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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.65 Lisboa mar. 2020

https://doi.org/10.23906/ri2020.65a02 

A CHINA E ÁFRICA EM ASCENSÃO

 

China e África: uma parceria de cooperação estratégica ou uma (progressiva) relação de dependência? A problemática da dívida africana

China and Africa: a strategic cooperation partnership or a (progressive) dependency relationship? The problematic of the African debt

 

Rui Pereira

Direção-Geral das Atividades Económicas | Av. Visconde de Valmor 72, 1069-041 Lisboa | rui.pereira@dgae.gov.pt

 

RESUMO

O presente artigo procura abordar a evolução recente e a atual realidade do relacionamento económico e comercial entre a China e África, focalizando-se na crescente problemática da dívida dos países africanos face à China, resultante da política de empréstimos dirigidos ao financiamento de projetos de desenvolvimento, em particular no setor das infraestruturas. Neste contexto, irá discutir-se até que ponto são fundados os receios da existência de uma estratégia deliberada chinesa em torno da designada debt-trap diplomacy relativamente a África.

Palavras-chave: China, África, cooperação, dívida.

 

ABSTRACT

This article seeks to address the recent evolution and the current reality of the economic and trade relationship between China and Africa, focusing on the growing debt problem of African countries towards China, further to the policy of loans directed to the financing of development projects, in particular in the infrastructure sector. In this context, the extent to which fears about the existence of a deliberate Chinese strategy around the so-called “debt-trap diplomacy” with respect to Africa are credible, will be discussed.

Keywords: China, Africa, cooperation, debt.

 

A estratégia africana da China começou a ser definida nos anos 50 do século XX, após a criação da República Popular da China em 1949, tendo por base o fomento das relações com os líderes dos movimentos de libertação nacionais e futuros líderes dos Estados soberanos, nalguns casos, uma vez alcançada a independência, e traduzindo-se num elevado número de visitas oficiais de parte a parte. Sem prejuízo, o novo engagement económico da China em relação a África começou a tornar-se mais visível sobretudo a partir da segunda metade dos anos 90 e ao longo da primeira década do século XXI.

A aproximação chinesa a África, e a forma deliberada como se demarcou das políticas seguidas pelas potências ocidentais, nomeadamente ao não impor condicionalidades políticas (em áreas como os direitos humanos, a boa governação), foi muito bem recebida pela generalidade dos Estados africanos, em face do crescente desinteresse e desinvestimento a que o continente havia sido votado pelos Estados Unidos e restantes potências ocidentais desde o final da Guerra Fria1.

Não é por acaso que, desde 1991, o ministro dos Negócios Estrangeiros chinês inicia o ano, sem exceção, com uma visita de alto nível a África.

Pequim decidiu, assim, que África seria uma nova prioridade da sua diplomacia e os resultados estão à vista.

«A China sempre olhou para África numa lógica de trade-off, uma lógica muito chinesa, de mútuo benefício. E sempre viu África como uma fonte de matérias-primas e fornecedora das commodities de que tanto precisa». No caso, a troca parece simples: a China gera desenvolvimento local ao construir estradas, redes ferroviárias e pontes e, em troca, tem acesso a matérias-primas2.

Esse relacionamento foi adquirindo uma crescente complexidade e um carácter multidimensional. Após quase duas décadas de financiamento a projetos de infraestruturas por parte de instituições bancárias chinesas, a exposição de Pequim à dívida dos países africanos tem vindo a aumentar e será objeto de particular atenção ao longo do presente artigo.

 

A POLÍTICA AFRICANA DA CHINA E A ESTRATÉGIA DE ÁFRICA

As linhas orientadoras da política da China em relação a África encontram-se plasmadas no documento China’s Policy Paper, apresentado em janeiro de 2006. Neste documento, a China enfatiza o seu estatuto de maior país em desenvolvimento do mundo e os objetivos de prossecução da paz e do desenvolvimento pacífico, com base nos Cinco Princípios de Coexistência Pacífica.

São ainda destacados os princípios da «sinceridade, igualdade e benefício mútuo», a «solidariedade» e o «desenvolvimento comum». As virtualidades da cooperação Sul-Sul, entre países que partilham uma história semelhante, de luta pela libertação nacional, são devidamente relevadas. Ao acentuar a retórica da «herança histórica comum» e do «respeito mútuo», Pequim procura demarcar-se do passado colonial de África, reforçar o espírito de solidariedade com os países africanos e, ao mesmo tempo, tranquilizar os líderes africanos a respeito de eventuais tentações neocolonialistas.

