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Relações Internacionais (R:I)
versão impressa ISSN 1645-9199
Relações Internacionais no.49 Lisboa mar. 2016
40 ANOS DA CONSTITUIÇÃO PORTUGUESA: DINÂMICAS INTERNAS E EXTERNAS
A Constituição de 1976: A visão de Bona*
The Portuguese Constitution of 1976: the Bona view
Ana Mónica Fonseca
Investigadora de pós-doutoramento no Centro de Estudos Internacionais do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa (CEI – IUL), e professora auxiliar convidada do Departamento de História do ISCTE – IUL. É ainda investigadora associada no IPRI – UNL. As suas áreas de investigação incidem sobre as transições para a democracia na Europa do Sul, as relações luso-alemãs durante a Guerra Fria e a social-democracia europeia e a promoção da democracia.
RESUMO
A aprovação da Constituição da República Portuguesa em 2 de abril de 1976 representou o princípio do fim do processo de transição para a democracia em Portugal. Consequentemente, a normalização política que se começou a sentir na recém-nascida democracia portuguesa teve o seu impacto também ao nível internacional. Se o processo de democratização português foi acompanhado atentamente pelos diferentes atores internacionais, quer da Europa, quer pelas duas superpotências (Estados Unidos e União Soviética), a concretização do modelo político de democracia representativa e pluralista acabaria de vez com as hesitações e desconfianças internacionais. Neste artigo iremos analisar em detalhe o modo como a República Federal da Alemanha acompanhou o processo constituinte em Portugal.
Palavras-chave: Ordem constitucional, Portugal, República Federal da Alemanha, democratização.
ABSTRACT
The adoption of the Constitution of the Portuguese Republic on April 2, 1976 marked the beginning of the end of the democratic transition in Portugal. Consequently, the political normalization that was felt in the brand new Portuguese democracy had its impact at the international level. If the process. of Portuguese democratization was closely followed by different international actors, whether in Europe or the two superpowers (USA and USSR), the implementation of the political model of representative and pluralist democracy would definitely put an end to the international hesitations and misgivings. In this article we will analyze how the Federal Republic of Germany followed the constitutional process in Portugal.
Keywords: Constitutional order, Portugal, West Germany, democratization
A aprovação da Constituição da República Portuguesa em 2 de abril de 1976, juntamente com a revisão da plataforma de entendimento entre o Movimento das Forças Armadas (MFA) e os partidos políticos (Pacto MFA- Partidos), de 26 de fevereiro desse ano – que se revelaria indispensável para a própria Constituição – representam o princípio do fim do processo de transição para a democracia em Portugal. Consequentemente, a normalização política que se começou a sentir na recém nascida democracia portuguesa teve o seu impacto também ao nível internacional. Se o processo de democratização português foi acompanhado atentamente pelos diferentes atores internacionais, quer da Europa, quer pelas duas superpotências (Estados Unidos e União Soviética), a concretização do modelo político de democracia representativa e pluralista acabaria de vez com as hesitações e desconfianças internacionais.
Neste artigo iremos procurar acompanhar a reação da República Federal da Alemanha (RFA) à aprovação e ao conteúdo da Constituição portuguesa de 1976, que se justifica por ter sido esta a principal responsável pelo apoio internacional por parte da Europa Ocidental à democratização portuguesa, auxiliando política e moralmente o desenvolvimento dos principais partidos portugueses, com particular destaque para o Partido Socialista (PS). Para tal iremos fazer uma breve descrição dos principais acontecimentos que enformaram o processo constituinte, em particular os ocorridos em finais de 1975, de modo a compreendermos o que ia na mente dos principais observadores externos da realidade portuguesa. Seguidamente iremos perceber quais as medidas e posições que a aprovação da Constituição permitiu, nomeadamente ao desbloquear alguns aspectos fundamentais para a jovem democracia portuguesa.
De Abril a Abril (1974-1976): O contexto político da nova Constituição portuguesa
O golpe de 25 de abril de 1974, que derrubou o regime autoritário do Estado Novo, após quarenta anos de ditadura, foi um golpe militar, feito por oficiais, na sua maioria subalternos, com pouca ou nenhuma colaboração das forças políticas civis. Apesar de hoje conhecermos a existência de contactos entre alguns membros do MFA e elementos dos principais grupos políticos - como o Partido Comunista Português (PCP) ou o PS –, na realidade estes foram esporádicos e pontuais1. Esta natureza estritamente militar por detrás do golpe foi, no entanto, acautelada com a apresentação de um programa político, elaborado sob a liderança de Ernesto Melo Antunes. O principal objetivo deste programa seria a clarificação dos objetivos políticos do MFA, deixando claro que os militares pretendiam «a instauração de uma democracia e não a substituição de uma ditadura por outra»2.
O Programa do MFA tornar-se-ia, então, a base que regularia as novas autoridades portuguesas. Neste texto, apresentado publicamente pelo general António de Spínola, presidente da Junta de Salvação Nacional (JSN) apenas algumas horas após o golpe, eram definidas as medidas imediatas para a implementação da desejada democracia política e as estruturas que deveriam ser criadas para esse mesmo objetivo. O tom dominante das «medidas imediatas» refletia o corte total com o regime autoritário, visível através da destituição da Assembleia Nacional ou a extinção dos principais organismos do regime autoritário – a Direção Geral de Segurança (DGS)3, a Legião Portuguesa e outras organizações políticas. Eram ainda restauradas as liberdades individuais e cívicas, com a extinção da Censura e a libertação dos presos políticos.
Ainda dentro das «medidas imediatas», surgia aquele que seria o principal objetivo político patente no programa: a convocação, no prazo de doze meses, de uma assembleia constituinte, «eleita por sufrágio universal directo e secreto»4. Esta convocação seria feita pela JSN, principal responsável pelo exercício do poder político até que fosse nomeado um governo provisório civil, que estaria em funções até que se realizassem as eleições legislativas constitucionais. Seriam também os membros da JSN a assumir os cargos de Presidente da República, de chefe e vice-chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA), assim como os de chefe de Estado-Maior de cada um dos ramos. Neste sentido, a Junta concentraria «os mais altos cargos da hierarquia militar». A definição de um prazo claro para a realização das eleições demonstrava que o MFA estava decidido a entregar o poder às forças políticas e sinalizava igualmente que o período de exceção militar seria «relativamente breve», pois ficaria concluído com as primeiras eleições constitucionais5.
