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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.53 Lisboa mar. 2017

https://doi.org/10.23906/ri2017.53a06 

Estratégia Global da União Europeia. Pragmatismo e possibilismo

European Union Global Strategy: pragmatism and possibilism

 

Rafael García Pérez

 

RESUMO

A Estratégia Global da União Europeia é um documento com pretensões limitadas, adaptado ao contexto internacional atual, sem grandes declarações de princípios e orientado sobretudo para a ação. Oferece um impulso doutrinal indiscutível à PESC, mas não reúne o apoio político necessário nem define um pensamento estratégico europeu com a clareza e resolução necessárias.

Palavras-chave: União Europeia, Estratégia Global, segurança europeia, Política Comum de Segurança e Defesa.

 

ABSTRACT

The EU Global Strategy is a document with limited ambitions, adjusted to the current international context, without declarations of principles and mainly action‑oriented. It offers to the CSFP an undoubtedly doctrinal impulse, but neither it gathers the necessary political support nor it defines a European strategic thinking.

Keywords: European Union, Global Strategy, European security, Common Security and Defense Policy.

 

A Estratégia Global da União Europeia (EUGS)1 resulta de um longo e original processo de gestação iniciado em dezembro de 2013, quando o Conselho Europeu solicitou à alta representante, na altura Catherine Ashton, a redação de um documento que avaliasse o impacto que as mudanças operadas no sistema internacional teriam sobre a União Europeia (UE). A sua sucessora, Federica Mogherini, assumiu o projeto um ano mais tarde, encarregando Nathalie Tocci (analista do Istituto di Affari Internazionali di Roma) do seu desenvolvimento. Tocci seria então responsável pela redação do relatório que Mogherini apresentou ao Conselho Europeu de junho de 2015, sob o título «The European Union in a changing global environment. A more connected, contested and complex world»2. Com base nele, o Conselho solicitou à alta representante a elaboração, em conjunto com os estados‑membros, de uma reflexão estratégica que acabaria por dar lugar à EUGS, um ano depois apresentada formalmente ao Conselho Europeu de 28 de junho de 20163.

A elaboração do documento durante esse ano de gestação seguiu um procedimento aberto e participativo verdadeiramente singular, que deveria constituir, em si mesmo, objeto de estudo acerca dos processos de discussão e tomada de decisões no seio da União. A participação dos estados fez-se a diferentes níveis (principalmente ministeriais e parlamentares) bem como a das instituições europeias (Comissão e Parlamento). A liderança da alta representante, todavia, foi inquestionável, e contou com o apoio da Divisão de Planeamento Estratégico do Serviço Europeu para a Ação Externa (SEAE), assim como do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia (EUISS). O elemento mais atraente do processo foi a consulta efetuada à comunidade de especialistas, principalmente através da rede europeia de centros de reflexão – think tanks– sobre relações internacionais e UE, entre os quais o Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI)4.

A Estratégia Global é um documento substancialmente mais extenso que a Estratégia Europeia de Segurança (2003), que vem substituir. É também menos ambicioso nos objetivos que propõe, com uma linguagem menos grandiloquente e maior realismo, que denomina «pragmatismo baseado em princípios»5. A Estratégia Global contrasta positivamente com a antecessora. A Estratégia Europeia de Segurança iniciava‑se com a frase contundente: «A Europa nunca foi tão próspera, tão segura e tão livre»; agora, o tom muda por completo: «Precisamos de uma Europa mais forte. Merecem‑no os nossos cidadãos e espera-o o mundo.» A EUGS é um documento de pretensões limitadas, adaptado ao contexto internacional atual (de que não faz qualquer diagnóstico, ao assumir o conteúdo do relatório preliminar de 2015), sem grandes declarações de princípios e orientado especialmente para a ação, com a identificação das políticas que a União deve desenvolver; assume os desafios apresentados e formula um guião para os enfrentar, organizado em três partes: interesses, princípios e prioridades.

