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Relações Internacionais (R:I)
versão impressa ISSN 1645-9199
Relações Internacionais no.60 Lisboa dez. 2018
https://doi.org/10.23906/ri2018.60a01
A ORDEM INTERNACIONAL PÓS-AMERICANA
Nota introdutória: A ordem internacional pós-americana: respostas à constituição do mundo multipolar
Patrícia Daehnhardt
IPRI-NOVA | Rua de D. Estefânia, 195, 5.º Dt.º, 1000-155 Lisboa | patricia.daehnhardt@ipri.pt
A nova ordem internacional, projetada pelo Presidente norte-americano George W. H. Bush, em 1991, tardou em constituir-se e é ainda hoje um work in progress: a polaridade e a distribuição de poder entre os estados no sistema internacional encontra-se algures entre uma ordem pós-unipolar num mundo pós-ocidental, uma multipolaridade pouco concertada e uma bipolaridade global entre os Estados Unidos e a China, e no enfraquecimento do multilateralismo como instrumento da política externa dos estados e no reforço do unilateralismo e nacionalismo como elementos da estratégia internacional das grandes potências.
Na Europa e nas relações transatlânticas, a imprevisibilidade da política externa da Administração Trump – ligada ao retraimento estratégico global dos Estados Unidos e a uma abordagem mais transacional na sua política de alianças – tem implicações sérias e inadiáveis para a segurança europeia e transatlântica. A transformação da Aliança Atlântica resulta principalmente desta nova atitude norte-americana, cujos principais responsáveis sublinham a condicionalidade das garantias de segurança e fazem depender a aplicação da cláusula de defesa coletiva da capacidade dos aliados para cumprir as suas obrigações. Por outro lado, o Brexit levanta sérias dúvidas sobre o futuro da defesa europeia e evidencia a fragilidade e potencial fragmentação da Europa. Os termos da separação do Reino Unido da União Europeia (UE) – meramente institucional ou também política e estratégica – ainda estão por definir, mas terão implicações para a coesão da UE e da Aliança Atlântica com o risco de uma divisão entre um eixo europeu continental franco-alemão e um eixo atlântico anglo-saxónico.
Por seu turno, a política revisionista da Rússia levou Moscovo a passar de uma estratégia de cooperação com o Ocidente, na década de 1990, a uma estratégia de cooperação e competição, na primeira década do século XXI, e finalmente a uma estratégia de conflitualidade. Presentes na crise da Ucrânia desde a anexação da Crimeia e a «guerra híbrida» no Leste do país, assim como na guerra civil na Síria, estas novas dinâmicas representam um fator disruptivo da ordem internacional liberal, ilustrando uma postura russa mais intervencionista, e menos relutante em recorrer ao uso da força militar na prossecução dos seus interesses, com impacto na segurança europeia, transatlântica e global.
Dentro do espaço euro-atlântico alargado, a Turquia tem igualmente contribuído, se bem que em moldes diferentes, para o enfraquecimento desta ordem definida pelo Ocidente, numa tentativa de estabelecer uma nova política externa multivetorial que concilia a manutenção da relação de aliança com os Estados Unidos e os países europeus na Aliança Atlântica, com o aprofundar de novas relações com a Rússia, o Irão e a China.
Por último, a China emerge como a principal potência desafiadora da ordem liberal internacional, que a levou a assumir uma estratégia de afirmação regional já há décadas e num percurso independente dos condicionalismos da bipolaridade da Guerra Fria até à atual definição de uma política chinesa de projeção económica global através da competição, do institucionalismo seletivo e do unilateralismo preferencial.
Para tentar descodificar e compreender as transformações desta ordem internacional liberal, os artigos dos vários autores neste número especial da Relações Internacionais analisam a problemática da formação da ordem internacional e as estratégias das grandes potências, das potências regionais e da UE, numa ótica de manutenção e contestação da ordem internacional e de constituição de um mundo multipolar e pós-ocidental.
Nas relações transatlânticas, a transformação de uma ordem unipolar para uma ordem multipolar, num enquadramento multipolar ainda pouco concertado, desafia a solidez e coesão da comunidade de segurança transatlântica, uma vez que, por definição, na multipolaridade as alianças tornam-se incertas porque mais flexíveis. A comunidade de segurança, que representa mais que uma aliança, deveria sobreviver à passagem para a multipolaridade. Contudo, dado que foi a potência hegemónica – os Estados Unidos – que deixou de ter ambição em custear a responsabilidade que a liderança de uma ordem implica, o fim voluntário da Pax Americana tem implicações para a permanência da comunidade de segurança transatlântica, e, dentro dela, para a relação entre os Estados Unidos e a Alemanha, as duas potências centrais desta comunidade.