Apesar de este ser «um programa mínimo», não deixava de definir as principais linhas de rumo do futuro governo provisório, nomeadamente ao nível da independência do sistema judicial e da definição de uma nova política económica e social, tendo em particular atenção «a defesa das classes mais desfavorecidas». No tocante à política externa, assegurava se o cumprimento dos compromissos internacionais assumidos por Portugal, nomeadamente, a sua lealdade à NATO (e a continuação da presença americana nos Açores) e ao bloco ocidental, o que permitiu uma atitude de «expectativa benevolente» relativamente à evolução dos acontecimentos em Portugal por parte dos principais aliados do País no bloco ocidental6. No que dizia respeito à política ultramarina, o programa rompia definitivamente com o regime do Estado Novo ao assumir que a «solução das guerras no Ultramar é política e não militar» e que o objetivo das novas autoridades era a definição de uma política que conduzisse à paz7.
De acordo com o Programa do MFA, existiam dois grandes constrangimentos à ação do governo provisório: a primeira conferia poderes constituintes ao próprio programa, uma vez que, governando apenas por decreto lei, os diplomas do governo provisório teriam de «obedecer obrigatoriamente» aos princípios definidos pelo MFA. O segundo constrangimento era que, apesar de se defender que o governo provisório deveria «lançar os fundamentos» de novas políticas económicas e sociais, era igualmente definido que as «grandes reformas de fundo» apenas poderiam ser adotadas no âmbito da futura Assembleia Constituinte. Ou seja, limitava a atuação do governo provisório à gestão quotidiana e à criação das condições que permitissem a instauração dessa Assembleia Constituinte. Por outro lado, o mesmo programa restringia a duração do regime de exceção, sendo que o próprio MFA se propunha a devolver o poder na sequência da aprovação da nova Constituição8.
Assente nestas bases mínimas, o processo político que se desenrolaria a partir de abril de 1974 tornar se ia inseparável do Programa do MFA e da sua carga constitucional. As ambiguidades e indefinições patentes no texto do programa, nomeadamente no que dizia respeito ao papel do próprio MFA no processo político, teriam graves consequências nos meses que se seguiram, plenos de lutas e confrontos políticos.
Estas disposições ficaram, grosso modo, plasmadas na Lei 3/74, de 14 de maio, a primeira base constitucional que regularia o funcionamento da futura Assembleia Constituinte. Neste texto, as funções desta assembleia visavam exclusivamente a elaboração e aprovação da Constituição, não sendo, porém, o único órgão de soberania. Apesar de estar sujeita a vários constrangimentos, quer em termos de prazos para redigir e aprovar a Constituição, quer em termos de limitações legislativas que ultrapassassem o seu carácter constituinte, a Assembleia Constituinte era reconhecida na Lei 3/74 como o único órgão com competência para aprovar e «conferir obrigatoriedade» à Constituição, uma vez que mais nenhuma outra instituição «tinha o poder de a promulgar, de a sancionar ou de a vetar»9.
Do ponto de vista internacional, estes primeiros acontecimentos imediatamente após o derrube do regime autoritário acabaram por criar uma sensação de «expectativa benevolente» perante a mudança política em Portugal10. Era claro, sobretudo para as autoridades da RFA, que seria expectável e até benéfico dar aos portugueses «a oportunidade de cometer alguns erros», com vista a que o caminho que seguissem fosse tomado em plena consciência11. Esta postura justifica, adicionalmente, as primeiras reações da RFA. Quer ao nível governamental, quer ao nível partidário, estas foram não só de «simpatia», mas mesmo de apoio a Portugal. A RFA apoiaria as forças democráticas, mas tal seria feito através das «autoridades não oficiais – partidos e fundações políticas», que deveriam expandir e aprofundar os contactos já estabelecidos com os interlocutores portugueses. Deste modo, Bona dispunha de vários e multifacetados instrumentos para atuar em relação ao que se passava em Lisboa. O primeiro era o elenco governativo, que poderia exercer alguma pressão política e económica, não só junto das autoridades portuguesas, mas também internacionalmente, quer junto de outros governos quer em organismos internacionais, como a nato ou a CEE. Em segundo lugar, a RFA dispunha ainda dos atores informais, os partidos e as fundações políticas a eles associadas. O recurso a estes atores informais justificava se com o facto de poderem desenvolver uma atividade muito mais discreta em Portugal, trabalhando com os partidos portugueses na construção das bases de um sistema democrático12. Como não será surpreendente, o Partido Social Democrata Alemão (SPD), por ser o principal partido na coligação governamental e aquele que, dentro do elenco partidário alemão tinha já uma rede de contactos estabelecida em Portugal, juntamente com a Fundação Friedrich Ebert (FES), foi o que esteve mais ativo em Portugal nos meses agitados que se seguiram à revolução de abril de 197413.
A «expectativa benevolente» inicial, porém, dissipou se ao longo do verão de 1974. Provocado pela discussão em torno da resolução da questão colonial, o fosso entre o MFA e o Presidente da República, general António de Spínola14, aprofundou se, levando finalmente à demissão do general em finais de setembro de 1974. À medida que a situação portuguesa se foi radicalizando, crescia também o receio ocidental de que Portugal resvalasse para um regime comunista ou que regredisse para uma nova ditadura de direita, que seria igualmente negativo do ponto de vista da RFA e da Europa Ocidental.
Nos primeiros meses após a Revolução dos Cravos surgiu em Portugal uma multitude de novos partidos políticos que, compreensivelmente, não estavam devidamente organizados. A 6 de maio de 1974 fora criado o Partido Popular Democrático (PPD, atual PSD), liderado por Francisco Sá Carneiro e representativo de uma tendência política mais próxima do centro direita, englobava os antigos elementos da Ala Liberal. Já em julho desse ano, é criado o Centro Democrático Social (CDS), sob liderança de Diogo Freitas do Amaral, Adelino Amaro da Costa e Xavier Pintado, numa tendência próxima da democracia cristã. Herdeiro das movimentações políticas vindas ainda do regime autoritário, assinalamos a existência do MDP/CDE (Movimento Democrático Português/ Comissão Democrática Eleitoral), resultado da plataforma eleitoral preparada nas eleições de 1969, mas que contava com uma forte influência do PCP, tendo participado em todos os governos provisórios. Apenas o PCP tinha uma estrutura nacional com quadros próprios, que vinha já do tempo da ditadura. O PCP, liderado por Álvaro Cunhal, era claramente pró União Soviética. A sua ascensão na cena política portuguesa levantou nos aliados ocidentais de Portugal uma enorme preocupação, receando que Portugal, um país no seio do bloco ocidental, se transformasse num bastião comunista, uma espécie de Cuba no backyard europeu. Para evitar a crescente influência do PCP e da URSS em Lisboa, os países ocidentais, em particular a RFA, procuraram intensificar a sua presença em Portugal, quer fosse através da constante troca de visitas oficiais, quer ao nível do intercâmbio de peritos políticos, com destaque para a contínua presença de representantes do SPD e da FES em Lisboa15.
