Contexto estratégico e fatores condicionantes essenciais.
O desgaste dos Estados Unidos
Vários fatores conduziram à complexa e perigosa situação atual e condicionarão substancialmente o nosso futuro coletivo. O mais visível é o esgotamento do «momento unipolar», associado a um profundo desgaste dos Estados Unidos.
Desde há três décadas que os Estados Unidos têm vindo a assumir custos significativos para garantir o acesso aos bens comuns da humanidade e nomeadamente a liberdade de circulação marítima e aérea, essencial ao comércio internacional. Naturalmente que com benefícios próprios, mas com usufruto geral.
O seu instrumento militar tem vindo a ser reiterada e sistematicamente usado em múltiplas intervenções. O colapso do Bloco de Leste e o refluxo estratégico da União Soviética que se lhe seguiu, deixaram vastos espaços vazios onde irromperam conflitos que a contenção bipolar tinha congelado, mas não resolvido. Gerou-se o arco das crises violentas da década de 1990 desde a Argélia, ao Egito, aos Balcãs Ocidentais que ameaçaram a estabilidade da Europa e que esta não conseguiu resolver. Apesar de alguma relutância inicial, os Estados Unidos dirigiram a ação diplomática na Bósnia-Herzegovina que levou ao Acordo de Dayton e, no quadro da NATO, intervieram com forças volumosas para o implementar.
Perdido o inimigo e razão de ser da Aliança, a necessidade da sua ação fora de área foi em geral defendida (em que se destaca a voz do senador Lugar) para que a Aliança fosse útil e não ficasse sem propósito. E foi sobretudo pela iniciativa e envolvimento americano que a NATO desencadeou, nos limites do juridicamente aceitável, a intervenção aérea sobre a Sérvia a propósito da sua intervenção no Kosovo.
Na realidade, o final do século passado, que se julgava o prenúncio de uma «nova ordem mundial» estribada na ONU, continuou marcado por múltiplas intervenções dos Estados Unidos. Kissinger interrogava-se em 2001 se a América não estava a necessitar de uma política externa2 coerente, perante essas intervenções sem plano ou estratégia preconcebida. Notava já nessa altura o distanciamento crescente entre as margens do Atlântico. Kissinger valorizava sobremaneira este espaço que tinha na base valores históricos e culturais comuns e cujo secular relacionamento suscitava o desenvolvimento de uma «comunidade de destino» que pressentia em deriva, mas que devia ser salvaguardada. Para isso considerava indispensável a criação de um «Steering Committee»3 agrupando, no fundo, todos os países europeus, os Estados Unidos e o Canadá, que fosse o gerador de um diálogo político aprofundado e agregador. Propunha ainda o estabelecimento de um espaço económico comum muito ao modo do que poderia ter sido a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP). Por tudo o que sabemos hoje, julgamos ainda mais relevante a proposta de Kissinger face ao contexto futuro previsível e consideramos existirem condições que, cada vez mais, a recomendam, como explicaremos adiante.
O 11 de Setembro veio demonstrar a vulnerabilidade dos Estados Unidos. Atacados no seu território respondem com a guerra ao terror e pendor unilateralista para descobrir o «paradoxo do poder americano» que, inigualável em capacidades, não pôde impor a ordem no novo mundo de ameaças transnacionais e assimétricas. Seguem-se as mais longas intervenções externas dos Estados Unidos no Afeganistão, novamente no Iraque e na Síria, entre outras, que levaram a um desgaste humano, moral, económico e social muito profundo.
Os custos financeiros, apenas no período pós-11 de setembro, atingem já, segundo o Watson Institute4, a soma de 6,4 triliões de USD, o que num cômputo contabilístico corresponde, grosso modo, a duas Rotas da Seda. Só que com consequências opostas. A Rota da Seda está, na prática, a reformular o quadro relacional económico global liderado pela China. As intervenções americanas podem acabar sem lustre nem glória para os Estados Unidos e nas mãos da Rússia, da Turquia ou do Irão, que vêm surgindo como os promotores da paz e sobretudo da estabilidade na região.
Com dívidas externas crescentes, um desgaste anímico profundo e uma sociedade muito dividida em que a classe média se sente esquecida, a América necessita agora do seu tempo de recuperação. Já Obama, em 2016, longe de continuar a pretender afirmar os Estados Unidos como a «nação indispensável» no mundo, via que era chegada a necessidade da reconstrução da identidade nacional do seu próprio país.
