Britânico) e de uma potência neutral (os Estados Unidos), mas também eram definidas as linhas gerais que deveriam presidir à arrumação política, económica e moral do mundo depois de derrotada a Alemanha e os seus aliados europeus13. Após a entrada dos Estados Unidos na guerra em dezembro de 1941, e no decurso de uma prolongada estadia de Churchill em Washington, a 1 de janeiro de 1942, norte‑americanos, britânicos e demais aliados publicaram a Declaração das Nações Unidas que se apresentou como um indicador da forma como os seus subscritores se comprometiam a fazer a guerra e como uma proclamação sobre os motivos que os moviam e os objetivos – na guerra e na paz – que os guiavam14.

No entanto, um e outro documento eram muito vagos. Senão enquanto elementos de propaganda pelo menos enquanto indicadores claros sobre a forma como a paz seria de jure e de facto preparada e uma nova ordem política internacional estruturada. Mas não foi esta realidade que impediu que a Carta do Atlântico e a Declaração das Nações Unidas fossem comentadas e analisadas tanto na imprensa como na documentação oficial portuguesa. No caso do primeiro documento, a diplomacia portuguesa, nomeadamente o então ministro de Portugal em Washington, tentou perceber até que ponto se poderia estar perante uma declaração que, materializando‑se politicamente, viesse a pôr em causa uma ordem internacional em que a existência de impérios coloniais era legítima política e moralmente e, portanto, incontestável15. A preocupação manifestada pelo diplomata luso fazia‑se tanto à luz daquela que era a secular tradição colonial portuguesa e de uma política externa e de uma diplomacia que protegiam essa tradição, mas ainda daqueles que eram os objetivos estratégicos da política externa definida e perseguida pelo Governo português durante a Segunda Guerra Mundial16. De Washington, telegrama atrás de telegrama e ofício atrás de ofício, eram enviadas informações relacionadas com a forma como uma nova ordem internacional, definida por uns Estados Unidos vencedores, poderia beliscar os interesses portugueses no domínio colonial. À tradição anticolonialista norte‑americana (re)fundada pelo Presidente Wilson, sucedia um novo fôlego anticolonial inspirado pelo Presidente Franklin Delano Roosevelt, o que dava um sinal claro daquilo que parecia ser o regresso dos Estados Unidos a uma doutrina e a uma prática política muito crítica do colonialismo europeu tanto na Ásia como em África. Entre 1941 e 1945, a memória dos «Catorze Pontos» de Wilson e dos «mandatos» da Sociedade das Nações (SdN), a par daquilo que era o conteúdo de algumas das alíneas da Carta do Atlântico ou da Declaração das Nações Unidas, ou ainda o crescente protagonismo de Washington na liderança da guerra e na preparação da paz, afinaram a atenção de Lisboa e do seu ministro, e depois embaixador, em Washington, João de Bianchi.

Por exemplo, em junho de 1943 foi transmitida para Lisboa, a pedido do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), uma análise dos discursos ou opiniões avulsas proferidas nos Estados Unidos por membros da Administração Roosevelt que evocassem «a necessidade do fim do imperialismo e a emancipação dos povos». Segundo João de Bianchi, tais opiniões deveriam ser entendidas não como equivalendo ao desejo de promover a emancipação política mais ou menos imediata de todos os povos «atrasados» da África e da Ásia, mas dizendo respeito apenas à «Índia e a outros estados asiáticos semi-independentes de civilização já adiantada». A «tendência», no momento, ia no sentido de restringir as teses emancipadoras, afirmando‑se que os «povos atrasados» não seriam ainda capazes de retirar os devidos «“benefícios da liberdade?”».

Melindrosas eram no entanto as «ideias» correntes em torno da «expansão do sistema de mandatos e porta aberta», muito embora os «governantes» se abstivessem sistematicamente de emitir opiniões conclusivas sobre o assunto. Encontravam‑se, pelo menos até à primavera de 1943, «muito silenciosos sobre a matéria». Aquelas «ideias» eram mais recorrentes quando se falava do possível destino das «colónias japonesas, italianas e territórios da Austrália». João de Bianchi tomava ainda como bom o princípio de que os Estados Unidos não pretendiam qualquer engrandecimento territorial como compensação pela sua entrada na guerra, nomeadamente naquilo que dizia respeito à aquisição de colónias. O diplomata português recordava que este tipo de reivindicação não estava «nas suas tradições nem nas suas necessidades visto (os Estados Unidos) não terem problemas de colocação de excessos populacionais nem de matérias‑primas», para além de existir uma «razão psicológica fundamental»: a de os norte‑americanos, tradicionalmente, sempre se terem afirmado «preocupados com a liberdade dos povos». Os problemas futuros, naquilo que respeitava a uma possível interferência dos Estados Unidos nas questões coloniais, não estavam por isso nas ambições territoriais que não possuíam, mas sim na «contribuição que o seu idealismo» poderia dar para o desenvolvimento de «políticas de cooperação internacional» e de expansão do comércio. Estas inspiravam‑se em «ideias de mandatos, portas‑abertas e liberdades comerciais», nas quais acreditavam «com bastante ingenuidade» e, em parte, na sua «falta de contacto efetivo com problemas coloniais». Finalmente, havia que considerar a possibilidade de as administrações norte‑americanas, por pressões internas várias, virem a intervir nas «questões coloniais» através de ações ditas «filantrópicas». Ou seja, pretenderem canalizar para territórios e populações sob domínio colonial parte do capital excedentário disponível e, como consequência e contrapartida, exigirem uma maior intervenção política junto daqueles territórios e povos. Havia por isso que seguir esta questão com «cuidado e atenção»17.

Nesta linha de observação e análise, João de Bianchi remeteu informação sobre o possível relacionamento dos Estados Unidos com a África. Fê‑lo a propósito de uma conferência realizada em Nova York por Henry S. Villard, «Chefe‑Assistente da Divisão do Próximo Oriente do State Department». A «palestra» fora importante por ter sido pronunciada por um funcionário superior do Departamento de Estado pertencente a uma «repartição» por onde corriam as «questões africanas», mas também por traduzir «as primeiras declarações de inspiração oficial (...) pronunciadas» nos Estados Unidos a propósito «dos problemas da África no período do pós‑guerra». Pronunciando‑se em «tom moderado», o que não podia «deixar» de «tranquilizar» Lisboa, deixava no ar a importância de ideias como a «da “porta‑aberta”, de uma “filantropia internacional”» e da «necessidade de serem estudados no futuro alguns problemas económicos e estratégicos». Tudo somado parecia óbvio que aquilo que se cogitava no Departamento de Estado «sobre a questão colonial» não seria «inteiramente» do «agrado» ou estaria em «conformidade com os interesses tradicionais» de Portugal. No entanto, era evidente que os «antigos territórios inimigos em África» não passariam «à posse direta de qualquer potência», ainda que fosse «improvável» que os Estados Unidos aceitassem «sozinhos a jurisdição ou o controle de qualquer parte de tais territórios». Por isso, careciam de fundamento os rumores, naturalmente postos a correr pelo Eixo, segundo os quais a Administração norte‑americana pensava apropriar‑se de territórios em África, fosse ainda no decorrer da guerra, fosse depois desta concluída. Quanto ao permanente objetivo anglo‑saxónico de concessão de autodeterminação política aos territórios (africanos) dependentes, e embora ele de facto existisse no domínio dos princípios, isso não significava que Washington ouvisse com seriedade «“as ideias que os extremistas”» advogavam no sentido de uma «imediata libertação de todas as dependências do controle externo». Isto porque essa opção não só conduziria ao «caos e confusão», mas também porque apenas «uma pequena minoria de povos coloniais» haviam «exprimido um desejo para governo próprio»18.

Naquilo que dizia respeito à formação e ao papel a atribuir a uma nova organização mundial para a paz e segurança do pós‑guerra, a diplomacia portuguesa seguiu em Washington algumas das iniciativas que apontavam nesse sentido, a começar pela ação de Cordell Hull. Desde que em 1942 o secretário de Estado fora «desviado» por Roosevelt do tratamento dos assuntos diretamente relacionados com a condução da guerra para tarefas de preparação da ordem política que deveria emergir com a paz, João de Bianchi acompanhava a sua atividade e escutava as suas palavras. O discurso de Cordell Hull, datado de 12 de setembro de 1943, foi ouvido com atenção e transmitido e comentado para Lisboa. Classificado à partida como sendo apenas «pouco mais (...) do que uma nova mas fiel reprodução do conjunto de princípios e objectivos gerais» típicos da política externa norte‑americana desde a Grande Guerra, era, também, o enunciar de «uma espécie de carta moral em que as várias nações do mundo deveriam fundamentar a sua política externa». A «exposição» tinha sido «feita» apresentando «uma lista de seis princípios gerais, completada por outros três», tendendo a «englobar os vários aspectos de uma cooperação internacional, pacífica e ideal, no campo político e económico». No entanto, para João de Bianchi a passagem mais importante do discurso dizia respeito àquilo que era a vontade manifestada pela Administração Roosevelt para que durante a guerra, como depois do seu fim, se procurasse que cada «nação» pudesse «manter um governo estável», devendo por isso encontrar‑se «livre para decidir por si própria as formas e detalhes da sua organização governamental». Isto desde que fosse feito de forma a «“não ameaçar a paz e segurança das outras nações”». Afirmações desta natureza surgiam como um certificado de segurança passado publicamente ao Estado Novo e «um balde água fria para aqueles» que pareciam acreditar que logo após o fim da guerra seriam implantados «regimes de democracia pura em todos os países do mundo»19.

Quando mais tarde as atenções se viraram para a realização da Conferência de São Francisco, e onde a qualidade de país participante equivalia à obtenção do estatuto de Estado fundador daquilo que viria a ser a ONU, o Governo português teve dificuldade em lidar, sobretudo perante a sua opinião pública, com o facto de não ter sido convidado para nela tomar assento. Perante os diplomatas britânicos que o visitavam, Salazar não demonstrava qualquer desapontamento pela não participação portuguesa, como se a ausência de um convite lhe parecesse indiferente e, sobretudo, inconsequente. Aliás, uma observação atenta da forma como Oliveira Salazar analisava os últimos desenvolvimentos da vida política internacional fazia mesmo pensar que, caso Portugal viesse a ser convidado a estar presente em São Francisco, a resposta seria uma recusa. Sobretudo, porque a sua participação, tal como se decidira na Conferência de Ialta, implicaria uma declaração de guerra à Alemanha em circunstâncias que Salazar considerava indignas. Isto é, num momento em que a sorte das armas estava traçada. Seria esta, aliás, a argumentação que, por exemplo, o Diário da Manhã, órgão oficioso do Governo, passaria para o público20.

Mas como não podia deixar de ser, a realização da Conferência de São Francisco suscitou atenção muito especial no Palácio das Necessidades21. As informações disponíveis eram limitadas, o que se deveu ao facto de os neutrais estarem excluídos de nela participarem, mas ainda, segundo o embaixador português em Washington, pelo número reduzido de funcionários norte‑americanos que participavam nas reuniões preparatórias. Quanto ao possível rumo dos trabalhos na definição daquele que poderia ser o estatuto dos «territórios coloniais» – uma das questões que mais interessava a Portugal –, parecia não haver qualquer «discussão». Estava apenas previsto um «estudo (…) sobre a organização e estrutura de “trusteeships” para as áreas japonesas e antigos territórios sob mandatos», falando‑se também na possibilidade de as potências coloniais poderem submeter os seus territórios e populações àquele regime22.

Semanas mais tarde era comunicado para Lisboa o «texto da carta», entretanto tornado público, nomeadamente as disposições relativas aos «povos coloniais e áreas estratégicas». A «primeira parte» (equivalendo aos artigos 73.º e 74.º da Carta das Nações Unidas), continha os preceitos conhecidos sobre as «responsabilidades» inerentes à «administração de territórios cujos povos ainda não» tivessem atingido a «completa governação própria», ou seja, «para se aplicar também às colónias». Nos artigos 73.º e 74.º as disposições «menos anódinas» referiam‑se «ao desenvolvimento da governação própria», nelas se prevendo dever ter‑se em «conta as aspirações políticas» das populações e o «auxílio» ao «progressivo desenvolvimento» das respetivas «instituições políticas livres». Em «atenção» deviam ser tidas «as condições especiais de cada território», dos seus povos e os «vários estados de adiantamento» em que se encontravam. Discriminava‑se ainda o «compromisso» a assumir por parte das potências administrantes de «transmitir regularmente ao Secretário-Geral» informações acerca das «condições sociais, económicas e educativas dos territórios» pelos quais se consideravam «responsáveis» e que não se encontrassem em regime de «trusteeship». A segunda parte, que correspondia aos artigos 75.º a 91.º da Carta, ocupava‑se do «sistema internacional» de tutela e do respetivo «conselho», tratando por isso de uma realidade que não respeitava diretamente a Portugal. Por último, era transmitida a informação de que no caso de existirem áreas estratégicas nos territórios submetidos ao regime de tutela, elas seriam colocadas sob o controlo do Conselho de Segurança23.

A desconfiança portuguesa, e em especial de Salazar, relativamente ao modo como os vencedores organizariam o mundo do pós‑guerra não nasceu no outono de 1943 aquando da publicitação da cedência de facilidades militares nos Açores aos britânicos. Era anterior àquela data e decorria fundamentalmente daquilo que eram os receios sobre as consequências decorrentes de um aumento exponencial do poder norte‑‑americano não só na Europa, mas também à escala global, ao substituir definitivamente o Império Britânico no papel de principal potência ocidental e mundial. Aquela desconfiança transmitiu‑a Salazar aos seus interlocutores britânicos. Logo em junho de 1941, um diplomata britânico reuniu‑se com um Salazar «deprimido». O chefe do Governo português iniciou a conversa vincando a ideia de que caso os britânicos insistissem em derrotar a Alemanha de forma «decisiva», acabariam por ficar tão exaustos que lhes seria impossível pôr a Europa outra vez de pé. Este facto daria aos Estados Unidos uma grande liberdade de ação e, a prazo, um poder com resultados necessariamente desastrosos para o velho continente. O interlocutor de Salazar acrescentava em seguida na sua comunicação para o Foreign office (FO): «As I have previously reported his fear of United States interference in Europe after the war amounts to an obsession.»24 Procurando tranquilizar o chefe do Governo português, o diplomata ao serviço do Governo de Sua Majestade informou‑o de que as autoridades do seu país tinham propostas para a reconstrução do pós‑guerra, pelo que não abdicariam da sua posição na Europa em favor dos Estados Unidos. Apesar destas palavras terem parecido confortar um pouco o presidente do Conselho, isso não equivalia de facto a uma mudança de opinião, o que, aliás, o seu interlocutor considerava ser muito difícil conseguir25. Toda aquela insistência depreciativa em relação aos norte‑americanos manifestou‑se novamente em julho:

«Opening conversation yesterday evening Dr. Salazar welcomed Eccles back to civilization. He looked on the Americans as a barbaric people illuminated not by God but by electric light. Were we not afraid that the world after the war would be run by United States of America with a strong dash of Communism? This was a horrible prospect for Europe.»26

A isto respondeu Eccles27 que seria preferível à Europa viver sob a tutela de um povo e de um governo como o americano, do que sob o jugo alemão. E para que Salazar compreendesse a diferença e a vantagem dos Estados Unidos, bastava que comparasse a Constituição americana com o Mein Kampf.

