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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.57 Lisboa mar. 2018

https://doi.org/10.23906/ri2018.57a01 

QUE SEGURANÇA MARÍTIMA TEMOS E QUEREMOS

Nota introdutória: Que segurança marítima temos e queremos

 

Teresa Rodrigues* e Manuel Pinto de Abreu**

* IPRI-NOVA | Rua de D. Estefânia, 195, 5.º Dt.º, 1000-155 Lisboa | trodrigues@fcsh.unl.pt

** IPRI-NOVA | Rua de D. Estefânia, 195, 5.º Dt.º, 1000-155 Lisboa | mpintoabreu@gmail.com

 

O mar está a tornar-se mais e mais importante1 e a segurança marítima é vital2.A história marítima recente, das últimas cinco décadas, mostra-nos uma cada vez maior vontade de os estados, seja por si só, no quadro das suas parcerias, ou no âmbito das organizações internacionais, globais ou regionais a que pertencem, tomarem posse do mar e dos seus recursos. Esta é uma ambição de todos, sejam ou não estados costeiros, desenvolvidos ou em desenvolvimento. Mas têm sido sobretudo os estados com indicadores de desenvolvimento humano menos expressivos a marcar a agenda internacional do mar, movidos pela aspiração dos seus povos em assegurar para si a justa parte dos benefícios que se perspetiva tenham como fonte e meio o mar.

Durante séculos, a imensidão do mar, em extensão geográfica e em recursos naturais, permitiu às comunidades e aos povos usá-lo e explorá-lo sem restrições. O aproveitamento do mar e dos seus recursos por um Estado não era tomado como um prejuízo pelos demais. O mar era livre e só para segurança e salvaguarda do território terrestre os estados acordaram em limitar a liberdade dos mares numa pequena faixa costeira3. A procura e a descoberta de novos recursos, o incremento do comércio a grande distância, o transporte marítimo de pessoas e bens, foram promovendo a ocupação crescente dos mares e criando uma visão de escassez dos recursos perante uma vontade global de desenvolvimento e de bem-estar dos povos. O uso livre do mar começou a ser desafiado e em meados do século XX, por ação unilateral dos estados, foi definitivamente posto em causa.

A tomada de posição dos Estados Unidos, através das proclamações de Truman de 28 de setembro de 19454 relativas aos recursos naturais do leito e subsolo da plataforma continental e aos recursos de pesca em áreas do alto mar, marca um momento decisivo no uso e exploração do mar. Através das proclamações, os Estados Unidos alargaram a sua jurisdição e controlo a áreas longínquas das suas costas, a distâncias sem limite definitivo. Ficou clara a visão da importância futura do oceano profundo, nomeadamente quanto ao petróleo e a outros minerais, tendo Truman anunciado a determinação em descobrir e em explorar tais recursos.

O crescimento acentuado da população mundial após a Segunda Guerra Mundial5, num quadro de novo desenvolvimento económico e de reforçada ambição de progresso e bem-estar dos estados, gerou uma maior procura de recursos naturais, vivos e não vivos. A ambição proclamada pelos Estados Unidos em 1945 foi acompanhada e reforçada6 por outros estados. Os mais desenvolvidos, para assegurarem a posse de novas áreas do oceano e a possibilidade de explorarem os recursos aí existentes; os estados em desenvolvimento, para assegurarem direitos soberanos sobre a exploração e gestão de tais recursos.

A busca de uma visão comum sobre a repartição do mar por parte das entidades políticas estatais teve como momento decisivo o discurso em 1967 de Arvid Pardo, embaixador de Malta perante a Assembleia Geral das Nações Unidas, ao reclamar a necessidade de um novo regime internacional para o mar7. Arvid Pardo propôs, em termos gerais, a criação de regras que promovessem a paz no mar, que prevenissem a poluição do oceano, que assegurassem a salvaguarda dos recursos marinhos e defendeu ainda que parte do fundo marinho se tornasse Património Comum da Humanidade8. Esta iniciativa foi consagrada na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar de 1982 (CNUDM)9, a qual encerra o entendimento dos estados para o mar da Época Moderna.

A aprovação e entrada em vigor da CNUDM introduziu um conjunto numeroso de novidades ao nível dos princípios, normas, regras, procedimentos e organizações marítimas. O princípio da liberdade dos mares está vertido na convenção, agora acompanhado por novos preceitos no âmbito da preservação ambiental, da soberania e jurisdição alargada dos estados sobre o mar e sobre os recursos naturais e de partilha do Património Comum da Humanidade, entre outros. Foram estabelecidos os novos espaços marítimos da Zona Económica Exclusiva e da Plataforma Continental para além das 200 milhas marítimas e foi criada a Área (Património Comum da Humanidade).

À nova geografia dos espaços marítimos corresponde um novo mapa de recursos naturais, tradicionais e alternativos. Esta nova realidade terá como consequência uma modificação dos cenários marítimos, nomeadamente com o aparecimento de novos grandes estados marítimos, com a possibilidade de realinhamento das parcerias entre estados, com o surgimento de uma nova hierarquia dos usos e atividades marítimos10 e com uma ocupação de maiores áreas no mar, a distâncias superiores dos continentes e a maiores profundidades.