A ascensão da China em parceria com a Rússia
A relação Estados Unidos-China estará seguramente no centro da geopolítica mundial no presente século. A perceção comum é de que a ascensão contínua da China está a alterar o equilíbrio da ordem mundial. A que acresce o facto de se efetuar em parceria cada vez mais estreita com a Rússia, o que limita as opções para equilibrar o cenário geopolítico mundial.
A aproximação entre a China e a Rússia iniciou-se em 1996. A Rússia em debacle económico e a sentir-se traída pela falta do apoio ocidental, aproximou-se da China revertendo as desinteligências que vinham desde Mao. A China estava mais do que pronta. Sabia do «milagre estratégico» dos recursos naturais e energéticos da Ásia Central postos a descoberto com o colapso da URSS e independência dos países locais, mas tinha problemas de fronteiras com quase todos. Para os resolver e se aproximar dos tão almejados recursos necessitava da colaboração da Rússia que mantinha importantes investimentos e muita influência local. Foi neste contexto de parceria5 que a China resolveu todos os problemas de fronteiras e constituiu a Organização de Cooperação de Xangai, exclusiva para os países asiáticos, que hoje envolve quase metade da população mundial. Foi este também o ponto de partida para a nova Rota da Seda que permite o acesso por terra não só às reservas da Ásia Central, mas também aos centros de consumo e produção da Europa e do Médio Oriente, reduzindo substancialmente os custos de transporte e os prazos de resposta. Ao mesmo tempo diminui drasticamente a sua dependência, até aí total, da circulação pelo estreito de Malaca e, de caminho, permite usar os excedentes industriais e empresariais redundantes face à redução da procura internacional.
Se o crescimento económico da China era palatável ou mesmo considerado premissa para o estabelecimento de uma sociedade mais aberta e livre, o facto é que, ao contrário, se deu o reforço exclusivista e autoritário do Partido Comunista Chinês (PCC) que, numa leitura determinista da história, tem afirmado a crença na decadência irreversível do Ocidente nomeadamente desde a crise de 2008 e na modernização da China como uma tendência inevitável da história. A afirmação pública do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês na Conferência de Segurança de Munique em 15 de Fevereiro deste ano, a respeito da reação à crise da covid-19, de que a «velocidade, escala e eficiência demonstram em conjunto as potencialidades do sistema chinês»6 não só atesta que, já nessa altura, a narrativa de resposta à crise estava estabelecida, como reflete a assunção de uma postura de competição ideológica crescentemente servida por meios de propaganda poderosos e, quando necessário, pelo condicionamento interno, pressão e coerção para ultrapassar atitudes menos cooperativas, o que tem sido vastamente denunciado7.
Mas a sua afirmação tem vindo a estender-se à área estratégica de forma evidente. Tradicionalmente organizadas em ramos bastante autónomos em que a supremacia das forças terrestres era determinante, as Forças Armadas chinesas foram restruturadas segundo o modelo mais operacional de armas combinadas e de um reforço constante e de facto transformativo da sua capacidade naval. No Congresso do PCC de 2012 Hu Jintao pedia que a China se transformasse num «poder marítimo», o que representa uma mudança estratégica ao arrepio da história do Império do Meio, assumidamente continental. Em 2018 o Presidente Xi Jinping reiterou esta posição introduzindo-lhe a noção de premência: «a tarefa de construir uma marinha poderosa nunca foi tão urgente como é hoje na China»8.
O ano de 2019 marcou uma alteração quantitativa de profundo efeito psicológico e demonstrativo. A Marinha chinesa ultrapassou a marca dos 300 vasos de guerra, tendo ultrapassado os Estados Unidos9. Um desfile naval cuidadosamente coreografado e presidido pelo Presidente Xi Jinping foi difundido ao mundo. Claro que está longe da tonelagem, capacidade operacional e de projeção de poder dos Estados Unidos, mas passou a ter, pela primeira vez na história moderna, mais capacidade de «ocupação» do espaço marítimo. E o desenvolvimento de mísseis sofisticados antinavio e antiacesso coloca desafios mortais aos porta-aviões americanos. Só entre 2014 e 2018 a China lançou mais submarinos, navios de linha, anfíbios e auxiliares que o total de navios em serviço nas marinhas da Alemanha, da Índia, da Espanha e do Reino Unido. Se a produção dos sete estaleiros navais destinados à marinha de guerra se mantiver, a China pode efetivamente alcançar os milhares de navios de guerra previstos para meados do século.