Ainda quanto ao entendimento de Salazar sobre o que poderia ser a organização política do mundo depois da guerra, é importante conferir o relato de uma sua conversa com o embaixador norte‑americano em Lisboa, R. Henry Norweb. A 13 de fevereiro de 1945 (uma terça‑feira de Carnaval)28, aquele diplomata foi recebido para uma conversa que durou duas horas.

«The setting was thus one of unusual intimacy and lent itself to an atmosphere of cordiality which went beyond anything experienced by the Ambassador in his previous talks with the Premier. Dr. Salazar was calm, friendly and at ease throughout the conversation, and seemed entirely unworried by internal difficulties he is reported to have been encoun‑tering.»29

A Cimeira de Ialta foi o primeiro tema tratado pelos dois homens. Salazar mostrou surpresa pelo facto de o Japão não ter sido, aparentemente, assunto ali tratado, sobretudo quando a guerra no Extremo Oriente havia entrado numa fase decisiva30. Quanto à criação das zonas de ocupação aliadas na Alemanha, Salazar manifestou o desejo de que o Reino Unido e os Estados Unidos não apenas fossem capazes de constituir uma zona tampão entre a URSS e a Europa Ocidental, mas, sobretudo, que estivessem conscientes acerca da importância dessa opção. Sobre a zona de ocupação francesa, Salazar recordou o facto de a França apenas muito dificilmente poder vir a desempenhar com eficácia uma missão de barragem ao avanço soviético. Isto porque a influência comunista naquele país era, na sua opinião, «considerável». Sustentava, sem quaisquer dúvidas, que as condições ali existentes «providenciavam um solo fértil» para que, mais cedo ou mais tarde, se verificasse uma viragem à esquerda.

A Conferência de Dumbarton Oaks e os seus resultados mereceram de Salazar ao menos um comentário. Apesar de país neutral, Portugal tinha um grande interesse naquilo que dizia respeito aos projetos ali discutidos e aprovados. Tinha por «inevitável» que o «mundo» aceitasse as propostas «ditadas» pelas «três grandes potências associadas» – mesmo que sem qualquer «direito legal ou judicial» –, o que decorria do facto de britânicos, russos e norte‑americanos terem sofrido enormes perdas em homens e bens. Não podiam por isso deixar de «erguer e insistir na aceitação» por todos do projeto em que haviam trabalhado e que culminava na pretensão de dar forma a uma organização capaz de garantir a segurança no mundo do pós‑guerra. Ironicamente, Salazar assinalou ainda que caso a Europa viesse a viver uma situação de grande instabilidade, alguém deveria «tomar responsabilidades» e «impor decisões», não sendo claro se tal papel cabia à nova organização concebida pelos «Três Grandes», ou apenas a estes. No entanto, para Salazar a «viabilidade» de «qualquer organização de segurança internacional a formar dependia (…) dos métodos empregues». Assim, quando três potências constituíam um «sindicato», as demais potências apenas relutantemente podiam aceitar sem dificuldade regras produzidas por terceiros. Mas à beira do fim da guerra, e imediatamente após o fim desta, parecia‑lhe óbvio que a «responsabilidade devia repousar nas grandes potências». Depois logo se veria.

No entanto, e apesar destas apreciações, o chefe do Governo português considerava ser insensato «antecipar uma era de paz» para o período imediatamente após a conclusão do conflito na Europa. Por isso, aconselhava uma planificação que encarasse quaisquer acordos políticos (à escala regional ou mundial) como destinados a serem aplicados numa época e num cenário de pacificação e não de paz. Desde logo porque a guerra no Extremo Oriente deveria continuar ainda por algum tempo – talvez dois anos. Nestas circunstâncias, os Estados Unidos e o Reino Unido não deveriam permitir que «divergências na Europa ou em qualquer outra parte» interferissem ou ameaçassem o esforço militar contra o Japão. Nestas circunstâncias, nenhuma fórmula «final» de organização internacional de segurança poderia ser estabelecida. Os planos a «implementar» na Europa, de modo a mantê‑la «calma», até que a guerra terminasse no Extremo Oriente, representavam para Salazar a diferença entre o «período de pacificação e o de paz»31. Sete meses mais tarde, com a rendição incondicional do Japão aos Estados Unidos, após o lançamento de duas bombas nucleares sobre o seu território, a guerra terminou inesperadamente parecendo tornar obsoletas as considerações de Salazar sobre a forma como a organização internacional de segurança iria ser estabelecida e poderia funcionar, ao mesmo tempo que se apresentava como inviável a sua esperança de que a continuação da guerra contra o Japão atrasasse, ou até inviabilizasse, a criação e funcionamento da nova organização de segurança internacional e, também, a definição dos termos em que a paz seria desenhada e aplicada. Tudo porque Salazar não apenas desconfiava do que aí vinha, como estava convencido que atrasos, hesitações e dilações no campo vitorioso jogavam a seu favor e dos seus objetivos para a paz.

Durante a Segunda Guerra Mundial, e como já foi dito, manter a integridade territorial e política absoluta, não só em relação ao território português europeu e insular, como ainda a todo o império ultramarino, era um dos objetivos da política externa portuguesa32 – isto para além da própria sobrevivência do regime de «ordem e autoridade». Tendo Salazar começado a preparar o embate do pós‑guerra em termos de política colonial e de política externa a partir de finais do ano de 1943, quando lhe começou a parecer inevitável uma vitória aliada, não admira por isso que no verão de 1944 tenha confidenciado a Marcello Caetano, no momento em que lhe dirigiu o convite para ministro das Colónias, que pensava:

«(…) ter chegado a altura de mudar de rumo. A centralização foi indispensável quando era preciso impor reformas (...) e a administração das colónias estava num caos. Agora que as coisas estão em ordem, é preciso dar‑lhes maior liberdade de resolver localmente os seus problemas (...). É tempo de descentralizar (...). Demais a mais temos de contar com as ideias que depois da guerra hão-de vir da América do Norte.»33

Deixando de lado o significado do convite a Marcello Caetano e do alcance desta (in) confidência acerca da necessidade de descentralizar, certo é que o chefe do Governo se preparava, no domínio das políticas externa e ultramarina para enfrentar os princípios democráticos acenados pelos norte‑americanos. A reação de Oliveira Salazar significa ainda que de forma alguma se acomodava às garantias dadas por Londres e por Washington quer quanto à sobrevivência do autoritarismo português à guerra34, quer quanto à manutenção da integridade do império colonial. Não se afastava, aliás, destes objetivos, a síntese de uma informação enviada por Bert Fish, diplomata norte‑americano, ao Departamento de Estado. Nela podia ler‑se que caso os britânicos, e portanto as NU, pretendessem atrair Portugal para uma «neutralidade colaborante» deveriam assegurar que aos amigos da «Rússia» em Portugal não seriam dadas quaisquer garantias de apoio numa eventual tentativa de derrube do Estado Novo; deveria ainda ser assegurada «a soberania nacional portuguesa»; e, finalmente, teria que ser afiançado que Portugal poderia manter o seu império colonial e administrá‑lo tal como havia acontecido no passado35.

Estes objetivos políticos recolhidos em Lisboa e prontamente transmitidos para Washington tinham sido enunciados por Salazar, ao País e aos Aliados, no discurso feito a 27 de abril de 1943 para assinalar o 15.º aniversário da sua posse como ministro das Finanças36. Nele Salazar projetava «Portugal no mundo de amanhã», alertando para a vontade manifestada pelos vencedores da guerra para «reformar o mundo», sendo que essa «reforma» podia tornar‑se, em termos genéricos, numa realidade do agrado de quase todos, caso se pretendesse

«(...) apenas (...) estabelecer algumas regras de vida para a comunidade internacional e fomentar o domínio de ideias político‑sociais aptas a melhorar a vida dos homens e a ativar o progresso e bem‑estar dos povos.»

Mais preocupante aos olhos de Salazar era o facto de terem sido feitas «declarações autorizadas» segundo as quais essa «reforma» podia vir a ser «aceite de boa vontade ou por meio de coação». Era por isso que ela «respeita(va) e importa(va)» a Portugal e à «Revolução». Ou seja, ainda que a «nova ordem» a ser criada dependesse do «desfecho da guerra», e uma vez que ela poderia ser ganha pelos Aliados, tratava‑se então de preparar o País para uma paz imposta. Porque apesar «de não lutar» Portugal estava, em função da paz que se avizinhava, «como os outros na guerra» e portanto necessariamente concentrado na preparação do futuro37.

Que análise produzia Oliveira Salazar em finais de abril de 1943 sobre o curso da guerra, os seus possíveis desenlaces e o modo como a sociedade internacional se devia organizar uma vez terminado o conflito? Em que medida podia essa sociedade internacional no pós‑guerra influenciar os interesses de Portugal e os objetivos da sua política externa? O presidente do Conselho e ministro interino dos Negócios Estrangeiros sublinhou desde logo o facto de «os processos» e «algumas soluções» futuras dependerem «dos vencedores e da posição relativa das suas forças no momento em que o conflito termine»38. Assim, e embora nunca falando de forma explícita da vitória aliada, não fosse tal constatação ferir algumas suscetibilidades junto da Itália, da Alemanha ou da Espanha, mas sobretudo conceder trunfos excessivos aos Aliados num momento de negociações delicadas sobre a cedência de «facilidades» nos Açores aos britânicos39, Salazar manifestava o «receio, porventura injustificado, de três tendências» se afirmarem «na arrumação do mundo». Eram elas «a ambição do óptimo, ou seja o domínio do irreal nas aspirações». Em seguida o perigo do «vinco da guerra nos hábitos da colectivização da vida». Finalmente, «o primado do económico, isto é, a inteira subordinação das soluções às exigências da economia», facto que poderia «revolucionar o mundo sem (se) encontrar o caminho da paz». E ainda que tudo isto partisse de «duas bases elementares» e desejáveis como «a ordem e a colaboração internacional», apenas o «comunismo» as procuraria contrariar por ser «elemento de desordem». Por esse facto, Portugal deveria tentar manter‑se firme no caminho iniciado com a Revolução de 1926, pelo que Salazar fazia um voto: «que a ordem se não altere onde existe»40.

Porém, nas palavras de Salazar, a «estreita colaboração entre os povos» afigurava‑se como «condição necessária da paz e do bem‑estar futuro». A dúvida estava em saber quais seriam as «bases» em que viria a assentar aquela «estreita colaboração»!? O sentido da resposta a esta interrogação tinha «grande valor» para a «Revolução» em que o «nacionalismo» fora e era um princípio fundamental. O Estado português corria o risco de poder vir a «encontrar‑se», em virtude deste seu nacionalismo, «fora da linha geral da reorganização do mundo»? Era lógico chegar a uma conclusão como esta? Afinal os arquitetos da nova ordem não podiam deduzir que, nascendo «as guerras de conflitos entre nações», esse velho princípio de organização política podia vir a perder a sua legitimidade, a sua razão de existir? Se assim fosse, então as linhas políticas e ideológicas que enquadravam a vida portuguesa, e as únicas que, segundo Salazar, serviam os interesses do País, estavam ameaçadas e podiam ver‑se condenadas, empurrando Portugal e o regime para o isolamento. Ou, pior, podiam vir a destruir a própria nação. Quer porque aquela se diluiria na sociedade internacional se abandonasse os princípios nacionalistas, quer porque a «autoridade», característica essencial do Estado Novo e decorrente dos seus princípios nacionalistas, era condição da governabilidade e existência de Portugal e, portanto, da sua viabilidade enquanto estado-nação independente.

Esta preocupação emergia do facto de Salazar considerar existir na nova ordem internacional em gestação uma aversão aos conceitos de nação e nacionalismo. Esta aversão transmitia‑se pela forma como se multiplicavam os rumores de que a segurança internacional futura dependeria da constituição de uma espécie de governo mundial exercido pelas três grandes potências através de um organismo sucedâneo da SdN, mas ao qual seriam conferidos mais e maiores poderes. Por isso «muitos espíritos» buscavam «remédio para tão grandes catástrofes em formas de organização supernacional, continental ou mundial». Ora, ainda que não estivesse no «espírito» do chefe de Governo português «negar a interdependência e solidariedade dos Estados nem a necessidade de uma fórmula de organização ou trabalho internacional» que resolvesse «os problemas», pretendia ainda assim deixar bem claro que para ele «o homem do século XX» não estava ainda «habilitado (...) a resolver» as complicações «do mundo senão através das existências nacionais, livres e independentes»41. Aquelas ideias eram aliás produto de «imaginações exaltadas», produzidas por «políticos de gabinete apaixonados das fórmulas abstractas e despreocupados das muitas realidades que entretecem a vida das nações». Salazar esperava que os homens «prudentes» e realistas, porque ainda os havia, continuassem a confiar na «base nacional» como a «mais sólida, fácil e isenta de perigos». Aquela na qual verdadeiramente podia «assentar a colaboração dos povos conducente ao bem‑estar comum». Seria então bem melhor que não se pensasse em soluções que passassem, por exemplo, pela existência de «duas soberanias num território».