Os novos cenários marítimos cruzam-se com um conjunto de usos e atividades marítimas emergentes entre os quais, a aquacultura em mar aberto, a exploração em águas muito profundas de petróleo e gás, a mineração submarina profunda, a exploração de energia renovável, a biotecnologia marinha, os serviços marítimos de alta tecnologia, entre outros. A estes juntam-se os usos e atividades marítimos tradicionais, alguns dos quais são tidos como os de maior crescimento no médio prazo, como nos casos da pesca tradicional e a transformação de pescado, e do transporte marítimo11.

Por outro lado, a crescente importância do mar tem como fatores fundamentais, para além da crescente população mundial, uma nova geografia do crescimento económico, nova geografia e cultura dos consumidores, novos e acelerados desenvolvimentos tecnológicos, uma procura diferenciada e crescente de recursos naturais, entre outros.

Neste contexto, para que o século XXI seja o tempo de uma nova era global do uso e exploração do mar, com a efetiva concretização de valor sustentável a partir do mar, ou seja, com a criação de valor económico, com a salvaguarda do valor ambiental, com a preservação e promoção dos valores sociais e culturais, é vital garantir a segurança marítima. Esta representa a garantia da existência de condições para concretização no mar dos usos e atividades inerentes à sua investigação, exploração e preservação.

O caráter imprescindível da segurança marítima encontra eco no número crescente de estados que a tomam como uma prioridade nas suas agendas de segurança. Esta opção está também refletida nas estratégias de segurança marítima das organizações governamentais e intergovernamentais que tais estados integram12.

Contudo, segundo Bueger e Edmunds13 a segurança marítima não tem, ainda, notoriedade idêntica no âmbito das relações internacionais e dos estudos de segurança, concentrando-se a literatura sobre o tema em questões relativas a áreas geográficas confinadas ou à gestão de ameaças específicas, subvalorizando matérias como a segurança dos portos, a pesca ilegal e os crimes ambientais, entre outros.

Esta condição de desenvolvimento ainda tímido na abordagem da segurança marítima no âmbito das relações internacionais foi tida como razão bastante para lhe dedicarmos este número da revista.

Para o efeito estabeleceram-se três áreas principais de análise, designadamente, num primeiro momento a caracterização da segurança marítima como conceito e quanto aos riscos e ameaças em ambiente marítimo, a que se segue a discussão em torno da prática da segurança marítima em Portugal, na União Europeia (UE) e no resto do mundo. Por último, fala-se do futuro da segurança marítima.

No primeiro artigo, intitulado «Segurança marítima e estudos de segurança: revisão da literatura», João Piedade enfatiza a necessidade de estabelecer o conceito de segurança marítima dado que ele permanece subdesenvolvido. Através de uma revisão da literatura investiga a correlação entre os conceitos de segurança e de segurança marítima, concluindo pela sua existência. Termina, propondo abordagens alternativas para a teorização da segurança marítima, por aplicação de diferentes conceitos de segurança ao domínio marítimo ou selecionando um conjunto de «prismas» através dos quais a segurança marítima poderá ser observada.

Para tratar os riscos e ameaças em ambiente marítimo, Michiel Bart Hijmans, em «Segurança marítima: da sensibilização à segurança. Ligando os pontos!», passa em revista a importância do mar e as ameaças que o mesmo enfrenta. Após explicar a necessidade de uma consciência alargada sobre segurança marítima, para o que a educação tem um papel fundamental, o autor sublinha a necessidade vital da cooperação entre as muitas agências e organizações envolvidas, dada a natureza supranacional da segurança marítima. Depois de passar em revista a criação da Estratégia de Segurança Marítima da União Europeia e o respetivo plano de ação, defende que a segurança marítima deve ser enformada pelos princípios das operações marítimas, terminando por reforçar a necessidade de ligação entre todos os grupos de interesses.

Terminada a caracterização da segurança marítima, a prática da segurança marítima inicia-se com o artigo de Sónia Ribeiro e Francisco Proença Garcia. Em «Economia azul e segurança marítima: o caso de Portugal», é feita uma avaliação sobre o alinhamento da Estratégia de Segurança e Defesa para a Política Externa e de Segurança da UE e em Portugal com os objetivos para o desenvolvimento da economia marítima, nomeadamente no âmbito da Política Marítima Integrada e da Estratégia da União Europeia para o Atlântico. Destaca-se a importância da segurança e defesa para a concretização de tais objetivos de desenvolvimento.

Ainda no contexto da prática da segurança marítima, a análise no quadro da União Europeia é levada a cabo por João Almeida Silveira em «Estratégias marítimas comunitárias: a conceptualização da UE para o domínio marítimo». O autor identifica os elementos de conceptualização estratégica da UE do mar entre 2004 e 2016 e a sua contribuição para a afirmação comunitária como ator marítimo global. Da análise sobressaem como temas fundamentais a consolidação interna, a segurança marítima, a economia azul e a ação normativa, os quais são interligados pela cooperação e coordenação, conhecimento, inovação e tecnologia, e ambiente. Conclui João Almeida Silveira que a UE conseguiu através das suas estratégias marítimas afirmar-se tanto a nível interno como externo.