O outono de 1974 trouxe o princípio da radicalização das tendências políticas em disputa no processo de democratização português, mas nem por isso as autoridades deixaram de avançar com a regulamentação do funcionamento do aparelho de estado. A peça legislativa fundamental para a elaboração da constituição do novo regime democrático foi a lei eleitoral, publicada pelo Decreto Lei 621A/74, de 15 de novembro. Nele se definia o sufrágio universal aos cidadãos de ambos os sexos, maiores de 18 anos, residentes em Portugal e nos territórios ainda sob administração portuguesa, sem exclusão dos analfabetos. Apesar da grande e crescente influência das Forças Armadas na vida política portuguesa, os militares eram, segundo a lei eleitoral, inelegíveis16. Era assim atribuída exclusiva responsabilidade na composição da futura Assembleia Legislativa aos eleitores portugueses, que teriam a possibilidade de decidir o equilíbrio das forças partidárias na elaboração da Constituição. Isto tornar se ia central para o futuro do processo político e para o conteúdo do texto constitucional.
Como se compreenderá do que atrás é dito, na Assembleia Constituinte estariam apenas representados os partidos políticos e os seus deputados seriam exclusivamente civis, o que afastava, em princípio, os militares do processo constituinte. Aliás, apesar de, no Programa do MFA, apenas se referir a formação de «associações cívicas, possíveis embriões de futuros partidos políticos», a verdade é que logo nas primeiras semanas após a Revolução formaram se inúmeros partidos políticos, que conseguiram mobilizar a sociedade civil portuguesa. Perante o crescente domínio pelo MFA da cena política nacional, os partidos políticos, alguns ainda muito frágeis ao nível organizativo e programático17, seguiram uma estratégia de aproximação ao MFA, que via, consequentemente, a sua posição no aparelho de Estado «consideravelmente reforçada»18.
Esta posição fortaleceu se ainda mais na sequência da demissão do general Spínola da Presidência da República, em finais de setembro de 1974. Este saiu em rutura com o MFA, muito por causa da evolução política que o Movimento preconizava e estava a levar a cabo. Esta ascensão refletiu se na criação do Conselho Superior do MFA, ou Conselho dos Vinte, em meados de outubro. O Conselho reunia num só organismo todos os oficiais que ocupavam cargos político militares. Nele estavam presentes os elementos da JSN, os membros da Comissão Coordenadora do MFA, o comandante adjunto do COPCON19 e os militares que tinham ocupado (e que ocupassem, no futuro) funções políticas ao nível de ministro ou alto comissário. O objetivo do Conselho dos Vinte era então coordenar as atividades de todos os seus membros e funcionar como ponte entre os diferentes níveis dos militares e entre militares e civis. Ou seja, como afirmou o general Costa Gomes, deveriam «auscultar as bases através dos diferentes órgãos das Forças Armadas» e estar em contacto com os partidos políticos20. Simultaneamente, em meados de novembro de 1974, foi criada também a Assembleia de Delegados do MFA (Assembleia dos Duzentos), onde estavam representados os três ramos das Forças Armadas, que tinha essencialmente funções consultivas. Estes dois organismos sinalizam uma crescente presença do MFA na vida política portuguesa, mas sem que estivesse claramente definido o seu lugar no aparelho de Estado e quais os seus verdadeiros poderes. Começa aqui um dos principais debates relativamente ao futuro da Revolução portuguesa e ao papel do MFA nessa revolução.
A questão da institucionalização do MFA e a sua participação no processo constituinte começou em finais de 1974, altura em que aumentou a pressão sobre os militares no sentido de avançarem com a sua promessa de realização de eleições até 25 de abril de 1975. Foi como resposta a esta pressão que surgiu a legislação relativamente às eleições e aos partidos políticos, aprovada em meados de novembro de 1974 e já referida anteriormente. Porém, subsistia a questão relativamente ao papel do MFA no futuro quadro constitucional. Existiam duas hipóteses em discussão: por um lado, a possibilidade de o MFA participar ativamente nos trabalhos da Assembleia Constituinte, através da eleição de alguns dos seus membros para o cargo de deputados; a outra hipótese seria a assinatura de um acordo pré constitucional entre o Movimento e os partidos, algo que fora inicialmente proposto pelo líder comunista Álvaro Cunhal, e rapidamente aceite por vários setores políticos e militares21.
As conversações entre o MFA e os vários partidos políticos estavam já em curso quando se dá o 11 de Março de 1975. Porém, as consequências desta tentativa de golpe falhada, levada a cabo pelas forças próximas do general António de Spínola, foram mais determinantes para o futuro ambiente constitucional do que qualquer negociação que se tinha desenrolado até aí22. De facto, como resposta à tentativa de golpe, foi convocada por elementos da 5.ª Divisão uma assembleia do MFA, que ficou conhecida como a «Assembleia Selvagem». Contando com a presença do Presidente da República, Costa Gomes, e do primeiro ministro, Vasco Gonçalves, o que lhe conferira alguma legitimidade política, e dos elementos da Coordenadora do MFA, para além de inúmeros representantes dos três ramos das Forças Armadas, esta assembleia provocou uma aceleração do ritmo revolucionário da transição portuguesa à democracia. As principais conclusões desta «Assembleia Selvagem» passaram pela institucionalização do MFA, pela criação do Conselho da Revolução (CR) e pela consolidação política das assembleias do MFA. O CR viria substituir três órgãos de soberania nacionais – a JSN, o Conselho de Estado e o Conselho dos Vinte – e funcionaria como um órgão executivo cuja principal competência seria «dirigir a revolução». No entanto, uma das principais decisões emanadas da «Assembleia Selvagem» (a par do programa de nacionalizações e da renovação da confiança política em Vasco Gonçalves) foi a marcação de eleições para a Assembleia Constituinte para o dia 25 de abril de 1975, precisamente o último dia do prazo definido no Programa do MFA23.