Entrando depois nas questões levantadas pela Carta do Atlântico, ou seja no problema do «direito de acesso às matérias‑primas» de «origem colonial», Salazar mostrava‑se disposto a sublinhar que os portugueses, por motivo algum, estavam dispostos a abdicar dos territórios que haviam descoberto, conquistado, administrado e civilizado. A «regra» das «duas soberanias num território» não se aplicava «aos territórios coloniais», «acerca dos quais», aliás, «algumas ideias correntes» estavam «longe de ser claras e inofensivas»42. Havia «grandes ilusões em se crer que regimes de condomínio, mandato, porta‑aberta e semelhantes» viessem a resolver «qualquer questão, a não ser que o fim a atingir» fosse «apenas complicar os problemas, tirando a uns» e dando a outros, subtraindo a soberania desses territórios aos seus administradores legítimos em virtude da sua debilidade financeira, económica e política no concerto das nações. «E mais nada.»43

Ou seja, e segundo se pode facilmente depreender pelas palavras de Salazar, o Estado Novo deveria ser capaz de encontrar uma fórmula que lhe permitisse enfrentar uma provável afirmação e hegemonia de um conjunto de princípios considerados contrários aos interesses portugueses. A história política do Estado Novo nos últimos anos da Segunda Guerra Mundial, como depois dela, e tanto no plano interno, como externo, foi, precisamente, a de procurar conciliar o nacionalismo, o colonialismo e o autoritarismo num cenário de mais aparente e parcial do que real diluição dos dois primeiros conceitos e substituição do terceiro (por democracia). Na verdade, o pós‑guerra caracterizar‑se‑ia por uma transformação, e não pelo desaparecimento, do nacionalismo na Europa Ocidental, mas também por um (re)nascimento, ou robustecimento, do nacionalismo e do colonialismo nas demais regiões do globo. O regresso ao colonialismo, e apesar das independências reconhecidas no imediato pós‑guerra, foi um facto da história da segunda metade da década de 1940 e da parte da década de 1950, para depois paulatinamente sucumbir. A partir daqui, os nacionalismos não europeus foram um elemento necessário, ainda que não suficiente, para o desaparecimento dos impérios coloniais europeus no mundo afro‑asiático e em algumas regiões do Pacífico e das Américas, ao mesmo tempo que tornou mais difícil a ação da ONU como garante da paz e da segurança globais44. De facto, esta organização não foi equacionada nem preparada para um mundo que, entre 1945 e 1975, passou de 51 para 144 estados-membros, ainda que muito poucos pudessem merecer a classificação de estados‑nação45. Houve que esperar pelo discurso proferido por Salazar a 18 de maio de 1945 na Assembleia Nacional46 para identificar aquele que foi o rumo político escolhido para o pós‑guerra. Fê‑lo ao referir‑se ao conflito e à «neutralidade portuguesa»; à «organização da paz» e às suas «repercussões» na «política externa» do Governo de Lisboa; e, finalmente, aos «problemas da política interna portuguesa relacionados com o sentido da vitória».

Naquilo que respeitava ao problema da «organização da paz» e não estando Portugal a participar «na delicada tarefa de definir o estatuto regulador da comunidade das nações», reservava‑se‑lhe simplesmente o estatuto de «“homem da rua”», sendo que sob esse ponto de vista Portugal podia tentar compreender os desenvolvimentos políticos que preparavam o pós‑guerra. Partindo dos «textos e declarações públicas» era agora possível deduzir que o «princípio nacional» seria a base da «organização» futura. Ou seja, aceitava a «existência de nações diferenciadas, independentes e livres, organizadas em Estados soberanos e iguais». Salazar reconhecia e aceitava que fosse feita uma «concessão à realidade da vida internacional» ao ser admitida «com base numa diferenciação de funções, um princípio aristocrático na direcção efetiva da sociedade» internacional. Aplaudia o sacrifício da «originalidade ao bom senso».

Relativamente «à entrada de algumas nações para o novo organismo internacional», não era «problema» que devesse apoquentar as «pessoas». O «inverso» é que era problemático. Isto é, que algumas nações viessem a mostrar vontade de não pretender entrar ou, depois de a ela pertencerem, desejassem «abandoná‑la»47. Isto porque a solidariedade entre as nações, base a partir da qual se teria pensado aquilo que seria a ONU, tendia a ser somente um «facto» e não uma «norma de conduta» generalizada. Ora apenas a existência dessa «norma de conduta», que talvez chegasse um dia, permitiria conduzir a organização ao sucesso e preservar a permanência dos países a ela aderentes.

Quanto às «repercussões» futuras daquela organização na «política externa» portuguesa, Salazar garantia que esta não se resumiria ao esforço de conseguir a adesão. Prosseguiria e afirmar‑se‑ia com as «actividades» decorrentes das «boas relações de vizinhança, de alianças e de afinidades étnicas e culturais», nomeadamente através do aprofundamento das relações políticas preferenciais com Espanha, Reino Unido e Brasil.

Finalmente, quanto aos «problemas da política interna portuguesa relacionados com o sentido da vitória», Salazar assegurava que o Governo estava disposto a continuar a lutar pela manutenção do regime vigente, uma vez que as suas instituições eram as que melhor se adaptavam ao «modo de ser» do País, facto que, aliás, tornava Portugal prestável à comunidade internacional. Um regime que garantisse o «grau de liberdade consentâneo com a eficiência das disciplinas interiores do homem e exteriores do meio social», e que paralelamente assegurasse o «progresso interno» e a sua colaboração com outras nações, não podia desaparecer apenas porque a guerra havia sido ganha por «potências aliadas» que lutavam «sob a bandeira da democracia». Em resumo, nada daquilo que Salazar havia «presenciado e vivido» no decurso da guerra alterara a sua «visão dos factos» ou a sua «convicção». Mantinha‑se fiel às suas diretrizes, porque seriam as mais «úteis à Nação Portuguesa, à sua paz e ao seu progresso». E era isso que «acima de tudo» lhe importava, o conduzia e inspirava48.

Nestas circunstâncias, Salazar não considerava possível nem desejável retirar‑se para Coimbra. Propunha‑se enfrentar mais uma vez os desafios políticos que se lhe deparavam. Aliás, como também afirmou o presidente do Conselho ao encarregado de negócios interino do Governo norte‑americano em Lisboa, se os Estados Unidos e o Reino Unido desejavam a estabilidade em Portugal seria preferível a manutenção dos seus compromissos com o Governo e o regime que o antigo professor de Direito chefiava. Recordou ainda ao seu interlocutor que fora com ele e não com outro interlocutor que os Estados Unidos haviam conseguido levar as suas relações políticas com Portugal a um tão elevado nível, obtendo, nomeadamente, facilidades em Santa Maria. Parecia‑lhe, portanto, que tudo deveria «continuar nesta direcção». Porque se a oposição, chegada ao poder, poderia vir também a ceder inicialmente os Açores aos Estados Unidos, a verdade era que com a desordem e a «descontinuidade» próprias dos regimes democráticos, Washington poder‑se‑ia, mais cedo ou mais tarde, vir a deparar com «inúmeros obstáculos, desconhecidos e incertos»49.

À beira do fim da Segunda Guerra Mundial, e tendo em conta aquele que viria a ser o principal combate a levar a cabo por Portugal no domínio da política externa, Salazar apresentava‑se, para dentro e para fora do País, como o homem que havia mantido a integridade do Império numa conjuntura «em que impérios mais poderosos se haviam desintegrado». Nestas circunstâncias, Salazar não podia ser «acidentalmente posto de parte»50. Nem a sua política.

 

O PROCESSO DE ADMISSÃO DE PORTUGAL ÀS NAÇÕES UNIDAS: 1946 ‑1955

Se o facto de Portugal não ter sido convidado a participar na Conferência de São Francisco foi um revés controlável nos danos políticos provocados internamente, o mesmo não pode ser dito do fracasso que constituiu a recusa da primeira candidatura portuguesa à ONU logo no ano de 194651. Este facto mais do que fazer prever que o relacionamento futuro do Estado Novo com aquele organismo seria muito pouco auspicioso, significava acima de tudo que a integração do Portugal autoritário na nova ordem mundial marcada pela Guerra Fria não seria desprovida de dificuldades. É verdade que entre 1946 e 1955, data da admissão portuguesa à ONU, a diplomacia portuguesa acumulou sobretudo vitórias, não tendo sequer sido forçada a romper qualquer espécie de isolamento ou hostilidade generalizada. No entanto, e sobretudo pelo facto de o Governo de Lisboa ter dado um contributo não despiciendo para a vitória aliada na guerra através da cedência de infraestruturas militares nos Açores a britânicos e norte‑americanos (contributo superior ao de alguns países que entraram na guerra no campo aliado e que por isso estiveram em São Francisco e foram membros fundadores da ONU), era de certa forma incompreensível senão a sua ausência da reunião em São Francisco, pelo menos o veto soviético à entrada de Portugal na ONU52. Apesar de, no verão de 1946, se estar já num período de recomposição e reconsolidação do regime após as dificuldades sentidas internamente nos últimos anos da guerra e ainda no pós‑guerra, uma derrota na frente externa, por menor que pudesse ser, e particularmente num contexto em que não se relacionava com os objetivos políticos traçados pelo MNE, não podia obviamente ser bem‑vinda53. No entanto, e como seria de esperar, a reação política natural a essa derrota foi procurar transformá‑la numa vitória.

O embaixador do Governo espanhol em Lisboa constatou essa atitude ao escrever:

«En resumen, lo que mirado superficialmente pudiera parecer un fracaso internacional, en Portugal se presenta casi como un triunfo, puesto que ha promovido una especie de plebiscito entre las naciones aliadas a favor de él, acercándole definitivamente al bloque occidental y presentándole como una víctima del grupo eslavo (...).»54

A «Nota Oficiosa» publicada na imprensa na sequência do veto soviético à candidatura portuguesa sublinhava este como outros factos. Em primeiro lugar, considerava ser «discutível a vantagem prática para qualquer país» de uma entrada nas NU, sobretudo naquela fase da «vida do organismo». Era «igualmente discutível» se seria aquele o «momento (...) oportuno» para Portugal «apresentar» o seu «pedido de admissão», numa altura em que não se encontravam definidas nem tinham sido esclarecidas «todas as regras relativas à admissão de novos membros» e não sendo também ali «unanimemente desejada» a colaboração de todas as nações. Isto numa conjuntura em que a ONU parecia estar «mais presa à ideia da vitória do que à ideia de paz».

Por este facto, «e apesar dos compromissos de Potsdam»55 não se podiam à partida «alimentar grandes dúvidas acerca da posição que a Rússia tomaria no debate» onde viria a ser tratado o problema da admissão de novos estados‑membros. Ainda segundo a «Nota Oficiosa», no momento em que fora apresentada a candidatura faltava apenas saber qual a «orientação» a adotar no Conselho de Segurança por aquela potência: apesar da oposição predefinida, a União Soviética usaria ou não o direito de veto, paralisando assim a «competência que, para a admissão nos termos da Carta» era «exclusiva» da Assembleia?56

O Governo português reconhecia o voluntarismo de que padecera durante todo o processo, nomeadamente ao ter apostado numa apresentação de candidaturas conjunta por parte dos países neutros no verão de 1946. E a razão prendia‑se com o facto de em Lisboa se ter aceitado quase acriticamente a «diligência (...) realizada» junto do executivo de Portugal pelos governos britânico e norte‑americano. Londres e Washington tinham argumentado a favor da candidatura portuguesa e de outros neutrais com aquilo que seria a

«necessidade para a própria organização de que as mais nações, qualificadas pela independência e seriedade de vida, mostrassem por um ato de adesão a sua confiança nas Nações Unidas para a manutenção da paz; e de que assim se fizesse um esforço para a colaboração pacífica entre todos os povos da Terra.»

Orgulhoso da sua atitude temerária, como antes parecera arrependido pelo seu voluntarismo, o Governo português argumentava que o fracasso da sua candidatura ajudava a desfazer os equívocos em que o Reino Unido, os Estados Unidos e outras nações pareciam «laborar»57. Estava‑se perante uma espécie de primeiro ato daquela que devia ser, fruto das reflexões de Salazar, a atitude do Ocidente em face da Rússia58.

Apesar de procurar atenuar o impacto do chumbo imposto por Moscovo, a verdade era que desde a realização da Cimeira de Ialta o Governo português mostrara um certo cuidado quanto às implicações decorrentes da criação de uma nova organização internacional que substituiria a SdN. Esta preocupação ligava‑se com a eventualidade de os requisitos para a entrada de Portugal se mostrarem demasiado onerosos, já que pareciam não estar sintonizados com as características políticas e ideológicas do Estado Novo. E ainda que, de forma alguma, o regime estivesse disposto a mudar por causa da ONU, preferia também não ter que suportar os custos internos e externos de uma eventual marginalização na vida política internacional por causa de uma ausência imposta fosse porque circunstâncias fosse.

Numa fase de grande interesse pela ONU e por todos os eventos que se julgasse incorporarem a mudança em curso na vida da comunidade internacional, João de Bianchi, o embaixador de Portugal em Washington, numa incursão pelo Departamento de Estado, declarou ser desejo do seu Governo, tão rapidamente quanto possível, poder participar na vida das NU. Isto significava que era intenção das autoridades de Lisboa apresentarem, num espaço de tempo tanto curto quanto possível, a sua candidatura a estado-membro daquela organização. Na manhã de 14 de dezembro de 1945, Bianchi informou ainda o Departamento de Estado ter o Governo português sido convocado para comparecer em Londres no mês de janeiro para aí participar numa derradeira reunião da SdN e na qual se iria proceder à «transferência» daquela velha organização para uma outra que passava a ocupar o seu lugar59. Na sequência desta informação, o embaixador português questionou o seu interlocutor norte‑americano sobre a «possibilidade de um arranjo» que permitisse «àqueles membros» da SdN ainda não usufruindo de estatuto idêntico na ONU, poderem vir a ser admitidos neste novo organismo, fazendo‑se acompanhar a «transferência de bens da SdN para a ONU» por uma simultânea «transferência» de estados. Porém, o funcionário de serviço no Departamento de Estado tratou de recordar a impossibilidade desse expediente, uma vez que, segundo o texto jurídico que regulava a vida da ONU, a admissão de novos estados apenas podia ser feita por decisão da Assembleia Geral e após recomendação do Conselho de Segurança60.

Mas os pruridos do Departamento de Estado existentes por meados de dezembro iriam em grande parte desfazer‑se logo no início de janeiro. O antigo subsecretário de Estado Sumner Welles publicou na imprensa norte‑americana um artigo advogando «a admissão imediata dos neutros (menos Espanha) às Nações Unidas». No comentário feito à «atitude de cada um» deles «durante a guerra», afirmou que a do «Governo português» assentava no seu conhecimento de que caso a Alemanha invadisse a Espanha, «Portugal não escaparia». Quanto ao facto de a Alemanha haver comprado produtos estratégicos com o consentimento do Governo de Lisboa, esta atitude decorrera fundamentalmente da convicção por parte das autoridades portuguesas de que essa atitude «diminuía os riscos de agressão contra» o seu país. A verdade por trás da atitude de Portugal durante a Segunda Guerra Mundial teria estado no facto de o «povo português» ter «mantido sempre» a sua tradicional amizade «pela Inglaterra e Brasil» e concedido facilidades para o «uso dos Açores» a «forças navais e aéreas inglesas e americanas». Finalmente, ainda que o regime português mantivesse «traços autoritários», as «recentes eleições» demonstravam que Salazar «tinha em grande medida o apoio popular». Voltando depois à linha geral do seu texto, Welles concluía que a não admissão imediata nas Nações Unidas dos quatro neutros (Suécia, Suíça61, República da Irlanda e Portugal) retardaria não só a «reconstituição política da Europa», mas também a «federação económica» daquele continente, ou seja, o seu mais sólido «fundamento» de «estabilidade»62.

