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Relações Internacionais (R:I)
versão impressa ISSN 1645-9199
Relações Internacionais no.52 Lisboa dez. 2016
A CRISE DA DEMOCRACIA
Nota introdutória: A crise da democracia
Carmen Fonseca*, Madalena Meyer Resende**
* Professora auxiliar na FCSH-NOVA e investigadora do IPRI-NOVA. Doutorada em Relações Internacionais pela FCSH-NOVA.
** Professora auxiliar na FCSH-NOVA e investigadora do IPRI-NOVA. Doutorada em Ciência Politica pela London School of Economics (2005). Tem numerosas publicações nacionais e internacionais, incluindo o livro Nationalism and Catholicism: Changing Party Politics in Europe (Routledge, 2015). A sua investigação foca a Europa Central e Oriental e a Europa do Sul, e as temáticas do nacionalismo e das relações Igreja-Estado.
Desde 1989 que uma assunção otimista preconizava que a democracia iria ganhar terreno e estabelecer‑se como o sistema político. Alguns argumentavam que não havia nenhuma alternativa ideológica à democracia liberal (a narrativa do fim da história), outros concluíram que em países de rendimento médio com governos democráticos ela era irreversível.
A revisão desta assunção impõe‑se. Com todos os índices a mostrarem uma deterioração da qualidade da democracia em vários países, os partidos radicais de esquerda e de direita em ascensão na Europa e os estudos de opinião a apontarem para um ceticismo crescente na população sobre o direito à democracia, torna-se óbvio que o otimismo se desvaneceu. Disto têm dado conta os media internacionais, chamando a atenção para um debate que se adensa sobre as causas, os mecanismos e as consequências dos processos políticos em causa.
Na Europa, o fenómeno de revisão ganha contornos práticos, uma vez que em dois dos estados-membros, a Polónia e a Hungria, a erosão dos mecanismos de controlo democrático está em fase avançada. Na Hungria desde 2010 que o Governo de Viktor Orbán tem desmantelado o sistema constitucional de controlo democrático para criar um Estado que centraliza o controlo político nas mãos de um único partido. Em 2014, depois de ter alterado a lei eleitoral a favor do seu partido, o Fidesz transformou uma vitória de 45 por cento dos votos numa maioria absoluta, consolidando o seu controlo do poder. Na Polónia está em curso um ataque sem precedentes ao Estado de direito, às instituições de controlo democrático e à independência judicial, assim como à liberdade de imprensa e de reunião. O ano de 2016 acaba com uma crise constitucional. Os eventos dramáticos no Parlamento e nas ruas, com uma enorme mobilização militar, corroboram que a Polónia está a caminho da autocracia. Sendo a União Europeia uma comunidade fundada na partilha dos valores da democracia liberal, torna-se aqui premente que também os decisores políticos e as instituições europeias revejam os instrumentos de política externa no sentido de responder a este fenómeno.
Perante este cenário, torna‑se crucial discutir sobre a evolução do fenómeno da democracia, atentando em alguns casos não apenas na Europa mas também, por exemplo, na América Latina.
Com este intuito, o dossiê «A crise da democracia» tem como objetivo principal refletir sobre a evolução da democracia quer a um nível teórico e conceptual quer a um nível empírico. Assim, o dossiê inicia‑se com um artigo de Pedro T. Magalhães que, recorrendo aos trabalhos de Max Weber e Carl Schmitt, faz uma análise da democracia contemporânea. A dupla ilusão a que o autor se refere no título do artigo sugere a ilusão liberal de Weber, nos primórdios da República de Weimar, e a ilusão totalitária de Schmitt, cunhada na oposição irreversível entre democracia e parlamentarismo. Através dessa conceptualização originária do período entre guerras, Pedro T. Magalhães tenta demonstrar os limites da democracia. Admitindo que a democracia se tornou um fenómeno global e que nunca existiram tantos regimes democráticos como na atualidade, o autor não tem dúvidas, porém, de que a democracia está em crise. Reflexo disso é a «tensão entre segurança e liberdades democráticas» ou a «ausência de expectativas de crescimento e prosperidade», e a persistência de desafios impossíveis de solucionar.
