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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.56 Lisboa dez. 2017

https://doi.org/10.23906/ri2017.56r01 

RECENSÃO

 

Repensar a guerra pelas mãos de um polemólogo português

 

António Horta Fernandes

FCSH-NOVA, Departamento de Estudos Políticos | Avenida de Berna, 26-C / 1069-061 Lisboa, Portugal | hortafernandes@fcsh.unl.pt

 

PEDRO PEZARAT CORREIA, Guerra e Sociedade, Lisboa, Edições 70, 2017, 240 páginas. ISBN: 978-972-44-1930-5

 

Pedro Pezarat Correia, general do Exército português, professor universitário e intelectual de causas, na qualidade de geopolítico (pela qual é até mais conhecido), polemólogo e estrategista, deu recentemente à estampa uma estupenda obra sobre a guerra e a sociedade, ou melhor, a guerra enquanto fenómeno social como instrumento das sociedades políticas, com um muito sintético mas não menos notável prefácio de Viriato Soromenho-Marques.

 

A obra em causa está dividida em dois grandes capítulos. O primeiro deles disserta sobre o conceito de guerra, para se focar depois na procura das causas e origem das guerras. O segundo capítulo, bem mais extenso, dedica-se à evolução da guerra, em três grandes períodos: o primeiro indo da época pré-moderna àquilo que Pezarat Correia denomina de revolução dos assuntos militares (RAM) clausewitziana; o segundo período vem terminar na Primeira Guerra do Golfo; e o apartado final tem como tema o que o autor designa por período pós-moderno da atual RAM em curso. Era uma das muitas estruturas possíveis de acercamento ao fenómeno, pelo que esta opção nos parece bem balizada e fundamentada, não merecendo reparo de maior.

A posição em que o autor se coloca é muito clara desde a introdução. O conhecimento crítico da guerra é aqui um aviso, e não uma preparação para qualquer guerra que viesse a armar uma paz hipoteticamente mais sólida. De acordo com Pezarat Correia, essa postura denuncia, no mínimo, uma ingenuidade, normalmente, propósitos belicistas. «Se queres a paz, prepara a paz» (p. 18), defende o autor, numa perspectiva à la Galtung, consonante com o seu investimento de há muito nos estudos para a paz, e, em particular, na defesa de uma geopolítica da paz. Trata-se de uma posição de avisador de fogo, como preconizava Benjamin, que nos parece a mais consentânea face às perversidades da guerra e à sem-razão do próprio fenómeno.

Porém, nesta sem-razão poderia haver motivo para algumas interrogações sobre a perspectiva de Pezarat Correia, expressa logo na introdução, mas desenvolvida mormente no primeiro capítulo. A meu ver, o autor insiste demasiado na racionalidade da guerra, para além, naturalmente, da racionalidade das teses que a procuram acuar segundo uma perspectiva crítica. Como se a não atribuição de um esclarecimento cabal aos actores do fenómeno e aos próprios mecanismos bélicos, à sua gramática, pusesse em perigo o ponto de vista crítico sobre a guerra, tornando-nos algo coniventes com os actores pré-modernos, ao sacralizar o fenómeno. Ora, isso não é verdade. Como bem mostrou Ricoeur relativamente a Auschwitz enquanto símbolo de uma determinada gramática do mal, a indignação ética não suspende a compreensão, antes a activa. Quanto mais nos indignamos, mais procuramos compreender a coisa rara, e quanto mais cabalmente compreendemos, mais indignados ficamos1.