Mas independentemente daquela que era a vontade portuguesa de aderir à ONU e a intenção anglo‑americana de apoiar uma candidatura de Portugal, importa avaliar a forma como Salazar, quando estavam completamente vencidas as dificuldades do fim da guerra e do pós‑guerra, via o papel de Portugal num universo como aquele que era representado pela ONU. Num telegrama para Washington em que resumia o seu último discurso, e no qual apreciara a «posição» portuguesa «perante as Nações Unidas», sublinhava que se a «letra e espírito da Constituição» permitiam a «cooperação» de Portugal com «organismos tendentes a resolver pacificamente as divergências internacionais», àquela data a «não» apresentação do «pedido de admissão» português devia-se ao facto de o Governo ter entendido não haver ainda chegado o momento certo (era ainda «cedo»), uma vez que a entrada de «novos membros» chocava com o «equilíbrio interno das Nações Unidas». E se na primeira sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas os estados‑membros tinham‑se ainda comportado como uma associação de vencedores, Salazar considerava necessário, num futuro próximo, «alargar o seu âmbito não só aos neutros mas também aos vencidos para assim contribuir» para uma «verdadeira representação do Mundo».

De qualquer modo, tanto dentro como fora das NU, a política portuguesa continuaria a seguir ao «lado dos tradicionais imperativos históricos e geográficos», mantendo‑se atenta às «indicações claras do último conflito» que haviam mostrado uma deslocação do «centro de gravidade» da política europeia «senão do Mundo, mais para Oeste», ficando por este facto o Atlântico e os seus «estados ribeirinhos» situados no «primeiro plano» da vida internacional. Porém, «reconhecer» aquele facto não implicava que Portugal deixasse de ser europeu, dava, simplesmente, um «mais largo sentido ao Ocidente». Por outro lado, ao recordar que o Governo português iria «a Genebra votar a dissolução da Sociedade das Nações» e entregar os respetivos «valores» às Nações Unidas, notava neste procedimento a existência de uma «certa falta de lógica», uma vez que Portugal se despojava «daquilo» para que contribuíra «em favor de uma organização a que não» pertencia63. No entanto, Salazar chegou a considerar que a ONU, e vista uma futura presença de Portugal nesta organização, tal como uma maior cooperação política e militar com o Reino Unido e os Estados Unidos (neste caso consequência da deslocação do «centro de gravidade» da política europeia «mais para Oeste»), poderia ser no seu conjunto um instrumento útil para uma preservação futura da segurança e integridade da nação portuguesa (metropolitana e ultramarina)64.

Antes das diligências norte‑americana, britânica e francesa propondo a candidatura de Portugal a país membro da ONU, foram sendo transmitidas por diversos representantes da diplomacia portuguesa no mundo várias impressões sobre a dimensão política daquele organismo, bem como opiniões relativas às iniciativas ao dispor de Lisboa para vencer eventuais obstáculos à sua admissão àquele organismo. Em relação às questões coloniais, os delegados belgas presentes em Londres na primeira sessão da Assembleia Geral da ONU registaram a existência de uma «hostilidade mais grave e geral do que esperavam contra os países coloniais», sentindo‑se «completamente abandonados entre os blocos russo e americano». Estranhando a atitude dos Estados Unidos e dos países latino‑americanos, atribuíam‑na a razões mais de carácter «psicológico» do que «político ou económico», uma vez que se tratava de países que ainda tinham muito presente a sua condição de antigas colónias. Mas o maior e mais imediato receio belga estava na eventualidade de o seu Governo, como os do conjunto das potências coloniais, poder vir a ser obrigado a enviar ao «Secretariado» informações estatísticas relativas aos respetivos territórios não autónomos, o que no caso belga dizia respeito ao Congo (segundo artigo 73.º, alínea e) da Carta), podendo assim ser confundido pelas Nações Unidas, propositadamente, o estatuto daqueles territórios com o dos territórios sob tutela, o que prejudicava e desrespeitava a soberania de Bruxelas sobre aquele seu vastíssimo território africano65.

O ministro dos Negócios Estrangeiros belga mostrou‑se ansioso pela admissão de Portugal. Julgava ser esta uma consequência natural da «atitude» do Governo de Lisboa «durante a guerra», uma fonte de «prestígio para a Europa», e, acima de tudo, garantiria a presença de mais um país «ao lado da boa causa». Aconselhava por isso o ministro que Portugal iniciasse uma rápida aproximação a Moscovo (através do «reatamento das relações» diplomáticas entre os dois países, a pedido de Lisboa), como forma de levar a URSS a não se opor à sua admissão. Isto porque, «por dois motivos», o Governo soviético parecia estar determinado a uma oposição permanente à entrada de Portugal, mesmo se proposta uma troca com «qualquer satélite seu». O primeiro seria o «seu desmedido orgulho»; o segundo seria o «desejo de criar um foco de infecção na Península através (da instalação) de uma representação diplomática e consular» em Lisboa66. De qualquer modo, e em 1946, as autoridades portuguesas olhavam com ambivalência para a ONU. Por um lado, desejavam resolver rapidamente e com êxito a questão da admissão de Portugal, livrando dessa forma o País e o regime de um ostracismo que não conhecera na qualidade de membro que fundara mas que também liquidara a SdN. Além disso, e embora Lisboa acompanhasse com preocupação as críticas de que a Espanha de Franco fora alvo quer na I Assembleia Geral das Nações Unidas inaugurada em Londres a 10 de janeiro de 1946, quer na Conferência de Potsdam ocorrida no verão de 1945, a verdade é que via numa expedita admissão à ONU a possibilidade de escapar a comparações incómodas e em alguns casos descabidas sobre as semelhanças entre o franquismo e o salazarismo. Mas por outro lado, a admissão e a participação nos trabalhos da ONU colocavam Portugal e o Estado Novo submetidos a um conjunto de regras e de práticas que poderiam criar dificuldades e incómodos, nomeadamente, e acima de tudo, no domínio colonial.

Portugal apresentou a sua primeira candidatura a 2 de agosto de 1946. Apreciada em reunião do Membership Committee, a 14 de agosto, foi vetada pelos votos contrários da URSS e da Polónia, tendo a Austrália, «por razões processuais», optado pela abstenção67. Favoravelmente votaram: México, China, França, Estados Unidos, Reino Unido, Brasil, Egito e Holanda. Após estes resultados verificados em reunião do Conselho de Segurança, a Assembleia Geral votou unanimemente a Resolução 35 (I) pedindo ao Conselho de Segurança que reconsiderasse os pedidos não atendidos de admissão de Portugal, Mongólia, Albânia, Jordânia e Irlanda, mas que foram novamente recusados no seu conjunto, e agora definitivamente, para os trabalhos daquele ano, em reunião do Conselho de Segurança de 29 de agosto. Votou‑se exatamente como no dia 14.

1946 foi o ano que maior número e mais intensas movimentações produziu para preparar as candidaturas dos países que haviam permanecido neutrais durante a guerra (com exceção de Espanha). No caso português, a ação teve início em Lisboa com as visitas, separadas, do embaixador norte‑americano e do conselheiro da Embaixada britânica, ao diretor‑geral dos Negócios Políticos no MNE, Marcello Mathias68. Informaram‑no ser portadores de instruções dos «seus governos para (...) comunicar» que apoiariam Portugal numa sua eventual candidatura à ONU, mas sublinhando que nos termos de uma resolução do Conselho de Segurança adotada em maio do ano em curso, os «pedidos de admissão» deveriam ser «transmitidos ao Secretário‑Geral até ao dia 15» de julho69 de forma a poderem ser considerados pelo Conselho ainda durante o mês de agosto. Queixando‑se embora do curto espaço de tempo à disposição do Governo português para poder «decidir em matéria tão delicada», Marcello Mathias agradeceu a «diligência» dos dois governos, sobretudo por ser prova de uma grande «amizade». Marcello Mathias fez ainda sentir, «como primeira reacção» (e era uma opinião a título pessoal manifestada por aquele diplomata português), que o êxito prático da «diligência era muito limitado», uma vez que uma e outra estavam condicionadas pelo texto da Carta das Nações Unidas que exigia, para concretização da admissão, a unanimidade dos «Cinco Grandes, entre os quais a Rússia, com cujo voto dificilmente (se) poderia contar». Não tendo Portugal relações diplomáticas com a URSS, e não estando prevista, por parte do Governo português, qualquer alteração significativa relativamente a esta questão, corria por isso a candidatura do Governo de Lisboa o «sério risco de ser recusada»70.

Que motivos poderiam então levar Portugal a tomar uma atitude que seria naturalmente usada contra o Governo, o regime e o País, além de poder representar um «choque» para os «próprios países que apadrinhariam» a candidatura portuguesa? Quando muito ficaria provado que a ONU, pela «sua constituição e possibilidade de abuso» do direito de veto por parte dos países representados permanentemente no Conselho de Segurança, não cumpria o «propósito de tornar possível a cooperação pacífica» entre as nações. No entanto, o Governo português não pretendia, naturalmente, que «tal demonstração fosse feita» à sua «custa».

Disto se concluía que, não estando garantido à partida o «conhecimento da orientação dos Cinco Grandes», se afigurava difícil a Portugal solicitar a sua «entrada»71. Problema, aliás, já várias vezes exposto pela diplomacia portuguesa e que explicava o desinteresse relativo várias vezes demonstrado para uma apresentação de candidatura por parte de Portugal.

Pelo seu lado, britânicos e norte‑americanos consideravam que perante a possibilidade de um veto isolado da União Soviética à candidatura portuguesa, o efeito negativo desta atitude seria exclusivamente suportado pelo Governo de Moscovo, que assim ficaria mal «perante a opinião mundial». Simplesmente, do lado de Lisboa julgava‑se poder não vir a ser esta a reação da «opinião pública portuguesa», uma vez que sendo ela

«conhecedora da habitual prudência e realismo do Chefe do Governo Português, poderia considerar desaconselhável jogar‑se o prestígio do país sem razões políticas fortes que impusessem tal passo.»

Como se conciliaria assim o dever imposto pelo artigo 4.º da Constituição Portuguesa72, e o consequente cumprimento da lógica constitucional, com a tomada de uma decisão «de resultados incertos ou contraproducentes»? Além disso o Governo português deveria ainda ponderar uma outra questão: se nas «circunstâncias internacionais» do momento e com «as divergências sucessivamente verificadas entre os principais membros das Nações Unidas, haveria vantagem para o País em tomar posição num organismo que certos comentadores internacionais» já supunham condenado à dissolução!?73

No dia 1 de agosto, em iniciativa coordenada com a República da Irlanda, o Governo português decidiu apresentar o seu «pedido de admissão» nas nu, devendo os seus «termos (...) ser os mais sóbrios e exclusivamente indispensáveis»74. As diligências devidas foram tomadas na capital norte‑americana no dia seguinte. Ou seja, depois de ponderados os prós e contras da apresentação da candidatura, pesou o argumento segundo o qual uma recusa portuguesa em avançar colocaria o Governo em maus lençóis, podendo empurrá‑lo para um isolamento delicado e indesejável. Ou seja, em que situação ficaria Portugal (e o seu governo), se fosse ele o único país neutro, de todos os contactados, a não apresentar candidatura? Além disso, a não apresentação de candidatura naquele momento, e ainda que não inviabilizando uma outra a ser feita posteriormente, poderia obrigar o Governo de Lisboa a «concorrer» mais tarde «com países ex‑inimigos, circunstância» que em si também merecia ser «considerada, juntamente com o inconveniente» de Portugal estar a «dar» naquele momento «à Rússia a impressão» de não desejar «agir livremente» por um «receio antecipado» em relação àquela que pudesse vir a ser a «atitude» soviética.

No entanto, previamente a estas dúvidas, um outro ponto fora contabilizado pela diplomacia portuguesa. A eventualidade de a admissão de Portugal nas Nações Unidas poder vir a colocar a cedência de facilidades militares nos Açores a britânicos e norte-americanos, ao abrigo do disposto no artigo 43.º da «Carta da ONU». Embora o Departamento de Estado considerasse a aplicação daquela disposição «subordinada à prévia concordância de todos os interessados, sem a qual não seria possível a execução dos acordos previstos», haveria que reconhecer duas questões:

«1º Qualquer recomendação do Conselho de Segurança que “envolvesse a disposição” das bases açorianas “para defender a paz no mundo”, traria uma “enorme força moral” a Portugal, em primeiro lugar, e ao Reino Unido e Estados Unidos, em segundo.

2º O “emprego” daquele “meio de pressão”, por parte da ONU, “poderia porventura” influenciar “eventuais negociações” entre Portugal, os Estados Unidos e o Reino Unido para a “utilização permanente de facilidades nos Açores.”»

Quanto ao primeiro ponto, embora os Estados Unidos desejassem alargar o âmbito de ação da ONU não pretendiam concentrar toda a sua política externa naquele organismo enquanto meio de resolução dos problemas internacionais, o que era também uma forma de salvaguarda dos seus interesses. Assim, caso uma eventual interferência do Conselho de Segurança da ONU fosse de encontro aos «interesses comuns» de Portugal, Reino Unido e Estados Unidos, nos Açores, Washington não hesitaria em recorrer à utilização do direito de veto. Relativamente aos «inconvenientes» identificados no segundo ponto, consistiam eles, principalmente, num «enfraquecimento» da «posição» portuguesa na eventualidade de Lisboa desejar obter, através de «negociações directas», garantias junto dos utilizadores em troca do uso de facilidades nos Açores. Porém, ouvidas as autoridades norte‑americanas, mostrara‑se haver a intenção de promover, para aquele fim, a negociação direta entre governos, uma vez que se considerava não ser possível «confiar ilimitadamente no funcionamento das Nações Unidas»75.

Em 1947 manteve‑se o veto a Portugal. O Conselho de Segurança considerou novamente a Resolução 35 (I), mas a 18 de agosto a urss e a Polónia repetiram o voto contrário à admissão portuguesa, tendo no entanto os restantes membros do Conselho de Segurança apreciado favoravelmente aquele pedido (a Colômbia substituíra o México e a Síria o Egito). Em novembro, a Assembleia Geral propôs que o Conselho de Segurança reconsiderasse o pedido de Portugal por considerar que aquele se tratava de «um país pacífico»76. Foi então aprovada a Resolução 113 (II) por 40 votos contra nove (Bielorrússia, Checoslováquia, Etiópia, China, Filipinas, Polónia, Ucrânia, URSS e Jugoslávia) e três abstenções (Guatemala, Haiti e Paquistão). No entanto, a orientação do Conselho de Segurança não sofreu qualquer modificação.

