Serviços Personalizados
Journal
Artigo
Indicadores
- Citado por SciELO
- Acessos
Links relacionados
- Similares em SciELO
Compartilhar
Relações Internacionais (R:I)
versão impressa ISSN 1645-9199
Relações Internacionais no.57 Lisboa mar. 2018
https://doi.org/10.23906/ri2018.57r03
RECENSÃO
A geografia e o nacionalismo como objetos importantes de análise nas relações internacionais: Um mundo não exatamente plano
Luis Rua
FCSH-NOVA | Avenida de Berna, 26 C, 1069-061 Lisboa | luisrenatorua@hotmail.com
TIM MARSHALL, Prisioneiros da Geografia: Dez Mapas que lhe Revelam Tudo o que Precisa de Saber sobre Política Internacional. Porto Salvo, Edições Saída de Emergência, 2017, 256 páginas, ISBN 9789899987500
JAMES MAYALL, Nationalism and International Society. Cambridge, University of Cambridge Press, 1990, 168 páginas, ISBN 9780511559099
Separadas por um quarto de século, as obras Nationalism and International Society, de autoria de James Mayall, e Prisioneiros da Geografia, cujo autor é Tim Marshall, estão situadas em dois momentos importantes da história recente, quais sejam: o fim do mundo bipolar preconizado pela Guerra Fria e o ressurgimento em distintas partes do globo do sentimento nacionalista e dos embates pelo território, respetivamente.
No intervalo entre estas obras – isto é, entre o início da década de 1990 e meados da década de 2010 – encontramos um período marcado pela profusão de previsões perentórias sobre o achatamento do mundo1, o «fim da geografia»2 e o «fim da história»3 que, de alguma maneira, sobrepuseram temporariamente a visão clássica das relações internacionais sobre o papel do Estado, do nacionalismo e das questões geográficas na estruturação e conformação do sistema internacional.
Neste sentido, a análise das duas obras supracitadas parece-nos um exercício relevante.
Primeiro, no sentido de contrapor esta visão que se tornou praticamente dominante nos últimos vinte e cinco anos de que as novas tecnologias de informação, comunicações e transporte superariam de maneira quase integral as barreiras e distâncias geográficas, relegando o território a um papel praticamente irrelevante na conformação das relações internacionais.
Segundo, pelo facto de os últimos anos terem visto o ressurgimento de conflitos em que a componente do nacionalismo é o motor (ainda que não o único) para discussões territoriais4.
Utilizando ao longo de todo o texto uma linguagem fluída e desprovida de academicismo, consonante com o seu histórico de jornalista de política internacional, Marshall apresenta dez mapas ao longo de dez capítulos com o intuito principal de demonstrar o papel relevante dos aspetos geográficos ao longo da história na conformação das políticas exteriores e arranjos geopolíticos e institucionais dos países e regiões (e, por conseguinte, nas relações internacionais como um todo).
Na realidade, o autor aponta mesmo para o caráter determinístico da geografia, especialmente do território, no sentido que as opções políticas são moldadas pelas características naturais, na linha de raciocínio do pensamento hegeliano5 .
Aleatória ou não, não sabemos, a escolha da ordem dos capítulos do livro também sugere uma certa «hierarquização» no que se refere à importância dada pelos países e regiões ao conceito de território, especialmente se se tem em conta que os três primeiros capítulos versam sobre a Rússia, a China e os Estados Unidos, não obstante três dos quatro maiores países do mundo em extensão territorial. Ainda, em comum entre eles, o facto de que seus conflitos e disputas ao longo da história não resultaram em grandes perdas ou reordenações do território, mantendo suas formas razoavelmente intactas (quando não aumentadas), diferentemente do que se verifica com os mapas dos demais países e regiões (sendo a África a antítese maior).
Também é interessante notar que ao longo de todos os capítulos, em menor ou maior grau, há referências aos Estados Unidos e à China, o que demonstra, mesmo em um suposto momento de reacomodação do equilíbrio de poder multipolar, a relevância destes dois países na configuração atual da ordem global, uma vez que suas ações (sejam elas de cunho militar, econômico, comercial, financeiro, cultural ou político) perpassam todas as regiões do globo.