Mas não é só em termos epistemológicos que este racionalismo defendido por Pezarat Correia, certamente temperado, acarreta obstáculos. Uma pequena parte do aparato fenomenológico da guerra e, em menor medida, do seu núcleo essencial, parecem poder ser compreendidos de acordo com teorias político-racionais mais ou menos ortodoxas; isto é, modelos de racionalidade fria, não finalista, baseados na relação instrumental entre custo e benefício. Outra fatia significativa tem de ser compreendida à luz de uma racionalidade inclusiva. Aliás, nem se perceberia esta insistência na racionalidade custo-benefício, tão declaradamente é fautora de perpetuação das guerras, não fosse porque Pezarat Correia é um herdeiro kantiano das Luzes – talvez demasiado crente em não haver ambivalências estruturais dignas de nota no projecto secularista moderno. Porém, o núcleo íntimo da guerra, aquilo que Clausewitz veio a designar por guerra absoluta, e que é central para a própria especificidade do fenómeno, exige uma hermenêutica mais fina, em que as teorias políticas e sociológicas de uso comum não bastam, e que apenas a ponerologia, uma metafísica acutilante, uma boa dose de imaginação teopolítica, e também várias intuições literárias, assentes na primazia da ética, poderão dar resposta. A caótica abissal do núcleo irredento da guerra, ultimamente irredimível através do exclusivo tratamento político-estratégico, está aí para o mostrar. Diríamos mesmo ser a ausência da guerra absoluta o único grande senão desta obra.

A referência aos pré-modernos também é importante, porque se Pezarat Correia faz uma indagação expedita para concluir magistralmente que só com Clausewitz o fenómeno bélico é encarado pela primeira vez em toda a sua inteireza (p. 32) – talvez a Ilíada seja um importante prolegómeno, atendendo ademais ao que ultimamente tem sido a sua exegese –2 , por força da dessacralização da guerra (o termo é nosso), as razões não serão precisamente aquelas que Pezarat Correia esgrime. 

A sacralização anterior não tornava a guerra mais um fado do que agora é, nem a normalizava; pelo contrário. Até à Idade Moderna, a guerra, exactamente por ser um flagelo difícil de dominar – daí talvez a sacralização –, é um fenómeno completamente distópico, fora da tessitura da política e das comunidades. É apenas um aparelho ortopédico para corrigir no próprio campo da desordem aquilo que se tomava como desordem; e ainda assim, apenas acometível com regras de contenção precisas. Foi com o aparecimento da soberania, e a tentativa de normalização da guerra levada a cabo pelo soberano para seu uso como instrumento ordinário da política que a guerra passou a ser política. A meu ver, Clausewitz recolhe essa herança politizadora da guerra, mas para a contestar. Isto é, também aqui Clausewitz seria um avisador de fogo, precursor de Pezarat Correia3 .

De resto, no primeiro apartado do capítulo primeiro, Pezarat Correia faz inteira justiça aos ganhos teóricos da Escola Estratégica Portuguesa no entendimento da guerra. Permitir-me-ia apenas dois reparos. O primeiro diz respeito à coacção. A coacção, como é sempre violenta, é apenas típica da guerra e de fenómenos conflituais que a empregam. Não de todos os fenómenos conflituais. Há agonismo sem coacção e sem sequer hostilidade, como acontece, teoricamente, no desporto. Mas também nem todas as práticas de hostilidade entre actores políticos são já de guerra, embora sejam estratégicas. Tanto a guerra fria como a guerra quente são práticas de coacção pura e dura (Pezarat Correia hesita um pouco sobre a guerra fria como tipologia). Simplesmente, no caso da guerra fria trata-se de coacção não armada. Outra coisa é a pressão indeclinável sobre aliados, hostil, portanto, estratégica, mas não bélica, ou as estratégias inversas. Não há guerra em potência, por assim dizer, a guerra é sempre em acto, sob pena de deixarmos sem margens temporais o conflito bélico. Se a estratégia é hoje a tempo inteiro, ela não funciona como substituta parabélica da guerra, nesse sentido. A estratégia é antes uma ética do conflito.

O segundo reparo diz respeito à era da estratégia nuclear. Estou de acordo com Pezarat Correia ter sido a partilha das armas a introduzir um novo tipo de conflito (p. 39 – argumento retomado na p. 150) e não propriamente a arma nuclear em si. Eu teria matizado, porque a criação da arma termonuclear é também aqui fundamental. Provavelmente, a partilha de bombas atómicas talvez não chegasse para a revolução praxeológica e epistemológica introduzida pelo nuclear.