Deste modo, a «Assembleia Selvagem» da madrugada de 11 de março de 1975 tinha conseguido, em simultâneo, a aceleração do processo revolucionário e a institucionalização do MFA, nomeadamente através da instituição do CR e a realização das eleições para a Assembleia Constituinte dentro do prazo definido originalmente pelo Programa do MFA. A realização das eleições era um elemento central que refletiria não só a vontade do MFA de se manter fiel ao seu programa, como seria essencial para a credibilidade internacional das autoridades portuguesas – como o próprio Presidente Costa Gomes afirmou, as eleições constituiriam «um verdadeiro exame cívico de Portugal perante o Mundo que nos observa»24.
No entanto, para que as eleições se pudessem realizar o MFA exigia que se salvaguardasse o seu papel no futuro processo constituinte. Pegando nas negociações em curso desde janeiro de 1975, mas imprimindo lhes um novo carácter devido aos acontecimentos de 11 de março, a Plataforma de Acordo Constitucional foi assinada a 13 de abril, entre o CR (representado na pessoa do Presidente da República, Costa Gomes) e os partidos políticos: PS, PCP, PPD, CDS, MDP/CDE e Frente Socialista Popular (FSP). A Aliança Operário Camponesa (AOC) viria a aderir mais tarde.
A assinatura do Pacto MFA Partidos, nome pelo qual ficou conhecida a Plataforma de Acordo Constitucional, serviu para os partidos políticos como garante da realização das eleições para a Assembleia Constituinte. De resto, as circunstâncias e as disposições do pacto não deixavam muita margem de manobra. As suas disposições tornaram se determinantes para a evolução política da transição para a democracia em Portugal e representavam uma «vitória» para aqueles que «pretendiam assegurar que a futura Constituição não anularia as políticas revolucionárias»25.
O pacto consagrava o domínio do MFA e, em especial, do CR, na vida política portuguesa, uma vez que definia um conjunto de elementos que deveriam obrigatoriamente constar da futura Constituição, limitando de certo modo os trabalhos da Assembleia Constituinte. O pacto procurava definir a estrutura institucional do futuro regime português, segundo o qual o CR deveria constituir se como o «centro do poder político», acima de duas câmaras: um parlamento civil (Assembleia Legislativa) e um parlamento militar (Assembleia do MFA). Estes três órgãos eram responsáveis pela eleição do Presidente da República, que seria igualmente presidente do CR e da assembleia militar. Todos os poderes mais relevantes eram concentrados no Presidente da República e no CR, «incluindo os de dissolução da Assembleia civil, da nomeação do Primeiro Ministro e da escolha de certos ministros». Sem dúvida que o CR era a principal autoridade política e militar, uma vez que tinha poderes de «fiscalização da constitucionalidade das leis e sancionava as leis aprovadas pelo parlamento civil e pelo Governo». Ao mesmo tempo, todos os assuntos que dissessem respeito à instituição militar «continuavam a ser uma coutada do Conselho», estando previsto que nenhuma instituição tinha «poderes de controlo sobre o Conselho da Revolução ou a Assembleia do MFA»26. Por fim, é de acrescentar que o pacto imprimia à futura Constituição um «elemento doutrinário» – a Constituição deveria consagrar as conquistas revolucionárias que levariam Portugal «na via original para um socialismo Português» – e um «elemento organizatório – relativo aos órgãos de soberania» e ao período de transição do regime, «entre três a cinco anos, a fixar pela Assembleia Constituinte»27. Para os observadores internacionais, parecia que o rumo da Revolução portuguesa estava definitivamente traçado à esquerda e que a transformação de Portugal num regime próximo de um satélite soviético estava iminente.
Para além da garantia da manutenção das políticas revolucionárias alcançadas até aí, outro dos objetivos subjacentes ao texto do Pacto MFA Partidos seria precisamente garantir que os resultados das próximas eleições para a Assembleia Constituinte não afetariam a distribuição de forças no cenário político português. Assim, era igualmente estabelecido na Plataforma de Acordo Constitucional que «não deveria haver relação entre os resultados das eleições e a composição do governo provisório», sendo que o elenco governativo apenas poderia ser alterado pelo Presidente da República, «depois de ouvidos o Primeiro Ministro e o Conselho da Revolução»28.
E, na realidade, as eleições vieram demonstrar que estas preocupações faziam sentido. A vitória esmagadora dos partidos moderados e a grande participação da população portuguesa (mais de 90 por cento dos eleitores recenseados) eram o reflexo claro de que os recentes acontecimentos e o apelo ao voto em branco, levado a cabo por alguns setores do MFA, não tinham tido influência junto dos eleitores portugueses. Naquelas que foram as primeiras eleições livres e democráticas em cinquenta anos, os partidos moderados, o PS e o ppd29, foram os claros vencedores, tendo o PS obtido 38 por cento dos votos e o PPD cerca de 27 por cento. O PCP não conseguiu mais do que 12 por cento. Porém, devido ao Pacto MFA Partidos, estes resultados tiveram pouco resultado prático imediato. Acima de tudo, tornavam evidentes «as contradições políticas do momento», demonstrando que a aposta dos partidos em aceitar a assinatura do pacto como o «preço das eleições» tinha sido «acertada», uma vez que estas permitiram que existisse, pela primeira vez em quase cinquenta anos, «uma directa legitimidade democrática»30.
De facto, a principal consequência do ato eleitoral de 25 de abril de 1975 foi precisamente o «enorme impacto moral» das forças políticas moderadas, que ganhavam assim a garantia do «compromisso da sociedade portuguesa» para com a Democracia. Estes partidos, em particular o PS e o PPD, ganhavam assim «legitimidade eleitoral», oposta à legitimidade revolucionária do MFA. A acrescentar a isto, as eleições de 25 de abril de 1975 revelavam também que
os comunistas e os seus aliados estavam «longe de ser a principal força política em Portugal». Perante estes resultados, as autoridades alemãs consideravam que havia agora «uma inquestionável oportunidade para o estabelecimento de uma democracia livre e pluralista em Portugal»31.
