Introdução
No horizonte da quarta Presidência portuguesa do Conselho da União Europeia (UE) com início a 1 de janeiro de 2021, este artigo tem por objetivo revisitar o principal legado das presidências europeias de 1992, 2000 e 2007, no quadro específico da Política Externa e de Segurança Comum (PESC) e da Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD)1. Sendo estas duas políticas indissociáveis do processo de integração política europeia, visando a criação de uma verdadeira União Política, bem como do processo de afirmação da UE enquanto ator político e de segurança global, a análise desse legado contribuirá para uma caracterização mais nítida do empenhamento de Portugal nesses dois processos intercomunicantes, em torno dos quais também se reconfigurou o aprofundamento do projeto europeu pós-Guerra Fria. Os alicerces deste último foram lançados pelo pioneiro, ainda que incompleto e imperfeito, Tratado da UE, assinado em Maastricht, em fevereiro de 1992, no início da primeira Presidência portuguesa. A dinâmica de aprofundamento da construção europeia pós-1989 afigurou-se um imperativo histórico por força da reunificação pacífica da Alemanha e da subsequente necessidade de fortificar o seu compromisso com o processo de integração europeia, quer na esfera económica pela via da União Económica e Monetária (UEM), quer no domínio político através da criação da PESC enquanto pedra angular da futura União Política. No plano legal, essa dinâmica ficou patente nas sucessivas revisões do Tratado da UE, que deram lugar aos tratados de Amesterdão e de Nice assinados em 1997 e 2001, respetivamente, trazendo consigo exigências e desafios diversos aos Estados-Membros da UE.
Encontrando-se Portugal, na década de 1990, num período de amadurecimento da sua experiência como membro de pleno direito da UE e de afirmação como parceiro europeu credível num contexto de consolidação do seu modelo democrático de inserção internacional2, as autoridades nacionais procuraram responder às exigências e desafios pós-Tratado de Maastricht com a diligência e exemplaridade características de um «bom aluno»3. Esse papel que, desde cedo, ficou entranhado na identidade e estratégia europeia de Portugal, não deve ser dissociado da periferia política de Portugal (por referência ao eixo Paris-Bruxelas-Berlim) que os governantes nacionais procuraram continuamente superar através da participação do país na criação e/ou na linha avançada de novas políticas, instituições e estratégias comuns. Além disso, a condição de «bom aluno» provou encerrar uma lealdade implícita de Portugal à diretriz dimanante de Bruxelas em nome de uma imagem de respeitabilidade e credibilidade externas, algo que viria a condicionar várias decisões políticas ao longo de mais de trinta anos de trajetória comunitária4. Por exemplo, a decisão de integrar o grupo de países fundadores da UEM em 1999 (vésperas da segunda Presidência), em manifesto desalinhamento com a posição do Reino Unido, constituiu uma das expressões mais paradigmáticas do efeito condicionador do papel de «bom aluno» que as autoridades portuguesas se empenharam em cultivar desde 1986.
De resto, esse efeito condicionador acabou por induzir os governantes nacionais a procurarem ir além do proceder eminentemente reativo característico do «bom aluno» da UE por mostrarem determinação proativa de posicionar o país no «núcleo duro» do processo de construção europeia. Tal como António Guterres defendeu em várias ocasiões enquanto primeiro-ministro: «temos de estar sempre no centro de todos os aspetos do processo de construção europeia. Temos de tomar parte de todas as áreas consolidadas do processo de construção europeia, mesmo quando elas não atingem o conjunto do nosso continente, ou mesmo o conjunto da União Europeia»5.
É digno de nota que a busca da centralidade política no seio da UE através da inclusão de Portugal na vanguarda pioneira liderada pelo eixo franco-alemão, responsável pela dinamização da UEM e da criação do Espaço Schengen, desenvolveu-se sob a égide de um estável consenso político-partidário sobre a prioridade da «opção europeia» na estratégia externa nacional. Ainda mais importante para o argumento gizado neste estudo, tal ocorreu, igualmente, à medida que se intensificou a convicção de que a participação do país no processo de integração política europeia sob a égide da PESC deveria ser considerada parte integrante do interesse nacional. Afinal, essa participação funcionava como uma plataforma de empoderamento internacional do Portugal pós-imperial que procurava reinventar a sua capacidade de afirmação na arena internacional ao maximizar a sua glória e o seu pergaminho históricos enquanto potência global com presença secular em quatro continentes6.