Ainda no primeiro capítulo, no apartado sobre o conceito de guerra, são muito acertadas as conclusões de que a guerra nuclear e a guerra irregular acabam por se inserir no paradigma clausewitziano, por causa da manutenção do controlo político da guerra. Contudo, já não entendo o passo que transforma a guerra de guerrilha de uma forma de guerra, quando não um mero procedimento técnico-táctico, em tipologia de guerra (pp. 44-45, 168 e segs.). Quando o fundamental é o novo sentido da guerra do fraco contra o forte – a dita guerra irregular (prefiro o designativo guerra subversiva). Desde logo porque neste tipo de guerra o essencial não reside na luta armada, e Pezarat Correia sabe-o bem, até por experiência profissional.

Todavia, estranhamente, há um ponto em que Pezarat Correia parece ir na onda, de forma um tanto ou quanto acrítica, embora se abstenha de extrair uma conclusão taxativa. Refiro-me à ideia de que agora, com as guerras híbridas, as novas guerras, as guerras do caos, ou seja o que for, o paradigma clausewitziano, em parte, claudicou (p. 45). Em primeiro lugar, a racionalidade clausewitziana é integradora, ética, isto é, finalista e não se resume a uma relação de optimização custo-benefício. Depois, como o mostrou Raymond Aron, não devemos menosprezar o capítulo 26, do livro VI, Da Guerra. Esse capítulo não é marginal, até pela experiência conhecida de Clausewitz da Vendeia e da guerra de Espanha4 . Mas mais ou menos inclusivo, o modelo de racionalidade política de Clausewitz, atento à guerra popular, apesar de ter o seu foco no Estado, não se resume ao Estado, antes à dinâmica política enquanto tal, na qual a trindade tem três vectores e não só um, incluindo, portanto, a passionalidade. Por fim, essa passionalidade é um veículo importante para compreender um conceito central em Clausewitz: a guerra absoluta. A guerra absoluta corresponde ao valor de utilidade marginal do fenómeno bélico. É o extremo que lhe dá consistência interna e que procura sempre materializar-se por completo. Se a tendência para o caos prospera neste novo tipo de guerras (e não estou a dizer que concorde com tal hipótese, nem que haja verdadeiramente um novo tipo de guerras), é porque os homens estão a induzir guerras tais, que a própria gramática desta encontra formas mais capazes de iludir o controlo político. Ora, tema mais clausewitziano do que este desconheço. Em síntese, não há nada nestas supostas novas guerras de intrinsecamente não clausewitziano, e o que parece haver não será passível de integrar no conceito de guerra.

No segundo apartado do primeiro capítulo, reconhecendo na guerra um fenómeno sócio-político, Pezarat Correia indaga outras causas da guerra, além, obviamente, das causas políticas. Debruça-se sobre as causas económicas e sobre as causas identitárias, incluindo nestas as motivações religiosas.

Neste ponto, convém assinalar que, sem soçobrar ao mito da violência religiosa, criado na modernidade, e já denunciado por William Cavanaugh5 , segundo o qual a ideia de que a religião é um rasgo trans-histórico essencialmente distinto dos rasgos supostamente seculares por inerência, como a política, possuindo uma perigosa inclinação para a violência, devendo, portanto, o seu acesso ao poder público ser fortemente restringido e a influência religiosa combatida, Pezarat Correia não deixa de assumir o conto tradicional sobre a Guerra dos Trinta Anos, como uma guerra de causas essencialmente religiosas, na sequência das guerras de religião, no rescaldo da qual emerge o Estado-Nação, presume-se, entre outras razões, também para remédio das bravatas religiosas (p. 77 – volta a insistir, no segundo capítulo, pp. 116-117). Quando as guerras da primeira Idade Moderna são muito mais guerras motivadas pelas dores de parto do nascimento e afirmação do novel Estado soberano, da confessionalização política dos estados e do paulatino, especialmente no mundo protestante, acantonamento da crença religiosa na esfera privada, no cultivo da interioridade, e, em seguida, da intimidade. Segundo o historiador inglês Mark Greengrass, falar em guerras de religião é redutor, subestimando muito o polimorfismo da dissidência religiosa, a experiência de pluralismo religioso e, sobretudo, o grau em que a religião se havia convertido numa cortina de fumo para interesses vários. Na melhor das hipóteses, os conflitos tornavam a religião professada hipersensível à esquálida hipocrisia dos oponentes, nas palavras do próprio Greengrass6 .