Estes eventos algo contraditórios levaram a que as implicações internacionais da transição portuguesa se exponenciassem ainda mais. A partir de abril de 1975, ficou traçado o caminho do processo revolucionário português. As forças moderadas, ou seja, os partidos políticos, mas também alguns setores dentro do MFA, tornando se claro que tinham o apoio da maioria da população portuguesa, ganharam novos argumentos para obterem o tão necessário apoio internacional. E o comportamento dos países europeus ocidentais ficou marcado por uma «abordagem bidirecional». Por um lado, ao nível dos partidos políticos – em particular os partidos socialistas ou social democratas da Internacional Socialista – era antecipada a possibilidade de assistência e de uma futura adesão de Portugal à CEE, como estímulo para a estabilização da situação portuguesa, ao mesmo tempo que se desenvolviam esforços de apoio e desenvolvimento aos partidos portugueses, especialmente ao PS32. Por outro lado, ao nível oficial, a Comissão Europeia e os estados membros da Europa Comunitária (a maior parte deles governados pelos mesmos partidos social democratas), ameaçavam que nada disso aconteceria se em Portugal não vingasse um regime democrático e pluralista33. A iniciativa mais clara desta estratégia da «cenoura e do pau» aconteceu por ocasião da Cimeira de Helsínquia no princípio de agosto de 1975, onde foi assinada a Ata Final da Conferência de Segurança e Cooperação Europeia (CSCE). Durante os encontros bilaterais com o Presidente da República Portuguesa, o general Costa Gomes, os diferentes chefes de governo dos países da CEE (Grã Bretanha, Holanda, RFA, entre outros) salientaram que estavam prontos para apoiar Portugal, política e economicamente, mas não estavam dispostos «a ajudar e a apoiar a preparação de uma ditadura militar em Portugal», nas palavras do chanceler da RFA, Helmut Schmidt34.
Imediatamente a seguir à Cimeira de Helsínquia foi convocada uma reunião dos principais líderes partidários da Internacional Socialista, onde foi criado o Comité de Apoio e Solidariedade para com a Democracia e o Socialismo em Portugal, uma ideia do ex chanceler federal, líder do SPD e prémio Nobel da Paz, Willy Brandt. O Comité era constituído pelos líderes dos partidos socialistas ou social democratas da RFA (Brandt), Grã Bretanha (Harold Wilson), Áustria (Bruno Kreisky), França (François Mitterrand), Suécia (Olof Palme) e Holanda (Joop den Uyl), que acreditavam que a situação em Portugal requeria uma «ação concertada», de modo a «evitar que o país fosse tomado pelos Comunistas»35. O Comité acreditava igualmente que a onda de «simpatia e boa fé» que o 25 de Abril tinha criado relativamente a Portugal não deveria ser desperdiçada pelo «desrespeito absoluto da vontade da população portuguesa», conforme esta se havia manifestado nas eleições de abril de 1975. Os principais objetivos do Comité eram o apoio ao estabelecimento de um regime democrático, a liberdade de imprensa, a constituição de uma associação sindical livre e democrática e a luta contra o isolamento internacional de Portugal36.
Estes princípios refletiram se na atuação dos partidos social democratas europeus: o apoio à organização do PS e o constante intercâmbio de visitantes, intensificado ao longo do «verão quente» de 1975, com particular atenção aos elementos das Forças Armadas Portuguesas. Na verdade, este foi o período de maior radicalização política em Portugal e parecia tornar se cada vez mais provável um confronto direto entre as forças moderadas e as mais revolucionárias. Os ataques às sedes do PCP e outros partidos de esquerda no Norte de Portugal, lançaram o mote para um contexto social cada vez mais radicalizado que praticamente dividiu o País ao meio37. A criação do Comité serviu também para demonstrar que os europeus eram unânimes relativamente à necessidade de apoiar as forças moderadas portuguesas. Essa mensagem destinava se a exercer pressão quer sobre a União Soviética, quer sobre os próprios Estados Unidos, que tinham adotado sempre uma posição de desconfiança relativamente às reais capacidades de a democracia vingar em Portugal, para além de reforçar internamente a posição do PS, assegurando que teria o apoio da Europa Ocidental38.
Na verdade, a situação portuguesa começou a estabilizar em finais de 1975, não sem antes se dar um confronto final entre as forças moderadas e de esquerda, ocorrido em finais de novembro desse ano. Depois do 25 de Novembro de 1975, altura em que foi anulada uma tentativa de golpe de Estado pela extrema esquerda, o regime político português pôde finalmente avançar rumo ao estabelecimento de uma democracia pluralista de tipo ocidental. Para tal desfecho foi determinante a relação de forças interna, mas não podemos deixar de acentuar a importância do contexto internacional39.
Nesse sentido, é importante destacar que o caminho para a normalização da situação política em Portugal foi acompanhado com igual atenção por parte dos aliados ocidentais de Portugal, com destaque para a rfa40. Um dos primeiros passos nesse sentido foi precisamente a revisão da Plataforma de Acordo Constitucional assinada entre o MFA e os partidos políticos. Na sequência dos acontecimentos de finais de novembro de 1975, a composição do CR foi profundamente alterada, refletindo a nova orientação da situação política portuguesa. Logo no princípio de dezembro, se ouvem os primeiros apelos dos partidos políticos, nomeadamente do PS e do PPD, no sentido de se rever o Pacto MFA Partidos, algo que é aprovado pelo CR em 11 de dezembro. Apesar de ainda hoje surgirem alguns debates sobre quem terá iniciado o processo de revisão do pacto, o que essa renegociação revela acima de tudo é a crescente convergência política entre o CR e as forças partidárias e esta questão tornar se ia «um dos temas dominantes da vida política nacional»41.
Assinado a 26 de fevereiro de 1976, o novo pacto era agora «desprovido do elemento doutrinário» e reduzia «substancialmente a intervenção política dos militares»42. Ainda assim, mantinha se o CR como um órgão com funções de conselho do Presidente da República, sendo inclusivamente um dos órgãos de soberania nacional, logo a seguir ao Presidente (que se mantinha como Presidente do próprio CR). As outras funções do Conselho mantinham se, nomeadamente como «garante do cumprimento da Constituição», como «garante da fidelidade ao espírito da Revolução» e, finalmente, como «órgão político e legislativo em matéria militar». A principal distinção relativamente ao primeiro pacto e elemento simultaneamente diferenciador perante o novo contexto político nacional era que o Presidente da República seria eleito diretamente através de sufrágio universal, apesar de se manter implícito que este seria sempre um cargo ocupado por um militar. A Assembleia Constituinte seria agora a responsável pela definição dos «termos da efectivação da responsabilidade política do Governo perante o Parlamento». O período de transição da Revolução portuguesa, anteriormente um dos pontos de disputa entre as forças moderadas e revolucionárias, era agora claramente definido: a primeira legislatura teria a duração de quatro anos, após a qual a Assembleia da República teria poderes constituintes, podendo levar a cabo a primeira revisão constitucional, altura em que o período de transição e a vigência do pacto se consideravam extintos43.