A atuação operacional naval da China também tem sido desconcertante. Iniciou desde 2015 a realização de exercícios navais conjuntos com a Rússia, tendo vindo a aproximar-se do Ocidente. Em 2017 atuou em águas sensíveis onde nunca tinham atuado em conjunto, nomeadamente no Báltico e no mar de Okhotsk a norte das ilhas japonesas de Hokkaido, tendo no mesmo ano efetuado exercícios conjuntos no Mediterrâneo com a realização de fogos reais. E, mais significativamente, em dezembro de 2019 participou num exercício naval conjunto com a Rússia e o Irão no golfo de Ormuz e no Índico, num momento particularmente sensível nessa região crítica. A imprensa iraniana considerou-os o «novo triângulo do poder no mar»10.
O reposicionamento global da NATO
O mais fundamental desafio à NATO de hoje diz respeito à redefinição do seu propósito. A missão de defesa perante a Rússia parece curta para empenhar os Estados Unidos, quando é a China que está a emergir, a condicionar o rumo global e a redefinir as relações do futuro. Mas também não parece ser pela ameaça pública à China que se estimula a valorização política da NATO, considerando-se que, ao contrário, o essencial é um trabalho discreto de alinhamento de interesses entre os dois lados do Atlântico que o atual contexto geoestratégico indubitavelmente recomenda.
O que arguimos, portanto, neste texto é o regresso ao espírito do Harmel Report11 e do dual track12 que, colocando a defesa firme e a dissuasão no centro da postura estratégica da Aliança, abriu caminho à possibilidade de diálogo político, à détente e a uma abordagem mais cooperativa nos assuntos de segurança com a Rússia.
A NATO de hoje necessita de ser reposicionada no palco mundial para cumprir a sua missão. Mas para isso é essencial reconstruir a unidade transatlântica, o nosso centro de gravidade, o que passará pela densificação das relações mútuas. O que parece difícil se não for sustentada em interesses contemporâneos partilhados e apoiada por uma estrutura própria e permanente (tipo «Steering Committee») que permita a análise dos interesses políticos comuns e o alinhamento das orientações que preservem a unidade das democracias. É fundamental não esquecer que Portugal, excêntrico na Europa, é central na NATO e no Atlântico. Daí que se alguém tem interesse em expressar essa necessidade, esse país é Portugal.
O reforço do laço transatlântico numa NATO mais central
Parece estarmos atualmente a caminhar de olhos fechados para a repetição trágica da história. Graham Allison13 afirma que o desafio maior para esta geração é o de evitar que a China e os Estados Unidos caiam na «armadilha de Tucídides». Segundo ele, a guerra foi o resultado final em 12 dos 16 casos em que, durante os últimos quinhentos anos, um poder ascendente desafiou a posição do Estado dominante. O risco é grande e julgamos que o indispensável processo de gestão dos desacordos com a China deve ser desenvolvido em diálogo político estribado no reforço do laço transatlântico, que pode ser alargado aos Estados da parceria global da NATO como a Austrália, a Coreia do Sul ou o Japão. Sozinha, a Europa é hoje considerada apenas uma «área de competição» entre as grandes potências. Em conjunto com os Estados Unidos pode afirmar-se como um agente equilibrador, normativo e pacificador. Para os Estados Unidos, a Europa, pela sua participação real e efetiva na NATO, pode e deve ser um anteparo que lhe confira o espaço temporal para se recompor. Só essa função tem verdadeiro interesse geoestratégico para os Estados Unidos.
Mas isso implica sempre que a NATO não exija dos Estados Unidos o que é hoje genericamente considerado desequilibrado. Ou seja, que a Europa, com um PIB semelhante ao dos Estados Unidos, continue um anão militar e eternamente dependente. Sem que a Europa, enquanto pilar europeu da NATO, assuma maior responsabilidade na sua segurança, na capacidade que aporta à Aliança e na estabilidade periférica regional que inclui pelo menos o Sahel e o Médio Oriente, a NATO será sempre vista como um mau negócio. Cada vez mais vozes14 nos Estados Unidos consideram a NATO de importância menor face ao conceito inicial aprovado no Congresso americano em 1948, que considerava a «emergência de um poder hegemónico na Eurásia» como o motivo central para a constituição de uma aliança transatlântica. A Rússia de hoje é uma potência económica regional com um PIB semelhante ao da Itália, incapaz de efetuar a indispensável restruturação económica sem desfazer o regime. Só por si não justifica, para muitos americanos, o empenho substancial dos Estados Unidos.