Mais recentemente, em dezembro de 2015, por ocasião da segunda cimeira do Fórum de Cooperação China-África (FCCA), realizada em Joanesburgo, África do Sul, a China apresentou o seu segundo policy paper sobre África, o qual serviu igualmente para assinalar a passagem do 15.º aniversário da criação do FCCA.

Como forma de justificar o lançamento deste documento (quase dez anos após o primeiro), o Governo chinês argumentou ter pretendido clarificar a sua determinação e boa vontade no desenvolvimento de relações de amizade e de cooperação com África. Mais do que introduzir novas áreas e iniciativas no relacionamento com África, neste documento são reiterados os princípios já constantes no policy paper de 2006 (igualdade, confiança mútua, solidariedade e apoio mútuo, sinceridade, resultados práticos, afinidade e boa-fé), bem como a não introdução de condicionalismos políticos na concessão de empréstimos a África e a não interferência nos seus assuntos internos.

Ao nível da cooperação económica e comercial, são enfatizados os seguintes objetivos: 1) apoio ao reforço da industrialização de África; (2) apoio à modernização do setor agrícola africano; (3) participação no esforço de desenvolvimento das infraestruturas em África; (4) reforço da cooperação financeira sino-africana; (5) promoção da facilitação do comércio e investimento sino-africano; (6) desenvolvimento da cooperação em matéria de recursos naturais e de energia; (7) alargamento da cooperação ao setor da economia marítima.

Para além da vertente económica e comercial, pretende-se alargar a cooperação sino-africana a outras áreas, nomeadamente através de mecanismos de reforço da confiança política, do aprofundamento da cooperação nos assuntos internacionais, do reforço das atividades de cooperação para o desenvolvimento e do aprofundamento e expansão dos laços culturais e dos intercâmbios entre pessoas.

No documento é, naturalmente, feito um balanço positivo dos quinze anos de cooperação conjunta (2000-2015), ressaltando-se a cimeira inaugural do FCCA de 2000 e as cinco reuniões ministeriais entretanto decorridas. É igualmente estabelecido o compromisso de reforço da cooperação bilateral no futuro, numa larga variedade de áreas/setores (industrialização, modernização agrícola, infraestruturas, desenvolvimento dos recursos humanos, setor financeiro, ciência e tecnologia, educação, cultura, saúde, redução da pobreza, entre outros).

A última (terceira) cimeira China-África teve lugar em Pequim, em setembro de 2018, e ficou marcada pelo anúncio de disponibilização, pela China, de 60 mil milhões de dólares durante os três anos subsequentes (até outubro de 2021). Este montante será utilizado em oito iniciativas, incluindo a construção de mais infraestruturas e a concessão de bolsas de estudo a jovens africanos3. A China comprometeu-se igualmente a criar um fundo de paz e segurança, continuando a fornecer ajuda militar gratuita à União Africana (UA). Foi ainda anunciado que a dívida dos empréstimos sem juros, com vencimento até ao final de 2018, seria amortizada para alguns países africanos mais pobres.

Do montante global de 60 mil milhões de dólares, 20 mil milhões têm como objetivo a criação de novas linhas de crédito, 15 mil milhões são direcionados para ajuda externa (donativos, empréstimos sem juros e empréstimos com taxas de juro e prazos mais favoráveis), dez mil milhões destinam-se a um fundo especial de financiamento para o desenvolvimento e cinco mil milhões servirão para apoiar a criação de um fundo especial para financiar as importações de África.

E do lado africano, existirá uma estratégia coordenada de atuação face à China? Chris Alden e Lu Jiang4 argumentam que, embora de forma não tão estruturada como os policy papers chineses sobre a política africana, é possível identificar alguns interesses em comum dos países africanos no seu relacionamento com a China. Em primeiro lugar, pese embora nem sempre seja assumido publicamente, a mobilização dos recursos financeiros e técnicos chineses é um objetivo comum, tendo em vista fomentar a transformação e o desenvolvimento económico dos países africanos; em segundo lugar, para algumas potências regionais, assim como para a UA, o alinhamento de posições e a obtenção de apoio da China em assuntos internacionais de segurança e política externa (por exemplo, aumentar a representatividade de África no Conselho de Segurança e nas agências especializadas das Nações Unidas), é também um resultado relevante a atingir; em terceiro lugar, alguns governos africanos pretendem diversificar as suas relações económicas externas, procurando novos parceiros e experiências alternativas de desenvolvimento na Ásia, com natural destaque para a China. Em 2014, a título ilustrativo, o comércio entre a China e África alcançou um total de 210 mil milhões de dólares, ultrapassando os valores conjuntos do volume de comércio entre África e os Estados Unidos, a França, o Reino Unido e o Japão5.

