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Relações Internacionais (R:I)
versão impressa ISSN 1645-9199
Relações Internacionais no.54 Lisboa jun. 2017
https://doi.org/https://doi.org/10.23906/ri2017.54r01
RECENSÃO
Uma revisitação obrigatória de Locke
António Horta Fernandes
Docente do Departamento de Estudos Políticos da FCSH-NOVA. Estrategista.
MONTSERRAT HERRERO, La Política Revolucionaria de John Locke. Madrid, Tecnos, 2015, 239 páginas.
Montserrat Herrero é uma filósofa espanhola, professora de Ética e de Filosofia Política da Universidade de Navarra, com créditos firmados no pensamento de Carl Schmitt, e também de Hobbes, sendo de referir, no caso deste último, um importante ensaio crítico, intitulado Ficciones Políticas. El eco de Hobbes en el ocaso de la modernidad (Katz, 2012).
Na presente obra, é o pensamento político de John Locke a estar em questão, nos mesmos termos críticos a que nos tem habituado. Na realidade, nesta monografia, a autora dialoga não apenas com os escritos de Locke, mas também com os exegetas maiores do seu pensamento, mormente, como é natural, os de matriz anglo-saxónica. Nomes como Quentin Skinner, John Dunn, Peter Laslett, John G. A. Pocock, James Tully, Richard Ashcraft, ou Jeremy Waldron. Poder-se-ia sentir em falta, embora seja citado um artigo do autor, uma importante obra de contextualização de Steven Pincus, 1688: The First Modern Revolution. No entanto, Montserrat Herrero está muito bem identificada com o contexto histórico no qual coube a Locke viver, não se ressentindo da falta dessa obra – é um problema de difícil resolução: os historiadores geralmente tendem a acusar os filósofos, mesmo os familiarizados com a história, de sobrevalorizarem as ideias e de verem forças a atuar na história que afinal não têm tanta relevância assim em vários contextos; já os filósofos tendem a acusar os historiadores, mesmo os historiadores das mentalidades e da cultura, de menosprezarem de mais as ideias e de não atenderem a ligações genealógicas profundas a operar em e entre distintos contextos históricos. Ambos têm a sua quota-parte de razão.
Tal como já o tinha feito em relação a Hobbes, o diálogo com as fontes e com os principais exegetas não é um debate devoto. Um facto tanto mais de assinalar quanto Locke é considerado um dos pais do liberalismo clássico, e os exegetas anglo-saxónicos, mais republicanos, definidos em torno dos chamados direitos positivos, ou mais puramente liberais, fazem todos parte de uma koinê prevalecente, em termos de individualismo metodológico, do fundo supostamente incontestável do liberalismo e da contabilidade não menos supostamente superavitária do processo político e do próprio projeto moderno – ou não fosse Montserrat Herrero ela mesma uma exegeta fina do pensamento de Carl Schmitt, e como tal algo vacinada contra todas as pretensas bondades óbvias dos fundamentos do moderno (e do contemporâneo) contratualismo liberal.
Por outro lado, sem nunca pôr em causa as qualidades intrínsecas de Locke como filósofo, e assim sendo, sem qualquer intenção palingenésica de reatar as velhas dicotomias entre a filosofia continental, à partida mais propriamente filosófica, e o empirismo inglês, tão-só de aspiração filosófica, Montserrat Herrero não deixa de chamar a atenção, logo no prólogo da sua obra (p. 9), de que Locke se perfila na história do pensamento político mais como político do que como filósofo, obedecendo a evolução do seu pensamento mais a razões de natureza estratégica (assim batizadas pela autora – p. 9). O mesmo é dizer, contingências da sua vontade ou necessidade de participação política no difícil processo que medeia entre a restauração de Carlos II e a «Revolução Gloriosa» de 1688, e a posterior restauração orangista, em Inglaterra. Nada disto obsta a que o pensamento de Locke não seja fundado e não esteja em diálogo com os filósofos do seu tempo. Mas aquilo que nos parecer querer dizer a filósofa espanhola é que o pensamento de Locke, mais ou menos circunstancial como o de todos os filósofos, distintamente, por exemplo, de Ortega y Gasset (o exemplo não é da autora, mas trata-se de um pensador assumidamente circunstancialista nos reptos e também na forma), é, no âmbito político, não só mais circunstancial nos impulsos que o geram mas também no conteúdo gerado, daí algumas ambiguidades que vai verificando, em particular, em torno à obediência dos magistrados civis, praticamente colada ao absolutismo extraível de Hobbes, em Two Tracts of Government, e francamente consensualista no posterior Dois Tratados sobre o Governo Civil. De resto, não é por acaso, como a presente obra mostra, que a enorme consideração pública granjeada por Locke em vida se fica a dever em muito à capacidade de transpor as suas faculdades intelectuais e saber para projetos de apoio à decisão política. A ideia que transparece é a de Locke ser antes de mais um prático muito bem fundamentado e não tanto um sábio de enormes repercussões, inclusive práticas, pelo menos na área do político (ao contrário de um Suárez, ou de um Hobbes).