Na realidade, a relação entre os Estados Unidos e a Alemanha poderia afirmar-se como uma das principais relações bilaterais na definição de respostas ocidentais aos desafios à ordem internacional liberal. A proposta de uma «partnership in leadership» feita pelo Presidente norte-americano George Bush ao chanceler da República Federal da Alemanha, Helmut Kohl, em 1989, implicava que os Estados Unidos e a Alemanha unificada se tornassem o principal parceiro um do outro e assumissem a liderança internacional conjunta da comunidade de segurança transatlântica no mundo do pós-Guerra Fria que estava a então a emergir. Contudo, uma redefinição conjunta das prioridades estratégicas destas duas potências não se concretizou, tendo a gestão conjunta da crise da Ucrânia sido a exceção que parecia confirmar a regra, quando os Estados Unidos e a Alemanha assumiram uma posição de «parceria em liderança» face à intervenção da Rússia no Leste da Ucrânia e à anexação da Crimeia, em 2014. Washington e Berlim convergiram na sua avaliação de que a Rússia representava agora uma ameaça num quadro de uma nova rivalidade estratégica de longo prazo para a ordem europeia e transatlântica. Desde o início da presidência de Trump, contudo, as posições dos Estados Unidos e da Alemanha demarcam-se mais pela ausência de liderança do que por uma cooperação bilateral ou contestação pela mesma, devido às divergências acentuadas sobre a relevância do multilateralismo, das alianças e de interesses entre aliados crescentemente divergentes.
Simultaneamente, temas de segurança europeia têm um novo impacto junto do eleitorado europeu, que se sente cada vez mais frustrado com as elites políticas, e que apoia partidos populistas que não só não se identificam com os projetos – tanto transatlântico como europeu – como os combatem. A consequência é uma crescente polarização do sistema político partidário em vários países europeus, com os partidos centristas tradicionais incapazes de recuperar eleitorado perdido e de impedir a interligação entre os vários partidos populistas europeus. Logo, há um duplo enfraquecimento externo e interno das democracias ocidentais e da ordem internacional liberal.
A nível teórico, o fim desta comunidade significa o fracasso da teoria liberal institucionalista nas relações transatlânticas e o regresso à era clássica das alianças da teoria realista. Quanto ao futuro da comunidade de segurança, na perspetiva de Trump, num mundo competitivo de soma zero, onde afinidades históricas são desvalorizadas e os lucros comerciais têm de ser imediatos, uma comunidade de segurança como a Aliança Atlântica não só não reproduz o poder dos Estados Unidos, como é limitadora do mesmo. A Estratégia de Segurança Nacional de dezembro de 2017 refere que a NATO é uma vantagem dos Estados Unidos em relação aos seus competidores, enquanto à UE pouco ou nenhuma importância é atribuída, mas isto pouco tem a ver com os fundamentos de uma comunidade de segurança.
Assim, a defesa europeia volta a ser uma questão prioritária e as três potências europeias – a França, o Reino Unido e a Alemanha – têm agora de responder aos desafios estratégicos externos. Não pretendendo constituir uma força de defesa que rivalize com os Estados Unidos, de todo impossível, ou substituir a NATO, os europeus sabem que o recuo externo norte-americano e o fim da comunidade de segurança transatlântica podem representar o fim da ordem internacional liberal, senão o fim do projeto europeu, uma vez que significa que os Estados Unidos já não consideram necessária a proteção europeia que advinha da sua liderança da comunidade de segurança transatlântica. Assim, as alterações da política externa da Administração Trump e as incertezas relacionadas com o Brexit serviram de catalisador para um aprofundamento do processo de integração europeia em matéria de defesa, já em curso desde o Conselho Europeu de dezembro de 2013 e da crise da Ucrânia em 2014, e mais acentuado desde a adoção da Estratégia Global da UE, em 2016.
No seio da Política Comum de Segurança e Defesa da UE, como observa Liliana Reis no seu artigo sobre a defesa europeia, os
«“avanços na defesa europeia poderão traduzir diferentes velocidades, reflexo das capacidades heterogéneas dos estados-membros, o que poderia dar azo a países de primeira que têm possibilidades e países de segunda que não têm essas capacidades”, instituindo uma espécie de núcleo duro da defesa europeia a que só um grupo restrito de países pudesse verdadeiramente aderir».