Como seria de esperar, a influência acrescida da China em África não passou despercebida às principais potências ocidentais e a outras com peso e influência relevantes, assistindo-se, hoje em dia, a uma crescente concorrência de países como os Estados Unidos, a Rússia, o Japão, a França, o Reino Unido, a Turquia ou os Emirados Árabes Unidos, no sentido de obterem ou recuperarem o espaço de atuação em África entretanto perdido. A título de exemplo, os Estados Unidos anunciaram, no início de 2019, o lançamento da Prosper Africa Initiative, que procura incentivar o investimento de empresas norte-americanas nos países africanos. Em 2018, foi criada pela Administração Trump a US International Development Finance Corp, dotada de um orçamento de 60 mil milhões de dólares para apoio a projetos em África.

No que respeita à Rússia, teve natural repercussão internacional a realização da primeira cimeira Rússia-África, na cidade de Sochi, nos dias 23 e 24 de outubro de 2019, um sinal do empenho e compromisso do lado russo em intensificar o relacionamento económico e comercial com África. No entanto, há que reconhecer que a Rússia parte em posição de grande desvantagem face à China (por exemplo, o comércio bilateral russo-africano totalizou cerca de 20 mil milhões de dólares em 2018, equivalente a 10% do comércio bilateral China-África), após o acentuado decréscimo verificado nos intercâmbios com os países do continente africano após o desaparecimento da União Soviética em 1991.

Por seu turno, o Japão tem também adotado medidas no sentido de encorajar as empresas japonesas a investirem em África, procurando diferenciar esses investimentos dos seus concorrentes chineses, apostando nos padrões de qualidade e fiabilidade dos seus projetos. Neste âmbito, destaca-se a Conferência Internacional de Tóquio sobre o Desenvolvimento de África (TICAD), lançada em 1993 e cuja última edição teve lugar em Yokohama, nos dias 28 e 29 de agosto de 2019, com o objetivo de reforçar o relacionamento com os países africanos nas áreas da economia, da segurança e do clima. Nesta ocasião, foi defendido um novo paradigma nas relações com o Japão, em que já não se fale exclusivamente de «ajuda», mas sobretudo de oportunidades de negócio. A próxima secção tem por enfoque a dimensão do comércio e dos empréstimos nas relações sino-africanas.

 

COMÉRCIO BILATERAL E EMPRÉSTIMOS DA CHINA A ÁFRICA

No que respeita ao comércio bilateral entre a China e o continente africano (incluindo os países do Magrebe), de acordo com os dados mais recentes disponíveis, elevou-se a 204 mil milhões de dólares em 20186, sendo que a China é já o principal parceiro comercial de África.

Em 2018, as exportações chinesas retomaram a trajetória de crescimento (após um decréscimo em 2016 e 2017), tendo atingido 104 mil milhões de dólares, um valor muito próximo do que havia sido registado em 2014 (105 mil milhões).

Os dez principais clientes africanos das exportações chinesas foram: a África do Sul (16,3 mil milhões de dólares), a Nigéria (13,4 mil milhões), o Egito (12 mil milhões), a Argélia (7,9 mil milhões), o Quénia (5,2 mil milhões), o Gana (4,8 mil milhões), Marrocos (3,7 mil milhões), a Tanzânia (3,6 mil milhões), a Etiópia (2,5 mil milhões) e Angola (2,3 mil milhões).

Do lado das importações, que se cifraram em 100 mil milhões de dólares em 2018, destacaram-se, como principais fornecedores africanos da China: a África do Sul (27,3 mil milhões de dólares), Angola (25,8 mil milhões), a República do Congo (6,8 mil milhões), a República Democrática do Congo (5,7 mil milhões), a Líbia (4,7 mil milhões), a Zâmbia (4,1 mil milhões), o Gabão (3 mil milhões), o Gana (2,4 mil milhões), a Guiné (2,2 mil milhões) e a Guiné Equatorial (2,1 mil milhões).

No que respeita aos empréstimos concedidos pela China aos países africanos, atingiram um total de 143 mil milhões de dólares em 2017 (desde 2000), de acordo com um levantamento efetuado pela universidade norte-americana Johns Hopkins (através da sua unidade de investigação China-Africa Research Initiative).