Um dos pontos fortes do documento é a visão objetiva e nada complacente do contexto da segurança regional e internacional com que a UE se confronta, a exigir uma reação imediata, coerente, economicamente capaz e temporalmente sustentada por parte da União e dos estados‑membros. Vale igualmente a pena notar a confirmação do compromisso da UE com a manutenção de uma ordem internacional assente em normas e instituições multilaterais. Outro dos aspetos positivos é a moderação (se não mesmo o desaparecimento) do que tem sido, desde as suas origens, o discurso dominante legitimador da política externa da ue6, que tem acarretado uma crescente perda de credibilidade e aceitação internacional, em especial dos nossos vizinhos meridionais e orientais.

A estratégia apresenta algumas debilidades doutrinárias que deveriam ser corrigidas. Não inclui qualquer reflexão que justifique o abandono do discurso político anterior e explique a mudança ocorrida. Tampouco menciona a razão do «esquecimento» (poder-se-ia falar de abandono?) de algumas políticas fundamentais da UE em décadas anteriores, como a Política de Vizinhança (PEV) ou a promoção da democracia no mundo7. Não existe nenhuma crítica às ações (ou inações) realizadas no passado. Ainda que haja esse apelo a um pragmatismo baseado em princípios, a indefinição doutrinal poderá ser reflexo de uma resistência ideológica a encerrar a etapa anterior. O conceito de resiliência, princípio medular da nova estratégia, deveria ter merecido uma definição mais rigorosa e precisa, já que vem substituir o «poder transformador» e de promoção da democracia antes atribuído à União. Críticas semelhantes poderão ser feitas à ambiguidade presente no conceito de «autonomia estratégica» da UE, pois não é esclarecido o que será feito para a alcançar, nem como serão as nossas relações até lá com os Estados Unidos ou no seio da NATO.

Passemos, então, a uma análise breve da EUGS. Concentraremos a nossa atenção no contexto europeu e internacional em que surgiu e deverá ser aplicada, e em alguns dos conceitos mais relevantes que introduz, mas cuja indefinição a convertem num voluntarioso exercício de possibilismo.

 

A EUGS COMO REAÇÃO

A UE tem demonstrado uma prolongada paralisia em matéria de segurança e defesa. A EUGS foi entregue à alta representante no Conselho de junho de 2015, e recolhia as conclusões do Conselho da Política Comum de Segurança e Defesa de maio de 2015. O anterior Conselho Europeu sobre segurança fora celebrado em dezembro de 2013, e o anterior em dezembro de 2008. A crise económica e, depois, institucional, concentrou toda a atenção da UE ao longo destes anos; a julgar pelos resultados, com uma eficácia limitada. Este imobilismo coincidiu no tempo com um contexto estratégico e de segurança extremamente complexo. A passividade da União é ainda mais significativa por vivermos, no nosso contexto mais imediato, numa época de degradação acelerada da segurança regional, em que se produziram grandes alterações nos equilíbrios geopolíticos mundiais. Neste sentido, poderia dizer‑se que a estratégia constitui uma espécie de «último metro» para a projeção internacional da UE, antes de sermos definitivamente ultrapassados pelos acontecimentos. Quero dizer com isto que foi adotada no pior momento possível para tomar decisões estratégicas. É sobejamente conhecido o impasse decisório em que nos encontramos, consequência de um cúmulo de fatores decorrentes do resultado do referendo britânico a favor do Brexit, e dos processos eleitorais nos Estados Unidos, em França e na Alemanha. À incerteza política soma‑se a excessiva burocratização na tomada de decisões. O Tratado de Lisboa, nesse aspeto, não ajudou grande coisa.