Em suma, a obra coloca a geografia no centro da análise e o autor revive termos que pouco (ou nada) têm sido utilizados pelo pensamento mainstream da globalização (e que são caros aos estudos geopolíticos), tais como heartland e fronteiras. No final, Marshall deixa como uma espécie de alerta a ideia de que as alterações climáticas (que obviamente impactam no território), assim como a escassez de alguns recursos naturais, podem trazer inúmeros desafios e instabilidades aos países e regiões. Será, nesta visão do autor, novamente a prevalência da geografia sobre os rumos da ordem e organização dos estados e indivíduos.
Por sua vez, James Mayall, ao contrário de seu conterrâneo Marshall, possui uma linguagem muito mais acadêmica, fruto dos anos como professor e investigador na London School of Economics e na Universidade de Cambridge.
Inscrita naquela que ficou conhecida como Escola Inglesa das Relações Internacionais, o principal objetivo de sua obra é traçar as implicações para a sociedade internacional do conceito de nacionalismo, em uma abordagem até então diferente da maioria dos estudos sobre nacionalismo que privilegiavam a explicação do crescimento do fenômeno como consequência de desenvolvimentos sociais, econômicos ou intelectuais.
Neste sentido, Mayall é muito explícito ao definir as suas questões de investigação, a saber: 1) o que significa sociedade internacional; 2) sob que princípios normativos assenta a ideia de sociedade internacional; e 3) como a doutrina nacionalista, e mais amplamente a ideia nacional, tem influenciado a evolução da sociedade internacional.
Vale destacar que a junção destes dois conceitos, nacionalismo e sociedade internacional, ajudou, na visão de Mayall, a «desenhar» o século XX, a partir da redefinição de fronteiras e de criação de um número expressivo de estados-nação.
Do ponto de vista da organização da obra, os dois primeiros capítulos são sobre questões teóricas, especialmente sobre o contexto internacional, sendo também discutida a questão da possibilidade de constrangimentos morais (ou normativos) no comportamento dos estados; os dois capítulos seguintes descrevem como o nacionalismo criou novos estados e empurrou horizontalmente as fronteiras da sociedade internacional (baseado na doutrina da autodeterminação e anticolonialismo); os capítulos 5 e 6 examinam a confrontação entre o nacionalismo e as ideias liberais sobre as relações económicas internacionais e a atividade do Estado na vida das pessoas, e, por fim, as conclusões.
Considerando o grande número de temas que poderiam ser abordados, decidimos focar naqueles que têm vínculo mais direto com a questão do território e a formação do sistema de estados-nação.
Logo no início, Mayall faz uma breve distinção com aqueles autores vinculados à visão mainstream das relações internacionais (realismo) e ainda estabelece as bases para a aclaração do conceito de sociedade internacional.
Segundo o autor, este conceito é derivado de Vestefália (sistema europeu de estados) pois, a despeito de guerras e rivalidades, os estados europeus compartilhavam alguns valores e reconheciam alguns constrangimentos morais em seus comportamentos.
Para responder à segunda pergunta que se propõe, isto é, sob quais princípios normativos a sociedade internacional é baseada, o autor lança mão à distinção entre uma visão tradicional e uma visão moderna da sociedade de estados e sugere que desde a Revolução Francesa as premissas, as práticas e as instituições do mundo tradicional vêm sendo repetidamente desafiadas pelas forças nacionalistas em diferentes partes do mundo, ainda que resquícios do modelo tradicional perdurem até os dias atuais.
Resumidamente, existem dois grandes contrastes entre estes «velho» e «novo» mundo: 1) extensão horizontal – as fronteiras do sistema entre estados agora são as fronteiras do globo, resultado da doutrina de autodeterminação e também do inegável facto de que uma guerra geral agora englobaria todo o mundo; 2) extensão vertical – por meio da penetração da atividade do governo central na vida das pessoas e na regulação das relações transnacionais.
E esta transformação, argumenta Mayall, é fruto do impacto do nacionalismo, a partir da acomodação entre o princípio da soberania com o princípio popular de autodeterminação nacional, sendo o resultado desta acomodação a criação de mais de 100 novos estados e da primeira sociedade internacional verdadeiramente global. Pode-se efetivamente dizer que a partir do final da Primeira Guerra Mundial o princípio de autodeterminação nacional passa a ser um princípio ordenador para a sociedade internacional, sendo, na visão do autor, paradoxal que um momento de liberdade política na Europa coincida com a expansão de seu poder em várias partes do mundo (imperialismo liberal).
