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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.49 Lisboa mar. 2016

 

RECENSÕES

 

O mercado e a sociedade*

 

Luciano Amaral

Professor auxiliar da NOVA – School of Business and Economics. Doutorado em História e Civilização pelo Instituto Universitário Europeu de Florença.

 

Karl Polanyi

A Grande Transformação: as Origens Políticas e Económicas do Nosso Tempo, Lisboa, Edições 70, 2012, 540 pp.

 

A tradução em Portugal de A Grande Transformação, de Karl Polanyi, deveria ser considerada um evento editorial. Até agora, apenas estavam disponíveis em português traduções brasileiras daquele que é um dos mais importantes livros de ciências sociais do século XX. O ponto de partida desta obra célebre é um dos temas que, posteriormente à sua redacção, mais foi glosado na história política contemporânea: como foi possível passar da longa paz do século XIX à guerra total do século XX (do Tratado de Viena, de 1815, ao início da Primeira Guerra Mundial, em 1914)? Como foi possível passar da prosperidade e da abertura económica internacional do século XIX para o nacionalismo e o proteccionismo do século XX? Como foi possível passar do liberalismo do século XIX para o comunismo e o fascismo do século XX? A famosa frase do ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, Edward Grey, na véspera da entrada do Reino Unido na Primeira Guerra, sintetiza o tópico de maneira dramática: «as luzes estão a apagar-se por toda a Europa. Não as veremos acender-se outra vez no tempo das nossas vidas» («the lights are going out all over Europe, we shall not see them lit again in our life-time»). Karl Polanyi inicia o seu livro, publicado originalmente em 1944, de forma igualmente tonitruante: «a civilização do século XIX desmoronou-se» (p. 119).

A resposta que deu a esta(s) pergunta(s) transformou Polanyi numa referência e num pioneiro da sociologia, da antropologia e da economia modernas. Para ele, a Primeira Guerra Mundial foi o colapso inevitável a que a civilização utópica (e, logo, inviável) do liberalismo europeu do século XIX estava destinada. E o fascismo e o comunismo deveriam ser vistos como reacções da «sociedade» (como lhe chama) a esse liberalismo, um sistema assente em «mercados autorregulados», que, precisamente, dispensa a intermediação da sociedade. Assim como o sistema do mercado auto-regulado se desenvolveu de forma excessiva e desumana, também a reacção o fez de maneira proporcional.

Polanyi parte da ideia de que a «civilização europeia do século XIX» teve um carácter excepcional. Na sua opinião, anteriormente a ela nunca existiu uma economia que fosse socialmente desenquadrada e tivesse sido «dirigida pelos preços do mercado e só pelos preços do mercado» (p. 175). O problema de uma economia como essa, de acordo com Polanyi, é que exige várias condições inéditas: 1) a atomização dos indivíduos; 2) uma correspondente descentralização radical das suas actividades; e 3) que os indivíduos desenvolvam essas actividades seguindo apenas o interesse próprio. Só que, segundo Polanyi nos diz, as economias do passado basearam-se, todas elas, em princípios completamente diferentes, em concreto a «centralidade», a «reciprocidade» e a «redistribuição». Polanyi não diz que os mercados tenham sido uma novidade do liberalismo. Pelo contrário, aceita que sempre existiram, mesmo nas sociedades mais «primitivas». O que diz é que eles sempre foram «enquadrados» pela sociedade e nunca funcionaram de forma apenas «autorregulada».

A originalidade da civilização europeia do século XIX reside, justamente, no abandono dos princípios da centralidade, da reciprocidade e da redistribuição, um processo que atingiu limites outrora inimagináveis quando até a terra e o trabalho se transformaram em objectos mercantis. Nunca antes do século XIX tinha existido um mercado do trabalho ou um mercado da terra, segundo Polanyi. Tinham existido relações laborais, mas sempre enquadradas por laços sociais, o mesmo acontecendo com a terra. Ao longo de páginas de história económica, social e política de uma riqueza notável, Polanyi acompanha o aparecimento desta sociedade no Reino Unido, desde o século XVII até ao século XIX.