Apesar disso, a estratégia foi adotada pelo Conselho, despertando um grande ativismo por parte da Comissão, dos estados e, em menor medida, do Parlamento. Ao contrário das primeiras opiniões proferidas no momento da publicação, não foi recebida pelos estados com um ponto final. Os meses seguintes à sua aprovação foram particularmente ativos e contrastam com a passividade demonstrada nos anos anteriores. A sequência dos principais acontecimentos revela este ativismo:

  • Declaração Conjunta UE‑NATO (8 de julho de 2016)8;
  • proposta conjunta franco‑alemã (11 de setembro de 2016)9;
  • discurso sobre o estado da União, pronunciado por Jean‑Claude Juncker, presidente da Comissão, no Parlamento Europeu (14 de setembro de 2016)10;
  • reunião informal de Bratislava (16 de setembro de 2016)11;
  • Conselho de Negócios Estrangeiros (conclusões sobre a EUGS, de 17 de outubro de 2016)12;
  • duas ações coordenadas (estados e Comissão):

– plano de aplicação da EUGS em matéria de segurança e defesa (14 de novembro de 2016)13;

– Plano de Ação Europeu de Defesa: para um Fundo Europeu de Defesa (30 de novembro de 2016)14.

  • Conselho Europeu de 15‑16 de dezembro de 201615.

Esta cadeia de acontecimentos iniciou‑se com a Declaração Conjunta UE-NATO, emitida imediatamente após a vitória do Brexit. Este documento imprimiu um novo impulso à cooperação entre ambas as organizações precisamente nos âmbitos da segurança em que os estados da União se têm manifestado mais vulneráveis: as ameaças híbridas, a cooperação operativa – em particular na interceção de imigrantes ilegais no mar –, a cibersegurança e a ciberdefesa, as capacidades de defesa, e o desenvolvimento da indústria e da investigação sobre defesa.

A aplicação da declaração conjunta converteu‑se numa prioridade política para a UE na reunião de Bratislava, onde os vinte e sete dirigentes europeus (sem a presença do Reino Unido) decidiram iniciá‑la de imediato. Acordaram na elaboração de um plano de execução que aproveitaria o que de melhor oferecem os tratados, em especial no referente às potencialidades nesta área, para a concretizarem.

Cumprindo com este compromisso, a Comissão Europeia apresentou o Plano de Ação Europeu de Defesa para incrementar a investigação, as competências e a competitividade através de um melhor funcionamento do mercado interno. O plano contempla três instrumentos: um Fundo Europeu de Defesa para apoiar o investimento em investigação e o desenvolvimento conjunto de equipas e tecnologias de defesa; uma maior facilidade no acesso ao financiamento por parte das empresas e o cofinanciamento de cooperação sectorial sobre capacidades; e, em terceiro lugar, a contratação pública transfronteiriça pelas empresas do setor da defesa, fomentando o desenvolvimento de normas industriais comuns.

O Conselho Europeu celebrado em dezembro de 2016 reiterou o apoio ao Plano de Ação Europeu de Defesa, ao Plano de Aplicação da EUGS e à implementação do conjunto comum de propostas que dão seguimento à Declaração Conjunta UE‑NATO16. Os dirigentes dos estados‑membros manifestam‑se convencidos da necessidade de assumir maiores responsabilidades no reforço da segurança e da defesa da Europa num contexto geopolítico difícil e incerto. Numa primeira etapa, o esforço centra‑se na alocação de recursos financeiros adequados. O passo é necessário, mas não é suficiente nem está à altura do reduzido nível de ambição ostentado na EUGS.

 

OS PRINCIPAIS ATORES EUROPEUS PERANTE A EUGS

À dinâmica reativa vivida pelas instituições europeias ao longo de 2016 somaram‑se alguns estados, nomeadamente o eixo franco‑alemão, que terá assumido o impulso político necessário à neutralização dos efeitos negativos do Brexit, também no âmbito da segurança e da defesa. Trata‑se de uma espécie de bilhar às três tabelas17, em que a posição a adotar pelo Reino Unido continua a ser a maior incógnita.