Nem poderia ser de outra forma, dado estarmos diante de sociedades em que o político e o religioso aparecem mesclados, e ser precisamente o processo de soberanização do Estado a forçar a dissociação factorial pelo lado político, fazendo para si o transvase de categorias sacrais (como a omnipotência), cooptando as estruturas eclesiásticas tanto quanto possível, para as esvaziar de poder público interventor (derivado ultimamente da sua auctoritas teológico-moral), pretendendo-as recolocar à margem das decisões, que se vão então querer políticas qua políticas, e por isso mesmo secularizáveis – é neste processo que a guerra como instrumento político adquire igualmente ser político.

Um apontamento ainda para a sua leitura sintética da guerra justa, tema a que sou particularmente sensível, a qual me parece judiciosa, ao relativizar muitíssimo essa categoria, não embarcando de modo algum nas tentativas contemporâneas realizadas para a recuperar.

  • No segundo capítulo, Pezarat Correia faz uma digressão pela evolução da guerra, dividindo-a, como atrás dissemos, em três grandes períodos. O primeiro, vai desde o Neolítico até à era clausewitziana, centrando-se na Antiguidade, Idade Média e Antigo Regime. O segundo período inicia-se com aquilo que o autor designa como a revolução moderna dos assuntos militares clausewitziana, indo até à época de transição da Guerra do Golfo, em 1990. O terceiro diz respeito ao período pós-moderno da RAM em curso. Embora assegure que uma RAM não se reduz à componente tecnológica, porquanto desta se seguem componentes organizacionais, institucionais, conceptuais e doutrinárias, incluindo a interrogação sobre a natureza da guerra, todas estas parcelas interagindo (p. 102), não estamos certos de que a componente tecnológica esteja sempre na génese de uma revolução militar. A chamada revolução militar da primeira modernidade, a existir, foi um processo longo, onde a introdução das armas de fogo só lentamente teve repercussões marcantes, incluindo nos dispositivos no terreno.  A mudança na compreensão da natureza da guerra, com a sua dessacralização e normalização política, bem como a introdução de novos modelos de financiamento e organização da actividade militar parecem ter sido bem mais dirimentes. Da mesma forma, já no século XIX, moral da tropa e evolução tecnológica parecem equilibrar-se para os decisores militares7 . Como sabemos pelo ponto morto da expansão naval chinesa no Índico, no século XV, a tecnologia sem um propósito que a torne aproveitável e sobretudo agarrável nem sempre é catalisadora de alguma coisa, por mais promissora que pareça ser.

De qualquer forma, estamos mais próximos de Pezarat Correia, ao pensar que a verdadeira RAM da Idade Moderna foi a iniciada no tempo a que Clausewitz tocou viver, e da qual se fez arauto. Revolução certamente preparada nas centúrias anteriores, basta atentar na politização da guerra, um processo com o seu dealbar na época primomoderna.

Gostaria ainda de salientar que, contra uma certa tendência nas relações internacionais em querer tomar literalmente a retórica das estratégias de emprego da arma nuclear na Guerra Fria, Pezarat Correia vem uma vez mais chamar a atenção para a arma nuclear como arma de não emprego, assente o seu papel na dissuasão (p. 154). Esse foi sempre o seu papel, fazendo as estratégias de emprego parte do plano de credibilização da dissuasão e, claro está, do eventual emprego, caso a escalada escapasse ao controlo. Não há sistemas de armas vigentes e efectivos sem saber como os utilizar. Mas isso não nos deve levar a confundir o seu potencial com a sua utilização provável.