O autor de A Grande Transformação é mais um exemplo da plêiade extraordinária de intelectuais originários da Europa Central do início do século XX (Alemanha, Áustria, Hungria), que ofereceu ao mundo tantos fundamentos do nosso tempo: Einstein, Freud, Schumpeter, Hayek, Popper, Lukács, Adorno, Marcuse, Weber, Benjamin, Arendt, Heidegger, Wittgenstein... Para a celebridade de quase todos eles contou também o facto de se terem refugiado no mundo anglo-saxónico (Reino Unido e Estados Unidos) depois da chegada do nazismo ao poder na Alemanha e na Áustria, coisa que também aconteceu com Polanyi. Karl Polanyi nasceu em Viena, em 1886, no seio de uma família húngara judaica, e morreu em 1964, em Pickering, Ohio, nos Estados Unidos. Emigrou de Viena para Londres, em 1933 (ano da ascensão de Hitler à chancelaria) e mudou-se para o Vermont, nos Estados Unidos, durante a Segunda Guerra Mundial, em 1940, onde precisamente concluiu A Grande Transformação, em 1944. Era um socialista radical que, para além de detestar o liberalismo, também não via no marxismo uma solução. Esta condição política contribuiu tanto para o seu esquecimento durante o tempo em que a esquerda foi marxista como para a sua recuperação actual, quando a esquerda já não se classifica como tal (depois do fim das experiências do «socialismo real»).

Por fascinante que seja A Grande Transformação, as questões e dúvidas que levanta são enormes. Desde logo, no que toca ao argumento central do livro. Será mesmo verdade que a «civilização» do século XIX se baseava em mercados auto-regulados? E, de forma conexa, será que, na sociedade europeia anterior ao século XIX, os mercados tinham uma importância menor do que no século XIX? Será, ainda, que todas as civilizações, excepto a europeia do século XIX, se basearam em mercados enquadrados socialmente, a partir dos princípios da centralidade, da reciprocidade e da redistribuição?

Se começarmos pela primeira pergunta, chegamos a um dos pontos menos satisfatórios de A Grande Transformação. Polanyi considera que a ideia e a prática do mercado auto-regulado nasceram no Reino Unido, pela mão dos profetas Adam Smith, David Ricardo ou Thomas Malthus, que depois foram capazes de influenciar diversas decisões políticas. Grande parte do livro é utilizada, precisamente, a relatar esta história. Quanto à forma como nasceram os mercados auto-regulados na Europa continental, Polanyi não nos diz nada. O que não o impede de assinalar que a reacção da sociedade contra o mercado foi mais forte na Europa continental do que no Reino Unido: «se a sociedade de mercado nasceu em Inglaterra, foi, todavia, no continente que a sua fraqueza gerou as dificuldades mais trágicas. Se quisermos compreender o fascismo alemão, teremos de voltar à Inglaterra de Ricardo» (p. 157). Ora, por razões de precisão do argumento, teria sido fundamental que nos tivesse explicado como os países da Europa continental transitaram das relações económicas enquadradas pela sociedade para as relações económicas típicas do mercado auto-regulado, sob pena de não ser possível compreender porque foi aí tão forte a reacção da sociedade.

Chegamos aqui a um ponto fundamental. Aceitemos, a benefício de inventário, que a sociedade do Reino Unido dos séculos XVIII e XIX foi aquela onde mais os laços sociais se degradaram em laços mercantis. Mesmo que o façamos, não existe nenhuma história social dos países da Europa continental que mostre a mesma coisa. Pelo contrário, o que essas histórias mostram é a sobrevivência, em todas elas, de fortes aristocracias locais capazes de continuar a enquadrar a actividade económica. Nos anos oitenta do século XX, ficou mesmo famoso um livro de Arno Mayer dedicado ao tema da persistência do Antigo Regime na idade contemporânea. Ora, a mesma ideia tem recentemente sido alargada ao Reino Unido, curiosamente ainda com mais força. Graças à passagem orgânica da sociedade tradicional britânica para a sociedade contemporânea, o grau de persistência daquela terá sido maior do que em países onde aconteceram rupturas revolucionárias mais radicais, como foi destino comum de todos os países da Europa continental. O Reino Unido já foi mesmo descrito por Norman Stone como «o último dos Antigos Regimes», onde teriam sobrevivido relações de classe mais fortes do que no resto da Europa.

Quanto à questão de saber se a sociedade europeia do século XIX diverge de forma tão profunda da sociedade europeia que a antecedeu, a investigação recente em história económica e social vem revelando de forma cada vez mais consistente a grande importância dos direitos de propriedade e dos mercados desde a Idade Média. Vejam se os trabalhos de Gregory Clark, Robert Allen ou Kenneth Pomeranz. Podemos, mesmo assim, continuar a seguir Polanyi e dizer que, apesar de importantes, esses mercados continuaram a ser socialmente enquadrados. Mas então, uma agenda de investigação «polanyiana» consistiria em verificar, a partir dos novos conhecimentos, quando e de que forma se deu a passagem dos mercados enquadrados para os mercados auto regulados. O mesmo se podendo dizer acerca das sociedades não europeias. Muita investigação antropológica tem identificado a presença profunda de relações mercantis nessas sociedades. Alguns autores procuraram até discutir directamente com Polanyi (como Scott Cook ou Philip Curtin). É essa presença suficiente para aproximar as sociedades não europeias das sociedades europeias contemporâneas? Vários autores asseguram que sim.