O Reino Unido é o principal ator militar europeu. Apesar de sempre ter sido um opositor declarado ao reforço da cooperação europeia no domínio da defesa, continua a ter um papel importante nas missões da Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD). Participa em 12 das atuais 16 missões no terreno e é um dos seus cinco principais contribuintes. É também o terceiro maior contribuinte para a Agência Europeia de Defesa e um dos poucos membros que manteve o compromisso orçamental de dedicar dois por cento do PIB a gastos de defesa.

O Brexit não fecha completamente a porta à possibilidade de o Reino Unido continuar a contribuir para as missões da UE18, se assim o desejar, através de uma associação com países terceiros, já posta em prática noutras ocasiões. A União vai perder, sem dúvida, as competências estratégicas britânicas, para além de capacidades militares cruciais. Em todo o caso, afigura‑se difícil determinar até que ponto a defesa do Reino Unido pode realizar‑se unicamente no contexto da NATO, prescindindo do vínculo europeu. Poderá ser essa, porém, a intenção dos defensores do Brexit. Durante a campanha do referendo treze antigos chefes militares britânicos publicaram uma carta conjunta19 em que destacavam o valor que a cooperação de segurança no seio da UE, num mundo cada vez mais instável, tem para o Reino Unido.

Enquanto aguardamos que o Governo britânico defina formalmente a sua posição sobre assunto tão delicado, cabe-nos apenas especular que possa aspirar a recuperar a postura defendida por W. Churchill em 1953, na criação da Comunidade Económica de Defesa: declinando participar nela, assinou ao mesmo tempo três convénios de colaboração20. A velha fórmula churchilliana21 será muito apreciada pelos defensores da singularidade identitária britânica mas tornar‑se‑á prejudicial aos interesses de segurança do conjunto dos europeus, incluindo dos britânicos.

De forma inopinada, o Brexit criou uma janela de oportunidades para que os estados-membros lançassem iniciativas de fortalecimento e aprofundamento da cooperação europeia em matéria de defesa. Será esse o entendimento em Paris e em Berlim. Poucas semanas depois do referendo britânico, o Governo alemão aprovou o Livro Branco da Defesa22 (o anterior era de 2006), que prevê, para o país, um aumento da presença militar no mundo e uma maior responsabilidade nas intervenções internacionais.

O documento contempla a abertura da Bundeswehr aos cidadãos da UE, sem necessidade de ter a nacionalidade alemã. Também anuncia o cumprimento do compromisso adotado no seio da NATO de dedicar dois por cento do PIB a gastos militares, o que suporia um incremento muito significativo da despesa militar (até os 60 700 milhões de euros). No início do ano, o Governo alemão anunciara a intenção de melhorar o equipamento militar com um investimento de nove mil milhões anuais até 203023.

Em setembro de 2016, os governos francês e alemão apresentaram um plano conjunto para uma cooperação mais estreita em matéria de defesa no seio da UE: «Revitalisation de la PSDC – Vers une défense au sein de l’UE globale, réaliste et credible». Propõem a execução de uma cooperação estruturada permanente, a criação de um quartel-general de comando operativo para as missões da União – para dirigir missões militares e civis –, um novo centro de comando para a coordenação da assistência médica, um quadro comum de financiamento, e um sistema de formação conjunta para os oficiais superiores (Réseau d’Officiers Européens). Avançam igualmente a possibilidade de o Eurocorpo ser utilizado pelo Conselho Europeu para planificar as missões PCSD, com o intuito de acelerar a sua implementação. Advogam um maior acesso às imagens do sistema Optical Spacial Componet (OSC) – Copernicus – e do sistema de satélites alemão SARAH, através do Centro de Satélites da União Europeia (CSUE), em especial para o controlo de áreas marítimas. Outro dos objetivos é o estabelecimento das capacidades estratégicas de transporte (terra/ar/mar) como um possível hub ao estilo do European Air Transport Command (EATC), bem como muitas outras medidas no campo da indústria militar.