O desafio de hoje que a NATO enfrenta não é, pois, o desinvestimento dos Estados Unidos, mas o da valorização do seu propósito, no momento de ascensão constante de uma China cada vez mais assertiva geopoliticamente. Aliás, a reação conjunta começa a desenhar-se. Em 6 de junho a Comissão Europeia denunciou pela primeira vez pública e nominalmente a China e a Rússia pela campanha de desinformação sobre a covid-19, que considerou destinada a debilitar as democracias ocidentais e a semear divisões internas numa atitude comparável à da guerra híbrida.
Nos Estados Unidos tem vindo a desenvolver-se uma aproximação bipartidária no Congresso sobre a necessidade de reagir à China, a que a Administração se juntou, eventualmente procurando marcar o terreno com a aprovação do United States Strategic Approach to the People’s Republic of China15 em maio de 2020.
É a primeira estratégia detalhada da Administração sobre a nova postura em relação à China. Dela importa evidenciar três aspetos. O mais importante é que, sendo uma estratégia mais robusta que o Strategic Outlook16 de março de 2019 da União Europeia (UE), é largamente compatível com este; não visa «conter» o desenvolvimento da China, nem afastar-se do povo chinês mas proteger os interesses vitais dos Estados Unidos e dos seu aliados e parceiros; adotará uma «aproximação competitiva» com base nas ações e intenções da China em que aceitará uma «maior tolerância à fricção bilateral»; e, finalmente, pretende estabelecer uma competição justa com a China, acolhendo a cooperação onde os interesses se alinhem. A questão preocupante é a de definir qual o limite para a fricção bilateral e até que ponto essa fricção não se torna degenerativa17.
É neste contexto que defendemos o reforço político da NATO. Com a criação de um órgão individualizado no Conselho do Atlântico, tal como na década de 1970 se constituiu o Comité dos Planos de Defesa para lidar especificamente com a questão nuclear quando a França se retirou da estrutura militar integrada. Hoje, quando se pretende reforçar a NATO politicamente, seria útil a formulação de um órgão novo no Conselho do Atlântico Norte, a que se poderia chamar Conselho de Análise Política para vincar o tom neutro, e que se situasse no nível de análise acima da racionalidade geoestratégica de base militar.
E, para que pudesse afirmar-se como uma aliança destinada a promover a segurança e a paz mundial, a NATO poderia mesmo conceber a constituição de um Conselho NATO-China, paralelo ao da NATO-Rússia. Colocar-se-ia, então, como a aliança central para o estabelecimento do diálogo político mundial no século XXI.
A Aliança não pode deixar de estar em constante adaptação ao mundo que a rodeia. No atual contexto estratégico a unificação da Eurásia está a processar-se no quadro da parceria China-Rússia. Pela sua desigualdade esta parceria tem sido motivo de preocupação em diversos setores russos. A reaproximação entre a NATO e a Rússia poderia ser vista de forma vantajosa quer pela NATO, quer pela Rússia. Tal aproximação estabilizadora poderia iniciar-se com um diálogo mais profundo sobre a segurança energética, terrorismo e no controlo do armamento, nomeadamente nuclear.
Esta postura de abertura política poderia ser também aproveitada para criar uma ponte de ligação à Organização de Cooperação de Xangai que integra, além da Rússia e da China, o Irão, a Índia, o Paquistão e outros importantes países da Ásia Central. Se o centro geopolítico se deslocou para oriente esta ligação é imperiosa. Depois, numa segunda fase, para lá da ligação poder-se ia pensar no estabelecimento do diálogo e da consulta política sistemáticos, criando-se uma estrutura em tudo semelhante ao Conselho NATO-Rússia. Ignorar esta organização é não estar a olhar para o futuro, deixar o espaço entregue à Rota da Seda e aceitar a asiatização da Eurásia. Para evitar isso e apresentar uma alternativa para a região, a UE aprovou no ano passado a sua «Nova Estratégia da UE para a Ásia Central».