Por países beneficiários, destacam-se os seguintes: Angola (42,8 mil milhões de dólares), Etiópia (13,7 mil milhões), Quénia (9,8 mil milhões), República do Congo (7,4 mil milhões), Sudão (6,5 mil milhões), Zâmbia (6,4 mil milhões), Camarões (5,6 mil milhões), Nigéria (4,8 mil milhões), África do Sul (3,8 mil milhões) e Gana (3,5 mil milhões).

Os dados acima descritos permitem concluir pela existência de um nexo de causalidade entre os principais parceiros comerciais africanos da China e os beneficiários dos seus empréstimos, o que indicia a existência de uma estratégia coordenada chinesa nesse sentido.

Desde logo, destacam-se Angola (décimo cliente das exportações, segundo fornecedor das importações e principal beneficiário dos empréstimos concedidos entre 2000 e 2017), a África do Sul (primeiro cliente, primeiro fornecedor, nono maior beneficiário de empréstimos) e o Gana (sexto cliente, oitavo fornecedor, décimo maior beneficiário de empréstimos), havendo ainda a assinalar a Etiópia, o Quénia, a República do Congo, a Zâmbia e a Nigéria, com posições relevantes nestes indicadores.

De notar, a este respeito, que a estratégia de expansão chinesa em África assentou, em larga medida, na utilização de instrumentos financeiros, em particular empréstimos sob diversas condições (a fundo perdido, concessionais, comerciais), para garantir o acesso a recursos que o gigante asiático necessita e, ao mesmo tempo, assegurar o acesso aos mercados africanos por parte das principais construtoras chinesas (como trade-off para o acesso a financiamento).

Acresce que, como estratégia de persuasão dos países africanos beneficiários, a China proclamou a não existência de pré-condições à partida para a concessão dos empréstimos. No entanto, esta tese é questionável, podendo considerar-se que a China pratica uma espécie de «ajuda ligada com características chinesas», nomeadamente ao assegurar que sejam contratados fornecedores chineses para a implementação dos projetos aprovados por Pequim, através de concursos de procurement feitos à medida ou mesmo de ajustes diretos. Por outro lado, a maioria dos projetos aprovados teve na sua base estudos de viabilidade (a nível financeiro, técnico e ambiental) conduzidos por entidades chinesas, colocando em causa princípios como os da transparência e da livre concorrência, entre outros, e contrariando as boas práticas de due diligence defendidas pelo Banco Mundial e pelo FMI, entre outras instituições.

 

UMA ESCALADA DA DÍVIDA AFRICANA FACE À CHINA?

Apresentam-se, de seguida, alguns exemplos concretos dos empréstimos concedidos pela China a projetos de infraestruturas apresentados pelos países africanos e os seus efeitos nas economias destes países.

Começando pelo Jibuti, em fevereiro de 2017, assistiu-se à inauguração da primeira linha de comboios elétricos transnacional de África, que liga a Etiópia (um país sem costa) ao mar do Índico, através do Jibuti. Esta linha reduziu para doze horas um trajeto que anteriormente demorava três dias a percorrer.

A China desenhou o sistema, forneceu os comboios e importou centenas de engenheiros durante os seis anos necessários para planear e construir os 750 quilómetros de linha. O montante do projeto, cerca de quatro mil milhões de dólares, foi financiado, em grande parte, por bancos chineses7.

Três meses depois, maio de 2017, foi a vez do Quénia, onde foi inaugurada uma linha de comboio de 470 quilómetros entre Nairobi e o porto de Mombaça, um investimento de quase três mil milhões de dólares8. O projeto de construção foi conduzido pela China Road and Bridge Corporation, a qual assegurou igualmente o respetivo estudo de viabilidade. Acresce que a empresa estatal chinesa é o operador do serviço da linha férrea.

Em dezembro de 2017, chegou a vez da Nigéria, onde foi inaugurada a primeira parte de um projeto particularmente ambicioso e em várias fases de modernização do sistema de trânsito de Lagos, a antiga capital, e ligação a outras cidades da área metropolitana, que custará 36 mil milhões de dólares.

Em Moçambique, foi inaugurada uma ponte que liga Maputo a Catembe. É a maior ponte suspensa de África e a obra mais cara desde a independência do país. O projeto custou cerca de 700 milhões de dólares9. A ponte de Catembe trouxe uma alternativa a uma estrada de 100 quilómetros ou à travessia marítima, num ferry que, embora demore só dez minutos, transporta 15 carros de cada vez.