A terminar o segundo apartado do terceiro capítulo, escrevendo acerca da guerra irregular, Pezarat Correia esboça um traçado que nos pode deixar perplexos. Com muita propriedade, afirma que apenas com a Guerra Fria se pode falar de guerra irregular propriamente dita, porque antes apenas nos deparamos com acções irregulares em apoio à manobra principal, de natureza convencional (p. 168). Todavia, quando esperávamos que a guerra irregular fosse definitivamente um outro termo para guerra subversiva ou insurrecional, um termo, em aparência, menos comprometido politicamente, eis que o conceito de guerra irregular aparece como um grande e inexplicável albergue, indo desde a guerrilha, ao terrorismo, às sabotagens ou à resistência popular (p. 168). Preferindo depois destacar a guerra de guerrilha como o elemento proeminente durante a Guerra Fria, Pezarat Correia volta a relevar, e de maneira imprópria, a guerrilha, a que alude, no início do livro, como uma mera forma de guerra. Na verdade, aquela que se torna uma nova tipologia de guerra é sim a guerra subversiva, ou outra designação qualquer que se ache por bem utilizar. Não é a guerra de guerrilha a autonomizar-se, antes é a guerra subversiva que o faz e tende a tornar típica, corrente, a guerrilha na dimensão da luta armada. Caso contrário, corre-se o risco de exorbitar a vertente militar numa luta em que, se bem que os seus gatilhos sejam os da violência armada, o essencial passa pelo uso de estratégias indirectas, na conquista sócio-política das populações.

Pezarat Correia tende também a tergiversar as coisas, quando afirma ter a coligação liderada pelos Estados Unidos na Primeira Guerra do Golfo levado a cabo uma guerra limitada, violando assim os cânones das guerras clausewitzianas. Não sei se existe aqui alguma influência das interpretações deturpadas de Clausewitz por parte de Liddell Hart ou Keegan, hoje perfeitamente ultrapassadas. Aquilo que caracteriza o pensamento de Clausewitz, como mostra, entre outros, com abundantes exemplos e atendendo ao sentido geral da obra, Francisco Abreu, é um realismo inteligente. Não só Clausewitz não nega a importância da coacção diplomática em determinados cenários, se os móbeis políticos não forem suficientemente importantes, e tendo em conta a fortuna sempre imprevisível do dar batalha, como a destruição do inimigo não implica necessariamente o seu aniquilamento físico e muito menos uma carnificina intencionada. Bastará que o inimigo se aperceba de que o seu centro de gravidade foi mortalmente atingido, «incutindo-lhe uma convicção profunda de derrota e levando-o a aceitar um estatuto de irreversível inferioridade»8 . Na perspectiva de Pezarat Correia encontro laivos de guerra absoluta fora do lugar. O que Clausewitz argumenta é que a ascensão aos extremos é sempre uma possibilidade omnipresente, podendo ser estimulada por uma política excitada em demasia. Não que os actores políticos devam, por definição, travar uma guerra sem quartel. Justamente o oposto.

No terceiro e último apartado do segundo capítulo, Pezarat Correia é muito cuidadoso a tratar as supostas novas guerras, e outras derivas doutrinárias, não se fazendo custódio puro e simples de um novo paradigma bélico pós-moderno, que incluiria, o terrorismo, o crime organizado em grande escala, ou o trancarruas de bairro, transformado em comandante de destacamentos informais de uma putativa guerra urbana. Aliás, pode colocar-se o mesmo desafio que se colocou em relação à economia poder ser vista como enquadrante superior da estratégia e da racionalidade bélica em detrimento da política. Falso desafio, afinal, resolvido de forma cabal, em seu tempo, pelo estrategista português António Paulo Duarte. A política pode bem deformar politicamente o político por mor do económico, mas se entra na liça de corpo inteiro em torno de jogos de poder, o actor económico passa a ser actor político9 . Da mesma forma, e numa escala muito menor, o narcotraficante pode deformar politicamente o jogo bélico por mor dos seus interesses privados. Porém, no momento em que se transforme de corpo e alma em jogador político, passa à esfera da política – poderíamos é não gostar de um colectivo político adquirido e por fim por si governado; mas esse é outro assunto. Em síntese, não há em jogo nenhuma racionalidade estrutural não política, nem se atenta contra o sentido último da obra clausewitziana. Logo, o rufião continua a ser um problema de ordem pública; no essencial, os problemas de polícia perfazem uma linha que se mantém estável entre o pilha-galinhas e o narcotraficante; e o terrorismo, esse sim é um problema subpolítico, por consequência, estranho à guerra.