Talvez estas insuficiências de A Grande Transformação mostrem um Polanyi refém de certa ilusão intelectual, a mesma, curiosamente, que capturou os seus principais adversários, os economistas chamados neoclássicos: a de que os modelos económicos descrevem mesmo a realidade e não são apenas estilizações instrumentais. Se tomarmos os modelos dos economistas britânicos dos séculos XVIII e XIX como uma descrição da sociedade e da economia britânicas desse tempo, então veremos efectivamente nelas apenas mercados auto-regulados. Mas a verdade é que essa sociedade e economia nunca se resumiram aos modelos.

Outro dos pontos mais insatisfatórios do livro é a diferença de tratamento histórico que a sociedade europeia merece por comparação com as sociedades não europeias. Enquanto a sociedade europeia nos é descrita como sendo dotada de uma história capaz de explicar o aparecimento de certas estruturas económicas e sociais, as sociedades não europeias parecem feitas apenas de estruturas. Em Polanyi, as sociedades europeias estão sujeitas a tensões constantes – a história é isso mesmo, uma sucessão de tensões entre indivíduos e entre os indivíduos e as estruturas. Mas as sociedades não europeias aparecem estranhamente desprovidas dessa matéria. A sua realidade social e económica parece decorrer sem conflitos, enquadrada perfeitamente pelos princípios da centralidade, da reciprocidade e da redistribuição.

A Grande Transformação é também um livro político. Com ele, Polanyi pretendeu dizer, em 1944, que não era possível nem desejável voltar à civilização liberal do século xix, uma vez terminada a guerra. Mas pretendeu também dizer que não era desejável viver no fascismo – ou no comunismo, embora este lhe merecesse mais simpatias. Grande parte do recente revivalismo em torno de Polanyi funda-se nesta dimensão política, dado que a sua obra parece oferecer uma alternativa ao liberalismo que não sucumbe ao comunismo. No entanto, passaram já setenta anos sobre a publicação de A Grande Transformação. Desde então, multiplicaram-se e depois desvaneceram se as sociedades comunistas, enquanto os países que se reclamam da «economia de mercado» se transformaram profundamente. Hoje, esses países dotaram-se de regimes democráticos, no lugar dos regimes elitistas liberais que existiam no século XIX. Tornaram-se também sistemas de mercado sujeitos a uma forte intervenção do Estado, sobretudo vocacionada para os aspectos sociais (o Estado-Providência). Muita gente reclama para Polanyi parte da paternidade do Estado-Providência. Mas a verdade é que Polanyi nunca se pronunciou sobre tal objecto político. A crítica que fez do liberalismo não basta para o colocar entre os fundadores intelectuais do Estado-Providência. Tanto mais que dedicou páginas muito severas ao crescimento do Estado de que foi testemunha na primeira metade do século XX. Para ele, esse crescimento fazia parte do que chamava «duplo movimento», em que aos excessos do mercado se seguem correcções desencadeadas pela sociedade. Sendo o crescimento do Estado, como o fascismo, uma dessas reacções, tratava-se de uma reacção, como o fascismo, disfuncional. Polanyi desejaria que a sociedade contemporânea fosse capaz de restaurar o enquadramento social da economia, em vez de recorrer à força arbitrária do Estado. Daí as simpatias que demonstrou pelo socialismo radical e as suas formas associativas. Seria de facto interessante saber o que pensaria Polanyi das nossas sociedades de liberalismo «enquadrado».

Uma nota final para a edição cuidada do livro, que é baseada na reedição feita nos Estados Unidos em 2001, da qual resgata o prefácio de Joseph Stiglitz e a introdução do editor Fred Block. Para além de uma boa tradução, os editores oferecem ainda dois textos introdutórios, da autoria de historiadores e cientistas sociais portugueses de excelente qualidade como Diogo Ramada Curto, Nuno Domingos, Miguel Bandeira Jerónimo e Rui Santos, que procuram situar a obra nos debates políticos e científicos do tempo e da actualidade.

 

NOTA

* A pedido do autor o texto não adopta as normas do Novo Acordo Ortográfico.

 

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