Tal como atesta a literatura relevante sobre o tópico, as presidências do Conselho da UE, tal como funcionaram até à entrada em vigor do Tratado de Lisboa (2009), constituíram momentos de especial significado para a política externa e estratégia europeia dos Estados-Membros7. Em regime rotativo, durante seis meses, um Estado-Membro era investido de responsabilidade para assumir a dianteira dos principais dossiês da UE, alguns herdados de presidências anteriores, outros suscitados pela própria conjuntura europeia e internacional. Nesse período, a sua capacidade de liderança política e diplomática bem como o seu compromisso com a continuidade do projeto europeu eram testados; e ganhavam mais ou menos visibilidade e notoriedade. Ao mesmo tempo, existia uma ambição geral subjacente ao exercício da Presidência do Conselho da UE que se prendia com a vontade de deixar uma marca ou impressão digital nacional no processo de integração europeia, quer pelos esforços investidos no aprofundamento e alargamento do empreendimento comunitário, quer pela policy entrepeneurship no quadro da PESC em resultado da tónica colocada em certas áreas relacionadas com prioridades permanentes e vetores estratégicos específicos atinentes às políticas externas nacionais.
Apesar de a entrada em vigor do Tratado de Lisboa em 2009 ter transformado a Presidência do Conselho da UE num exercício presidencial que poderíamos chamar de «segunda ordem» ao criar o cargo de presidente do Conselho Europeu e estabelecer o Serviço Europeu para a Ação Externa liderado pelo alto representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança (que assume simultaneamente o cargo de vice-presidente da Comissão Europeia), a verdade é que a Presidência do Conselho da UE pós-2009 continuou a ser uma importante prerrogativa para os Estados-Membros, particularmente os de pequena dimensão. Em primeiro lugar, pelo seu efeito potenciador do status e do prestígio nacional decorrente desse exercício, que continuou a proporcionar circunstâncias de agenda setting potencialmente favoráveis à projeção de interesses e preferências nacionais. Em segundo lugar, por esta permanecer uma oportunidade de acesso privilegiado a múltiplos recursos (e. g., político-diplomáticos, económicos, institucionais e informacionais, entre outros) que permitem ao Estado que assume o exercício da Presidência ser mais proativo, criativo e convincente na demonstração do seu compromisso com o reforço e a vitalidade do processo de integração europeia. Por conseguinte, manteve-se a preocupação, de índole reputacional, com a realização de uma «boa Presidência»8, cujos efeitos e imagem de proficiência, eficiência e maturidade comunitária tendem a perdurar por ficarem registados quer nos anais da construção europeia, quer na história diplomática de cada Estado-Membro.
Na senda de trabalhos anteriores9, este artigo insere-se na literatura, ainda escassa, sobre a europeização de Portugal e, em particular, naquela que dá especial atenção à dimensão de uploading durante as presidências do Conselho da UE10. Essa dimensão compagina-se com a projeção de interesses, preferências e prioridades de política externa da ordem nacional para a esfera comunitária. Tal projeção, também conhecida por bottom-up, exige que os Estados sejam «empreendedores políticos» (policy entrepreneurs), no sentido de atuarem como agentes de mudança; ao contrário do que sucede durante o processo de downloading (ou top-down), durante o qual os Estados assumem uma postura mais passiva no processo de adaptação nacional às ideias, políticas e diretivas oriundas de Bruxelas11. Acresce que para o uploading ser aceite pelos restantes Estados-Membros e, portanto, producente, este deve ter por objetivo gerar valor acrescentado ou uma contribuição diferenciada, passível de beneficiar as políticas e instituições da UE como um todo12. Por outro lado, os Estados devem evitar adotar uma linha de ação eminentemente utilitarista, movida por interesses (nacionais) egoístas, que é incompatível com o adequado desempenho de um papel imparcial/neutral na supervisão da agenda de trabalhos da Presidência. Daí existir a preocupação por parte dos decisores de política externa de identificarem um desígnio e um argumentário europeus/comunitários na formulação de iniciativas inovadoras derivadas de preferências e prioridades nacionais que o Estado que exerce a Presidência pretende projetar no quadro da UE.