A herança das estruturas coloniais, conjuntamente com as fortes assimetrias sociais, criou tremendos problemas de ordem pública na América do Sul. Todavia, uma coisa são, por exemplo, as FARC, na Colômbia, outra bem distinta – por mais que condenemos os excessos na manutenção da ordem e possamos achar que apenas uma alteração radical do tecido sócio-político permitirá uma saída airosa para a situação – são os chefes de gangue das favelas do Rio de Janeiro. Entre o BOPE e os gangues, o mínimo de bom senso impõe a opção óbvia. Em rigor, não tivessem os valores tão transtornados, e não deveria sequer haver lugar à possibilidade de escolha. O Estado de direito pode muito bem configurar (e configura de certeza) uma farsa, em termos estruturais, promovida pelos dispositivos soberano-governamentais para nos manter como súbditos aquiescentes. Mas na favela nem arremedo de farsa há, a não ser a ominosa arbitrariedade do ogre de sarjeta. Por certo, a guerra é bem pior, mas ela não tem nada a ver com isto, nem em termos conceptuais, nem na prática, a não ser para os deslumbrados de sempre, os tartufos do costume.

Se as grelhas analíticas não forem robustas, a acção nunca o será. E tanto a estratégia como a polemologia se querem disciplinas praxistas, não meros arranjos pragmáticos, caso pretendamos chegar à paz substantiva. Felizmente, a grelha analítica do general Pezarat Correia é-o.

Pedro Pezarat Correia afirma ser a obra do general Rupert Smith, A Utilidade da Força, de leitura obrigatória (p. 48). Não me parece que tal obra seja obrigatória em quase nada, muito menos na justificação do seu argumento principal, o da guerra no meio do povo. O presente livro do general Pezarat Correia, este sim, é de leitura obrigatória. 

A pedido do autor o texto não adopta as normas do Novo Acordo Ortográfico.

 

NOTAS

1 Cf. RICOEUR, Paul – Temps et Récit. 3. Paris: Seuil, 1985, pp. 340-342.

2 Vejam-se os livros de PAYEN, Pascal – Les Revers de la Guerre en Grèce Ancienne. Histoire et historiographie. Paris: Belin, 2012; e de ALEXANDER, Caroline – The War that Killed Achilles. The True Story of Homer’s Iliad and the Trojan War. Londres: Viking, 2009.

3 Cf. FERNANDES, António Horta – Livro dos Contrastes. Guerra e Política. Porto: Fronteira do Caos, 2017, pp. 170-208.

4 Cf. ARON, Raymond – Clausewitz. Lisboa: Esfera do Caos, 2009, pp. 41-49. Obra também referenciado por Pezarat Correia.

5 Cf. CAVANAUGH, William – The Myth of Religious Violence (Secular Ideology and the Roots of Modern Conflict). Oxford: Oxforde University Press, 2009.

6 Cf. GREENGRASS, Mark – Christendom Destroyed. Europe 1517-1648. Londres: Penguin, 2015, pp. 394-396.

7 Veja-se, a propósito, PHILLIPS, Gervase – «La transformación de la moral militar: armas y soldados en el campo de batalla del siglo XIX». In Revista Universitaria de Historia Militar. Vol. 6, N.º 11, 2017, pp. 278-299. Publicado originalmente no Journal of Interdisciplinary History, 2011.

8 Cf. ABREU, Francisco – Estratégia – O Grande Debate: Sun Tzu e Clausewitz. Lisboa: Esfera do Caos, 2006, p. 182.

9 Cf. DUARTE, António Paulo – «Os (de)limites da estratégia. Assomos reflexivos a propósito de um debate estratégico teórico». In ABREU, Francisco, e FERNANDES, António Horta – Pensar a Estratégia. Do Político-Militar ao Empresarial. Lisboa: Sílabo, 2004, pp. 124-131.

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