A cooperação europeia em matéria de defesa é a única forma efetiva de combater as insuficiências militares de cada um dos países da União, dado que nenhum pode permitir‑se a manutenção de uma gama completa de capacidades militares por conta própria. A proposta do eixo franco‑alemão reforça a abordagem defendida pela EUGS e pressuporá o impulso político necessário para que os estados‑membros adotem finalmente as medidas para enfrentar decisões sempre adiadas, incluindo o financiamento, a capacidade conjunta de aquisição e uma planificação e implementação partilhadas das decisões.

O primeiro passo nesta direção é de caráter orçamental. Encontra‑se vinculado ao compromisso adotado na cimeira da nato de Gales de setembro de 2014 de dedicar dois por cento do PIB nacional aos orçamentos de defesa. O compromisso foi reafirmado pela Declaração Conjunta UE-NATO de julho de 2016.

O resultado das eleições presidenciais nos Estados Unidos reforça a orientação do problema no sentido orçamental. Em termos de opinião pública, em especial durante a campanha, a questão foi colocada como um problema de reequilíbrio no investimento, já que a contribuição dos Estados Unidos para a nato representa 72 por cento do total24. Com a nova Administração republicana e a perspetiva estratégica de recuo norte-americano, os estados europeus deveriam fazer um maior esforço económico na defesa nos próximos anos. A ambição manifestada pela EUGS será então posta à prova25. Mas, até agora, não parece estar aberto o debate que enfrente a questão essencial da autonomia estratégica da UE.

 

É POSSÍVEL AVANÇAR NA PCSD COM AS ESTRUTURAS DEFINIDAS NOS TRATADOS?

O Tratado de Lisboa inclui três inovações significativas neste âmbito: a cláusula de ajuda e assistência mútua (artigo 42.7.TUE); a cláusula de solidariedade (artigo 222 TUE); e a cooperação estruturada permanente. As duas primeiras cláusulas não parecem ir ser modificadas. A primeira, porque implicaria adotar uma outra de aliança militar entre os estados‑membros que não é unanimemente aceite. A segunda é totalmente aplicável e foi ativada depois dos atentados de Paris de novembro de 2015. O debate político atual centra‑se na efetivação de uma cooperação estruturada permanente, impulsionada pela França e pela Alemanha, e à qual tradicionalmente o Reino Unido se opôs.

Como se sabe, o Tratado de Lisboa introduziu a possibilidade de alguns países da UE poderem reforçar a colaboração militar criando uma cooperação estruturada permanente (artigos 42, apartado 6, e 46 TUE). Para isso, os países interessados deverão preencher uma série de condições estabelecidas pelo protocolo n.º 10 adjunto ao Tratado de Funcionamento. Consistem, fundamentalmente, no desenvolvimento intensivo das capacidades de defesa e no aumento das contribuições nacionais para as missões empreendidas e os principais programas promovidos pela Agência Europeia de Defesa.

Os estados‑membros que desejem constituir uma cooperação estruturada permanente devem notificar o Conselho e a alta representante. A seguir, o Conselho deve adotar por maioria qualificada uma decisão. A adesão de novos países ou a suspensão de alguns deles decide‑se igualmente no Conselho por maioria qualificada dos membros participantes na cooperação estruturada permanente.

As decisões adotadas no âmbito da dita cooperação sê‑lo‑ão por unanimidade.

A novidade que trouxe a inclusão da cooperação estruturada permanente no Tratado de Lisboa foi a eliminação do requisito, exigido até então, de contar com um número mínimo de estados (nove) para a pôr a funcionar. Abre-se assim a possibilidade de o compromisso franco-alemão anunciado no plano conjunto de setembro de 2016 se materializar. Ainda que nas conclusões do Conselho de dezembro de 2016 não apareça expressa nenhuma referência, é possível que ao longo deste ano, uma vez superados os dois processos eleitorais nos dois estados promotores, vejamos algum avanço neste âmbito tão crítico e importante.

