Embora historicamente o fenómeno populista tenha aparecido em vários contextos políticos e institucionais, a discussão académica sobre o conceito teve origem no célebre congresso organizado pela London School of Economics em 1967, onde vários académicos se reuniram para discutir e analisar, teórica e empiricamente, várias experiências associadas ao populismo. Já nessa altura os vários intervenientes referiam-se a este fenómeno como o «espectro que vagueia pelo mundo», isto é, um fenómeno global que atravessa diferentes épocas históricas e que pode emergir em países muito distintos do ponto de vista do regime político e das características económicas e sociais. Nunca como hoje esta consideração podia ser mais atual, se considerarmos não apenas a relevância dada a este fenómeno pelos meios de comunicação social, como a atenção dada pelo mundo académico1.
É notória a ambiguidade e a natureza fluida do conceito de populismo. Existem vários contributos que fazem uma revisão histórica e teórica deste conceito, evidenciando a dificuldade de encontrar propriedades comuns que permitam utilizar esta noção em diferentes épocas históricas e geográficas. Através do contributo essencial de vários autores2, é possível identificar algumas dimensões relevantes que constituem o «mínimo denominador comum» do conceito. Porém, a literatura apresenta ainda profundas divergências quanto à abordagem (ou perspetiva) a utilizar para o estudo do populismo.
Em primeiro lugar, o populismo foi considerado como uma ideologia, como um conjunto de valores ou uma visão de mundo que coloca no seu centro a ideia de povo3. A matriz ideológica do populismo considera o povo, enquanto objeto e sujeito da democracia, uma comunidade homogénea e «pura», uma entidade orgânica que possui apenas virtudes, como a incorruptibilidade e o bom senso. Esta visão do mundo implica a contraposição entre povo e oligarquia, constituída por uma elite corrupta e por instituições representativas (in primis partidos políticos) que são culpados de deturpar o bem público. Mas esta tentativa de definir o populismo através da ideologia encontra limites evidentes na ambiguidade que está por trás do conceito de «povo». Ou seja, a definição do populismo acaba por variar em função da noção de povo. Por isso alguns autores - em particular Mudde - preferem considerar o populismo como uma ideologia de baixa intensidade baseada essencialmente na contraposição dicotómica entre povo e elite.
Outra abordagem utilizada para o estudo do populismo está relacionada com o estilo de comunicação e na retórica utilizada na esfera política4. Deste ponto de vista, o fenómeno populista tem como objetivo apelar aos sentimentos para mobilizar os cidadãos, mais do que construir um discurso coerente e sistemático que evidencia os pontos de força (ou as fraquezas) de uma plataforma política. O populismo como abordagem comunicativa começa normalmente com a demonização do adversário, para depois enfatizar a mudança ou a revolução necessária para devolver a soberania ao povo. Finalmente, há uma identificação direta com o líder, através da simplificação da linguagem e da convergência entre o povo e o seu porta-voz, capaz de representar as qualidades da comunidade que representa. Uma implicação importante desta situação é que a retórica populista se apresenta como universal, reduzindo ou eliminando todo o espaço do pluralismo e do debate político. Este estilo tem sido reforçado através do uso das redes sociais, que facilitam as mensagens diretas e simplistas, em detrimento do raciocínio, da deliberação e da dialética.
A terceira abordagem utilizada para o estudo do populismo centra-se na organização e no tipo de liderança5. Embora possam existir diferentes tipos de fórmulas de liderança (mais ou menos colegial), o fenómeno populista está associado à presença de um líder forte e reconhecido. Um dos traços típicos do líder populista é o facto de ser considerado como um outsider, isto é, um elemento que não pertence à elite política, ou porque foi excluído ou porque não pertence ao mundo político «contaminado». Estes líderes emergem num forte contexto de personalização da política, que incentiva a estruturar as forças populistas - normalmente um partido ou movimento - a partir do próprio líder. Neste sentido, o líder constrói laços diretos e imediatos com a sua base de apoio, evitando a utilização de estruturas intermédias e uma burocracia rígida e profissionalizada. Esta estratégia e forma de organização facilita um estilo político baseado na simplificação dos problemas, na linguagem direta e comportamentos «espontâneos», que enaltecem o líder populista como o «porta-voz» natural desta comunidade homogénea e orgânica.