Enquistar a Aliança numa postura circunscrita à defesa militar, é ignorar as novas formas de coação e a capacidade de intrusão no interior da «fortaleza» cuja resposta não pode deixar de ser política e multissetorial. Num século previsivelmente de grandes transformações políticas e militares, marcado pela crescente influência dos poderes autocráticos, torna-se capital reforçar a dupla natureza da NATO - na defesa das democracias aliadas, e na criação de um clima de estabilidade e confiança na integralidade do espaço euro-atlântico-asiático.
No quadro das relações transatlânticas julgamos ainda ser de destacar a mais importante relação bilateral do mundo, medida em termos de Investimento Direto Estrangeiro (ide). A UE e os Estados Unidos são os maiores parceiros económicos e, portanto, estruturais do mundo (mais de 70% do ide da Europa são afetados nos Estados Unidos18 e 60% do ide dos Estados Unidos são feitos na Europa19). A sua interligação tem vindo sucessivamente a crescer, envolvendo em 2018 o total de 3,6 triliões de USD e milhões de empregos. E, todavia, esta capacidade geoeconómica fundamental continua sem uma gestão política e é lembrada apenas pelas exceções que não correm bem. A valorização desta imensa capacidade geoeconómica, mais cedo do que tarde, tem de ser reequacionada.
Uma nova sistematização das relações NATO-UE
Fabrice Pothier diz parecer uma ironia que a NATO tenha recebido um novo sopro de vida por ter regressado à sua missão original: a defesa do território aliado. Há alguns anos pareceria improvável que fosse capaz de assumir as medidas de dissuasão perante a Rússia após a invasão da Ucrânia e maior assertividade militar nos países bálticos. Porém, a Aliança não só constituiu novas unidades multinacionais na periferia imediata da Rússia, como suscitou o regresso à Europa de unidades americanas de combate terrestre, a última das quais tinha abandonado o continente durante a Presidência de Obama. A Força de Reação Rápida da NATO quadruplicou, e a presença aérea e naval aliada nos mares Negro e Báltico não deixa margens para dúvidas quanto ao empenhamento pleno na defesa dos aliados, à luz do artigo V.
O «paradoxo» é que a resposta da NATO é dada sobretudo ao nível dos meios convencionais, enquanto a campanha russa (e chinesa) para dividir a Europa e a separar dos Estados Unidos decorre sobretudo na área da economia, da desinformação, da agitação social, do aliciamento de grupos e partidos políticos desalinhados, tudo elaborado numa bem orquestrada campanha híbrida em que as ações não militares têm um impacto determinante.
Esta realidade que a NATO e a UE vêm paralelamente denunciando, leva-nos a considerar que um novo nível de cooperação funcional entre elas é indispensável para que seja possível articular, na reação às ameaças de hoje, as capacidades únicas da Europa (políticas, económicas, jurídicas, assistenciais, militares e outras) com as clássicas (políticas, estratégicas e militares) da NATO.
Defendemos, pois, a necessidade de se conceberem Campanhas de Atuação Integrada quer para a reação às ameaças híbridas por natureza multissetoriais que a situação atual iniludivelmente recomenda, quer nas operações de gestão de crises externas em que a integração operacional harmoniosa das valências civis e militares se torna cada vez mais determinante. Essa integração na ação poderia ser efetuada quer por campanhas operacionalmente articuladas e conduzidas separadamente, quer por ações conjuntas e combinadas plenamente integradas. Julgamos que esta prática evitaria muitas das dificuldades e suspeições que emergem reiteradamente no inter-relacionamento entre a UE e a NATO.
O que em nada colidiria com a autonomia estratégica da UE que consideramos essencial para promover os seus legítimos interesses e sempre que a Aliança, como um todo, não se pretender empenhar. Nem deve afetar o processo de desenvolvimento de capacidades europeias no quadro específico da Cooperação Estruturada Permanente e do Fundo de Defesa, pois as carências europeias longamente identificadas têm de ser corrigidas.
