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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.51 Lisboa set. 2016

 

O IMPACTO DA ELEIÇÃO PRESIDENCIAL NORTE-AMERICANA

 

Nota introdutória: O impacto da eleição presidencial norte-americana

 

Raquel Vaz-Pinto

Investigadora do IPRI-NOVA e professora de Estudos Asiáticos da FCSH-NOVA. Foi presidente da Associação Portuguesa de Ciência Política entre 2012 e 2016. O seu último livro, Administração Hillary, escrito com Bernardo Pires de Lima, foi editado pela Tinta-da-China, em 2016.

 

«George H. W. Bush to vote for Hillary Clinton. A Kennedy outs a Bush who favors a Clinton»1

Esta epígrafe, que reproduz o título de um artigo do Politico, resume bem o que está em causa nas próximas eleições presidenciais. O antigo presidente que sucedeu a Ronald Reagan terá dito a Kathleen Townsend, filha de Robert Kennedy, que iria votar em Hillary Clinton. Esta «história», que cruza as três grandes famílias políticas dos Estados Unidos, é um excelente barómetro do mainstream democrata e republicano. Ao contrário de Donald Trump, é possível descortinar o pensamento da candidata democrata Hillary Rodham Clinton, tendo em conta a sua longa carreira «pública». Desde logo, temos o incontornável artigo na Foreign Policy intitulado «America’s pacific century», que escreveu na sua qualidade de secretária de Estado, e também dois livros de memórias, entre muitos documentos2.

Assim, deveríamos estar a discutir a eventualidade de, pela primeira vez, os Estados Unidos terem uma mulher chefe de Estado. No entanto, quem tem estado sob todos os holofotes «positivos» tem sido o candidato do Partido Republicano. O seu trajeto tem desafiado tudo e todos. De certa forma, o «Grand Old Party» tem sido objeto de muitas análises nos últimos tempos e, em particular, nos oito anos da Administração Obama. Por exemplo, em 2013, Daniel Drezner escreveu um artigo na Foreign Affairs intitulado «Rebooting Republican foreign policy»3 sobre o impacto desastroso dos neoconservadores e do Tea Party na definição de uma política externa «republicana». O argumento principal deste artigo centrava-se na necessidade de não deixar o partido «refém» destes dois grupos. Mas três anos depois não é apenas a política externa que preocupa o mainstream republicano. Para muitos, o que está em causa é a própria sobrevivência do partido enquanto ator «moderado».

Em bom rigor, o Partido Democrata também não escapou à insatisfação de parte do seu eleitorado. Num artigo recente da revista The Atlantic, Jonathan Rauch analisava os aspetos estruturais que levaram à ascensão de Donald Trump e Bernie Sanders: «desde a falta de intermediários políticos, ao enfraquecimento do papel dos partidos à questão do financiamento»4. Mas também é verdade que a candidatura de Hillary Rodham Clinton foi capaz, com muito esforço, de ultrapassar a fação antiestablishment na corrida à nomeação democrata. Resta saber se esses eleitores de Bernie Sanders ficarão em casa ou se irão mesmo às urnas.

Mas ambos os candidatos terão de lidar com o legado da Administração Obama e com um dos seus principais desafios: «Os EUA encontram-se agora numa encruzilhada importante: é no Pacífico que parece estar o futuro, mas é no Atlântico que se encontram os seus melhores aliados.»5 Com o objetivo de analisar a passagem de testemunho da Administração Obama, Diana Soller considera que «a herança de Obama relativamente à ordem internacional é ambígua» e analisa sobretudo duas interpretações: «o retraimento estratégico e a acomodação». Mais ainda, «o que não se pode ignorar é que a ordem internacional, porventura um dos mais invisíveis e cruciais elementos das relações entre estados, está ameaçada.» Como melhor corresponder a este momento internacional será o grande desafio do próximo presidente.