A partir daqui, apesar de algum criticismo relativamente a certos princípios que haviam sido já aprovados e que imprimiam à Constituição o seu cunho revolucionário, os trabalhos da Constituinte continuaram com rapidez. De tal modo que a Constituição da República Portuguesa foi votada e aprovada em 2 de abril de 1976 e tornou se no símbolo maior da instauração de um regime democrático pluralista e parlamentar. A 25 de abril de 1976, dois anos após o derrube do Estado Novo, seria eleita a primeira Assembleia da República da democracia portuguesa e, em junho, tiveram lugar as eleições para a Presidência da República, entrando plenamente em funções o novo sistema político português.
O impacto internacional destes acontecimentos não é difícil de antecipar. A confirmação de um regime político democrático e representativo foi saudado por todos os aliados ocidentais de Portugal, nomeadamente pelos países da Europa Ocidental. De um modo geral, a aprovação da Constituição não suscitou reações especiais por parte dos governos, que no entanto não deixaram de assinalar que finalmente seria possível seguir um caminho de democracia.
Os aspectos mais destacados pela imprensa alemã passavam sobretudo pelo tom geral da Constituição, que «obrigava os futuros governos ao socialismo», procurava pôr fim à «exploração do homem pelo homem», através das nacionalizações e da criação de condições «para o exercício democrático de poder pela classe trabalhadora»44. Na realidade, os acontecimentos vividos entre 25 de abril de 1974 e a promulgação da Constituição tinham marcado profundamente o texto final da Constituição portuguesa e essa era a característica que mais condicionava qualquer reflexão sobre a mesma. Para o Frankfurter Allgemeine, a questão poderia colocar se sobretudo pela exclusão quase implícita dos partidos de direita do governo, uma vez que «dificilmente seria possível realizar o seu programa de governo sem correr o risco de infringir a Constituição» – e por isso o cds se tinha negado a aprovar o novo texto fundamental português (apesar de se afirmar disposto a governar de acordo com a Constituição se o resultado das eleições assim decidisse)45. Sobretudo, a imprensa alemã procurava destacar que aquilo que tinha chegado a ser impensável em dois anos tinha finalmente sendo alcançado e que agora era altura de preparar as eleições para aquele que seria o primeiro parlamento português eleito livremente depois dos quarenta anos de regime autoritário.
Da Embaixada da República Federal da Alemanha em Lisboa surgiam comentários que atestavam estas contradições da Constituição portuguesa. Por um lado, era incontornável a importância que a aprovação da Constituição acartava, sobretudo tendo em conta a enorme pressão de que fora alvo, ao longo dos dez meses que haviam durado os trabalhos da Constituinte. Sinal disso mesmo, era o facto de os principais artigos, «inclusivamente aqueles que definiam os principais aspectos do funcionamento do sistema político», só terem sido acordados «nos últimos dias». Por outro lado, o facto de grande parte da discussão se ter centrado na definição do período de transição (período após o qual seria possível uma revisão do texto constitucional), indicava já que esta seria uma constituição de algum modo «a prazo», muito marcada pela distribuição de forças no momento e que, no essencial, já não correspondia à realidade portuguesa, «sobretudo desde o 25 de Novembro de 1975». A discussão mais intensa centrava se em torno do prazo de salvaguarda da Constituição antes de uma revisão do seu texto. A principal questão era precisamente a necessidade de, a prazo, se rever o poder político dos militares (através do CR), havendo já quem advogasse que as Forças Armadas Portuguesas deviam «retornar aos quartéis», tendência defendida, por exemplo, por Ramalho Eanes. Não obstante, ficaram desde logo definidos quais os aspectos que não deveriam ser alterados logo na primeira revisão constitucional – o que a Embaixada alemã em Lisboa considerava um mecanismo de proteção da herança revolucionária da transição portuguesa. No entanto, como o embaixador Fritz Caspari prontamente relatava para Bona, seria o resultado das eleições legislativas de 25 de abril de 1976 que ditaria qual o verdadeiro rumo de Portugal no futuro mais imediato46.
À semelhança do que tinha acontecido precisamente um ano antes, aquando das eleições para a Assembleia Constituinte, também em 1976 o PS foi o principal vencedor das primeiras eleições da jovem democracia portuguesa. Apesar de ter diminuído a sua percentagem, o PS, com 34,9 por cento dos votos, tornou se o partido mais votado, seguido de perto pelo PPD, com 24,3 por cento e pelo CDS, com 15,9 por cento. O PCP, apesar de parecer ainda uma força dominante na vida política portuguesa, captou apenas 14,4 por cento dos votos, passando a ser a quarta força na Assembleia da República47.
Por seu lado, o PS e o seu líder, Mário Soares, tinham já tornado claro que iriam avançar com um governo de minoria, recusando uma possível aliança com o PPD. Respeitando sempre a soberania nacional e os interesses de Portugal, o Governo de Bona não deixava de se sentir de algum modo desconfortável com a possibilidade de um governo frágil em Portugal. Houve então necessidade de fazer sentir em Lisboa, junto dos líderes dos três partidos mais votados, de que era importante reconhecer que os portugueses tinham votado com o objetivo de estabelecer uma democracia forte em Portugal, mas que tal «só seria alcançado e assegurado com um governo apoiado por uma maioria parlamentar clara»48. No entanto, esta pressão não surtiu o efeito desejado e no dia 16 de julho de 1976 tomava posse o I Governo Constitucional da democracia portuguesa, liderado por Mário Soares e apenas com o apoio do PS. Apesar das pressões e insistência dos aliados de Portugal, especialmente da RFA, no sentido de se formar um governo de coligação que garantisse maior estabilidade política, não deixou de haver um grande apoio no sentido da consolidação da democracia em Portugal possibilitada claramente pelos princípios plasmados na Constituição portuguesa aprovada em 2 de abril de 1976.
CONCLUSÃO
A transição portuguesa para a democracia foi despoletada por um golpe militar que rapidamente se revestiu de características políticas, tendo o MFA definido logo à partida as condições para o estabelecimento de uma Assembleia Constituinte, que lançaria as bases do novo regime político português. Contudo, todas as hesitações e indefinições que estavam já patentes no Programa do MFA foram acentuadas com a evolução da situação política e com o chamado «Processo Revolucionário em Curso» (PREC).