A TOLERÂNCIA
O livro está dividido em quatro partes, três delas correspondentes àquilo que a autora acha serem os três grandes desígnios políticos perseguidos por Locke, introduzidas por uma circunstância biográfica-política, seguindo de perto a biografia de Roger Woolhouse, de modo a poder melhor inserir as diferentes problemáticas políticas de Locke no contexto da sua vida intelectual e da sua participação pública.
A primeira parte propriamente interpretativa (segunda parte no livro) é dedicada à questão da tolerância. Onde se denota a evolução de um pensamento mais fechado, indiferente à racionalidade própria do culto, em termos da organização do poder político, para uma leitura mais sensível aos rituais manifestos da religião, e não só à ordem interior, e, portanto, mais proclive a respeitar as dinâmicas públicas das várias confissões (p. 75). Todavia, é preciso perceber que Locke é um homem de transição epocal, com todas as ambiguidades que isso acarreta. Se é verdade que a sua relativa desvalorização do culto tem a ver com a importância atribuída à confissão interior, na linha do protestantismo; claramente, no seio da Igreja de Inglaterra, Locke é um professo daquilo que se convencionou chamar de low church, a protestantização do anglicanismo. Não é menos verdade que, desde os escritos iniciais, as limitações da jurisdição civil assentam para Locke no respeito da Lei da Natureza, que é um mandato divino. E nesse sentido, Locke é herdeiro de uma tradição jusnaturalista que estará daí em diante sob ataque, nomeadamente na sua vertente religiosa. Montserrat Herrero evidencia judiciosamente essa ambiguidade, porquanto o próprio ceticismo epistemológico de Locke empirista, de Locke de Ensaios sobre o Entendimento Humano, do inevitável individualismo metodológico e ontológico, não é facilmente compaginável com uma lei objetivamente firmada sobre a natureza, nomeadamente a natureza ética da realidade do homem no mundo.
Face a essa ambiguidade, aquilo que Locke parece traduzir é um tour de force ambíguo, senão mesmo contraditório, apelando ao argumento teológico-político para salvar a situação in extremis. Quem garante o dever de obedecer à Lei da Natureza? Quem garante que a consciência não lhe escapa? Justamente Deus. Mas isso significa encará-lo como uma peça extrínseca, um remédio de última hora para salvar as aporias do edifício. Não é que Locke não fosse verdadeiramente crente, mas basta a fé involuir no volume, a partir do século XVII, para que a dúvida radical se instale e Deus deixe de ser um operador legítimo da «equação». A qual, aliás, assentará sobre o vazio, dado o ceticismo epistemológico inaugurado pela época moderna, e do qual o empirismo lockiano é uma das variantes – a mente empirista, como se sabe, é uma peculiar tábua rasa onde se cravam, não as realidades exteriores (como no suposto realismo ingénuo dos gregos, que, aliás, nunca foi assim em Aristóteles; o percipiente não é um agente nulo – ver o Da Alma, III, 2, 426, entre outros), mas as impressões que delas vamos configurando e que nunca saberemos se correspondem verdadeiramente ao que está para lá da mente (um episódio soberbamente relatado por Rorty em A Filosofia e o Espelho da Natureza).