 

A DEBILIDADE CONCEPTUAL DA EUGS

A EUGS parte do pressuposto de que a União deve assumir os desafios e formular um guia estratégico para os enfrentar. A lógica é liberal: a União imagina um «pragmatismo baseado em princípios» (principled pragmatism) segundo o qual a sua ação exterior parte da definição dos seus interesses, no contexto da aspiração idealista de «avançar para um mundo melhor». Conceptualmente, é uma estratégia que difere da noção tradicional da UE como poder normativo, e converte‑se num ponto central da EUGS quando defende o caráter partilhado de interesses e valores (paz, segurança, prosperidade, democracia e uma ordem mundial multilateral baseada em normas). Assim, recusa resolver um dilema, «entre o Cila do isolacionismo e o Caríbdis de um intervencionismo precipitado», combinando valores habitualmente presentes no discurso europeu com os seus interesses vitais definidos em termos tradicionais. A sua concretização prática fica reservada às decisões que a UE adotar para projetar esses valores. A reformulação conceptual que implica a noção do «pragmatismo baseado em princípios» articula uma visão mais possibilista que pragmática da política externa da União, afastada de anteriores objetivos, como a promoção da democracia, agora não mencionados26.

Outro conceito-chave utilizado na EUGS é o de «resiliência», citado em 28 ocasiões. Define‑se como «a capacidade dos Estados e das sociedades para reformarem‑se, resistindo assim aos desaires, e para recuperar das crises internas e externas». A UE propõe-se fomentar a resiliência nas regiões vizinhas, pelo leste (até à Ásia Central) e pelo sul (até à África Central) e entre os seus vizinhos (já não se fala em bom governo nem em democracia) e fá‑lo‑á na companhia dos seus membros. Tal como ocorreu com a promoção da democracia, a Política de Vizinhança também parece ser abandonada pela via do silêncio.

À ambiguidade e indefinição doutrinal e prática destes dois conceitos soma‑se a noção de «autonomia estratégica». Apesar de estar presente ao longo de todo o texto e de ser dedicado um anexo à sua implementação, a sua imprecisão é manifesta. Para alcançar este objetivo a União deveria ser capaz de assumir uma longa lista de missões exigentes: proteger‑se a si mesma, responder a crises externas, e ajudar terceiros em situação de fragilidade a adquirir capacidades em matéria de segurança. A sua aplicação não implicaria concorrência com a NATO pois permitiria desenvolver capacidades complementares. Num contexto de reforço do vínculo atlântico, pelo menos por parte da UE e da própria NATO, o seu enunciado não deixa de ser um desiderato bem‑intencionado.

 

CONCLUSÕES

Assistimos a um novo impulso da Política Comum de Segurança e Defesa determinado pela crescente deterioração da segurança no ambiente regional europeu e pela reorientação da política de defesa proposta pelo Presidente Donald Trump. O Brexit pode ter oferecido a oportunidade para dar um sentido político a esta iniciativa. Ainda que o contexto político europeu e norte‑americano sofra alterações importantes nos próximos meses, é previsível que o ativismo de planos, propostas e declarações vividas no outono de 2016 tenha continuidade em 2017 sob a forma de novos documentos e ações que materializem o acordado. Nesse sentido, é possível que assistamos a certos avanços, como o incremento dos orçamentos de defesa (dentro de um plano de flexibilização dos défices públicos) orientados para a melhoria de capacidades e competências, ou à organização, e desdobramento operativo, da Guarda Europeia de Fronteiras e Costeira, assim como de diversas medidas de apoio (informação de satélite) para conter a crise migratória e de refugiados. O início de uma cooperação estruturada permanente sob a liderança franco‑alemã seria um passo importantíssimo que possivelmente tardará.

A EUGS deu um impulso doutrinal indiscutível a estas iniciativas. Mas não reúne o apoio político necessário nem define um pensamento estratégico europeu com a claridade e resolução necessárias. A sua fundamentação em conceitos imprecisos (como resiliência ou pragmatismo baseado em princípios), que sem dúvida desempenham uma função‑chave na visão operativa que pretende trazer, também não ajuda nesse propósito. A UE continua a não conseguir fazer uma reflexão doutrinal sobre a sua natureza enquanto ator internacional e sobre a política exterior que pode e deve realizar. O pragmatismo possibilista encarnado nesta estratégia não pode representar a estação terminal do caminho.