Obviamente, cada uma destas dimensões não é suficiente para qualificar per se um partido populista6. Quando os três aspetos estão presentes ao mesmo tempo, podemos então estar perante um partido populista num sentido mais restrito do termo. Na prática, no entanto, existe uma variedade de populismos, que assumem características distintas sobretudo a partir da diferente noção de povo. Recentemente, considerando sobretudo a articulação entre populismo e nacionalismo, Mudde e Kaltwasser distinguiram entre populismo exclusivo e inclusivo7. O populismo exclusivo pretende marginalizar grupos específicos em termos socioeconómicos, culturais ou étnicos. O segundo tipo de populismo, por outro lado, é situado principalmente no espectro ideológico da esquerda e enfatiza a igualdade, o reforço da participação política das classes mais baixas e uma maior integração dos grupos que permanecem excluídos do sistema político (pobres, minorias étnicas, imigrantes, etc.).
É oportuno evidenciar que a emergência do fenómeno populista não é recente, mas assume maior visibilidade e força a partir dos anos 1980. Deste ponto de vista, o populismo é consequência de dois fenómenos macro que afetam as democracias ocidentais. O primeiro diz respeito à crise das instituições representativas e ao «esvaziamento» dos partidos políticos, que têm favorecido uma crescente personalização do poder político e uma ligação direta entre líderes e eleitores. O segundo macrofenómeno que tem alterado de forma estrutural as sociedades mais desenvolvidas é a globalização e, no contexto da Europa, o processo de integração. Estas transformações têm alterado os sistemas do Estado-Providência, têm reforçado a desregulamentação do setor industrial (deslocalização) e têm favorecido os fluxos migratórios, levando a um crescente esvaziamento do princípio de soberania nacional.
Um dos aspetos centrais do debate recente acerca do populismo é a tentativa de identificar as causas que explicam o maior ou menor sucesso das forças populistas. Embora esta introdução não tenha como objetivo examinar esta extensa literatura, é oportuno evidenciar a associação entre o surgimento do fenómeno populista e a presença de uma crise, na esfera económica, política ou cultural8. Em primeiro lugar, as forças populistas beneficiam do contexto de diminuição da riqueza, perdas de emprego, redução dos apoios sociais. Esta situação determina um sentido de insegurança e incerteza, que se reflete nas preferências de voto dos eleitores. Em segundo lugar, o populismo está associado à progressiva perda de representatividade dos partidos e das instituições. Os sujeitos mais afetados por esta crise política são sem dúvida os partidos de governo, as forças moderadas, que são muitas vezes acusados de procurar apenas a própria reeleição e de não defenderem o interesse geral, constituindo uma «casta» que procura conquistar e manter o poder político. Por último, mas não menos importante, o populismo emerge a partir de uma crise cultural, que se manifesta na Europa através da crescente importância da clivagem multiculturalismo vs nacionalismo. As sucessivas vagas migratórias que se verificaram sobretudo a partir dos anos 1990 reforçaram a retórica «exclusiva» e nacionalista dos partidos populistas. Estas mudanças abruptas das sociedades refletem-se na crescente desconfiança interpessoal, na importância do tema da segurança e na perceção dos imigrantes como o «inimigo» responsável por todos os problemas e a fonte principal do mal-estar das sociedades.
As três crises emergiram no contexto europeu através de características e dinâmicas diferentes. Em particular, a intensidade e o tipo de crise têm variado de forma muito significativa de país para país. A crise política tem afetado principalmente os países da Europa Ocidental, enquanto a crise económica tem tido um impacto significativo sobretudo nos países periféricos, e em particular da Europa do Sul9. Finalmente, a crise migratória tem emergido com mais força nos países com maior taxa de desenvolvimento, embora tenha sido uma crise transversal mais ou menos generalizada.