De qualquer forma, por mais que Locke fosse outro e não vinculasse as limitações do poder civil a uma Lei da Natureza e por mais que pudesse ser um defensor estrénuo da fé com base também nas obras, a questão da tolerância para Locke nunca poderia ter sido, como o não foi, um problema de consciência, no sentido contemporâneo. As limitações à liberdade de consciência e de pensamento ainda se não colocavam, não só porque o processo de soberanização e de fazer valer os poderes doces era incipiente, mas sobretudo porque a descoberta pré-romântica da intimidade estava ainda por vir. A tolerância era uma questão de culto e doutrina que poderia afetar ou não o poder da Commonwealth, e nesse sentido, como salienta a autora, não eram toleráveis de modo nenhum, nem católicos, papista obedecendo a uma potência estrangeira, nem ateus, porque negavam o alicerce incondicional onde se fundamentava a lei natural e com ela a caução do respeito de pactos e garantias.
A LEGITIMIDADE DO PODER
A terceira parte do livro é dedicada à controvérsia sobre a legitimidade de poder. Passando de uma posição de recorte algo absolutista a uma posição mais liberal, Locke advoga a lógica do contrato na instituição e na manutenção da sociedade civil. Contrato que, por sua vez, na organização e dispensação de poderes funciona como uma delegação e não como uma alienação, contrariamente a Hobbes. Montserrat Herrero trata a evolução do pensamento político de Hobbes no confronto deste com as teses monarquistas e absolutistas de Filmer. Sendo nesse confronto que Locke vai maturando as suas ideias, tanto num sentido republicano, em termos de regime, embora tenha aceitado a restauração orangista como mal menor, como num sentido de afirmação da vertente liberal dos direitos positivos.
A legitimidade do poder assenta, em última análise, na ideia de operacionalizar melhor a Lei da Natureza, e por isso o garante último da política é Deus. Uma vez mais ressalta a importância do argumento teológico-político. Donde vem então essa necessidade de executar melhor a lei natural? Vem das limitações da sociedade natural. Muito distinta do estado de natureza hobbesiano, a sociedade natural é já uma sociedade perfeitamente viável, onde a lei natural opera, todavia, porque o homem está longe de ser perfeito, as suas limitações exigem uma maior congregação de esforços, daí a necessidade de uma sociedade civil política. A Lei da Natureza é o mecanismo que faz de correia de transmissão entre os dois momentos sociais, sendo que para Locke a sociedade natural foi efetivamente uma sociedade histórica e não apenas uma construção filosófica. Desse modo, não há propriamente uma saída do estado de natureza, mas um aperfeiçoamento do mesmo em ordem a executar com maior efectivade a Lei da Natureza, soberba e acertada conclusão de Montserrsat Herrero (pp. 151-152).
Há outros três aspetos da fundamentação do poder onde se denota ser também aqui Locke um homem de transição.
Como bem refere Montserrat Herrero, a commonwealth não pode ser traduzida por Estado sem reticências (p. 170). Significando com isso que Locke resiste ao processo de soberanização è a dissolução do corpo político no Estado, como mera extensão do Estado, corpo do Estado, politicamente descerebrado e expropriado. Querendo a commonwealth exprimir o corpo político, ou melhor o todo político de corpo e cabeça (Estado), atendendo a que, no caso inglês, essa cabeça, é ela própria uma autoridade partilhada entre rei e parlamento, como já o vira Sir John Fortescue, no século xv. Todavia, a autora mostra também quanto em Locke, em nome da prerrogativa discricionária, excecional, de atuar em nome do bem público, quer dizer, da salvação pública, pode a soberania nascente não deixar espaço na Terra a quem apelar (p. 181). Por isso resta saber se Locke não está a pensar na commonwealth sobretudo como poder partilhado de rei e parlamento, sobremaneira do parlamento, julgando com isso, também ele iludido, que o parlamento faria mais justiça à representação obviamente plural do corpo político e da comunidade política, composta por natureza. Quando, na prática, nessa faceta de cabeça da cabeça, para dizê-lo de alguma forma, o parlamento mais não estava a fazer que a intentar encarnar a absolutez soberana. Seria interessante saber se na obra conjunta de Locke se poderia encontrar resposta para esta questão, pelo menos em relação às suas próprias hesitações.