Quanto a Angola, é sabido que tem um valor estratégico para a China. Pequim é o principal comprador do petróleo angolano (tem uma quota de 49,4%) e, no conjunto dos produtos energéticos, o país africano está ao nível da Rússia e da Arábia Saudita. Existe, assim, uma estreita ligação entre o petróleo e as linhas de financiamento chinês, cruciais para os projetos de infraestruturas ambicionados por Luanda.

Em troca dos empréstimos, e tendo o petróleo como colateral, são empresas chinesas que ficam encarregadas da construção dos projetos, rivalizando com os grupos portugueses. Para Angola, este tipo de dívida externa ajuda-a a depender menos dos países ocidentais e de instituições internacionais. Em outubro de 2018, o novo Presidente de Angola, João Lourenço, esteve em Pequim, onde assegurou um empréstimo de seis mil milhões de dólares. Ao todo, Luanda deve a Pequim 23 mil milhões de dólares10.

Quanto à República do Congo, aquando de uma visita oficial realizada à China em 2018, o primeiro-ministro congolês, Clement Mouamba, tinha dois objetivos principais. O primeiro era saber exatamente o montante da dívida do país face à China, para informar o FMI (no âmbito de um processo de candidatura a um programa de ajustamento estrutural). O segundo era convencer Pequim a reestruturar a sua dívida, para garantir a sua sustentabilidade11.

Desde então, o Governo congolês conseguiu reestruturar a dívida face à China (Pequim detém cerca de um terço do total da dívida congolesa – 2,5 mil milhões de dólares), através do prolongamento do prazo de pagamento por mais quinze anos.

Por sua vez, a Etiópia conseguiu o perdão de uma parte da sua dívida e condições mais favoráveis (extensão do prazo de pagamento em vinte anos) para o empréstimo que contraiu, no montante de 3,3 mil milhões de dólares, para a construção da já referida linha férrea de acesso ao mar, através do Jibuti12.

Segundo alguns observadores, a Zâmbia, poderá estar com dificuldades em cumprir os pagamentos dos empréstimos devidos à China (os juros da dívida absorvem já uma fatia importante do orçamento); por esse motivo, o Estado zambiano poderá vir a oferecer a empresa estatal de eletricidade como futuro ativo do Governo chinês. A China poderá estar também interessada em assumir a posse do aeroporto Kenneth Kaunda, caso o Governo zambiano não consiga cumprir os seus compromissos13.

Entre 2000 e 2011, de acordo com o China-Africa Research Initiative, o montante de linhas de crédito e empréstimos disponibilizado pelas instituições financeiras chinesas aos países africanos ascendia a 53,4 mil milhões de dólares, pelo que se torna evidente que, entre 2012 e 2017, o volume de empréstimos aumentou consideravelmente, perfazendo os já referidos 143 mil milhões de dólares em 2017.

Afigura-se relevante destacar que o colapso dos preços das matérias-primas em 2014 e o lento ritmo de recuperação verificado desde então colocaram grande pressão sobre os governos africanos, com o valor médio da dívida a subir de um rácio de 30% do PIB em 2012 para 50% em 2017.

Após a fase inicial de alguma euforia e deslumbramento resultantes das condições imbatíveis oferecidas pela China – concessão de empréstimos em condições muito favoráveis e num curto espaço de tempo –, com o passar dos anos começaram a tornar-se visíveis novos problemas, essencialmente ligados ao perigo de insustentabilidade da dívida de muitos países africanos face à China.

Neste contexto, vozes críticas da estratégia chinesa consideram que existe uma debt-trap strategy14 por parte de Pequim, no intuito de obter influência acrescida no plano internacional. No entanto, é também certo que não existem, neste momento, evidências que permitam concluir que a China tem uma estratégia deliberada de sobre-endividamento africano.

Em todo o caso, é indesmentível que alguns países se viram a braços com dificuldades no pagamento das suas dívidas, existindo ainda dúvidas sobre a viabilidade de muitos dos projetos aprovados por Pequim, em particular no domínio das infraestruturas, o que estará também relacionado com a dificuldade demonstrada por diversos países africanos em aprovar projetos que vão ao encontro das reais necessidades das populações e economias locais. De acordo com o FMI, até ao final de janeiro de 2019, 17 países africanos de baixo rendimento foram apresentados como encontrando-se em situação vulnerável, com dificuldades no pagamento do serviço da dívida, sendo que a situação é variável de país para país. Por exemplo, nos Camarões e na Etiópia, a China é o maior credor destes países, e no Jibuti, na República do Congo e na Zâmbia, os empréstimos chineses representam mais de metade do total da sua dívida pública15.