Os principais conflitos políticos que enredaram Portugal no período entre abril de 1974 e abril de 1976 condicionaram fortemente o papel da Assembleia Constituinte. Em primeiro lugar, porque colocaram a dúvida relativamente à existência sequer de eleições com vista à Assembleia Constituinte, como aconteceu na sequência da crise de 11 de março de 1975. Em segundo lugar, porque depois de assumida essa assembleia, se tentou ao máximo condicionar o seu trabalho, constrangendo e delimitando claramente as suas áreas de intervenção (que se deveriam cingir à mera elaboração e aprovação da Constituição). Para tal, o MFA e o CR fizeram aprovar a Plataforma de Acordo Constitucional pelos partidos políticos, como contrapartida da realização de eleições. Porém, a não alteração da lei eleitoral, que assegurava uma plena participação da população portuguesa através do sufrágio universal, concedeu à Assembleia Constituinte uma legitimidade democrática que marcou, igualmente, os trabalhos da Constituinte. Por fim, com a clarificação da situação política portuguesa, a partir de novembro de 1975, foi finalmente possível encontrar uma nova solução que, simultaneamente, salvaguardasse a independência e autonomia da Assembleia Constituinte e assegurasse a participação do MFA na vida política portuguesa.
Devido a esta dupla dimensão, a Constituição portuguesa aprovada a 2 de abril de 1976 não marca definitivamente o fim da fase de transição na democratização portuguesa. A manutenção de elementos não democráticos, como seja a permanência do CR, que conservava alguns poderes legislativos (relativamente à esfera militar) e de fiscalização constituinte faz com que o fim da transição portuguesa se desse ao mesmo tempo que a sua consolidação democrática, ou seja, apenas em 1982, quando se procede à primeira revisão constitucional. Ainda assim, a consagração de um regime democrático, pluralista e parlamentar é feita e assegurada logo na Constituição da República Portuguesa de abril de 1976.
O acompanhamento dos acontecimentos feito pelos aliados ocidentais de Portugal, nomeadamente pela RFA, é já consideravelmente conhecido. No entanto, o impacto particular dos acontecimentos de finais de 1975 e durante os primeiros meses de 1976 e o acompanhamento que receberam em Bona ficam agora analisados em maior detalhe. Para a RFA torna se claro que a Constituição, juntamente com a revisão do Pacto MFA Partidos, que a antecedeu e possibilitou, e, posteriormente, com a realização das primeiras eleições legislativas e presidenciais, que colocaram o aparelho político em pleno funcionamento, Portugal tinha entrado definitivamente no caminho da instituição de uma democracia representativa de estilo ocidental.
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Data de receção: 5 de janeiro de 2016 | Data de aprovação: 29 de fevereiro de 2016
NOTAS
*Este texto tem como ponto de partida o capítulo publicado em Belchior, Ana Maria (org.) – As Constituições Republicanas Portuguesas. Direitos Fundamentais e Representação Política (1911-2011). Lisboa: Editora Mundos Sociais, 2013, pp. 103-115 (Fonseca, Ana Mónica – «A Constituição de 1976: o contexto político»).
1REZOLA, Maria Inácia – 25 de Abril: Mitos de Uma Revolução. Lisboa: Esfera dos Livros, 2007, p. 51.
2Ibidem, p. 47.
3Por pressão do general Costa Gomes, que seria o chefe de Estado-Maior das Forças Armadas, a DGS manteve-se no ativo nas colónias, depois de ser «reestruturada e saneada, organizando-se como polícia de Informação Militar», sendo assim reconhecida e salvaguardada a sua importância para o apoio às operações ainda em curso nos territórios africanos. Cf. Programa do Movimento das Forças Armadas Portuguesas. Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra. (Consultado em: 12 de junho de 2012]. Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=programa. Ver também MATEUS, Dalila Cabrita – A pide/dgs na Guerra Colonial. 1961-1974. Lisboa: Terramar, 2004, p. 83.
4Programa do Movimento das Forças Armadas Portuguesas.
5GASPAR, Carlos – «O processo constitucional e a estabilidade do regime». In Análise Social. xxv (105-106), 1990, p. 10.
6CASTRO, Francisco – «A CEE e o PREC». In Penélope. N.º 26, 2002, p. 128.
7Programa do Movimento das Forças Armadas Portuguesas.
8Ibidem. Ver também MIRANDA, Jorge – «A Constituição de 1976 no âmbito do constitucionalismo português». In COELHO, Mário Batista (coord.) – Portugal, Sistema Político e Constitucional. 1974-1987. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais, 1989, p. 617 e segs.
9Miranda, Jorge de – «A Constituição de 1976 no âmbito do constitucionalismo português», p. 621.
10CASTRO, Francisco – «A CEE e o PREC», p. 128.
11Protocolo da 34.ª Reunião da Comissão dos Negócios Estrangeiros do Bundestag. 9 de outubro de 1974. Parlamentsarchiv (PA), Deutsche Bundestag (DBT) 3104 A7/3.
12Relatório do Departamento de Assuntos Políticos sobre as relações da RFA com Portugal. 15 de junho de 1974. Politisches Archiv von Auswärtiges Amt (doravante, PAAA), 101436.
13MÜHLEN, Patrick von zur – Die internationale Arbeit der Friedrich-Ebert-Stif-tung. Von den Anfängen bis zum Ende des Ost-West—Konflikts. Bona: Dietz Verlag, 2007. Para uma descrição detalhada do auxílio da social-democracia alemã às forças democr áticas portuguesas, nomeadamente ao Partido Socialista, cf. FONSECA, Ana Mónica – «É Preciso Regar os Cravos!» A Social-Democracia Alemã e a Transição Portuguesa para a Democracia (1974-1976). Lisboa: ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa. Tese de doutoramento em História Moderna e Contemporânea, especialização em História das Relações Internacionais da Época Contemporânea, 2011.
14O general António de Spínola era uma das figuras mais respeitadas nas Forças Armadas Portuguesas. Foi comandante militar da Guiné entre 1968 e 1973. No início de 1974 é nomeado vice-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, cargo do qual é demitido pela publicação de Portugal e o Futuro, onde critica a política ultramarina de Caetano. A sua visão para o futuro das colónias portuguesas passava pela realização de referendos e a formação de uma comunidade federativa. Cf. Rodrigues, Luís Nuno – Spínola. Lisboa: Esfera dos Livros, 2010.
15FONSECA, Ana Monica – «É Preciso Regar os Cravos!».