O segundo aspeto, implícito no livro, mas que a autora não procura desenvolver, nem era esse o seu ponto, tem a ver com o estado de guerra. Transparece da obra de Locke ser a guerra um fenómeno excecional, externo à convivência política, ao ser da própria política, e não um exercício interno à economia da política, interiorizado nela pela lógica soberana (p. 185). Neste aspeto, Locke resiste ainda às dinâmicas modernas que se irão normalizar: a guerra como forma de exercer politicamente a política por meios distintos da paz. Locke é alguém que ainda se pronuncia nos termos da guerra justa (p. 154). E o que é mais, Locke parece fazer sua a ideia da guerra só ser justa para um dos lados, quando na reflexão da segunda escolástica ibérica se colocava já a questão de a guerra poder ser justa para ambos os lados, mormente estando em causa uma refrega entre príncipes cristãos (a título de exemplo, António de São Domingos, «Acerca da Guerra. Questão 40» (da Suma Teológica, ii-ii, q. 40))1. Em qualquer dos casos, é manifesto estarmos diante de mais um dos clássicos pensadores liberais que não cauciona de modo algum a ideia de anarquia internacional, sob nenhuma das suas variantes: a politização moderna da guerra significa que esta passa a ser uma possibilidade real/existencial sempre à espreita, dadas as características da soberania, e não um pano de fundo da cena internacional.
O terceiro aspeto respeita à defesa por Locke de um direito de resistência, no Segundo Tratado sobre o Governo Civil, quando a iniquidade da ação de governo, pelo seu abuso, põe em causa a Lei da Natureza e com ela os cimentos fundadores do contrato político e do consenso. Nesse caso, o uso da força contra a vida e as propriedades coloca o governante como que em estado de guerra com os cidadãos, recuperando estes o direito a defender-se. Um argumento muito suareziano, embora a comparação com o estado de guerra, ou mesmo a assunção desse estado, também presente na forma de guerra justa em Suárez, na presença de tirania manifesta (De Legibus, iii, iv, 6), possa dar que pensar, por intermédio de duas alternativas: ou o estado de sedição legítima, sendo um estado de guerra, não é um momento propriamente político, porque não se quer crismar a violência como ato político de jure, ainda por cima no coração da Cidade, parece ser a posição de Suárez, ou, atendendo à prerrogativa soberanizante de governo já aludida, pode igualmente colocar-se a hipótese, em acrescento, desse estado de sedição não ser propriamente político mas de guerra, porque consagrada uma autoridade soberana, ela, por ser absoluta e indivisível não pode ser desafiada, portanto o ato não valeria como político – certamente, a interiorização da guerra no edifício político veio a traduzir-se, em caso de guerra civil, na aceitação mais ou menos pacífica de que cada uma das partes afirma representar a soberania una, mas é possível que nos momentos aurorais da afirmação soberana ninguém estivesse disposto a facilitar, e tudo o que não fosse guerra controlada pelo soberano seria algo próximo à stasis grega, ao bouleversement du monde. Dificuldades inerentes aos tempos primeiros de ensimesmamento da guerra na cidade e/ou receio da guerra sem quartel, guerra absoluta, que a guerra civil parece poder promover à saciedade, tanto mais que não há força política, por mais soberana que seja, capaz de politicamente a controlar, quando se desdobra por completo?
Todavia, espantosamente, porque nada o fazia esperar, e esta talvez seja a crítica de maior alcance ao livro (tratando-se de um ponto lateral, e sendo este o maior pecado, pode aquilatar-se da excelência da obra), Montserrat Herrero parece seguir aqui um tanto acriticamente o individualismo metodológico e implicitamente político da Escola de Cambridge, quando aquiesce à ideia de Skinner, segundo a qual Suárez e Luís de Molina fundam as razões para alguém se fazer súbdito no interesse individual de cada um em prover de forma proficiente à sua segurança, e quando a coisa corre mal, ainda de acordo com Skinner, ser à linhagem protestante que se tem de recorrer para a defesa da resistência, tanto mais quanto em Suárez o consenso supostamente fundador da política ser de quase alienação (pp. 174, 186 e segs.).