O que nos leva à necessidade de uma vez por todas concretizar, na prática, a complementaridade e impedir a duplicação desnecessária de capacidades. O que passaria pela comunalidade de STANAG e STANREC20 como regra - sendo a exceção restrita às questões específicas da UE -, pelo desenvolvimento de sistemas de comunicações integrados ou integráveis e, sobretudo, por um processo de planeamento e geração de capacidades intimamente coordenado entre o «Processo de Planeamento de Defesa da NATO»21 e o processo de «Revisão Anual Coordenada de Defesa»22 da UE. O aprofundamento dessas relações passa também por uma maior partilha de informações e pela coordenação precoce de projetos de desenvolvimento de capacidades a promover entre a Divisão de Investimentos de Defesa da NATO e as correspondentes da UE, nomeadamente a recém-criada Direção-Geral para o Espaço e a Defesa da Europa. Parece igualmente importante criar-se um grupo de trabalho entre a Divisão de Investimentos da NATO, as correspondentes estruturas da UE e o setor privado ou público industrial, com vista à mitigação da duplicação de capacidades e implementação dos STANAG supracitados na indústria militar. Este grupo de trabalho teria como função facilitar a implementação de capacidades nacionais, especialmente aquelas partilhadas entre a NATO e a UE.
A coesão da aliança
A coesão da Aliança é o centro de gravidade vital para a NATO e tem de ser reforçada e esse reforço deve ter por base a facilidade com que a organização permite, à luz do próprio tratado, o reforço da consulta ao nível político, estratégico e tático.
Neste sentido, o aprofundamento da consensualização política e estratégica é extremamente importante em três grandes áreas: 1) no aumento ou alargamento da partilha de informações estratégicas; 2) no reforço do desenvolvimento de programas colaborativos e de smart defence23 e no aumento da interoperabilidade dos armamentos, sob direção do Conselho Executivo do Desenvolvimento de Capacidades de Defesa (CDEB)24 e politicamente gerido pela Conferência dos Diretores Nacionais de Armamento (CNAD)25; 3) na flexibilização da consulta política relativamente a novas questões de fundo estratégico-políticas como é o caso da defesa do ciberespaço e da primeira política do espaço da NATO, questão altamente sensível que carece de maior consulta política.
Durante este século o espaço e a sua proteção afirmar-se-ão fundamentais para a defesa dos Estados aliados. Não apenas devido aos inúmeros serviços e economias que do espaço dependem, nem somente ao crescimento de novos atores espaciais ou à nova normalidade do fácil acesso orbital que os privados proporcionam. Mas sobretudo devido à emergente e pouco explorada geoestratégia dos mecanismos orbitais, fundamental para: 1) proteger o acesso orbital através de trajetórias eficientes e seguras; 2) assegurar a correta sincronização das imagens estratégica, tática e operacional em suporte do comando e controlo, coordenação conjunta das operações, e das capacidades de inteligência, vigilância e reconhecimento das forças armadas em todos os domínios operacionais (terra, mar, ar e ciberespaço); 3) dissuadir os adversários de projetar força ou destruir a capacidade aliada neste «domínio dos domínios».
Aplicando as respetivas teorias de poder de Alfred T. Mahan - «Do Comando do Mar» -e de Halford Mackinder - «Das Ilhas Mundiais» - ao contexto espacial, podemos entender as graves implicações subjacentes à liberdade global, se uma nação não democrática alcançar o «controlo espacial» ou o monopólio dos recursos de acesso espacial. Segundo o axioma de Everett Dolman e Colin S. Gray, «aquele que controlar a baixa-órbita dominará o espaço-próximo da Terra. Aquele que controlar o espaço-próximo, dominará a Terra. Quem dominar a Terra determinará os destinos da humanidade»26.
Com o objetivo de preparar o futuro da defesa multidimensional, a NATO tem como desafio projetar e adaptar o seu planeamento e execução operacional às características únicas do domínio espacial. Deve também desenvolver técnicas, táticas e procedimentos necessários para o sucesso das missões no teatro operacional espacial especialmente degradado, disputado ou mesmo até negado. É para isso fundamental que os aliados trabalhem de forma voluntária e coordenada, partilhando informações, para que o processo de decisão política ocorra da forma mais célere e informada e para que a interoperabilidade espacial aliada possa ser uma meta atingível.