O presente estudo procurará analisar as presidências portuguesas do Conselho da UE, dando especial ênfase aos esforços das autoridades nacionais para promover o protagonismo global da UE como parte integrante de uma estratégia tendente a incrementar a relevância internacional do país, em diferentes momentos da sua trajetória europeia. Os esforços realizados no domínio da PESC/PESD visando a promoção da «Europa global» aqui examinados serão concatenados com dois eixos de ação. Por um lado, a dinamização de parcerias entre a UE e importantes atores internacionais (Estados e organizações internacionais), antes mesmo de a União ter começado a estruturar uma política de parcerias minimamente institucionalizada. Isso só viria a suceder após a aprovação da Estratégia Europeia de Segurança (EES), em 2003, com o reconhecimento de dez parceiros estratégicos13. Por outro lado, o envolvimento direto no processo de criação e desenvolvimento de uma capacidade militar autónoma da UE para responder a crises internacionais, o que permitiu à organização assumir maiores responsabilidades na promoção da paz e segurança internacionais em articulação com outros atores, tais como a NATO e a ONU. O foco analítico nesses dois eixos de ação permitirá corroborar a progressiva priorização do domínio da PESC/PESD e, por essa via, da dimensão política do processo de integração nas agendas das presidências portuguesas14.
Em virtude do seu período de análise, este artigo não entrará em linha de conta com acontecimentos críticos posteriores a 2007 que estiveram na origem da mais séria sucessão de crises desde os primórdios do processo de integração europeia. Remete-se aqui para a crise económica e financeira de 2008 que afetou especialmente as economias periféricas da zona euro; a crise nas relações UE-Rússia causada pela anexação da Crimeia em março de 2014; a crise dos refugiados que, em 2015, se transformou em crise humanitária; a crise de segurança resultante da multiplicação de ataques terroristas na Europa; a crise nas relações entre o Reino Unido e a UE, aberta pelo referendo britânico de junho de 2016, que teve por corolário a saída efetiva desse país da UE em janeiro de 2020; a crise nas relações transatlânticas originada pela linha de política externa errática e confrontacional - também em relação à UE - adotada pela Administração de Donald Trump; e, mais recentemente, a crise sanitária, económica e social provocada pelo surto pandémico de covid-19. De todo o modo, é plausível antecipar que o lastro criado pelo contexto de crise multinível que tem penalizado - e penaliza - diferentes domínios de ação da UE condicionará, de maneiras diversas, o exercício da quarta Presidência do Conselho da UE (janeiro-julho de 2021). Esta última será aflorada nas conclusões do presente estudo, tendo em vista a corroboração da sua linha de argumentação.
D’áquem e além-mar: as presidências portuguesas e as novas parcerias da União Europeia
Portugal assumiu a primeira Presidência da então Comunidade Europeia (CE) em janeiro de 1992 sob o lema «Rumo à União Europeia», sendo que no mês seguinte esta «União» seria formalizada com a assinatura do Tratado da União Europeia (ou Tratado de Maastricht) - o primeiro acordo comunitário em cuja feitura, negociação e processo decisório Portugal participou integralmente como Estado-Membro. O Tratado de Maastricht codificou a PESC, sucessora da Cooperação Política Europeia (CPE), tendo como propósito central a afirmação da UE enquanto ator coerente e influente nas relações internacionais. Tal inovação legal representou o corolário vitorioso do empenhamento franco-alemão, encabeçado pelo Presidente François Miterrand e pelo chanceler Helmut Khol, no quadro da conferência intergovernamental (CIG) sobre a União Política. Esta última teve início em dezembro de 1990, não coincidentemente, cerca de dois meses após a reunificação da Alemanha. Antes e durante essa CIG, os dois líderes europeus manifestaram séria preocupação com o papel internacional da CE no contexto de uma Europa em profunda transformação geopolítica, finda a Guerra Fria. A ainda CE era retratada como um anão político no plano internacional, algo que ficou evidente na omissão europeia na segunda Guerra do Golfo (1990-1991) e, ainda mais traumaticamente, durante a Guerra dos Balcãs.
Se quando Portugal solicitou a adesão ao projeto europeu, em 1977, a CE era um ator político quase irrelevante na arena mundial dominada pelo confronto político-ideológico e militar entre duas superpotências (i. e., os Estados Unidos e a União Soviética), dez anos depois, por altura da sua adesão à CE, a principal evolução digna de nota tinha sido a introdução da CPE no articulado do Ato Único Europeu. No entanto, os anos seguintes testemunhariam as enormes dificuldades da CPE para responder a crises internacionais e em dotar a CE de uma capacidade de agir enquanto entidade política unida, capaz de influenciar o curso dos principais eventos internacionais15. Por conseguinte, entre 1990 e 1991, adensou-se o consenso europeu sobre a necessidade de a futura UE aproveitar o espaço geopolítico que despontava no seguimento da reunificação da Alemanha, da Carta de Paris para uma Nova Europa, da reinvenção da nato e da desintegração da União Soviética para começar a desempenhar um papel efetivo na nova arquitetura de segurança europeia pós-Guerra Fria. O guião original para isso ficou delineado no Tratado de Maastricht no tocante à PESC; e foi objeto de materialização gradual nas décadas seguintes com o contributo tangível dos decisores de política externa nacional. Tendo estado at the creation de vários processos e iniciativas (de cariz institucional e operacional) no domínio da política externa, segurança e defesa europeia comum, estes procuraram, a seu tempo, colaborar na estruturação da componente militar da PESC.