Ora, nada disto acontece, e a autora, como boa conhecedora da tradição da segunda escolástica, sabe-o bem. Certamente, a transmissão de poder em Suárez não é uma delegação mas uma quasi alienatio. Todavia, isso não obsta aos limites do poder, porque o fundamental reside a montante dessa transmissão, no bem comum, e como tal vale de jure a fórmula rex propter regnum – argumento utilizado para depor Afonso VI de Portugal, na segunda metade do século XVII. É exatamente pela primazia e primacialidade, de raiz aristotélico-tomista, do bem comum e pela herança ainda medieval de que as pessoas concretas são as pessoas comunitariamente integradas e não os indivíduos, que julgamos não fazer sentido o individualismo metodológico de Skinner aplicado à Escola de Salamanca (em rigor, Escola Ibérica) e ao interesse de cada indivíduo em se associar politicamente. É essa posição de Suárez que lhe permite defender a resistência em caso de tirania manifesta, de forma tão secular quanto o é possível nele. De resto, não fazendo mais do que seguir toda a tradição tomista e medieval, relativa à defesa da comunidade política, e do corpo político em especial, contra qualquer projeto de soberanização, quando a cabeça se vai fortalecendo e erigindo por sobre o corpo político, não sem inúmeras resistências, tal como ilustra a posição de Guillem Vinatea, dignatário da cidade de Valência, que terá dito ao seu rei, Afonso IV de Aragão, o seguinte: «como homem não sois mais que nós e como rei sois por nós e para nós»2.
A diferença posterior entre protestantes e católicos terá a ver com outra ordem de razões: os católicos põem condições muito firmes para exercer o direito de resistência, porque não só o pensamento gira em torno ao passado e ao veneravelmente estabelecido, como em sociedades que lutam diariamente com o limiar material da sobrevivência, a anarquia é um risco de morte. Os protestantes não estão menos conscientes disso, mas porque se tiveram de revoltar contra os próprios fundamentos mais firmes das sociedades da época, os fundamentos religiosos ancorados na tradição, e o fizeram com violência, estão mais predispostos, por assim dizer, a enfrentar riscos fatais. Estabelecidas as devidas diferenças, protestantes e católicos, e em particular, Locke, não nos deixam de alertar para a cautela com que deve ser encarada ainda hoje a tirania manifesta e a necessidade de ter em atenção as populações afetadas, bem como o seu contexto, no sentido de encetar uma revolta legítima. Tendo em conta a cristalização contemporânea do processo soberano e a dificuldade em arguir sequer a legitimidade de uma revolta interna dentro da arquitetura constitucional estabelecida, o internacionalismo liberal tem-se virado para as intervenções «salvadoras» externas, como se estas não devessem obedecer às mesmas cautelas, ou melhor, a cautelas reforçadas – infelizmente ilustradas à maravilha e a contrario pela recente ação norte-americana na segunda guerra do Iraque.
Seja como for, o paradigma individualista e voluntarista resiste muito pior – senão é mesmo índice (a nosso ver é) – ao processo de soberanização do poder do que o paradigma corporativo, assente na noção de bem comum e de reta razão, indisponíveis para um poder que se quer absoluto. Embora a forma como se materializava o bem comum nas sociedades estamentais fosse injusta e baseada em assimetrias e privilégios estruturais a rever na raiz.
Por fim, uma última nota, neste ponto, embora respeitante ao segundo excurso da segunda parte, intitulado «La naíf distinción entre esfera interior y acción externa», para nos interrogarmos e deixarmos o desafio reflexivo de saber até que ponto a distinção entre a interioridade da vontade versus a exterioridade da liberdade em Locke não veio a ter implicações no liberalismo decimónonico. Estamos a pensar na caracterização da liberdade negativa como essencialmente um problema de evitação, de eliminar os escolhos ou impedimentos à ação.
A LIBERDADE EM MOLDE PRIVATISTA
A quarta parte está dedicada à sociedade comercial como meio para a liberdade. É provavelmente nesta parte que se torna mais manifesta a tendência circunstancialista do pensamento de Locke.