Mais do que uma estratégia definida e coordenada ao mais alto nível no Governo chinês em torno de níveis insustentáveis de dívida no continente africano, o que poderá estar em causa é o comportamento de algumas empresas chinesas (motivadas pela procura do lucro fácil e rápido), que se aproveitam das vulnerabilidades dos países mais carenciados, através da concessão de maus empréstimos (muitas vezes em condições não concessionais, com elevadas taxas de juro ou serviços de dívida onerosos), em que os ganhos advêm para as empresas promotoras dos projetos e não para os países beneficiários. Estas empresas tiram, assim, partido das dificuldades de financiamento dos países mais pobres e das suas carências ao nível das infraestruturas, no que alguns autores apelidam de crony diplomacy16.

Segundo esta corrente de opinião, a dívida chinesa tornou-se a «metanfetamina do financiamento de infraestruturas: altamente aditiva, rapidamente disponível, e com efeitos negativos a longo prazo que ultrapassam largamente os ganhos de curto prazo»17. Não obstante a crescente onda de criticismo sobre a estratégia de empréstimos seguida pela China, as conclusões não são unânimes. Por exemplo, Deborah Brautigam, diretora do China-Africa Research Initiative, considera que, embora o nível de empréstimos da China aos países africanos seja significativo, os receios de que o Governo chinês esteja a provocar, deliberadamente, situações de sobre-endividamento nestes países, não têm fundamento18.

Brautigam não deixa, no entanto, de reconhecer que existem alguns problemas com a abordagem de empréstimos seguida pela China. Por um lado, os bancos chineses dependem ainda em demasia das empresas de construção chinesas para identificarem e desenvolverem projetos (incluindo no âmbito da Belt and Road Initiative (BRI)). Muitas vezes, a sua aprovação não é resultado de concursos públicos transparentes, criando potenciais situações de oportunismo e abrindo espaço a acusações de projetos com preços inflacionados.

Na mesma linha, em editorial publicado no dia 5 de julho de 201919, o South China Morning Post sustenta que

«as acusações no Ocidente de que Pequim está a tentar apanhar os países africanos na armadilha da dívida com os projetos de infraestruturas e empréstimos não fazem sentido. A China tem tudo a perder com o empobrecimento de países dos quais necessita para contrabalançar os efeitos das barreiras e restrições pautais impostas pelos EUA e alguns dos seus aliados. Incentivar e fomentar o comércio e as rotas de abastecimento no mundo em desenvolvimento poderá beneficiar a China e não existe qualquer evidência do contrário. É do interesse da China manter o crescimento dos países africanos a um ritmo sustentável e estável».

Nesta perspetiva menos crítica da estratégia chinesa, perfilhada pelo autor, considera-se que não é ainda o momento para a China lançar movimentos de reestruturação em larga escala, uma vez que, não obstante os riscos existentes, a dívida africana ainda não atingiu o patamar de insustentável. No entanto, seria conveniente que a China adotasse medidas prudenciais para aliviar o peso da dívida nas economias africanas em geral, em particular para as que se encontram mais fortemente endividadas, tendo em vista evitar uma potencial crise do lado africano e perdas financeiras para a própria China.

A este respeito, existem algumas opções a considerar, evidenciadas por Chris Alden e Lu Jiang20. A primeira opção é o cancelamento de uma parte das dívidas existentes.

Em resposta à crise de dívida de Moçambique, intensificada pelo default registado no início de 2017, a China decidiu prolongar o prazo de pagamento de quatro empréstimos, no total de 36 milhões de dólares (pagamento inicialmente previsto até ao final de 2019). Durante a cimeira do FCCA, realizada em Pequim, em setembro de 2018, o Presidente chinês Xi Jinping anunciou que todos os empréstimos sem juros dos países menos avançados e altamente endividados veriam os seus prazos de pagamento alargados.

A segunda opção, que ainda não foi materializada, é providenciar acordos de refinanciamento de curto prazo aos países africanos com dificuldades de pagamento.