Finalmente, a prática da segurança marítima no resto do mundo é discutida no artigo «A presidência portuguesa do G7++FoGG. Desafios de segurança no golfo da Guiné», de Joaquim Ferreira Marques. Neste texto é passada em revista a presidência pioneira de um não membro do G7++FoGG e evidenciada a tentativa de uma abordagem integral da segurança marítima, a operacionalização dos centros regionais e inter-regionais de coordenação, o assegurar a efetiva troca de informação, a promoção dos comités nacionais de segurança marítima e a otimização das valências das estruturas multilaterais sediadas em Lisboa. Conclui apontando a visão portuguesa de ser necessário um maior envolvimento da comunidade internacional, nomeadamente da UE, e em particular no âmbito jurídico, na capacitação, na troca de informações e consciência situacional marítima e na proteção de infraestruturas críticas.

A abordagem ao futuro possível da segurança marítima inicia-se com o artigo «A segurança marítima e a vontade para agir em conjunto», de Luís Sousa Pereira, que indica como visões diferentes sobre o mar e sobre a valorização das ameaças e riscos pelos estados determinam perceções diferentes da exposição ao perigo com reflexo negativo na cooperação para a ação. Esta dificuldade não é evidente no âmbito SAR, pelo que é feita uma tentativa de extrapolação do enquadramento SAR para as vertentes da segurança marítima. A solução encontrada ultrapassa a partilha do esforço operacional e encerra o processo de planeamento e de edificação de capacidades com partilha quer dos custos de investimentos, quer do emprego dos meios atribuídos por períodos às operações planeadas. O artigo é um ensaio sobre o modo como, num contexto de visões cruzadas, agregar vontades para uma ação coletiva e articulada dos estados com diferentes visões sobre o mar e sobre a valorização das ameaças e riscos.

Rafael Garcia Pérez traz à análise do futuro da segurança marítima a «A estratégia de segurança marítima da Espanha: uma revisão em perspetiva peninsular». O autor aborda o processo de renovação dos documentos estratégicos da Espanha, nomeadamente a Estratégia de Segurança Marítima Nacional (ESMN), de modo a adaptá-los aos conceitos e definições da UE e corrigir carências melhorando a operacionalidade. Considera que a cooperação Espanha-Portugal é uma oportunidade para pôr em prática os desenvolvimentos considerados necessários para ultrapassar dificuldades de execução.

Este número da revista R:I é um primeiro contributo para o estudo da segurança marítima no quadro das relações internacionais e dos estudos de segurança. A matéria, pela sua importância crescente no âmbito da ação no mar, terá continuidade como tema de novas intervenções, neste ou noutro âmbito. Para Portugal, não pode ser de outro modo. 

 

BIBLIOGRAFIA

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NOTAS

1 WEDIN, L. – Maritime Strategies for the XXI Century. Paris: Nuvis, 2016.

2 COUNCIL OF THE EUROPEAN UNION ­– 11205/14 European Union Maritime Security Strategy. 2014, pp. 1-16.

3 FRASER, H. S. –«The extent and delimitation of territorial waters». In Cornell Law Quarterly. Vol. 11, 1926, pp. 455-481.

4 AJIL – «United States: proclamation by the President with respect to the natural resources of the subsoil and sea bed of the continental shelf». In The American Journal of International Law – Supplement: Official Documents. Vol. 40, N.º 1, 1946, pp. 45-48.

5 ROSER, M., e ORTIZ-OSPINA, E. – World Population Growth. OurWorldInData.org. 2018.

6 RANGEL, V. M. – «O novo direito do mar e a América Latina». In Revista da Faculdade de Direito. Universidade de São Paulo. Vol. 76, N.º 1, 1981, pp. 101-103.

7 LOVALD, J. L. – «In search of an ocean regime: the negotiations in the General Assembly’s Seabed Committee 1968-1970». In International Organization. Vol. 29, N.º 3, 1975, pp. 681-709.

8 SUAREZ, S. V. – «The outer limits of the continental shelf: legal aspects of their establishment». In The Outer Limits of the Continental Shelf. Max-Planck-Institut (ed.). Primavera de 2008, pp. 239-252.

9 NAÇÕES UNIDAS – «United Nations Convention on the Law of the Sea Act 1996». In The International Journal of Marine and Coastal Law. Vol. 12, N.º 3, 1997, pp. 404-412.

10 VIVERO, J. L. S. DE, e MATEOS, J. C. R. – «Changing maritime scenarios. The geopolitical dimension of the EU Atlantic Strategy». In Marine Policy. Vol. 48, 2014, pp. 59-72.

11 OCDE – The Ocean Economy in 2030. Paris: OCDE Publishing, 2016.

12 BUEGER, C., e Edmunds, T. – «Beyond seablindness: a new agenda for maritime security studies». In International Affairs. Vol. 93, Issue 6, 1, 2017, pp. 1293-1311.

13 Ibidem.

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