No ano seguinte, em setembro, a União Soviética manifestou a sua oposição à inscrição na agenda da 3.ª Assembleia Geral da questão da admissão de novos países na ONU77 . Porém, o Conselho de Segurança considerou a Resolução 113 (II), pendente de 1947. A favor da admissão de novos países votaram a Argentina, o Canadá, a China, a Noruega, a Síria, o Reino Unido, os Estados Unidos e a França. Contra votaram a Ucrânia78 e a URSS. A Assembleia Geral votou ainda uma resolução (197 (III)) semelhante à que havia sido proposta em 1947 pela Austrália e recomendando a adesão de Portugal. Foi aprovada no início de dezembro por 39 votos contra seis e uma abstenção. A resolução tinha também tido uma votação favorável quando foi levada ao comité ad hoc em finais de novembro (ou Comissão Política Especial) – 29 votos pela adesão contra seis.

Em 1949 (13 de setembro), mantiveram‑se no Conselho de Segurança dois votos contrários (URSS e Ucrânia). Favoravelmente manifestaram‑se os restantes membros permanentes do Conselho de Segurança e representantes dos países com assento não‑permanente: Argentina, Cuba, Noruega, Síria e Canadá. Neste ano a Assembleia Geral aprovou a Resolução 296 (IV) pedindo ao Conselho de Segurança que considerasse o pedido português com base num parecer do Tribunal Internacional da Haia. Foi aprovada por 53 votos contra cinco e uma abstenção. A resolução fora também aprovada no comité ad hoc por 41 votos contra cinco e quatro abstenções.

Em 1950, 1951 e 1952, diversos expedientes procuraram desbloquear o impasse em que tinham caído vários pedidos de admissão. Em 1953, aliás, o comité ad hoc rejeitou a proposta polaca para uma «reconsideração conjunta da admissão» da Albânia, Mongólia, Bulgária, Roménia, Hungria, Finlândia, Itália, Portugal, Irlanda, Jordânia, Áustria, Ceilão, Nepal e Líbia por 28 votos contra, 20 a favor e 11 abstenções. Em 1953, instituiu então a Assembleia Geral o Comité de Bons‑Ofícios destinado a persuadir o Conselho de Segurança a uma mudança de atitude face a estas propostas de admissão conjunta. Em 1954, o Comité de Bons‑Ofícios foi reconduzido nas suas funções79.

De qualquer modo, entre 1946 e 1954, sucessivas candidaturas apresentadas por Portugal e por outros países que se tinham mantido neutrais durante a Segunda Guerra Mundial, como fora o caso da República da Irlanda, foram travadas pelo veto soviético, facto que teve duas consequências políticas importantes para o Governo português. Por um lado, possibilitou que o País, o regime e o Governo se apresentassem interna e externamente com um estatuto político e moral idêntico ao da católica Irlanda, mas ainda como vítimas da União Soviética, do comunismo e da Guerra Fria80. Por outro lado, permitiu que se iniciasse, com algum tempo, um processo de reforma da política colonial que alterou profundamente, do ponto de vista jurídico‑político, a arquitetura do Estado e da nação. O Ato Colonial foi integrado na Constituição, ao mesmo tempo que sofreu uma reformulação profunda com o intuito de demonstrar política e juridicamente que o Império Colonial Português, ou as colónias portuguesas, eram, afinal, «províncias ultramarinas» e que Portugal não possuía Império Colonial, mas Ultramar81. Ou seja, a reforma constitucional, na forma e na substância, pretendia subtrair a uma futura fiscalização da ONU, feita ao abrigo do disposto nos artigos 73.º e 74.º da Carta das Nações Unidas, os territórios não europeus e as populações não europeias governadas por Portugal. De Estado‑Nação que tinha um império, Portugal passava a ser, com a revisão constitucional de 1951, um Estado‑Nação que era um império legitimado pela história e pelo direito.

Em 1955 foi resolvida na ONU a questão da admissão de um número alargado de estados, entre os quais se encontrava Portugal82. Um comité político ad hoc da Assembleia Geral criado especialmente para resolver um problema que se arrastava, no caso de alguns países, desde 1946, produzira resultados. Isto depois de, em 1953, e como foi referido, a Assembleia Geral ter criado um «comité de bons ofícios», constituído pelo Egito, Holanda e Peru, com a finalidade de «explorar as possibilidades de se obter um entendimento no Conselho de Segurança que facilitasse a admissão de novos estados-membros de acordo com o artigo 4.º da Carta»83.

Em 1954, a Assembleia Geral «pediu» ao «comité de bons ofícios» que continuasse as diligências para que havia sido criado. A Assembleia Geral decidiu ainda remeter os pedidos pendentes ao Conselho de Segurança com o objetivo de serem novamente considerados e de receberem um maior número de apreciações favoráveis, sendo novamente solicitado ao Conselho de Segurança que assumisse como desejável a invocação das disposições do parágrafo 2 do artigo 28.º da Carta84, de modo a que o problema fosse mais rapidamente solucionado85. No primeiro relatório apresentado pelo «comité de bons ofícios» a 19 de setembro de 1955, ainda que estivessem assinaladas as habituais posições dos membros permanentes relativamente à admissão de novos estados, havia sinais de mudança em função da então considerada como favorável «evolução recente da atmosfera internacional»86. O desanuviamento verificado na política internacional após a morte de Estaline (1953) fornecia alguma margem para tentar enfrentar com maior otimismo o futuro, nomeadamente naquilo que respeitava à questão da admissão de novos estados na ONU87.

Recorde‑se que em 1945, após a Conferência de São Francisco, era de 51 o número de estados‑membros da ONU. Desde essa data, e até novembro de 1955, foram contabilizados 31 pedidos de adesão. Portugal era um deles. Dos 22 candidatos entretanto não admitidos, 14 estados88 haviam conseguido sete89 ou mais votos favoráveis nas reuniões do Conselho de Segurança que trataram esta questão – ou seja, uma clara maioria –, embora esbarrando sempre com o voto contrário de um dos seus membros permanentes: o da União Soviética. Havia depois os restantes sete candidatos90 que receberam sempre menos de sete votos favoráveis nas reuniões do Conselho de Segurança que apreciaram as suas candidaturas. Em 1955, havia ainda o pedido pendente da Espanha, nunca considerado por aquele órgão91. Acordada a sua admissão92, Portugal participou, já na qualidade de país‑membro, na fase final da X sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, entre 15 e 20 de dezembro. O relatório enviado para Lisboa pelo representante português93 revelava uma primeira reação ao funcionamento da ONU, manifestando‑se uma profunda antipatia e razoável incompreensão pela natureza política da instituição e pela prática exibida por vários países e seus representantes.

A 15 de dezembro comentava‑se nos «corredores» das Nações Unidas em Nova York aquilo que teria sido a derrota norte‑americana pela forma como o package deal tinha sido arrumado, chamando‑se a atenção para o facto de a admissão do Japão, por troca com a Mongólia, não ter sido sancionada. Por outro lado, e essa circunstância parecia penalizar a diplomacia americana, o conjunto alargado de admissões aprovado em finais de 1955 tinha resultado de uma iniciativa soviética. Moscovo pedira uma «nova e urgente reunião do Conselho de Segurança para apresentação (de uma) espectacular e decisiva proposta de que resultou a admissão no mesmo dia de dezasseis novos membros». Neste contexto, os Estados Unidos tiveram «resignadamente» que aprovar o pacote soviético e deixar cair o Japão ou aceitar a inaceitável entrada da Mongólia94. Caso contrário seriam acusados de bloquear a admissão de 16 novos estados‑membros95.

De qualquer forma, este alargamento trouxe, segundo palavras do representante português, uma «atmosfera (...) de optimismo», considerando que se dera um importante passo para a «definitiva consagração do princípio da universalidade sobre quaisquer restrições ideológicas ou de expediente»96. Depois de sentado, «provisoriamente», entre o Nepal e a Roménia, o delegado português foi felicitado por representantes de vários países, destacando‑se Sir Pierson Dixon do Reino Unido – feliz pela admissão do seu «oldest ally» –, Alphand pela França e vários delegados das Américas. Inclusivamente, um representante da União Indiana, o padre Jerónimo de Sousa, cumprimentou calorosamente o chefe da novíssima delegação permanente de Portugal. Iniciada a sessão, tiveram «palavras de particular apreço para Portugal os delegados da Colômbia», Venezuela, Paquistão e República Dominicana. Por seu lado, antecipando o futuro, o representante indiano considerou‑se feliz pela admissão de 16 novos países, mas acrescentou:

«My country recognizes each one of them and has diplomatic and friendly relations with them all – with all but one perhaps but we have diplomatic relations with all of them. Thus we welcome them all equally.»97

Depois foi uma correria de diligências por parte de vários países tentando conquistar o voto lusitano, o que parecia tornar Portugal em mais uma «vítima do caciquismo de matriz parlamentar prevalente (sic) na organização». No entanto, o voto português não foi dado a ninguém. Faltavam «instruções». Nas votações Portugal abstinha‑se ou ausentava‑se da sala.

Porém, na eleição do novo representante não‑permanente no Conselho de Segurança o delegado português participou com o seu voto. Os trabalhos da Assembleia Geral tinham, antes da admissão dos novos estados, procurado eleger um dos candidatos (Jugoslávia ou Filipinas), mas os 29 escrutínios realizados até 15 de dezembro não tinham dado a nenhum dos países os dois terços de votos da Assembleia Geral necessários à eleição. Este facto decorria de uma tentativa de alguns países em alterar as regras de eleição dos representantes não‑permanentes. Segundo essa regra era o momento de eleger um país do Sudeste Europeu. Simplesmente, alguns países que consideravam tal acordo ultrapassado defendiam dever ser atribuído o lugar a um Estado do Sudeste Asiático – consequência da «importância que essa zona do Mundo passava a ter». A manutenção do statu quo tinha o apoio da maioria do grupo europeu (França e Reino Unido incluídos), e do «grupo soviético». Os Estados Unidos «e grande parte do numericamente forte grupo latino‑americano» apoiavam uma mudança de atitude e, portanto, a eleição das Filipinas. Houve então «necessidade de se recorrer mais uma vez à política de corredor».

Na reunião do grupo europeu, o representante português procurou ouvir e esclarecer-se, não manifestando a intenção de vir a apoiar «firmemente as Filipinas» na votação secreta que teria lugar, enquanto notava que a «coesão do grupo europeu ocidental» parecia uma «coisa não perfeitamente clara». De qualquer modo, não revelou nem deixou «entrever o sentido em que» Portugal ia votar, sobretudo porque «não havia a excluir a hipótese de a Jugoslávia vir no fim a ganhar o lugar». Não descortinava também qualquer vantagem em «hostilizar» o bloco europeu, sobretudo porque estava tomada a decisão de apoiar a Jugoslávia. Assumir um papel «quixotesco» não era uma possibilidade. Face à auscultação feita por Alphand sobre o sentido de voto dos representantes dos países presentes, o «espanhol» manifestou as «reservas» do governo do seu país à candidatura jugoslava. O português, considerando «não haver vantagem em ir tão longe», afirmou não ter ainda «recebido instruções», pelo que «reservava a posição» portuguesa sobre o assunto.

Várias diligências depois (levadas a cabo por uns quantos delegados e pelo presidente da Assembleia Geral), ao fim de «trinta e seis escrutínios» e com a abstenção portuguesa, a Jugoslávia foi eleita como membro não‑permanente do Conselho de Segurança. Encerrado este episódio, o representante de Portugal censurava, para além dos princípios e o modo de funcionamento da ONU, cheio de jogadas de bastidores, o comportamento da Espanha.

«(...) parece‑me ser de deixar (...) aqui (...) uma reflexão breve acerca da atitude do delegado espanhol, o qual, aproveitando‑se da confusão, alienou as Filipinas, por que se batera, para arrebanhar um voto em favor do seu país, que juntou decerto ao seu próprio. Esperava ele novo escrutínio em que me disse dever a Espanha obter 12 votos – certamente para ver se lhe daríamos o nosso. Antes que ele fosse mais longe na sondagem, disse‑lhe secamente que não abandonaríamos as Filipinas. Pouco depois, um dos secretários espanhóis, decerto sem conhecer as apressadas manobras do seu chefe, lamentava‑se da falta de coesão manifestada pelos americanos.»98

 

CONCLUSÃO

A história da relação de Portugal com a Organização das Nações Unidas, nomeadamente no espaço de tempo relativamente longo (1941‑1955) que mediou entre a gestação desta e a admissão daquele, foi, em primeiro lugar, a história do modo como um pequeno país com o estatuto de potência neutral no decurso da Segunda Guerra Mundial assistiu e se preparou para uma mudança profunda na forma como a sociedade internacional se organizou e o poder foi distribuído entre os seus membros. A questão da admissão portuguesa e do seu protelamento por quase uma década teve apenas uma importância relativa. E vale não tanto por aquilo que significou para Portugal, mas por aquilo que indiciava, ou ensinava, sobre o modo como a ONU era, ao menos em parte, um espelho da forma como a sociedade internacional, ou o sistema internacional, foi reformulada e funcionou a partir de 1945‑1946. É claro que após a entrada de Portugal e a visibilidade e o peso que a questão colonial ganhou na política externa portuguesa, amplificou o papel, mais simbólico do que real, da ONU na tentativa de resolução da questão colonial lusa. Ainda assim, quer depois da admissão de Portugal, quer, sobretudo, no período aqui analisado, a história da política externa portuguesa esteve longe de se resumir ou ser dominada pela ONU. E foi assim, resumidamente, porque não coube àquela instituição o papel de regulação do sistema internacional e de legitimação política dos estados que as autoridades portuguesas e os seus arquitetos, sobretudo os «Três Grandes», terão, respetivamente, temido e desejado. Ainda durante a guerra, nomeadamente através dos acordos celebrados com o Reino Unido e com os Estados Unidos para a concessão de «facilidades» militares no arquipélago dos Açores, foram abertos outros canais de integração de Portugal e do Estado Novo na ordem internacional em formação. Depois de 1945, e apesar de o Estado português ter visto recusada a sua admissão nas Nações Unidas, não apenas contou com a solidariedade da generalidade dos estados‑membros perante esta adversidade, como não foi o único país neutral a ver‑se impedido de começar a participar nos trabalhos da ONU. Mas além do mais, várias e importantes oportunidades surgiram entre 1946 e 1955 para que Lisboa escapasse ao isolamento, ou ao ostracismo, que uma não pertença à ONU poderia sugerir. O facto de ter sido convidado e ter aceitado participar na fundação da Organização Europeia de Cooperação Económica (OECE) em abril de 1948 e do Pacto do Atlântico em abril de 1949, ou de, em 1951, ter celebrado com os Estados Unidos um acordo político‑militar sobre o uso de meios militares nos Açores pelos norte‑americanos, contribuiu de forma decisiva para que a questão do isolamento internacional nunca se colocasse ao salazarismo. Isto significa, portanto, que apesar das mudanças ocorridas no sistema internacional após o fim da Segunda Guerra Mundial, além de outras que tiveram lugar quer antes do deflagrar da guerra quer no seu decurso, a política externa e a diplomacia de Portugal foram capazes de se adaptar a essas mudanças e de as incorporarem sem, no entanto, haver um sacrifício daquilo que se considerava ser o essencial do interesse nacional99. Ao contrário daquilo que o Governo português temeu nos alvores da criação da ONU e da definição daquilo que devia ser a ordem internacional após o fim da Segunda Guerra Mundial, nada de fundamental mudou nas opções de política externa, política interna e política colonial. E no entanto, em 1955 cada uma daquelas era muito diferente do que tinha sido dez, quinze ou vinte anos antes.