Interessante notar que, posteriormente, a coalização entre opiniões liberais nas metrópoles e o sentimento anticolonialista nas próprias colónias foi um dos principais motores para a eclosão de vários movimentos nacionalistas em diversos países, especialmente na África, que levaram à criação de novos estados-nação, ainda que, na visão de Mayall, muitos dos novos países (ex-colónias) tenham passado a adotar uma visão muito mais próxima do que o autor concebeu por «mundo tradicional» do que efetivamente irem no caminho de uma efetiva autodeterminação.
Outro aspeto interessante abordado refere-se a dois importantes conceitos na temática do nacionalismo e da sociedade internacional, e que têm ligação óbvia com a questão territorial, quais sejam: irredentismo e separatismo.
Sobre o primeiro termo, pode-se resumidamente descrever como as políticas de um governo para reconquistar territórios perdidos em conflitos anteriores ou aqueles territórios que são conectados por laços culturais e linguísticos. Neste sentido, dois exemplos claros de irredentismo nos vêm à mente: a tentativa argentina em recuperar o território das Malvinas (pertencente ao Reino Unido) e mais recentemente a utilização do mesmo conceito por parte dos russos para a anexação da Crimeia, ainda que interesses geoestratégicos (acesso ao mar Negro) constituam o pano de fundo desta investida. Marshall inclusive utiliza de certa ironia para explicar o conceito de russo étnico, segundo ele, dependente das necessidades que a Rússia tem em cada momento.
Já sobre o separatismo, pode-se explicá-lo como a decisão de uma comunidade «nacional» em se desligar de um Estado para a criação do seu próprio Estado. Mayall considera que este trata-se de um importante desafio colocado à sociedade internacional uma vez que ao reconhecer o princípio da soberania dos estados existentes, o separatismo torna-se muito difícil para os grupos nacionalistas que buscam a separação, em função do princípio da não interferência nos assuntos internos por parte dos demais estados soberanos. Entre os inúmeros exemplos, talvez o mais latente seja a recente declaração unilateral de independência em relação à Espanha proclamada pelos líderes catalães, após os resultados de um plebiscito (modelo este de consulta também criticado pelo autor, por ter entre as suas fraquezas o problema de agenda).
De maneira geral, Mayall nos oferece uma análise muito bem ancorada em conceitos e na reconstrução do argumento nacionalista como causa de alterações na ordem internacional. Ainda que próximo dos 30 anos de sua publicação, o livro é muito atual em suas formulações, a ver pelos movimentos separatistas em diferentes regiões da sociedade internacional e o ressurgimento das rivalidades entre superpotências com o regresso da Rússia ao tabuleiro internacional de poder.
Isto significa que, a despeito do lapso de tempo entre as duas obras analisadas, em comum entre elas a afirmação do território e do nacionalismo como objetos de análise importante nas relações internacionais conceitos estes que, de uma forma ou outra, haviam sido relegados na expetativa gerada pelo pensamento mainstream da globalização de um mundo plano e com fronteiras «congeladas», quando não inexistentes.
BIBLIOGRAFIA
FRIEDMAN, Thomas – The World Is Flat. 1.ª edição. Nova York: fsg, 2005.
FUKUYAMA, Francis – The End of History and the Last Man. 1.ª edição. Nova York: Free Press, 1992.
GREIG, Martin – «The end of geography? Globalization, communications, and culture in the international system». In The Journal of Conflict Resolution. Vol. 46, N.º 2, 2002, pp. 225-243. DOI: https://doi.org/10.1177/0022002702046002003.
NOTAS
1 FRIEDMAN, Thomas – The World Is Flat. 1.ª edição. Nova York: FSG, 2005.
2 GREIG, Martin – «The end of geography? Globalization, communications, and culture in the international system». In The Journal of Conflict Resolution. Vol. 46, N.º 2, 2002, pp. 225-243.
3 FUKUYAMA, Francis – The End of History and the Last Man. 1.ª edição. Nova York: Free Press, 1992.
4 Ver os exemplos da secessão do Sudão, os avanços russos na Crimeia, a crescente presença chinesa nos mares que a circundam e o atual momento vivido pelo movimento separatista catalão.
5 Nesta linha de pensamento, os homens fazem a sua história, não da maneira que mais lhes convém, mas sim a partir das condições que lhes são impostas, o que, por sua vez, pode levar a interpretações pessimistas sobre o processo transformador do mundo.