Desde logo, Locke insere-se numa bizarra e desatinada criação seiscentista, segundo a qual o homem é um proprietário, inclusive das suas faculdades, as quais, por conseguinte, são tratadas como uma questão de propriedade. É certo que, como mostra Montserrat Herrero, também neste ponto Locke se revela um homem de transição, porquanto a vida humana e o mundo aparecem apenas sob o prisma de um domínio usufrutuário e não sob propriedade plena, só a Deus pertencente (uma vez mais o argumento teológico-político surge como garante último, agora da economia política), alinhando o inglês destarte pela tradição greco-latina, medieval e primomoderna, para quem o homem é tão-só depositário das suas faculdades, e da composição de ser e essência que lhe subjaz, para nos expressarmos em termos ontológicos. Contudo, nessa tradição a heteronomia é encarada como uma relação de dependência de um ser não autossubsistente com o seu fundamento, de uma relação de participação (no senso platónico) da criatura na ordem da criação, depois no próprio múnus criador, por participação da humanitas de Cristo (em Nicolau de Cusa), e atendendo à especial deferência de Deus para com o homem (imago dei), como uma relação pessoal, mas não de todo económica, proprietária. Por outras palavras, a tradição ancestral observa essa dinâmica entre criatura e Criador como uma relação no verdadeiro sentido e não como uma dinâmica dicotómica, excludente, referida à posse, ao ter ou não ter, jogo de soma nula. Neste sentido, e até porque «o fim fundamental da sociedade civil é proteger a propriedade» (p. 193, e também, p. 149 – onde se indica ser a fundamentação dos limites do poder absoluto dos reis algo abstrata, apenas se fazendo concreta na defesa da propriedade face a essa mesma intervenção abusiva), e embora não defendendo Locke um individualismo plenamente possessivo, mas atendendo ao seu atomismo epistemológico e àquele derivado da defesa de uma sociedade comercial, não deixa Esposito de ter razão em inserir o filósofo inglês na genealogia do paradigma imunitário3.
Todavia, um tal raciocínio não significa que Locke defenda a primazia da economia sobre a política, ou da economia sobre a vontade de fundar a sociedade política, nem sequer faz da economia uma esfera da vida completamente independente da política. Montserrat Herrero, seguindo Dunn, mostra que em Locke a propriedade está em função da liberdade estrutural, antropológica mas também política do homem, e logo está também em função da comunidade, porque, apesar de todas as aporias, em Locke o indivíduo não se quer ainda integralmente desligado, ou não estivesse o mundo debaixo do governo da lei natural, transversal a todos os homens, que se efetua, materializa por inteiro, na sociabilidade humana (p. 197). Não sendo por acaso que a defesa da propriedade privada implica sempre que a legitimidade incontestada e benéfica da apropriação (usufrutuária, em sentido ontológico) se faça deixando um suficiente quinhão para os outros. Aquilo em que o governo não deve interferir é na marcha da atividade económica «natural» de uma sociedade comercial, pois Locke parece crer numa harmonia autorregulada. Muito, portanto, a dar que pensar, e não apenas num só sentido, aos próceres do liberalismo económico contemporâneo.
Em síntese, estamos diante de uma monografia notável pelo que explicita, pelo que alude e pela abertura de horizontes que possibilita sobre o pensamento político de John Locke, sobre o liberalismo e, em definitivo, acerca dos alicerces do pensamento político moderno.
NOTAS
1 Cf. CALAFATE, Pedro (dir.) – A Escola Ibérica da Paz nas Universidades de Coimbra e Évora (Século XVI), Vol. I, Sobre as Matérias da Guerra e da Paz. Coimbra: Almedina, 2015, artigo 1, 74v, p. 291.
2 Citado por BELENGUER, Ernest – Historia de la España Moderna. Desde los reyes católicos hasta Felipe II. Madrid: Gredos, 2011, p. 83.
3 ESPOSITO, Roberto – Bios. Biopolítica e Filosofia. Lisboa: Edições 70, 2010, pp.76 e segs.