 

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Data de receção: 13 de maio de 2015 | Data de aprovação: 6 de julho de 2015

 

NOTAS

1«Concessão de facilidades nos Açores – a situação das possessões portuguesas no Extremo Oriente». In SALAZAR, Oliveira – Discursos e Notas Políticas. Vol. 4. 1943-1950. S.e. Coimbra: Coimbra Editora, 1951, p. 46.

2 PLESH, Dan – America, Hitler and the un. How the Allies Won World War II and Forged a Peace. S.e. Londres/Nova York: I. B. Tauris, 2011.

3 Isto apesar de a Alemanha ter eventualmente podido ganhar a guerra na Europa em 1941 ou 1942 e de Oliveira Salazar ter procurado perceber o que seria, e como seria, uma ordem política europeia ditada por uma Alemanha vitoriosa. Além do mais, o chefe do Governo português procurou adaptar a sua política externa e várias opções de política interna às circunstâncias decorrentes das sucessivas vitórias militares alcançadas pelos exércitos alemães até meados de 1942. MENESES, Filipe Ribeiro de – Salazar. A Political Biography. 1.ª edição. Nova York: Enigma Books, 2009, pp. 233-249.

4 SALAZAR, Oliveira – «Os princípios e a obra da Revolução no momento interno e no momento internacional». Ini Discursos e Notas Políticas. Vol. 4. 1943-1950, pp. 383-415. Discurso pronunciado a 27 de abril aos microfones da Emissora Nacional.

5 NOGUEIRA, Franco – Salazar. Vol. III. As Grandes Crises (1936-1945). 3.ª edição. S.l.: Liv. Civilização Ed., s.d., p. 402. Itálico no original. A entrada do Brasil na guerra em agosto de 1942 deitou definitivamente por terra esta ambição de Salazar.

6 A queda de Mussolini em julho de 1943 teve um grande impacto na vida política portuguesa, tanto na sua vertente interna (no seio do regime e nas oposições) como externa. Salazar considerou, durante algumas semanas, que o afastamento do líder fascista italiano tornava inevitável o seu próprio derrube e o fim do Estado Novo. Por outro lado, após o afastamento de Mussolini da condução dos destinos da Itália por Vítor Emanuel III, no dia seguinte à realização de uma reunião do Grande Conselho Fascista em que se votou por ampla maioria que o rei reassumisse todos os seus poderes constitucionais, era evidente que a política externa portuguesa se fragilizaria. E seria assim pelo facto de poder fazer cada vez menos uso, no seu relacionamento com os Aliados, e em particular nas negociações com os britânicos Para a cedência de «facilidades» nos Açores, do argumento segundo o qual a existência de uma ameaça política e militar do Eixo, nomeadamente sobre a Península Ibérica, condicionava as decisões e limitava aquilo que seria a capacidade e a vontade do Governo de Lisboa colaborar com os Aliados. Eixo e Aliados com poder equivalente fortaleciam a posição externa de Portugal porque aumentava o poder negocial português. Numa situação em que o poder do Eixo e dos Aliados fosse assimétrico ficava dificultada a manobra político-diplomática portuguesa. Foi assim entre junho de 1940 e novembro de 1942 (quando o Eixo era mais forte) e entre julho de 1943 e junho de 1945 (quando os pratos da «balança do poder» começaram a pender claramente para o lado dos Alia dos). Veja-se, por exemplo, MENESES, Filipe Ribeiro de – Salazar. A Political Biography, caps. iii e iv. Sobre as dúvidas e receios de Salazar acerca da viabilidade da sua carreira política após a queda de Mussolini, «Carta de Pedro Theotónio Pereira a Oliveira Salazar», 28 de julho de 1943. COMISSÃO DO LIVRO NEGRO SOBRE O REGIME FASCISTA – Correspondência de Pedro Teotónio Pereira para Oliveira Salazar. Vol. IV. (1943. 1944). S.e. S.l.: Presidência do Conselho de Ministros, 1991, pp. 241-247 (doc. n.º 32).

7 A derrota da Alemanha só se tornou inevitável no verão de 1944. «The success of the D-Day landings sealed Hitler’s fate, as the landings in Italy a year before sealed Mussolini’s.». In OVERY, Richard – Why the Allies Won. S.e. Nova York/Londres: W. W. Norton & Company, 1995, p. 21. Foi também no verão de 1944 que representantes dos governos chinês, soviético, britânico e norte-americano se reuniram em Dumbarton Oaks, Georgetown, Washington, para discutirem os planos para a constituição de uma organização que manteria a «paz permanente» no mundo do pós-guerra. HILDERBRAND, Robert C. – Dumbarton Oaks: The Origins of the United Nations and the Seeds for Post-War Security. S.e. Chapel Hill, NC: University of North Carolina Press, 1990, p. 1.

8 Ano e meio mais tarde, na Conferência de Ialta, é possível que Salazar não se surpreendesse por saber que o moribundo Presidente Roosevelt concordava com a asserção de Estaline segundo a qual embora «as pequenas potências tivessem direitos que deviam ser protegidos», não deviam «julgar as ações das grandes potências». Por isso, segundo Roosevelt, a «paz devia ser redigida pelos Três Grandes». Ao que «cinicamente» Churchill terá acrescentado: «The eagle should permit the small birds to sing and care not wherefore they sang.» KIMBALL, Warren F. – «“The Family Circle”: Roosevelt’s vision of the post-war world». In The Juggler: Franklin Roosevelt as Wartime Statesman. S.e. Princeton: Princeton University Press, 1994, p. 98.

9 «Concessão de facilidades nos Açores – a situação das possessões portuguesas no Extremo Oriente», pp. 45-46.

10 Sobre as hesitações, tensões e contradições, mas também resultados concretos, que rodearam contactos e negociações diplomáticas (de âmbito tanto civil como militar) mantidas entre os «Três Grandes» sobre a questão da organização de uma nova ordem internacional, a bibliografia é vasta e muito centrada na ação dos Estados Unidos (o que de qualquer forma tem lógica, uma vez que foi a Administração Roosevelt que liderou o processo global de condução da guerra e de preparação da paz, independentemente daquilo que foi a importância vital da União Soviética na derrota militar do III Reich e a relevância do Império Britânico nas reflexões e soluções encontradas para definir uma nova ordem política internacional). PLESH, Dan – America, Hitler and the un. How the Allies Won World War II and Forged a Peace; MAZOWER, Mark – No Enchanted Palace. The End of Empire and the Ideological Origins of the United Nations. S.e. Princeton/Oxford: Princeton University Press, 2009; ROBERTS, Geoffery – «Stalin at the Tehran, Yalta, and Potsdam conferences». In Journal of Cold War Studies. Vol. 9, N.º 4, 2007, pp. 6-40; CHARMLEY, John – Churchill’s Grand Alliance. The Anglo-American Special Relationship 1940-57. S.e. S.l.: Sceptre, 1995; HOOPES, Townsend, e BRINKLEY, Douglas – FDR and the Creation of the UN. New Haven: Yale University Press, 1997; KIM-BALL, Warren F. – The Juggler: Franklin Roosevelt as Wartime Statesman. S.e. Princeton: Princeton University Press, 1994; HILDERBRAND, Robert C. – Dumbarton Oaks: The Origins of the United Nations and the Seeds for Post-War Security; LUARD, Evan – A History of the United Nations. Vol. I. The Years of Western Domination, 1945-1955. S.e. S.l.: Macmillan Press, 1982, pp. 3-90.

11 Foi em Teerão que se encontraram pessoalmente, pela primeira vez, Estaline, Churchill e Roosevelt. A conferência decorreu de 28 de novembro a 1 de dezembro de 1943. No dia 1 de dezembro foi assinada a Declaração das Três Potências que mencionava a índole do organismo que sucederia à Sociedade das Nações (SdN). Sobre a Conferência de Teerão, DALLEK, Robert – Franklin D. Roosevelt and American Foreign Policy, 1932-1945. With a New Afterword. 2.ª edição. Oxford/Nova York: Oxford University Press, 1995, pp. 423-441; HOOPES, Townsend, e BRINKLEY, Douglas – FDR and the Creation of the U.N. S.e. New Haven/Londres: Yale University Press, 1997, pp. 97-109; MASTNY, Vojtech – «Soviet war aims at the Moscow and Teheran conferences of 1943». In The Journal of Modern History. Vol. 47, N.º 3, 1975, pp. 481-504; FOLLY, Martin – «“A long, slow and painful road’: the Anglo-American alliance and the issue of cooperation with the USSR from Teheran to D-Day». In Diplomacy & Statecraft. Vol. 23, N.º 3, 2012, pp. 471-492.

12 Sobre a conferência de Ialta veja-se, REYNOLDS, David – Summits: Six Meetings That Shaped the Twentieth Century. S.e. Nova York: Basic Books, 2007, pp. 103-161. Sobre as conferências de Ialta e de Potsdam, FUNK, Arthur – 1945. De Yalta a Potsdam. Des illusions a la guerre froide. S.e. S.l.: Editions Complexe, s.d. Sobre os «Três Grandes» e as respetivas e distintas conceções da paz.

13 A Carta do Atlântico pode ser vista como o «primeiro vislumbre» daquilo que veio a ser a ONU. HOOPES, Townsend, e BRINKLEY, Douglas – FDR and the Creation of the U.N., pp. 26-42. Isso não significa que entre a Cimeira de Argentia Bay e a Conferência de São Francisco, a história da criação da onu tenha sido previsível e linear.

14 HOOPES, Townsend, e BRINKLEY, Douglas – FDR and the Creation of the U.N., pp. 45-47. A Declaração das Nações Unidas foi apresentada a Roosevelt pelo secretário de Estado Cordel Hull ainda antes da chegada de Winston Churchill à capital dos Estados Unidos para a realização de um encontro que decorreu durante cerca de três semanas e que ficou conhecido por I Conferência de Washington (ou Conferência de Arcadia, segundo o seu nome de código). Iniciou-se a 22 de dezembro de 1941 e terminou a 14 de janeiro de 1942. Naquele documento as «nações anti-Eixo afirmavam os princípios da Carta do Atlântico, e descreviam-se como defensoras da vida, da liberdade e da independência (…)». Comprometiam-se a cooperar e a serem determinados em tempo de guerra, nomeadamente não cessando as hostilidades, exceto se em comum acordo. DALLEK, Robert – Franklin D. Roosevelt and American Foreign Policy, 1932-1945. With a New Afterword, p. 318. Veja-se ainda KIMBALL, Warren F. – Forged in War. Roosevelt, Churchill, and the Second World War. 1.ª edição. Nova York: William Morrow and Company, Inc., 1997, pp. 117-153.

15 No que respeita ao lugar do sistema colonial internacional numa nova ordem política definida pela Organização das Nações Unidas (ONU), e tal como pensada pelos seus arquitetos, existem, no essencial, duas correntes historiográficas com interpretações divergentes. Uma primeira, ortodoxa e hegemónica, sustenta que durante toda a Segunda Guerra Mundial os norte-americanos defenderam, nomeadamente em negociações com os britânicos, que o fim mais ou menos imediato do colonialismo devia encontrar-se entre os elementos prioritários constitutivos de uma nova ordem internacional. Plasmar-se-ia, portanto, no espírito e na letra das regras que definissem os objetivos primordiais da organização internacional que substituiria a SdN. Veja-se, entre outros, LOUIS, W. Roger – Imperialism at Bay 1941-1945. The United States and the Decolonization of the British Empire. S.e. Oxford (Estados Unidos): Oxford University Press, 1986; e KIMBALL, Warren F. – «“In Search of Monsters to Destroy”: Roosevelt and Colonialism». In The Juggler: Franklin Roosevelt as Wartime Statesman, pp. 27-157. A segunda, revisionista e minoritária, nega a preponderância do ideário anticolonialista e anti-imperialista norte-americano na definição daquilo que devia ser não só a nova ordem internacional saída da guerra, mas também os objetivos essenciais de uma nova organização política garante da segurança internacional. Esta interpretação chama a atenção para a importância que experientes funcionários e políticos britânicos, defensores do modelo imperial emanado de Londres tal como reformulado sobretudo a partir do início do século XX, tiveram na formulação dos princípios e práticas jurídico-políticas daquilo que viria a ser a ONU. Questiona ainda o pressuposto segundo o qual o edifício de instituições internacionais nascido com a SdN e, mais tarde, consolidado sob a égide da ONU, se deva, exclusivamente, ou predominantemente, ao pensamento e à ação do Presidente Woodrow Wilson. Segundo esta interpretação foi o «pensamento colonial britânico» que deu grande parte da consistência e da coerência que a ONU possuiu; tanto no seu processo de gestação como nos primeiros anos da sua existência. MAZOWER, Mark – No Enchanted Palace. The End of Empire and the Ideological Origins of the United Nations.