Em casos mais urgentes, o Governo chinês poderá ser forçado a reescalonar as dívidas de países que, pura e simplesmente, não têm condições de suportar os pagamentos. A Zâmbia, por exemplo, apanhada numa situação crítica de dívida desde 2018 e com 30% do total da sua dívida de 9,3 mil milhões de dólares à China, tem estado em contacto com Pequim no sentido de renegociar os termos da sua dívida. Na cimeira do FCCA de setembro de 2018, a Etiópia tornou-se o primeiro dos países devedores a conseguir um acordo de reescalonamento, permitindo-lhe obter um prazo adicional de vinte anos para pagamento de uma parte da sua dívida à China (incluindo empréstimos no valor total de quatro mil milhões de dólares para o projeto emblemático da ligação férrea Adis Abeba-Jibuti).

Em terceiro lugar, como medida complementar, o Governo chinês começou também a adotar algumas políticas de promoção da utilização do yuan/renminbi em África. Até à data, a China celebrou acordos de cooperação cambial (currency swap) com alguns países africanos, tais como a África do Sul (2015), o Egito (2016) e, mais recentemente, a Nigéria (abril de 2018). Apesar de não constituir um acordo de renegociação da dívida, irá ajudar a aumentar a liquidez de curto prazo dos mercados financeiros da Nigéria, evitar os riscos associados à flutuação das taxas de câmbio e facilitar o comércio e o investimento bilateral.

Existem, por conseguinte, diversos desafios que a China terá de enfrentar perante esta nova situação de gestão da dívida dos seus parceiros africanos.

Desde logo, enquanto credor emergente e relativamente inexperiente neste papel, a China terá de aprender a atuar e a adaptar-se rapidamente, ao mesmo tempo que se deverá esforçar por manter o carácter distintivo que a diferencia dos credores ocidentais tradicionais. Por enquanto, a China não dispõe de um sistema abrangente de gestão da dívida externa, o que poderá resultar numa resposta lenta, não uniforme e não transparente às necessidades de reestruturação da dívida e colocar tensões nas relações bilaterais/multilaterais entre a China e os países africanos.

Por outro lado, à medida que o volume de empréstimos da China aos países africanos aumenta, a China poderá sentir a necessidade de uma maior abertura e de entrar em conversações com outros países credores, por exemplo, aderindo às negociações internacionais de reestruturação da dívida lideradas pelo Clube de Paris e por credores multilaterais como o Banco Mundial e o FMI, o que não aconteceu até ao momento.

É ainda de notar que os perigos de default soberano e a resultante perda de ativos (e recursos) colocarão à prova a solidez das relações entre a China e os países africanos. Perante o contexto controverso da opção debt for equity, face às inevitáveis repercussões internacionais, não se prevê (a não ser em casos pontuais) que este mecanismo venha a ser adotado pelo Governo chinês em futuros acordos com os países devedores, nomeadamente em África.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante a sétima cimeira do FCCA, realizada em setembro de 2018, em Pequim, o Presidente chinês Xi Jinping foi muito claro, ao afirmar que Pequim não estaria na disposição de financiar, de forma acrítica, «projetos de vaidade» africanos, o que parece transparecer que existe alguma preocupação do lado chinês com questões reputacionais e de credibilidade da sua política externa face a África.

A partir desta afirmação, pode inferir-se que o Presidente da República Popular da China tem por objetivo limitar a exposição futura da China a eventuais crises de dívida soberana dos países africanos. Ao mesmo tempo, Pequim terá de continuar a gerir as dívidas africanas já existentes, devendo ainda ter presente a necessidade de desenvolver um enquadramento mais sólido, nomeadamente ao nível dos empréstimos, para supervisionar e gerir o financiamento do desenvolvimento de África no futuro.

Deste ponto de vista, na nossa ótica, o impacto mais significativo do papel da China como credor poderá ser sentido não tanto no conteúdo das negociações de reescalonamento de dívida ou na gestão de empréstimos futuros, mas acima de tudo nos efeitos de longo prazo que estes acordos poderão ter na imagem da China e do seu relacionamento com os países africanos.

Por conseguinte, será interessante perceber até que ponto a questão do sobre-endividamento africano poderá colocar em causa princípios fundamentais do relacionamento da China com África, como a ausência de condicionalidades e o compromisso de não interferência nos assuntos internos dos países africanos, a sua principal matriz diferenciadora face a outros países concorrentes.

E, subjacente a tudo isto, poderá estar uma alteração de fundo de posicionamento da própria China, evoluindo de uma postura alternativa aos poderes ocidentais tradicionais para a de um país que aspira a ser, cada vez mais, uma potência global com influência incontornável no sistema internacional.