É relativamente consensual o facto de o sucesso do populismo estar associado às crises e a sentimentos de insegurança e medo. No entanto, para individuar as circunstâncias específicas que favorecem a emergência ou o desaparecimento dos populismos em contextos nacionais específicos e em determinadas épocas é necessária uma análise própria da ciência política e da história. A insatisfação e reivindicações de determinados grupos sociais e a politização de novas clivagens contribuíram para fomentar o fenómeno do populismo. Contudo, igualmente importante é a capacidade das forças políticas, sobretudo os partidos de governo «tradicionais», mais ou menos ortodoxas, de reagir às instâncias populistas, incorporando na própria oferta política slogans ou programas típicos dos populistas. Mas a ascensão dos partidos populistas também está muitas vezes associada a circunstâncias específicas, isto é, janelas de oportunidade que se abriram em determinadas realidades nacionais, como escândalos ou casos de corrupção, ou a visibilidade que novos líderes ganharam através de plataformas mediáticas.
Para além do sucesso eleitoral dos partidos populistas, a última década testemunhou duas importantes mudanças qualitativas. A primeira consiste na passagem das forças populistas da oposição para posições de governo. Embora este processo tenha começado em 2000, com a entrada no Governo austríaco do Partido da Liberdade, na última década houve vários países caracterizados por esta mudança. A segunda novidade que é importante registar é a emergência, na Europa, dos partidos populistas associados à variante de esquerda, ou seja, partidos populistas «inclusivos», que tiveram origem principalmente como consequência da Grande Recessão, caso do Syriza na Grécia ou do Podemos na Espanha.
Como se enquadra o caso português no âmbito do crescente sucesso das forças populistas? Ao contrário de outros países afetados pela crise económica, as novas forças políticas que surgiram em Portugal depois de 2008 não conseguiram alterar de forma significativa as características e dinâmicas do sistema partidário10. De facto, são sobretudo os partidos de esquerda que têm procurado captar o descontentamento e a insatisfação dos cidadãos em relação aos atores políticos e às políticas implementadas. O Bloco de Esquerda e o Partido Comunista Português introduziram na sua estratégia discursiva alguns elementos típicos do populismo, mas, mesmo assim, o nível de populismo ficou abaixo dos «novos» partidos da esquerda radical11. Contudo, nas eleições de 2019 houve a emergência de um novo partido populista da extrema-direita, o Chega, que conseguiu eleger um deputado para a Assembleia da República. Embora o resultado eleitoral tenha sido pouco expressivo (1,29% de votos), sobretudo quando comparado com outras forças políticas semelhantes, este facto constitui uma novidade no panorama político português12.
Este número temático tem dois objetivos principais. O primeiro é examinar a interação entre populismo e as arenas eleitoral e mediática, duas dimensões fundamentais para proporcionar as condições estruturais da emergência e sucesso do populismo. Este é um aspeto crucial para perceber até que ponto este fenómeno está destinado a durar e não pode ser considerado apenas uma patologia das democracias contemporâneas. O segundo objetivo prende-se com a análise do caso português e procura aprofundar algumas especificidades do país à luz de outras experiências europeias. O facto de Portugal não ter sido, pelo menos até agora, terreno fértil para a emergência de atores populistas não significa que este caso não possa contribuir para um debate mais geral sobre o populismo. Deste ponto de vista, os ensaios incluídos neste volume não oferecem apenas um contributo para qualificar melhor as variantes do populismo, como elaboram e desenvolvem novos argumentos para interpretar o fenómeno populista e a sua interação com outras esferas do sistema político (no campo económico, cultural ou social).