Neste contexto, a autora ressalta que «o eixo Paris-Londres – que tinha iniciado a Política Comum de Segurança e Defesa em Saint-Malo –, parece ter-se deslocado para Paris-Berlim, depois da pesco (Cooperação Estruturada Permanente)». Como sustenta Liliana Reis,
«Ainda que se opte por uma visão edificante e positiva do futuro da PCSD, a necessidade de compromisso ao nível de capacidades operacionais, bem como o desenvolvimento da pesco, vem revelar o princípio da subsidiariedade e da matriz intergovernamental, assente na manutenção da soberania por parte dos governos nacionais na definição dos objetivos da comunidade e o afastamento da UE ever closer union of people, entrando numa nova realidade que assegurando a diversidade poderá levar à sua diluição.»
Fora da UE, mas sua vizinha, a Turquia afirma-se como outro ator regional relevante cuja estratégia internacional se tem vindo a alterar. Na sequência da Primavera Árabe e da tentativa infrutífera da Turquia de emergir como ator ordenador de um novo enquadramento político do Médio Oriente, Laura Bastos define a atual política externa de Ancara como orientada pela «aliança estratégica com diversos atores», nomeadamente com a Rússia, na perspetiva de que os Estados Unidos perderam o seu lugar de destaque nas relações internacionais e de que o mundo é hoje multipolar. Rejeitando o idealismo do antigo ministro dos Negócios Estrangeiros turco, Ahmet Davutoglu e recorrendo ao crescente nacionalismo do Presidente Recep Erdogan, a Turquia, como refere a autora, «não abandona as tradicionais alianças com os Estados Unidos ou com a União Europeia», mas mostra uma posição mais firme quando os seus interesses são postos em causa, estabelecendo alianças com a Rússia, o Irão ou a China, para «aliar-se a novos centros de poder numa nova ordem global». O objetivo de Ancara em obter armamento russo –, o que levanta sérias questões sobre o papel da Turquia enquanto Estado-Membro da NATO e aliado dos Estados Unidos –, é apenas um dos exemplos realçados pela autora para demonstrar as mudanças em curso na Turquia. Laura Bastos conclui que
«Se a Turquia parece hoje ter uma atitude desafiante face aos Estados Unidos e a instituições internacionais, como a NATO ou UE, é também em parte devido à posição inconsistente de Washington e Bruxelas. Tendo em conta o apoio americano às forças curdas na Síria e a incapacidade de Ancara em influenciar os desenvolvimentos políticos no Médio Oriente a seu favor, a Turquia foi forçada a procurar novos aliados, como a Rússia e o Irão».
Perante esta dinâmica de cooperação de defesa europeia, e incerteza quanto ao futuro da Aliança Atlântica, a Rússia prefere o regresso a uma política de grande potência tradicional. Como refere Luís Tomé,
«A ambição de restaurar a sua “esfera de influência” é uma prioridade da Rússia de Putin e certas práticas evidenciam, para muitos, um comportamento “expansionista” russo numa lógica de impor um “espaço vital”. O paradoxo é que, na ótica russa, foi o “Ocidente” que se expandiu na “vizinhança comum” numa estratégia anti-Rússia, pelo que a Rússia não está a expandir-se mas, ao invés, a “defender-se”. O dilema é que os países ex-soviéticos estão agora divididos em dois “eixos”. Estas linhas divisórias são extraordinariamente voláteis e sobram muitos “conflitos congelados” onde a posição da Rússia é incontornável – negligenciar esta realidade geopolítica criará novas tensões e, muito provavelmente, um novo remapeamento do espaço pós-soviético.»
O Presidente russo Vladimir Putin, certamente, está empenhado em ver a ordem multipolar consolidada, onde a Rússia assume novamente o estatuto de grande potência, saudosista da grandeza da antiga União Soviética, como escreve Luís Tomé neste número:
«A Rússia é uma potência essencialmente regional, mas um ator relevante noutras regiões e em certas questões da agenda global; não é um gigante económico, mas é um colosso energético e no mercado de armamentos. Isto sustenta a ambição de Putin de refundar a arquitetura de segurança global e de a Rússia ser um dos polos numa estrutura de poder verdadeiramente multipolar.»