O artigo de António Dias concentra‑se nas análises sobre a crise das democracias acerca da qual o autor aponta dois problemas principais. Por um lado, a ausência de clareza conceptual. Se a definição de democracia sempre foi palco de confusão e imprecisão, o mesmo se tem verificado com as análises sobre a chamada erosão democrática. Por outro lado, o autor considera também que se tem atribuído pouca relevância às conclusões da literatura sobre a terceira vaga da democratização. Na verdade, os principais casos de «deterioração democrática» aconteceram precisamente na Europa Central e do Leste e na América Latina. No artigo – «Sobre “desconsolidação” e retrocesso democrático» –, o autor elabora uma resenha dos conceitos e respetivas definições apresentadas por diversos teóricos para propor uma definição própria, com o objetivo de se compreenderem melhor e de se utilizarem adequadamente os conceitos de erosão democrática, retrocesso democrático ou desconsolidação da democracia. A partir dessa definição apresenta uma tipologia que permite descrever os processos de erosão das democracias saídas da terceira vaga de democratização.
Para ilustrar a contextualização inicial, são depois apresentados dois casos da América Latina: o Brasil e a Venezuela. O Brasil viveu o segundo impeachment presidencial três décadas depois da redemocratização. Em setembro de 1992, o Presidente Collor de Mello foi afastado da Presidência da República, e em agosto de 2016 o Senado brasileiro voltou a votar a favor do impeachment presidencial, pondo fim ao segundo mandato da Presidente Dilma Rousseff. Rousseff tinha iniciado este último sob fortes críticas e protestos da sociedade civil, ao que se juntaram acusações de corrupção e de fraudes fiscais. Sem uma base política de apoio forte, Dilma não resistiu ao processo de impeachment instaurado. É este processo que Octavio Amorim Neto analisa no artigo «A crise política brasileira de 2015‑2016: diagnóstico, sequelas e profilaxia». Recuperando o modelo de James Mahoney, Amorim Neto avança potenciais fatores explicativos da crise analisando o peso de cada um deles, nomeadamente a fragmentação partidária, a rigidez orçamental, a economia internacional ou os erros de política interna. O autor concentra‑se depois na análise das consequências da crise, cujo principal alvo foi o próprio Partido dos Trabalhadores e consequentemente o sistema partidário que poderá sofrer uma rápida desagregação. A par disto, também o sistema presidencialista brasileiro foi enfraquecido assim como a democracia brasileira, pois, no entender de Amorim Neto, o atual governo de Michel Temer «padece de um défice democrático». Para que as consequências sejam minoradas, a proposta de Octavio Amorim Neto é que seja implementado um conjunto de reformas que pode ir desde a alteração do sistema político até à implementação de transformações no sistema partidário.
O caso da Venezuela é analisado por Laura Gamboa, no artigo «Venezuela: aprofundamento do autoritarismo ou transição para a democracia?». Partindo do facto de que a Venezuela foi, na década de 1990, uma das democracias latino‑americanas mais estáveis, a evolução verificada apresenta a Venezuela como «um caso perfeito de erosão democrática». Nesse sentido, Laura Gamboa tenta perceber de que forma a Venezuela se tornou um país autoritário e se é possível, no curto prazo, voltar a ser uma democracia. O argumento da autora é que a erosão da democracia na Venezuela pode ser explicada pelo papel desempenhado pela oposição contra Hugo Chávez entre 1998 e 2013, assim como na atualidade. A oposição utilizou estratégias institucionais e extrainstitucionais, mas tem sido a combinação de eleições com as manifestações que surtiu melhores efeitos. A análise de Gamboa conclui que a redemocratização da Venezuela será, por certo, um processo muito complexo pois a permanência do chavismo no governo só será possível se se tornar totalmente autoritário.
Como fica claro, o dossiê não esgota de todo a temática tratada. Representa apenas um contributo importante para o debate que tem vindo a ser feito, e porventura continuará a fazer‑se, sobre o estado da democracia e as reformas por que eventualmente terá de passar para que continue a ser uma garantia da paz.