Nesta nova fronteira, a Aliança deve procurar assumir-se como líder, promovendo a criação de um conselho internacional que regulamente e monitorize de forma ativa a utilização do espaço e a sua militarização, assumindo como missão a defesa do livre acesso e usufruto do espaço enquanto «província da humanidade», como declarado em 1967 pelo Tratado do Espaço Exterior. No que diz respeito ao futuro das operações espaciais aliadas, Portugal deve avocar a centralidade do seu papel. Com uma geografia atlântica única, Portugal beneficia de condições ímpares para o rápido e estratégico acesso orbital aliado. A localização e segurança do arquipélago dos Açores, tal como a dimensão da plataforma continental portuguesa, proporcionam condições ótimas para a expansão de infraestruturas essenciais à criação de um centro (ou comando) de operações espaciais NATO. Em 2019 Portugal deu os primeiros passos neste sentido, ganhando a sua própria identidade espacial através da criação da sua agência espacial - Portugal Space -, com sede na ilha de Santa Maria e responsável por desenvolver as capacidades técnicas necessárias para a criação do primeiro porto espacial português.
Raros são os exemplos em que a NATO verdadeiramente adquiriu capacidades militares coletivas. Os seus 70 anos de história e múltiplas operações, demonstram que as nações são os principais patronos das capacidades militares aliadas. O futuro imediato das operações espaciais da NATO não deverá ser distinto do passado, e poderá passar pelo desenvolvimento nacional das diferentes capacidades-chave. Se este for o caso, abre-se uma janela de oportunidade estratégica para que Portugal se afirme ator na economia espacial militar de upstream e downstream27.
A constatação das novas ameaças levou a NATO a expandir este ano a Divisão de Desafios Emergentes, com a criação de uma nova unidade dedicada às inovações tecnológicas, que poderá ser o recetáculo da cooperação (NATO-UE) para o delineamento das opções dos novos sistemas a desenvolver.
A coesão da Aliança passa também pelo processo de decisão por consenso no Conselho do Atlântico Norte, enfatizando a coesão política e a determinação dos povos democráticos na procura da defesa dos interesses aliados. A política da «porta aberta» a novos Estados-Membros é também uma medida relevante para a contínua aproximação e coesão democrática da região do Atlântico Norte. A sua implementação deve, todavia, ser ponderada com grande sentido de oportunidade, para evitar fraturas internas. A nível estratégico, a coesão da NATO é reforçada pela implementação partilhada das medidas de dissuasão e pela participação ativa dos Estados-Membros nas operações aliadas e em exercícios conjuntos de alta visibilidade, bem como pela conduta sistemática e oportuna da Comunicação Estratégica baseada numa narrativa conjunta, descentralizada, mas não fraturada; a nível tático, a NATO deve manter esforços para incremento da interoperabilidade das capacidades entre Estados-Membros. Essa interoperabilidade, se bem que de natureza técnica, tem implicações estratégico-políticas e, por isso, está na base da coesão técnico-operacional e do bom funcionamento da Aliança. Em todo este processo a componente europeia da Aliança deve saber cativar e manter o interesse norte-americano na participação e inclusão.
A coesão e a resiliência da Aliança passam, como reiteradamente afirmámos,pela harmonização estratégica e cooperação funcional com a UE.
Preocupações securitárias com outros atores estatais e não estatais
Apesar dos conceitos de «abordagem compreensiva» e da visão 360º da segurança, as preocupações securitárias mais evidentes para a NATO estão refletidas nos últimos exercícios focados em «adversários quase-par» e em cenários onde o artigo v é ativado, nomeadamente na série dos exercícios Trident, mais concretamente: Juncture, Javelin e Jupiter I e II. Entendemos que apesar desta demonstração de preocupação que a realidade geoestratégica dita, a África, que constitui uma bomba demográfica permanente, e em particular a região do Sahel, está muito ignorada, sendo imperioso dar forte ênfase à estabilização desta região, uma das mais inseguras do mundo e na vizinhança próxima da Europa. Em detrimento da visão dos últimos anos, que reconhecia a necessidade estratégica de se articular uma atuação multissetorial e em larga escala na região, a preferência do foco estratégico da Aliança parece ter voltado para o espaço de batalha eurasiático, região para onde é quase total a mobilização dos esforços aliados.
Uma outra área a aprofundar está intimamente relacionada com a sua razão de ser,o espaço do Atlântico. Aqui, a NATO deve ter uma participação mais ativa para a segurança marítima e contribuir para a segurança energética e a proteção do ambiente, alargando a sua atuação à região do golfo da Guiné e, no possível, ao Atlântico Sul.