16MOREIRA, Vital – «A instituição da democracia. A Assembleia Constituinte e a Constituição de 1976». In Rosas, Fernando (coord.) – Portugal e a Transição para a Democracia (1974-1976). Lisboa: Edições Colibri, 1999, pp. 197-198.
17Os principais partidos realizaram os seus primeiros congressos nacionais no último trimestre de 1974. O PCP foi o primeiro, a 20 de outubro. Seguiram-se o PPD, a 23 de novembro, e o PS, a 13-14 de dezembro de 1974, todos em Lisboa. O CDS apenas realizou o seu Congresso Nacional em janeiro de 1975, no Porto. Cronologia Pulsar da Revolução. Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra. (Consultado em: 14 de junho de 2012]. Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=Cronologiapulsar.
18Rezola, Maria Inácia – 25 de Abril: Mitos de Uma Revolução, p. 113.
19Comando Operacional do Continente.
20Citado in REZOLA, Maria Inácia – 25 de Abril: Mitos de Uma Revolução, pp. 116-117.
21Cf. AMARAL, Diogo Freitas do – O Antigo Regime e a Revolução. Memórias Políticas (1946-1975). Lisboa: Bertrand Editores, 1996, pp. 353-355.
22RODRIGUES, Luís Nuno – Spínola.
23RODRIGUES, Luís Nuno – Marechal Costa Gomes. No Centro da Tempestade. Lisboa: Esfera dos Livros, 2008, pp. 228-231.
24Declarações de Costa Gomes na tomada de posse do IV Governo Provisório, citado in Ibidem, p. 231.
25FERREIRA, José Medeiros – Portugal em Transe. Vol. VII. História de Portugal. Direção de José Mattoso. Lisboa: Círculo de Leitores, 2003, p. 208.
26GASPAR, Carlos – «O processo constitucional e a estabilidade do regime», p. 13. Para a consulta do texto da 1.ª Plataforma de Acordo Constitucional. (Consultado em: 8 de março de 2016]. Disponível em: http://app.parlamento.pt/LivrosOnLine/Vozes_Constituinte/med01100000j.html#conteudo.
27MIRANDA, Jorge – «A Constituição de 1976 no âmbito do constitucionalismo português», p. 628.
28Ibidem.
29O PPD foi fundado em 6 de maio de 1974 e entre os seus quadros estavam os antigos deputados da chamada Ala Liberal da Assembleia Nacional. Homens como Francisco Sá Carneiro, Francisco Pinto Balsemão ou Joaquim Magalhães Mota tinham-se tornado conhecidos pela sua atuação durante o marcelismo, em que representaram uma tentativa de renovação interna do Estado Novo. Cf. FRAIN, Marietherese – O PPD/PSD na Consolidação do Regime Democrático. Lisboa: Editorial Notícias, 1998.
30MIRANDA, Jorge – «A Constituição de 1976 no âmbito do constitucionalismo português», p. 629.
31 Nota sobre a situação em Portugal. 30 de abril de 1974. PAAA, 110241.
32FONSECA, Ana Mónica – «O apoio da social-democracia alemã à democratização portuguesa (1974-1975)». In Ler História. N.º 63, 2012, pp. 93-107.
33SABLOSKY, Juliet – «A actividade partidária transnacional e as relações de Portugal com a Comunidade Europeia». In Análise Social. 31 (138), 1996, pp. 1011.
34Memorando de Conversação entre o Chanceler Helmut Schmidt e o Presidente português, Costa Gomes. 1 de agosto de 1975. Archiv der sozial Demokratie (ADSD), Helmut Schmidt Archiv (HSA), 1/hsa006605. A versão portuguesa das conversas bilaterais de Costa Gomes em Helsínquia está disponível em Arquivo Histórico-Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros (AHDMNE), PEA, 1/75.
35Apontamento sobre a reunião dos líderes de Partido e de Governo da Internacional Socialista em Estocolmo. 15 de agosto de 1975. ADSD, HSA, 1/hsaa006657. Ver também Telegrama 15265 da Embaixada Americana em Bona para o State Department. 17 de setembro de 1975. NARA, Washington – http://aad.archives.gov/aad/series-descrip-tion.jsp?s=4073&cat=all&bc=sl.
36Comunicado à imprensa. 8 de setembro de 1975. AdsD, WBA, A 11.4, 127.
37Para uma análise detalhada a um caso exemplificativo do que foi o «verão quente» de 1975, cf. CEREZALES, Diego Palacios – «Um caso de violência política: o “Verão Quente” de 1975». In Análise Social. xxxvii (165), 2003, 1127-1157.
38FONSECA, Ana Mónica – «É Preciso Regar os Cravos!».
39GASPAR, Carlos – «The international dimensions of the Portuguese transition». In Konstantinos G. Karamanlis Foundation – The Transition to Democracy in Spain, Portugal and Greece. Thirty Years After. Atenas: Konstantinos G. Karamanlis Foundation, 2005, pp. 121-142.
40Para análises acerca do acompanhamento da evolução portuguesa pelos Estados Unidos ver o trabalho de SÁ, Tiago Moreira de – Os Estados Unidos da América e a Democracia Portuguesa (1974-1976). Lisboa: MNE – Instituto Diplomático, 2009; para o caso do Brasil, cf. CARVALHO, Thiago – Do Lirismo ao Pragmatismo. A Dimensão Multilateral das Relações Luso--Brasileiras (1974-1976). Lisboa: MNE – Instituto Diplomático, 2009.
41REZOLA, Maria Inácia – 25 de Abril: Mitos de Uma Revolução, pp. 288-291.
42MIRANDA, Jorge – «A Constituição de 1976 no âmbito do constitucionalismo português», p. 631.
43FERREIRA, José Medeiros – Portugal em Transe, pp. 218-219; MIRANDA, Jorge – «A Constituição de 1976 no âmbito do constitucionalismo português», pp. 631-632.
44Telegrama 103 da Embaixada de Portugal em Bona. 5 de abril de 1976. AHDMNE, Telegramas Recebidos da Embaixada de Portugal em Bona, 1976.
45Frankfurter Allgemeine, 5 de abril de 1976, p. 8.
46Telegrama 187 da Embaixada da RFA em Lisboa. 3 de abril de 1976. PAAA, b26, 110246.
47Dados citados por TELO, António José – História Contemporânea de Portugal. Do 25 de Abril à Atualidade. Lisboa: Editorial Presença, 2007, p. 183.
48Telegrama do Auswärtiges Amt para a Embaixada da Alemanha Federal em Lisboa. 28 de abril de 1976. PAAA, b26, 110246.