TRADUÇÃO: MARTA AMARAL

 

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Data de receção: 16 de dezembro de 2016 | Data de aprovação: 26 de janeiro de 2017

 

NOTAS

1 Shared Vision, Common Action: A Stronger Europe. A Global Strategy for the European Union’s Foreign and Security Policy. Junho de 2016. [Consultado em: 11 de novembro de 2016]. Disponível em: https://eeas.europa.eu/top_stories/pdf/eugs_review_web.pdf.

2 EUROPEAN UNION EXTERNAL ACTION – «The European Union in a changing global environment. A more connected, contested and complex world». Abril de 2015. [Consultado em: 9 de dezembro de 2016]. Disponível em: https://eeas.europa.eu/docs/strategic_review/eu-strategic-review_strategic_review_en.pdf.

3 EUISS – Strategy Matters – EU Key Documents 2015 – 2016. Paris: EUISS, 2016. Disponível em: www.iss.europa.eu/publications/detail/article/strategy-matters-eu-key-documents2015-2016/.

4 EUISS – Towards an EU Global Strategy – Consulting the Experts. Paris: EUISS, 2016. Disponível em: www.iss.europa.eu/publications/detail/article/towards-an-eu-global-strategy-consulting-the-experts/.

5 «Principled pragmatism will guide our external action in the years ahead», EUGS, p. 16.

6 BISCOP, Sven – «The EU Global Strategy: Realpolitik with European Characteristics». Secutity Policy Brief n.º 75. Junho de 2016. [Consultado em: 10 de dezembro de 2016]. Disponível em: www.egmontinstitute.be/wp-content/uploads/2016/06/SPB75.pdf.

7 TECHAU, Jan – The EU’s New Global Strategy: Useful or Pointless? Carnegie Europe – Carnegie Endowment for International Peace. 1 de julho de 2016. [Consultado em: 3 de outubro de 2016]. Disponível em: http://carnegieeurope.eu/strategiceurope/?fa=63994.

8 «EU-NATO joint declaration». Varsóvia, 8 de julho de 2016. [Consultado em: 8 de dezembro de 2016]. Disponível em: www.consilium.europa.eu/es/press/press-releases/2016/07/08-eu-nato-joint-declaration/.

9 LE COUPLE FRANCO-ALLEMAND – «Proposition conjointe franco-allemande remise par les ministres français et allemand de la défense, Jean-Yves Le Drian et Ursula von der Leyen à Federica Mogherini, haute représentante de l’Union pour les affaires étrangères et la politique de sécurité, le 11 septembre 2016». [Consultado em: 8 de dezembro de 2016]. Disponível em: www.france-allemagne.fr/article9346.html.

10 EUROPEAN COMMISSION – «State of the Union Address 2016: towards a better Europe – a Europe that protects, empowers and defends». Estrasburgo, 14 de setembro de 2016. [Consultado em: 8 de dezembro de 2016]. Disponível em: http://europa.eu/rapid/press-release_SPEECH-16-3043_en.htm.

11 EUROPEAN UNION – «Bratislava declaration and roadmap». [Consultado em: 8 de dezembro de 2016]. Disponível em: www.consilium.europa.eu/es/press/press-releases/2016/09/16-bratislava-declaration-and-roadmap/.

12CONSEJO DE LA UNIÓN EUROPEA – «Conclusiones del Consejo relativas a la Estrategia Global sobre Política Exterior y de Seguridad de la Unión Europea». Luxemburgo, 17 de outubro de 2016. [Consultado em: 9 de dezembro de 2016]. Disponível em: http://data.consilium.europa.eu/doc/docu-ment/ST-13202-2016-INIT/es/pdf.