16 ROSAS, Fernando – «A neutralidade portuguesa durante a II Guerra Mundial no quadro da política externa do Estado Novo (1935-1945)». In TORRE GÓMEZ, Hipólito de la (coord.) –Portugal, España y Europa. Cien Años de Desafío. S.e. Mérida: Univ. Nacional de Educación a Distancia, Centro Regional de Extremadura, 1991, pp. 118-120. O autor considera, para o período de 1935 a 1945, a existência de três «objectivos e pressupostos da política externa do Estado Novo»: «A defesa da independência nacional face ao “perigo espanhol”»; «A defesa do património colonial (...)» e «A defesa da sobrevivência do regime». Na verdade, e quanto aos objetivos, a política externa de Salazar durante a Segunda Guerra Mundial nada tinha de singular por comparação, por exemplo, com a que a I República prosseguira entre 1914 e 1918. A única grande diferença estava nos meios a usar. Salazar estava convencido que era mais provável cumprir os objetivos optando pela neutralidade. Na Grande Guerra predominou a visão de que os objetivos da política externa portuguesa seriam atingidos por via da beligerância ao lado do Império Britânico e seus aliados.

17Telegrama n.º 480. Da Embaixada de Portugal em Washington para o MNE. 8 de junho de 1943. Arquivo Histórico-Diplomático do MNE (AHDMNE). Telegramas recebidos de Washington, D.C.

18 Ofício n.º 185. Da Legação de Portugal em Washington para o MNE. 1 de setembro de 1943. AHDMNE. Embaixadas e legações. Washington, DC, maço 116.

19 Ofício n.º 202. Da Legação de Portugal em Washington para o MNE. 16 de setembro de 1943. AHDMNE. Embaixadas e legações. Washington, DC, maço 124.

20 The National Archives. Kew, Richmond. Surrey (TNA), FO371-49474. File: 2905. Despacho da Embaixada do Reino Unido em Lisboa para o Foreign Office (FO), Londres. 28 de fevereiro de 1945.

21 Noutros meios evocavam-se também os resultados da Conferência de São Francisco. No mês de julho, durante a discussão na Assembleia Nacional da revisão da Constituição, Mário de Figueiredo evocou a letra e o espírito da Carta aprovada na Conferência de São Francisco. Considerava ele que a reformulação da Constituição talvez devesse contemplar o disposto no artigo 55.º da Carta das Nações Unidas: «As Nações Unidas promoverão mais altos estalões de vida, emprego para todos e condições de progresso e desenvolvimento económico e social.» Afirmava depois: «A fórmula contém realmente tudo aquilo que nós podemos ver disseminado pela generalidade das Constituições modernas; é sugestiva: então porque é que não se consagra no texto da Constituição? Avanço a afirmação: também não é preciso nesta matéria alterar a Constituição Política Portuguesa. Já lá está o mesmo.» A Constituição, apesar do que passara no mundo nos últimos dez anos, mantinha-se atual. Diário das Sessões, n.º 186, 3 de julho de 1945, 707.

22 Telegrama n.º 399 da Embaixada de Portugal em Washington para o MNE. 6 de abril de 1945. AHDMNE. Telegramas enviados para Washington, dc.

23 Telegrama n.º 662 da Embaixada de Portugal em Washington para o MNE. 22 de junho de 1945. AHDMNE. Telegramas recebidos de Washington, DC.

24 «Conforme comuniquei anteriormente o seu medo de uma interferência dos Estados Unidos na Europa depois da guerra atinge a obsessão.»

25 TNA, FO371-26794. File: 417439. Despacho da Embaixada do Reino Unido em Lisboa para Londres (FO). 28 de junho de 1941.

26 «Conversa de abertura ontem à noite, Dr. Salazar deu a Eccles as boas-vindas de regresso à civilização. Olha para os Americanos como um povo bárbaro iluminado não por Deus mas pela luz elétrica. Não estaríamos nós receosos que o mundo depois da guerra fosse governado pelos Estados Unidos com uma enorme impetuosidade do Comunismo? Esta era uma perspetiva horrível para a Europa.» TNA, FO371-26795. File: 417570. Despacho da Embaixada do Reino Unido em Lisboa para Londres (FO). 2 de julho de 1941.

27 Sir David Eccles. Funcionário do Ministry of Economic Warfare. Em finais de abril de 1961, quando visitou novamente Portugal a título particular, era ministro da Educação do Gabinete britânico de então, chefiado pelo conservador Harold Macmillan. Naquela data, «título oficioso e particular» terá declarado a Salazar que a «política portuguesa em África» tinha a «simpatia e o aplauso de largos círculos do Partido Conservador britânico». NOGUEIRA, Franco – Salazar. Vol. V. Resistência (19581964). S.e. S.l.: Livraria Civilização Ed., s.d., p. 232.

28 Norweb deixou o seu posto dois dias depois.

29 «O encontro foi pois de uma intimidade pouco usual e concedeu a si próprio uma atmosfera de cordialidade muito para além de qualquer outro vivido pelo Embaixador nas suas anteriores conversas com o primeiro-ministro. O Dr. Salazar esteve calmo, amigável e à-vontade durante a conversa, e parecia inteiramente despreocupado em relação às dificuldades internas que dizem que tem vindo a enfrentar.»

30 A sua preocupação com a guerra contra o Japão devia-se à ocupação nipónica de Timor, ao facto de o Governo português pretender ser consultado sobre os termos em que se libertaria este território, e à circunstância de Macau se encontrar desde 1942 à mercê de uma ocupação por tropas do Império do Sol Nascente.

31 National Archives-Department of State, Washington, DC (NA-DS). General Records of the Department of State. Decimal File: 1945-1949. Box n.º 6365. Doc. 853.00/2-1745. Embaixada dos Estados Unidos em Lisboa, 17 de fevereiro de 1945.

32 Como escrevia um especialista norte-americano em política internacional, a propósito da posição portuguesa no mundo do pós-guerra: «No Atlântico e em África, Portugal espera a boa vontade Anglo-Americana para a manutenção dos seus territórios extracontinentais; no Pacífico compreende a sua grande dependência dos Estados Unidos.» NA-DS. General Records of the Department of State. Decimal File: 1945-1949. Box n.º 3328. Doc. 711.53/2-1245. Embaixada dos Estados Unidos em Lisboa, 12 de fevereiro de 1945.

33 CAETANO, Marcello – Minhas Memórias de Salazar. 3.ª edição. Lisboa: Ed. Verbo, 1977, p. 182 (itálico meu). Encontro num Domingo, 2 de setembro, em São Bento ao fim da tarde.

34 «(...) Salazar logrou obter como contrapartida da neutralidade portuguesa a salvaguarda do seu regime durante e após a guerra, apoiado nos aliados anglo-americanos. (...) os aliados (...) sempre desmentiram e recusaram expressamente qualquer hipótese de fazer perigar o regime salazarista.» ROSAS, Fernando – «A neutralidade portuguesa durante a II Guerra Mundial no quadro da política externa do Estado Novo (1935-1945)», p. 126.

35 NA-DS. General Records of the Department of State. Decimal File: 1940-1944. Box n.º 5129. Doc. 853.00/1074. Legação dos Estados Unidos em Lisboa, 28 de abril de 1943.

36 SALAZAR, Oliveira – «Os princípios e a obra da Revolução no momento interno e no momento internacional», pp. 383-415.

37 Ibidem, p. 407.

38 Ibidem, p. 408. Salazar ainda considerava, senão possível, pelo menos desejável, o não aniquilamento total da Alemanha e, portanto, a utilização por parte de britânicos e norte-americanos das forças alemãs para travar o avanço do Exército Vermelho pela Europa Central. Desta forma pretendia que se protegesse não só aquela vasta área do continente como, indiretamente, a sua parte mais ocidental, tanto de uma ameaça comunista como da emergência de uma potência hegemónica na Europa. Rosas, Fernando – «A neutralidade portuguesa durante a II Guerra Mundial no quadro da política externa do Estado Novo (1935-1945)», p. 125. Por exemplo, em relatório de 5 de outubro de 1944, proveniente da Embaixada dos Estados Unidos em Lisboa, era comunicado que Salazar não desejava uma vitória das NU sobre a Alemanha, facto apenas explicável pela sua «Russofobia». O chefe do Governo português tinha esperança que se chegasse a uma «paz negociada» sem «uma derrota completa da Alemanha», considerando que uma vitória aliada levaria à «bolchevização da Europa.» NA-DS. General Records of the Department of State. Decimal File: 1940-1944. Box n.º C -212. Doc. 853.00/10 -544.

39 A 18 de agosto de 1943 foi assinado o acordo luso-britânico de concessão de facilidades nos Açores. «Assenta-se em 8 de Outubro para a chegada dos efectivos britânicos» ao arquipélago. O Governo soviético é informado por Roosevelt e Churchill que se encontravam reunidos no Quebeque. «Em suspenso estão duas interrogações: qual a reacção alemã? Qual a reacção dos espanhóis?». NOGUEIRA, Franco – História de Portugal. 1933-1974, II Suplemento. S.e. Porto: Livraria Civilização, 1981, p. 212. Detalhes acerca das reações espanhola, alemã e japonesa à notícia sobre o acordo podem se lidos Ibidem, pp. 212-214. Veja-se ainda Meneses, Filipe Ribeiro de – Salazar. A Political Biography, pp. 275-288.

40 SALAZAR, Oliveira – «Os princípios e a obra da Revolução no momento interno e no momento internacional», pp. 408-409 (itálico meu).

41 Ibidem, pp. 410-411.

42 Ibidem, p. 411.

43 Ibidem, p. 412.

44 Sobre a relutância britânica em descolonizar após a Segunda Guerra Mundial, destaco, entre uma vasta bibliografia, GALLAGHER, John – «The decline, revival and fall of the British Empire». In GALLAGHER, John, e seal, Anil (eds.) – The Decline, Revival and Fall of the British Empire. The Ford Lectures and other Essays. S.e. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, pp. 73-153; DARWIN, John – Britain and Decolonisation. The Retreat from Empire in the Post-War World. S.e. S.l.: Macmillan, 1988, e, numa análise muito centrada em questões económicas, financeiras e monetárias, CAIN, P. J., e HOPKINS, A. G. – British Imperialism: Crisis and Deconstruction 1914-1990. S.e. Londres/Nova York: Long-man, 1993. Sobre a dolorosa descolonização do império ultramarino francês, BETTS, Raymond F. – France and Decolonisation, 1900-1960. S.e. S.l.: Macmillan, 1991. Finalmente, sobre a tenaz resistência holandesa à descolonização das suas «Índias Orientais», HOMAN, Gerlof D. – «The Netherlands, the United States and the Indonesian question, 1948». In Journal of Contemporary History. Vol. 25, N.º 1, janeiro de 1990, pp. 123-141.

45 (Consultado em: 28 de julho de 2015). Disponível em: http://www.un.org/en/members/growth.shtml#text.

46 SALAZAR, Oliveira – «Portugal, a Guerra e a Paz». In Discursos e Notas Políticas. Vol. 4. 1943-1950, pp. 101-122. Este discurso de Salazar na Assembleia Nacional foi acompanhado da entrega de uma proposta de lei de revisão da Constituição e do Ato Colonial. Foi aprovada pela Assembleia Nacional e pela Câmara Corporativa. Caracterizava-se, essencialmente, por alterações à Lei Eleitoral e à composição da Assembleia Nacional, tudo isto de forma a garantir (do ponto de vista do regime), uma maior democraticidade do sistema político português. As alterações ao Ato Colonial, por seu lado, introduziram uma tímida descentralização de natureza político-administrativa (cf. os artigos 27.º, 28.º e 40.º).

47 Raciocínio feito a partir dos factos ocorridos com e na SdN.

48 SALAZAR, Oliveira – «Portugal, a Guerra e a Paz», pp. 101-122.

49 NA-DS. General Records of the Department of State. Decimal File: 1945-1949. Box n.º 6365. Doc. 853.00/2-1745. Despacho n.º 1478. Embaixada dos Estados Unidos em Lisboa. 17 de fevereiro de 1945.

50 NA-DS. General Records of the Department of State. Decimal File: 1945-1949. Box n.º 6365. Doc. 853.00/2-645. Despacho n.º 1436. Embaixada dos Estados Unidos em Lisboa. 6 de fevereiro de 1945.

51 SILVA, Isabel Alarcão e – «A admissão de Portugal na ONU». In História. Ano XV, N.º 165, junho de 1993, pp. 12-41.

52 Por exemplo, a 4 de junho de 1946, Ernest Bevin, trabalhista, ministro dos Negócios Estrangeiros do Governo britânico, proferiu um discurso na Câmara dos Comuns em que sublinhou a importância para os Aliados, durante a guerra, das facilidades concedidas pelo Governo português nos Açores. MATHIAS, Marcello – Correspondência Marcello Mathias/Salazar. 1947/1968. Prefácio de J. Veríssimo Serrão; seleção, organização e notas de M.ª José Vaz Pinto. 2.ª edição. Lisboa: Difel, 1984, p. 78.

53 Pedro Theotónio Pereira, embaixador de Portugal no Rio de Janeiro em 1946, sublinhou que o «problema» da «nossa entrada ONU» fora uma vez mais pretexto para que Portugal e o Estado Novo tivessem sido alvo de vários «ataques» em alguma imprensa brasileira. «Da Embaixada de Portugal no Rio de Janeiro para o MNE». Telegrama n.º 400. 23 de agosto de 1946. AHDMNE. 2.º piso, arm. 48, maço 209. «Relações Políticas com o Brasil. 1940 a 1949».

54 «Em resumo, o que visto superficialmente poderia parecer um fracasso internacional, em Portugal apresenta-se quase como um triunfo, posto que promoveu uma espécie de plebiscito entre as nações aliadas em favor dele, aproximando-o definitivamente do bloco ocidental e apresentando-o como uma vítima do grupo eslavo (...).» VICENTE, Ana – Portugal Visto pela Espanha. Correspondência Diplomática 1939-1960. S.e. S.l.: Assírio & Alvim, 1992, p. 56.

55 No comunicado à imprensa assinado por Bevin, Estaline e Truman, tornado púbico a 2 de agosto, podia ler-se: «X. CONCLUSÃO DOS TRATADOS DE PAZ E ADMISSÃO NA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. (...)

No que respeita à admissão de outros estados na Organização das Nações Unidas, os três governos declaram:

1.º Que a Organização das Nações Unidas está aberta a todos os Estados pacíficos que aceitem as obrigações estipuladas na Carta atual e que, na opinião da Organização, tenham a possibilidade e a vontade de preencher as suas obrigações; 2.º Que a admissão destes Estados como membros das Nações Unidas terá lugar em virtude de uma decisão da Assembleia Geral, sob proposta do Conselho de Segurança.

Os três governos sustentarão, naquilo que lhes diz respeito, as candidaturas de todos países que permaneceram neutros durante a guerra e que preencham as condições acima mencionadas.