O desenvolvimento tecnológico e a incorporação de mais Inteligência Artificial (IA) nas atividades da Aliança devem ser estudados e enfatizados, havendo um vasto espaço de cooperação entre as diversas agências da Aliança, sobretudo da NCIA, NC3A HQ e da STO e, mais uma vez, de cooperação com a UE. No mesmo nível de importância encontra-se também a necessidade de criar e proteger os futuros conjuntos de dados militares, alicerces do ecossistema de ia, com múltiplas aplicações ao nível da modelagem e simulação de guerra.
A emergência e afirmação dos poderes autoritários no ciberespaço é já hoje tópico de discussão na NATO, e é certo que se tornará uma área de destaque nas próximas décadas. A China, a Rússia e alguns países do Médio Oriente utilizam a internet e o ciberespaço como ferramentas de controlo e de formatação de opiniões, atingindo os corações e as mentes a um baixíssimo custo. As lições aprendidas na Guerra do Vietname ainda estão vivas, e os aliados sabem que terão de agir coletivamente para proteger o espaço das perceções. A Aliança deve manter uma mais ativa e proativa comunicação estratégica e procurar uma narrativa que realmente chegue aos quase mil milhões de cidadãos do espaço euro-atlântico, denuncie a mentira e apoie efetivamente o combate a travar nesta frente.A NATO tem de continuar a garantir e a transmitir aos seus cidadãos a confiança na segurança que produz. «Transparência, fidelidade e verdade dos factos», são as regras de ouro a observar na «batalha da narrativa» contra a desinformação adversária.
Para proteger a liberdade, a democracia e o Estado de direito, é essencial que a América do Norte e a Europa adotem posições coletivas em resposta aos desafios da próxima década. Desde os mísseis hipersónicos, à computação quântica, passando pelos «enxames de drones», e encriptação blockchain, a NATO vê-se obrigada a transformar-se uma vez mais. O aquecimento global, os graves acidentes ambientais e as pandemias são agentes que podem fragilizar a coesão e a resiliência da Aliança, fraturando amizades e abrindo vulnerabilidades onde não deveriam existir. A NATO deve estar preparada para se reinventar, procurando mecanismos de intervenção multissetoriais, uma vez que a defesa coletiva é também expressão das contemporâneas necessidades políticas, sociais e económicas que hoje têm valores diferentes de 1949.
A variável do espaço físico e temporal sempre foi e será vital para os aliados, mas enquanto a China desenha planos estratégicos num horizonte temporal para lá de cem anos, a NATO, caracterizada pela sua pesada máquina institucional, planeia a três curtas velocidades: para o imediato, a quinze anos e para mais de trinta. Embora seja difícil planear coletivamente para mais de meio século, é ainda assim necessária uma reflexão séria sobre o comprometimento estratégico da NATO e dos seus aliados na proteção não apenas da integridade física das fronteiras nacionais, da sua herança histórica, mas sobretudo sobre a defesa de um futuro viável, livre e democrático.
Notas Conclusivas
Para manter a sua utilidade num contexto de profunda mutação, a NATO tem de se adaptar profundamente para continuar a ser necessária e relevante. Para isso deve assumir maior participação na promoção da estabilidade global, continuando alicerçada na permanente garantia da defesa dos aliados.
A cooperação entre as duas margens do Atlântico permanece vital e a potencialização da UE, num quadro de grande colaboração mútua, constitui uma garantia fundamental para o sucesso aliado. Num século marcado pela crescente afirmação de poderes autocráticos, torna-se capital reforçar a dupla natureza da NATO - na defesa política das democracias aliadas e na proteção da integralidade do espaço euro-atlântico.
A elevada sincronização entre as agressões no ciberespaço e a projeção de desinformação em massa, denunciam novas simbioses estratégicas características de guerras híbridas e conflitos de baixa intensidade exploratórios das vulnerabilidades das sociedades abertas, num princípio de guerra política não declarada. A comunicação estratégica oportuna e factual tornou-se central.
As presentes ameaças e as emergentes novas tecnologias disruptivas, exigem mais do que um simples reforço das políticas cardinais da Aliança. A modernização de processos, o espaço, a inteligência artificial e o domínio ciber serão competências fulcrais.