Depois de feita esta contextualização que irá moldar os próximos anos, José Gomes André explica-nos o percurso de cada candidato. No centro desta análise estão as «primárias» e como as «especificidades» deste processo interno condicionam os partidos na escolha do seu candidato. Mais uma vez, a heterogeneidade interna dos Estados Unidos impera nestas eleições. Mas há outros fatores importantes, como, por exemplo,

«a questão do “apoio partidário” ocupa também um lugar importante, sobretudo no Partido Democrata. Embora a larga maioria dos delegados seja obtida através do voto popular, o Partido Democrata criou o conceito de “superdelegados” (…) os quais participam na escolha do candidato. Trata-se de um mecanismo de filtragem do voto popular, que procura adicionar-lhe a ponderação adscrita ao desempenho de cargos públicos».

Para além das características internas, José Gomes André descortina as principais opções de ambos os candidatos nos planos externo e interno.

Mas é, sem dúvida, a proposta «republicana» de Donald Trump que causa mais surpresa. Como foi possível chegar até aqui? Teresa Botelho faz uma viagem no tempo para nos explicar a tradição populista nos Estados Unidos tendo em conta as suas raízes e a sua base de apoio. Ficamos a saber, por exemplo, que «a retórica anti-imigrante de Trump recicla as posições e exigências do chamado Partido Americano, popularmente conhecido como o partido dos Know-Nothing («Não Sabem Nada») que emergiu, na década de ٥٠ do século XIX, munido de uma retórica que associava o descontentamento com o fluxo de imigrantes irlandeses e alemães com o acentuado preconceito religioso anticatólico, agitando o medo da destruição dos valores americanos ameaçados por hordas de camponeses ignorantes obedientes ao Papado, incapazes de absorver as regras e o ethos da cidadania republicana americana. Para além desta análise aprofundada do «movimento populista norte-americano» Teresa Botelho chama a atenção para o impacto da candidatura de Trump no Partido Republicano. Iremos assistir à «implosão anunciada do Partido Republicano?» A ser verdade, estamos perante uma mudança sistémica da política norte-americana.

Por último, Tiago Moreira de Sá ajuda-nos a perceber, tendo em conta a estratégia norte-americana entre o Pacífico e o Atlântico, qual é o lugar da Europa. A sua análise permite-nos compreender em profundidade o que está em causa para Portugal e, em particular, relativamente à questão da Base das Lajes e os possíveis caminhos. Tiago Moreira de Sá apresenta-nos a evolução histórica das relações entre Portugal e os Estados Unidos e constata que «ainda que o tipo da presença americana nos Açores se deva vir a alterar, o interesse estratégico dos Estados Unidos no arquipélago continuará, uma vez que é de caráter permanente, para lá de alterações conjunturais ou mesmo estruturais».

Em suma, a eleição do chefe de Estado da superpotência é sempre um momento político da mais alta importância. Seguimos estas eleições quase como se fossem nossas. Nesta eleição, os dois candidatos à Casa Branca não poderiam ser mais diferentes. Mas o seu impacto doméstico e internacional irá muito para além do dia 8 de novembro.

 

NOTAS

1 SAMUELSOHN, Darren – «George H. W. Bush to vote for Hillary Clinton. A Kennedy outs a Bush who favors a Clinton». In Politico. 19 de setembro de 2016. (Consultado em: 20 de setembro de 2016). Disponível em: http://www.politico.com/story/2016/09/exclusive-george-hw-bush-to-vote-for-hillary228395.

2 CLINTON, Hillary – «America’s pacific century». In Foreign Policy. N.º 189, novembro de 2011, pp. 56-63. E também CLINTON, Hillary – Hard Choices. Londres / Nova York: Simon & Schuster, 2014; e Living History. Londres: Headline, 2004.

3 DREZNER, Daniel – «Rebooting Republican foreign policy». In Foreign Affairs. Vol. 92, N.º 1, janeiro-fevereiro de 2013, pp. 143-152.

4 RAUCH, Jonathan - – «What’s ailing American politics». In The Atlantic. Vol. 318, N.º 1, julho-agosto de 2016, pp. 51-63.

5 VAZ-PINTO, Raquel, e LIMA, Bernardo Pires de – Administração Hillary. Lisboa: Tinta-da-China, 2016, p. 14.

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