Todavia, creem-se obrigados a declarar que, pela sua parte, não apoiarão a candidatura do governo espanhol atual, que, estabelecido com a ajuda das Potências do Eixo, não possui, devido às suas origens, ao seu caráter e à sua associação estreita com os países agressores, as qualificações necessárias para justificar a sua admissão entre as Nações Unidas.» Tradução do francês feita pelo autor a partir de FUNK, Arthur – 1945. De Yalta a Potsdam. Des illusions a la guerre froide, pp. 213 a 218.

56 Em 1946, o processo de admissão de novos estados estava aparentemente inquinado pelo facto de, ao contrário do que previa a Carta das Nações Unidas (alínea 2 do artigo 4.º), ter sido o Conselho de Segurança, e não a Assembleia Geral, a pronunciar-se sobre as candidaturas. Aliás, o delegado australiano passou os trabalhos de discussão das candidaturas (de agosto a novembro) a relembrar esta imprecisão jurídica, isto é, que ao Conselho de Segurança apenas cabia recomendar e não decidir. Obviamente, esta era uma interpretação demasiado jurídica do artigo 4.º. O protesto australiano de 1946 encontra-se em Report of the Committee on the admission of new Members, United Nations, Security Council, Restricted, S/133, 21 August 1946, anexo 2, p. 2. AHDMNE. M121. Nações Unidas, 1945-47.

57 «Portugal e as Nações Unidas (ONU). Nota Oficiosa». In SALAZAR, Oliveira – Discursos e Notas Políticas. Vol. 4. 1943-1950, pp. 237-240.

58 Evoca-se aqui o discurso de Oliveira Salazar proferido a 28 de abril de 1948: «O Ocidente em face da Rússia». In SALAZAR, Oliveira – Discursos e Notas Políticas. Vol. 4. 1943-1950, pp. 325-337.

59 Exceto para fins de liquidação, no dia 18 de abril de 1946 foi votada, em reunião da Assembleia da SdN, a extinção desta para o dia seguinte ao do seu encerramento (19 de abril).

60 NA-DS. General Records of the Department of State. Decimal File: 1945-1949. Box n.º 3328. Doc. 711.53/12-1445. Department of State. Memorandum of Conversation. 14 de dezembro de 1945.

61 De modo a não comprometer a sua neutralidade, a Suíça não pediria a sua admissão na ONU.

62 Telegrama n.º 1 da Embaixada de Portugal em Washington para o MNE. 1 de janeiro de 1946. AHDMNE. Telegramas recebidos de Washington, DC. O artigo de Sumner Welles, «Admission into UNO. Four neutral States now eligible» foi publicado no Washington Post de 2 de janeiro de 1946. Desde 1944, quando abandonou o Departamento de Estado, Sumner Welles tornara-se num comentador habitual de temas de política internacional e externa dos Estados Unidos em rádios e jornais norte-americanos.

63 Telegrama n.º 58 do MNE para a Embaixada de Portugal em Washington. 25 de fevereiro de 1946. AHDMNE. Telegramas enviados para Washington, DC. Referia-se ao discurso pronunciado a 23 de fevereiro de 1946 na reunião das comissões dirigentes da União Nacional numa sala da Biblioteca da Assembleia Nacional. SALAZAR, Oliveira – «Ideias falsas e palavras vãs (reflexões sobre o último acto eleitoral)». In Discursos e Notas Políticas. Vol. 4. 1943-1950, pp. 195-213.

64 Apesar das garantias dadas pelos Estados Unidos relativamente à integridade política e territorial de Portugal, na sequência do acordo celebrado entre os dois estados em novembro de 1944 (relativo à concessão de facilidades nos Açores), como ainda o facto de os Estados Unidos poderem ser considerados um «factor de segurança para as nações pacíficas em geral», verdade é que, na opinião de Salazar, tal não implicava, da parte de Washington, um «compromisso para a integridade e independência de qualquer nação em particular, ou dos seus domínios». Daqui seria de considerar, como alternativa e, mais tarde, como complemento às NU, a «possibilidade de cooperação portuguesa na segurança do Atlântico». Conclui-se então que, pelo menos desde 1946, Salazar via algumas vantagens em poder garantir a qualidade de membro da ONU. Nesta reflexão do presidente do Conselho e ministro interino dos Negócios Estrangeiros, parece estar longe a possibilidade de as Nações Unidas se tornarem num instrumento de política anticolonialista. Cf. «Apontamento do ministro dos Negócios Estrangeiros para a segunda conversa com o Sr. Paul Culbertson e Major-General Laurence S. Kuter. Lisboa 2 de maio de 1946». In MNE – Dez Anos de Política Externa (1936-1948). A Nação Portuguesa e a Segunda Guerra Mundial. Lisboa, 1986, vol. 13, p. 385.

65 Telegrama n.º 38 da Legação de Portugal em Bruxelas para o MNE. 5 de março de 1946. AHDMNE. Telegramas recebidos de Bruxelas. A Bélgica administrava dois territórios em regime de trusteeship: Ruanda e Burundi. Colónias subtraídas à Alemanha após a derrota desta na Grande Guerra.

66 Telegrama n.º 55 da Legação de Portugal em Bruxelas para o MNE. 30 de março de 1946. Telegramas recebidos de Bruxelas.

67 Esta abstenção por parte da Austrália terá radicado, não exclusivamente, em «razões processuais», como afirmou o seu representante nas NU. No entanto, a verdadeira razão da abstenção esteve no facto de o Governo australiano pretender forçar Lisboa a negociar com Canberra um conjunto de assuntos de seu interesse. Nomeadamente, um acordo comercial geral, um outro relativo às comunicações aéreas entre a Austrália e Timor, mas, sobretudo, um acordo que estabelecesse as condições necessárias para uma futura defesa comum de Timor e da Austrália. A necessidade destas negociações fora aliás reconhecida por Salazar em 1943, no decorrer das conversas para a concessão de facilidades aos britânicos nos Açores. E embora em junho de 1946 não se considerasse a hipótese de essas negociações estarem concluídas antes de Portugal ser admitido nas NU, deveria mostrar-se claramente, sob o ponto de vista de Canberra, que o apoio à entrada de Portugal na ONU estava dependente da boa vontade australiana (e eventualmente britânica) apesar da falha portuguesa. O FO, porém, recusou cooperar com os procedimentos australianos, sobretudo por considerar que as falhas verificadas nas negociações eram, fundamentalmente, da responsabilidade do Governo de Canberra. Telegrama de Nova York (NU) para Londres (FO) de 16 de junho de 1946 e Telegrama de Londres (FO) para Nova York (NU) de 4 de julho de 1946. TNA, FO371. 60264. File 1775926.

68 Tiveram lugar no domingo, dia 7 de julho de 1946.

69 Mais tarde adiada para 3 de agosto.

70 Telegrama n.º 213. Do MNE para a Embaixada de Portugal em Washington DC. 8 de julho de 1946. AHDMNE. Telegramas enviados para Washington, DC.

71 O representante dos Estados Unidos no Conselho de Segurança que falara com Gromyko sobre a eventual entrada de Portugal nas NU, não notara no diplomata soviético qualquer «hostilidade» em relação ao facto. Mas também declarara que o «ponto de vista definitivo do seu governo», quanto ao «pedido de admissão de qualquer Estado», só podia «ser conhecido no momento da decisão», ou seja, «depois do pedido ser apresentado.» Ibidem.'

72 «A Nação Portuguesa constitui um Estado independente, cuja soberania só reconhece como limites, na ordem interna, a moral e o direito; e, na internacional, os que derivem das convenções ou tratados livremente celebrados ou do direito consuetudinário livremente aceite, cumprindo-lhe cooperar com outros Estados na preparação e adopção de soluções que interessem à paz entre os povos e ao progresso da humanidade. § único – Portugal preconiza a arbitragem, como meio de dirimir os litígios internacionais.»

73 Ibidem.

74 Telegrama n.º 246. Do MNE para a Embaixada de Portugal em Washington. 1 de agosto de 1946. AHDMNE. Telegramas enviados para Washington, DC.

75 Telegrama n.º 301. Da Embaixada de Portugal em Washington para o MNE. 11 de julho de 1946. AHDMNE. Telegramas recebidos de Washington, DC.

76 A Resolução n.º 113 (II) foi proposta pela Austrália.

77 O Século, 23 de setembro de 1948 (p. 1, 6.ª coluna e p. 2, 1.ª coluna).

78 Que entretanto substituíra a Polónia como membro não-permanente do CS.

79 Telegrama n.º 68. Delegação de Portugal na ONU em Nova York para MNE em Lisboa. 15 de maio de 1958. AHDMNE. Telegramas recebidos da missão de Portugal na ONU.

80 Em 1946, alguns países igualmente bem vistos pela União Soviética, por um lado, e pelos Estados Unidos, França, China e Grã-Bretanha, por outro, foram admitidos: Islândia, Suécia, Tailândia e Afeganistão. Em 1947, na mesma base, entraram o Iémen e o Paquistão. Em 1948, a Birmânia foi admitida. Albânia, Mongólia, vetados pelo «ocidente» e Portugal, Jordânia e Irlanda foram vetados por Moscovo. Um package deal foi proposto logo em 1946, e renovado em anos sucessivos, por países ocidentais para resolver o impasse. Em 1946 e em 1947, com o argumento de que as suas objeções eram de princípio, os soviéticos recusaram qualquer negociação que resolvesse o impasse e permitisse a admissão de um número cada vez maior de estados que viam a sua entrada travada. Em 1947 a fila foi engrossada pela Áustria, Bulgária, Finlândia, Hungria, Itália e Roménia. A partir de 1948 Moscovo passou a defender o package deal e os ocidentais a oporem-se a essa solução. A razão era simples. Países europeus pertencentes ao bloco soviético já reuniam todas as condições jurídicas para serem admitidos. Tinham celebrado tratados de paz com os Aliados. Até 1955 houve mais países a verem bloqueada a sua entrada do que a romperem os entraves colocados a uma eventual admissão. LUARD, Evan – A History of the United Nations . Vol I. The Years of Western Domination, 1945-1955, pp. 364-372.

81 MARTINS, Fernando – «A política externa do Estado Novo, o Ultramar e a onu. Uma doutrina histórico-jurídica (1955-68)». In Penélope. Fazer e Desfazer História. N.º 18, 1997, pp. 189-206.

82 Portugal tornou-se membro da ONU em dezembro de 1955. Nessa data era já membro de vários organismos das Nações Unidas: Organização da Aviação Civil Internacional, Organização Mundial de Saúde, Organização Internacional do Trabalho, União Postal Universal, Organização de Alimentação e Agricultura, União Internacional de Telecomunicações, e de vários comités das comissões do Conselho Económico e Social.

83 UN. Department of Public Information. Press and Publications Division. Press Release GA/1309, 15 -11 -1955. Question of admission of new members to the United Nations. Recapitulation of pending Applications, p. 4. AHDMNE. MNE-SE, RNP, POI, M125. ONU.

84 Nele se pode ler: «O Conselho de Segurança terá reuniões periódicas, nas quais cada um dos membros poderá, se assim o desejar, ser representado por um membro do governo ou por outro representante especialmente designado.»

85 UN. Department of Public Information. Press and Publications Division. Press Release GA/1309, 15 -11 -1955. Question of admission of new members to the United Nations. Recapitulation of pending Applications, p. 4. Ibidem.

86 Ibidem, p. 5.

87 Sobre as mudanças na política externa soviética decorrentes da morte de Estaline, ZUBOK, Vladislav, e PLESHAKOV, Constantine – Inside the Kremlin’s Cold War. From Stalin to Khrushchev. Cambridge, Massachusetts/Londres: Harvard University Press, 1996, pp. 138-173. Veja-se ainda LAFEBER, Walter – America, Russia, and the Cold War, 1945-1996. 8.ª edição. Nova York: McGrawHill, 1997, pp. 145-168, e KISSINGER, Henry – Diplomacy. S.e. Nova York: Simon & Schuster, 1994, pp. 493-521.

88 Estes catorze estados eram: Jordânia, Portugal, República da Irlanda, Itália, Áustria, Finlândia, Ceilão, República da Coreia (do Sul), Nepal, Líbia, Japão, Vietname (do Sul), Camboja e Laos.

89 Até 1965, o Conselho de Segurança da ONU era composto por onze estados, sendo que a China, a França, os Estados Unidos, o Reino Unido e a URSS eram membros permanentes com direito de veto. A partir de 1966, o número de membros do Conselho de Segurança alargou-se a quinze estados, permanecendo as suas anteriores cinco presenças permanentes. Assinale-se que a China continental (ou República Popular da China) não era ainda membro das Nações Unidas em 1955. Os representantes da China na ONU provinham da Formosa, território insular onde se refugiaram os líderes nacionalistas chineses definitivamente derrotados no continente, em 1949, pelos comunistas de Mao Tsé-Tung.

90 Albânia, República Popular da Mongólia, Hungria, Roménia, Bulgária, República Democrática e Popular da Coreia (do Norte) e República Democrática do Vietname (do Norte).

91 A Espanha apresentou o seu pedido a 23 de setembro de 1955.

92 1955 e 1960 foram os anos em que maior número de estados foram admitidos (16 e 17 países, respetivamente). Para além de Portugal, este «pacote» de dezembro de 1955 incluía: Espanha, Itália, Irlanda, Jordânia, Hungria, Albânia, Áustria, Roménia, Bulgária, Finlândia, Ceilão, Nepal, Líbia, Camboja e Laos. Japão, República Popular da Mongólia, as duas Coreias e os dois Vietnames não foram admitidos.

93 Participação de Portugal nos Trabalhos da 10ª Sessão da Assembleia Geral das NU, Nova Iorque. 9 de janeiro de 1956. AHDMNE. MNE-SE, RNP, POI, M182. ONU.

94 A intransigência norte-americana e ocidental face à admissão da Mongólia, devia-se ao facto de este ser considerado um Estado «fantoche», absolutamente enfeudado à vontade soviética.

95 Participação de Portugal nos Trabalhos da 10ª Sessão da Assembleia Geral das NU, Nova Iorque, 9 de janeiro de 1956. Loc. cit.

96 Ibidem.

97 «O meu país reconhece cada um deles (novos países membros) e tem relações diplomáticas e de amizade com todos – com todos menos um, talvez, não obstante termos relações diplomáticas com todos eles. Assim damos da mesma forma as boas vindas a todos eles.» Citado em Ibidem, p. 3.

98 Ibidem, p. 11.

99 MARTINS, Fernando – «Uma revolução tranquila? A política externa da Guerra Civil de Espanha ao Pacto do Atlântico». In MARTINS, Fernando (ed.) – Diplomacia & Guerra: Política Externa e Política de Defesa em Portugal. Do Final da Monarquia ao Marcelismo. Lisboa: Edições Colibri, 2001, pp. 137-162.

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