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Relações Internacionais (R:I)
versão impressa ISSN 1645-9199
Relações Internacionais no.59 Lisboa set. 2018
https://doi.org/10.23906/ri2018.59a01
O FIM DA TERCEIRA VAGA DE DEMOCRATIZAÇÃO?
Nota introdutória: Que crise? Que democracia?
Madalena Meyer Resende* e António Luís Dias**
* NOVA FCSH e IPRI-NOVA | Avenida de Berna, 26-C/1069-061 Lisboa | madalena.resende@ipri.pt
** NOVA FCSH e IPRI-NOVA | Avenida de Berna, 26-C /1069-061 Lisboa | antoniolvdias@fcsh.unl.pt
Já é um lugar-comum nas reflexões sobre o estado da democracia no mundo, considerar que o início do século XXI representou um volte-face significativo ao otimismo que encerrou o século anterior. A combinação da emergência de populismos em democracias consolidadas, da erosão de alguns pilares democráticos em novas democracias, do fracasso de transições em certas regiões e da ascensão do prestígio internacional de formas autoritárias de governo parece ter colocado em cheque, pelo menos no espaço público, o valor democrático. E a literatura especializada em ciência política respondeu a este pessimismo democrático, proliferando livros e artigos que discorrem sobre a malaise democrática vigente.
Perante tal contexto, o presente número especial da R:I procura responder a este desafio à democracia. No entanto, procura fazê-lo oferecendo reflexões que não se deixam levar pelos debates atuais, frequentemente demasiado circunstanciais, mas dando um passo atrás e oferecendo uma perspetiva alargada da situação. Não que com isto se procure revalidar o ingénuo otimismo democrático anterior; aliás, nos textos deste número o mesmo não está presente. Antes procuramos que impere nestas avaliações a análise sistemática e rigorosa.
É exatamente isso que podemos encontrar no artigo de Antonino Castaldo, «A crise da democracia: uma revisão seletiva do debate académico atual». Neste, está presente uma discussão sólida sobre a forma como esta temática da crise da democracia tem sido abordada pela literatura especializada, oferecendo uma tipologia global que pode ser aplicada para mapear as dimensões deste debate, onde proliferam diferentes conceitos que raramente se relacionam entre si. Sublinhamos a importância dada à dicotomia subjetiva/objetiva que Castaldo frisa na sua tipologia. Como o autor nota, é na primeira dimensão que a crise da democracia atual parece residir de forma mais profunda, mesmo que existam alguns indicadores preocupantes de deterioração da dimensão objetiva da democracia.
Na mesma senda de clarificação conceptual, o artigo de Michael Meyer-Resende, «Maioritarismo iliberal ou o autoritarismo encapotado: qual o problema da Europa?», oferece uma análise muito interessante sobre os processos de deriva autoritária na Polónia e na Hungria. Nomeadamente, a capacidade do autor de distinguir estes processos de conceitos propostos, como o de democracia iliberal, oferece uma clareza teórica importante para outros exercícios análogos. No mesmo sentido, a distinção feita entre estes dois percursos políticos e outros percursos problemáticos que afetam outras democracias surge como crucial para uma melhor compreensão deste fenómeno.
Podemos encontrar uma outra perspetiva sobre este debate da crise da democracia na recensão de Adam Standring à obra de Levistky e Ziblatt, How Democracies Die: What History Reveals about our Future. Tal como nos textos anteriores, aqui o que Standring salienta é como a própria conceptualização da crise da democracia tem sido sonegada e adulterada pela visão excessivamente positiva das democracias existentes, nomeadamente a norte-americana. Este enviesamento relativizou os problemas reais que existiam ainda antes da emergência dos populismos nacionalistas e levanta a questão de se não será ingénua a nossa surpresa com os populismos emergentes.
As questões levantadas por estes três textos são relevantes para qualquer reflexão séria sobre o debate do debate da crise da democracia. Mas achamos que este não deve terminar aqui e por isso complementamos esta análise com dois artigos sobre a democracia em África, continente onde algumas democracias parecem florescer, não obstante os claros obstáculos que ali encontram. Não o fazemos porque procuramos deixar uma nota positiva para finalizar este número especial, mas sim porque achamos que devemos reduzir o debate atual sobre a democracia à sua crise, sobretudo na Europa e Estados Unidos.
No artigo «Uma vaga de democratização em África?», de António Luís Dias, é reavaliado se as transições que ocorreram na África Subsariana constituíram uma vaga distinta ou apenas representam uma continuação da terceira vaga. Sublinhamos aqui a relação com os textos anteriores, pois os processos de transição para regimes híbridos que ocorreram nesta região são frequentemente apontados como exemplos da crise global democrática. Mas, ao lermos este artigo, concluímos que as democracias que emergiriam a partir de 1990 parecem sobreviver e até evitaram os processos de erosão democrática que encontramos noutros pontos do planeta.
Uma análise diferente está presente no artigo «O papel da Igreja Católica na trajetória de paz e democratização em Angola e Moçambique», de Madalena Resende e Cláudia Almeida. Neste, as autoras analisam o papel da Igreja Católica nos processos de transição dupla – para a paz e para a democracia – que ocorreram nos dois países. Aqui encontramos de forma mais clara uma tentativa de expansão do debate atual da democracia. Ao salientar tanto o papel das transições democráticas para a construção da paz como o papel da Igreja Católica – ator que parece estar num segundo plano no que toca às democracias contemporâneas mas cujo papel já Huntington salientava na sua terceira vaga –, este artigo relembra-nos que não devemos permitir que o contexto político afunile a nossa análise das democracias contemporâneas.
No final deste número não apresentamos nem visões alternativas à malaise democrática, nem soluções fáceis para esta. Mas reafirmamos que mesmo perante os desafios atuais, o papel da ciência política é continuar a sua análise rigorosa e sistemática pois, como estes textos nos demonstram, só assim poderemos compreender melhor o nosso presente.
Madalena Meyer Resende Professora auxiliar na NOVA FCSH e investigadora no IPRI-NOVA desde 2007. É doutorada pela London School of Economics em 2005 em Ciência Política. Foi visiting scholar na equipa do Professor Michael Minkenberg na Europa Universitaet Viadrina, Frankfurt Oder, Alemanha (2012-2016). Dedica-se a questões na interseção entre religião e política, em particular nos países de maioria católica na Europa (Polónia, Espanha e Portugal). Publicou, em 2015, Nationalism and Catholicism: Changing Nature of Party Politics (Routldge), em 2015 (com Anja Hennig), «Shunning direct intervention: Explaining the exceptional behaviour of the Portuguese Church hierarchy in morality politics» (New Diversities), e em 2018 «A holy alliance between the Catholic Church and constitution drafters? The diffusion of the clause of cooperation in third wave democracies» (Politics and Religion).