A próxima década, que se avizinha, será importante para se perceber qual será a evolução futura do relacionamento sino-africano: em torno de uma verdadeira parceria estratégica, ou, ao invés, para uma cada vez maior dependência de África face à China?

 

BIBLIOGRAFIA

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Data de receção: 2 de dezembro de 2019 | Data de aprovação: 12 de janeiro de 2020

 

NOTAS

1 PEREIRA, Rui P. – «A nova política da China em África». In Relações Internacionais. N.º 10, 2006, pp. 19-38.

2 REIS, Bárbara – «Ponte a ponte, China avança para a África que fala português». In Público. 5 de dezembro de 2018. (Consultado m: 3 de outubro de 2019). Disponível em: https://www.publico.pt/2018/12/05/politica/noticia/ponte-ponte-china-avanca-africa-fala-portugues-1853379.

3 GOMES, Hélder – «China promete 51 mil milhões de euros para África sem contrapartidas políticas». In Expresso. 4 de setembro de 2018. (Consultado em: 3 de outubro de 2019). Disponível em: https://expres so.pt/internacional/2018-09-04-China-promete-51-mil-milhoes-de-euros-para-Africa-sem-contrapartidas-politicas.

4 ALDEN, Chris; JIANG, Lu – «Does China have a China strategy?». International Affairs Blog. 13 de junho de 2019. (Consultado em: 9 de outubro de 2019). Disponível em: https://medium.com/international-affairs-blog/does-africa-have-a-china-strategy-a6950559c53a.

5 XIAOYANG, Tang – «New structural economics: a first attempt at theoretical reflections on China-Africa engagement and its limitations». In ALDEN, C.; LARGE, D., eds. – New Directions in Africa-China Studies. Oxon: Routledge, 2019, pp. 291-297.

6 Fonte: CHINA-AFRICA Research Initiative. Sítio da Johns Hopkins (Washington), consultado em diversas ocasiões. Disponível em: http://www.sais-cari.org/.

7 Artigo do New York Times, citado em REIS, Bárbara - «Ponte a ponte, China avança para a África que fala português».

8 REIS, Bárbara – «Ponte a ponte, China avança para a África que fala português».

9 Ibidem.

10 Ibidem.

11 NYABIAGE, Jevans – «Are Chinese infrastructure loans putting Africa on the debt-trap express?». In South China Morning Post. 28 de julho de 2019. (Consultado em: 8 de outubro de 2019). Disponível em: https://www.scmp.com/news/china/diplomacy/article/3020394/are-chinese-infrastructure-loans-putting-africa-debt-trap.

12 ALDEN, Chris; JIANG, Lu – «Brave new world: debt, industrialization and security in China-Africa relations». In International Affairs. Vol. 95, N.º 3, 2019, pp. 641-657.

13 KWASI, Stellah – «High cost of having China as Africa’s partner of choice». Institute for Security Studies. 13 de março de 2019. (Consultado em: 8 de outubro de 2019). Disponível em: https://issafrica.org/iss-today/high-cost-of-having-china-as-africas-partner-of-choice.

14 NYABIAGE, Jevans – «Are Chinese infrastructure loans putting Africa on the debt-trap express?».

15 ALDEN, Chris; JIANG, Lu – «Brave new world…».

16 AKPANINYIE, Mark – «China’s “Debt Diplomacy” is a misnomer. Call it “Crony Diplomacy”». In The Diplomat. 12 de março de 2019. (Consultado em: 8 de dezembro de 2019). Disponível em: https://thediplomat.com/2019/03/chinas-debt-diplomacy-is-a-misnomer-call-it-crony-diplomacy.

17 HARRIS, Grant T. – «China is loaning billions of dollars to African countries. Here’s why the U.S. should be worried». In Time. 30 de agosto de 2018. (Consultado em: 15 de dezembro de 2019). Disponível em: https: //time.com/5381467/china-africa-debt-us-security.

18 BRAUTIGAM, Deborah – «Is China the world’s loan shark?». In New York Times. 26 de abril de 2019. (Consultado em: 8 de dezembro de 2019). Disponível em: https://www.nytimes.com/2019/04/26/opinion/china-belt-road-initiative.html.

19 «CHINA must allay any debt-trap fears in its dealings with Africa». In SCMP. 5 de julho de 2019. (Consultado em: 25 de outubro de 2019). Disponível em: https://www.scmp.com/comment /opinion/article/3017478/china-must-allay-any-debt-trap-fears-its-dealings-africa.

20 ALDEN, Chris; JIANG, Lu – «Brave new world…».

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