O primeiro artigo deste número, de Carla Luís, considera a interação entre populismo e a qualidade do processo eleitoral. Recentemente, a emergência de forças ou líderes populistas tem sido associada à erosão da integridade eleitoral, não apenas no contexto de novas democracias, mas também em democracias consolidadas. Como demonstra o caso das eleições presidenciais americanas de 202013, a crítica que os populistas levantam em relação aos procedimentos formais da democracia representativa enfraquece a legitimidade eleitoral e a confiança dos cidadãos nas eleições enquanto instrumento essencial para a representação política. Além disso, a crescente utilização das redes sociais e outras plataformas digitais, potenciada pelo contexto da pandemia, permitem estabelecer mais facilmente uma ligação direta entre o eleitorado e atores populistas, na ausência de uma regulação que possa controlar e sancionar eventuais abusos, injustiças ou ilegalidades. Esta é uma questão central na análise do fenómeno populista, sobretudo quando se trata de avaliar as implicações - negativas ou positivas - para a qualidade da democracia.
O ensaio de Rita Figueiras aborda a estrita relação entre média e o fenómeno populista. O argumento principal é que o estilo populista é particularmente favorável a atrair visibilidade mediática, reproduzindo um tipo de comunicação mais simples, direta e facilmente reproduzível em diferentes plataformas. Neste sentido, os novos e velhos meios de comunicação constituem plataformas particularmente favoráveis para transmitir a oferta populista, através de um processo circular e multidimensional baseado na interação constante de diferentes tipos de atores e veículos de comunicação. O artigo de Rita Figueiras oferece uma reflexão extremamente interessante acerca da complexa interligação entre média e política, assim como das diferentes lógicas entre os meios tradicionais de comunicação e as novas ferramentas. Apesar de as redes sociais contribuírem para a crescente polarização e fomentarem as ligações diretas entre os líderes populistas e os eleitores, ainda não sabemos até que ponto as novas tecnologias digitais potenciam o desempenho das forças populistas. Além disso, seria interessante explorar em investigações futuras o impacto da cultura política sobre os sistemas de comunicação política e a maior ou menor relevância da retórica populista.
O sucesso do discurso populista depende também da forma como uma certa visão do mundo ou ideias são construídas do ponto de vista histórico ou social. É neste tipo de abordagem que se insere o contributo de Luca Manucci, cujo artigo foca no legado do regime autoritário na Península Ibérica para explicar as distintas trajetórias dos novos partidos populistas de extrema-direita. Enquanto na Espanha o partido Vox conseguiu obter resultados significativos e contribuiu para a crise do bipartidarismo, em Portugal o Chega registou até agora resultados mais fracos e os partidos tradicionais têm manifestado uma maior resiliência. Segundo o autor, para explicar as diferentes trajetórias é fundamental considerar o distinto percurso da democratização nos dois países e a forma como a memória coletiva emergiu e evoluiu ao longo do período democrático.
O contributo de José Santana Pereira insere-se na crescente importância atribuída às atitudes políticas populistas para determinar o sucesso das forças populistas e as variações entre países distintos14. Esta é uma área extremamente importante porque permite associar o lado da procura à oferta populista. Neste sentido, o caso português é particularmente interessante porque permite analisar atitudes e comportamentos populistas num contexto partidário caracterizado pela falta de mobilização destas reivindicações por parte das forças políticas. Utilizando dados de inquéritos baseados numa amostra representativa da população portuguesa, o artigo de José Santana Pereira explora a relação entre atitudes populistas e padrões de participação política de tipo convencional e não convencional. Os resultados sugerem que os indivíduos com atitudes mais populistas tendem a ter níveis mais elevados de participação convencional, bem como ações de protesto não violentas (exemplo: manifestações, assinatura de petições, abaixo-assinados ou boicotes de produtos). Estes resultados preliminares oferecem também a oportunidade de comparar o caso português com outras realidades. Contudo, seria interessante no futuro perceber melhor a origem destas atitudes populistas, assim como a relação com condições estruturais e as características do sistema partidário.