13 «Implementation Plan on Security and Defence». Bruxelas, 14 de novembro de 2016. [Consultado em: 9 de dezembro de 2016]. Disponível em: https://eeas.europa.eu/sites/eeas/files/eugs_implementa-tion_plan_st14392.en16_0.pdf.

14 COUNCIL OF THE EUROPEAN UNION – «European Defence Action Plan: Towards a European Defence Fund». Bruxelas, 30 de novembro de 2016. [Consultado em: 9 dezembro 2016]. Disponível em: http://europa.eu/rapid/press-release_IP-16-4088_en.htm.

15 EUROPEAN COUNCIL – «European Council conclusions». Bruxelas, 15 de dezembro de 2016. [Consultado em: 7 de janeiro de 2017]. Disponível em: http://www.consilium.europa.eu/en/press/press-releases/2016/12/15-euco-conclusions-final/.

16 TUSK, Donald, JUNCKER, Jean-Claude, e STOLTENBERG, Jens – «Taking EU-NATO cooperation to a new level». 13 de dezembro de 2016. [Consultado em: 14 de janeiro de 2017]. Disponível em: www.consilium.europa.eu/en/press/press-releases/2016/12/13-tusk-juncker-stoltenberg-opinion/.

17 KEOHANE, Daniel – «European defense and Brexit: a tale of three cities». Carnegie Europe – Carnegie Endowment for International Peace. 1 de julho de 2016. [Consultado em: 10 de dezembro de 2016]. Disponível em: http://carnegieeurope.eu/strategiceurope/?fa=62922.

18 JANS, Karlijn – «What does Brexit mean for European defense?». In Diplomatic Courier. 8 de dezembro de 2016. [Consultado em: 15 de janeiro de 2017]. Disponível em: www.diplomaticourier.com/2016/12/08/brexit-mean-european-defense/.

19 THE TELEGRAPH – «Britain must stay in the EU to protect itself from Isil, former military chiefs say». 23 de fevereiro de 2016.[Consultado em: 15 de janeiro de 2017]. Disponível em: www.telegraph.co.uk/news/newstopics/eureferendum/12170890/Britain-must-stay-in-the-EU-to-protect-itself-from-Isil-former-military-chiefs-say.html.

20 MASSIGLI, René – Une Comedie des Erreurs, 1943-1956: souvenirs et réflexions sur une étape de la construction européenne. Paris: Plon, 1978, p. 375.

21 A frase textual de Churchill foi: «We are with Europe, but not of it. We are linked, but not comprised. We are interested and associated, but not absorbed.» Foi pronunciada num discurso na Câmara dos Comuns, a 11 de maio de 1953.

22 «Weißbuch 2016 zur Sicherheits politik und zur Zukunft der Bundeswehr». 13 de julho de 2016. [Consultado em: 14 de janeiro de 2017]. Disponível em: www.bmvg.de/resource/Weissbuch2016_barrierefrei.pdf.

23 «Acht Prozent mehr für die Verteidigung». 23 de novembro de 2016. [Consultado em: 14 de janeiro de 2017]. Disponível em: www.bundesregierung.de/Content/DE/Artikel/2016/09/2016-09-07-etat-bmvg.html.

24 NATO – «Defence Expenditures of NATO Countries (2008-2015) (PR/CP(2016)011)». 28 de janeiro de 2016. [Consultado em: 10 de dezembro de 2016]. Disponível em: www.nato.int/nato_static_fl2014/assets/pdf/pdf_2016_01/20160129_160128-pr2016-11-eng.pdf.

25 BISCOP, Sven – Peace without Money, War without Americans. Can European Strategy Cope? Londres: Ashgate, 2016.

26 BARBÉ, Esther – «La Estrategia Global de la Unión Europea: el camino del medio». In Revista General de Derecho Europeo. N.º 40, 2016. [Consultado em: 20 de dezembro de 2016]. Disponível em:www.iustel.com/v2/revistas/detalle_revista.asp?id_noticia=417865.

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