A China parece ser a grande potência mais bem posicionada na constituição de um mundo multipolar e pós-ocidental: encontra-se numa posição favorável ao aumento da sua capacidade de influência global que a projetou, entretanto, para a posição de segunda maior potência global. Se porventura se pensa que uma política afirmativa da China no sistema internacional é uma característica do período do pós-Guerra Fria, o artigo de Sofia Fernandes lembra-nos que, relativamente aos interesses chineses no continente africano, «A política da China para África não é uma novidade do novo século: a China tem mantido uma diplomacia ativa com países africanos desde meados da década de 1950». No caso concreto de Angola, nas últimas duas décadas, a China aumentou a sua influência no país, através de acordos de financiamento para fornecimento de petróleo à China, da aquisição de direitos de exploração de blocos petrolíferos em águas ultraprofundas angolanas, ou através de contratos de financiamento para a reconstrução do país com a adjudicação dos contratos a empresas chinesas.
Constata-se, como refere Sofia Fernandes, que
«A criação de um ambiente internacional favorável aos interesses chineses tem vindo a ser assumida pela liderança de uma forma cada vez mais assertiva nos últimos anos. O ponto de viragem ocorreu com a inauguração da “nova era” (…) de Xi Jinping e a definição de aspirações para uma “Global China”»,
não já confinada ao lugar anteriormente defendido de potência regional. O conceito de «China’s Rise» (2003) remetia para o papel de liderança da China na região asiática, ao passo que a «Global China» apresentada por Xi Jinping, configura ambições a uma escala mais alargada, de recuperação do «lugar adequado/de direito da China no mundo».
O dinamismo da China reflete-se ainda nas suas relações com a UE, em especial a nível da dimensão da paradiplomacia entre regiões nas relações UE-China. Miguel Santos Neves argumenta que «a eficácia da estratégia europeia em relação à China tem sido baixa», o que se explica pela
«não consideração do nível subnacional de relações diretas entre as regiões da UE e as províncias chinesas, que paradoxalmente permanece invisível apesar da sua significância e da dinâmica e implicações do funcionamento de um quadro de três níveis que implica a coexistência e interação entre o nível macro da UE, um nível intermédio nacional dos estados-membros e o nível mais baixo da paradiplomacia entre regiões».
Como resultado, emergiram contradições entre os estados-membros da UE na relação com a China, que se intensificaram «em resultado da influência económica e política sem precedentes que a China alcançou junto de alguns estados-membros, nomeadamente Portugal, Grécia, Malta, Finlândia, Hungria e República Checa, desde a crise da dívida soberana». Para além disso, existe «uma dependência significativa da Alemanha em relação à China, o que aumentou o poder de Pequim e tornou Berlim mais vulnerável a retaliações», na medida em que «a China se tornou o principal parceiro comercial da Alemanha e as exportações para a China tornaram-se fundamentais para o crescimento económico da Alemanha». Contudo, Miguel Santos Neves identifica
«sinais de mudança, pois a Alemanha percebeu que a abordagem “cooperativa” adotada durante a crise, (…), ignorou o facto de a China ser também concorrente e abriu as portas para Pequim consolidar uma posição económica forte em vários países da UE e obter um grau de influência política sem precedentes, que desafia e enfraquece a coesão da UE, bem como o domínio da Alemanha na sua própria área de influência.»
Em 2019, os defensores da ordem internacional liberal irão celebrar 30 anos da queda do Muro de Berlim, e lamentar os cinco anos da anexação russa da Crimeia. É paradoxal e um infortúnio transatlântico que no momento em que, com o culminar das ações russas na Ucrânia e na Síria, o revisionismo russo não seja suficientemente aglutinador para reforçar a comunidade de segurança transatlântica, e que, adicionalmente, as próprias divisões transatlânticas contribuam para a crescente irrelevância geoestratégica da Europa. Pelo contrário, no momento em que as crispações entre as grandes potências aumentam de intensidade, parece confirmar-se o fim das alianças permanentes entre as democracias pluralistas (com a manutenção de alianças flexíveis). Com isto, os Estados Unidos regressam aos avisos do Presidente George Washington que, no seu discurso de despedida, em 1796, exortou os Estados Unidos a «afastarem-se de alianças permanentes com qualquer parte do mundo estrangeiro», e do Presidente Thomas Jefferson para que os Estados Unidos evitem as entangling aliances porque poderiam ser demasiadamente comprometedoras para a liberdade de ação política. Por outras palavras, os Estados Unidos regressam à normalidade internacional, após um excecionalismo de setenta anos, e os europeus, uma vez mais, ao desequilíbrio europeu num mundo mais fragmentado e menos euro-atlântico, onde estados como a Rússia, a Turquia e, last but not least, a China assumem um protagonismo mais assertivo na redefinição multipolar dos enquadramentos regionais e na ordem internacional.