Foi sob o pano de fundo histórico marcado pelo fim da Guerra Fria que, no âmbito da primeira Presidência do Conselho da UE, os governantes portugueses procuraram conciliar a procura ativa de protagonismo internacional pela UE sob os auspícios da PESC com a necessidade de afirmação do país a dois níveis: ao nível da sua vocação europeia, qual «bom aluno»; e ao nível da sua relevância internacional no seio do concerto comunitário, onde pontificavam as principais potências europeias com as quais Portugal tinha em comum um passado colonial (i. e., a França, o Reino Unido e a Alemanha). Daí que as autoridades nacionais, para além de terem procurado sinalizar, de forma inequívoca, a vontade de contribuírem para o processo de implementação do Tratado da UE (conforme espelhado no lema presidencial acima referido), identificaram «o reforço dos laços (da Comunidade) com o Mundo» como uma das prioridades da Presidência16.
O país tentava, desse modo, mitigar a sua condição de underdog decorrente de ser um Estado-Membro recém-chegado ao clube das prósperas democracias ocidentais; com pouca tradição de ligação aos centros políticos de decisão europeus; (RE)conhecido pelo seu passado de autoritarismo político, bem como obstinada e estigmatizante deriva unilateral em relação ao mainstream internacional no que toca à descolonização e defesa da autodeterminação dos povos. Tal condição desfavorecida tendia a ser acentuada pelos baixos níveis de desenvolvimento económico-social e tíbia modernização, criando uma situação de dependência dos chamados «cheques de Bruxelas», que se tornaram absolutamente indispensáveis para a convergência europeia de Portugal e a perspetiva de saída do país da chamada «cauda da Europa» - um lugar figurativo deveras desconfortável, a vários títulos, que gerava escolhos acrescidos à capacidade negocial das autoridades nacionais. A jusante, estar na «cauda da Europa» afetava a estratégia europeia de Portugal, como um todo, no sentido da sua aproximação aos países mais desenvolvidos em termos de nível de rendimentos, criação de empregos, crescimento em investigação e desenvolvimento, e padrões de inovação científica e tecnológica. Daí o exercício da Presidência de 1992 ter sido enformado, em larga medida, pela preocupação com a afirmação e a credibilidade externas de Portugal, da qual dependiam a demonstração de eficiência e a imparcialidade na concretização da primeira Presidência europeia17.
Tal como este artigo procurará dilucidar, a busca da relevância internacional do país através da promoção da «Europa global» não foi uma preocupação dos decisores de política externa nacional que despontou e se circunscreveu à primeira Presidência do Conselho da UE. Longe disso. Trata-se, antes, de um objetivo transversal às três presidências que se foi tornando cada vez mais pertinente para os governantes nacionais, ao passo que estes foram aprofundando a sua familiaridade com os meandros da máquina administrativa europeia e ganhando uma postura mais confiante e respeitada no processo decisório comunitário. Importantes consecuções materializadas na arena nacional com repercussão europeia e internacional, tais como a organização da Expo’98 e do Euro 2004, a entrada para a UEM mediante o cumprimento dos critérios de convergência e o papel vitorioso da diplomacia portuguesa na gestão do processo de autodeterminação de Timor-Leste, contribuíram para fortalecer a capacidade política e motivação das autoridades portuguesas para se posicionarem na linha da frente europeia demarcada pelas principais ambições da UE18. Saliente-se, contudo, que o objetivo associado à promoção da «Europa global» foi assumindo diferentes modalidades ou manifestações em função das possibilidades e constrangimentos inerentes à conjuntura europeia e ambiente estratégico internacional do momento. O mesmo pode ser dito em relação ao propósito de mitigar a condição de underdog face às dificuldades em alcançar a convergência nacional com os padrões económicos e sociais europeus, as quais se intensificaram com a entrada em funcionamento da zona euro, altura em que se começa a desenhar um período de divergência19.
Percecionando Portugal como um «elo natural» entre a Europa Ocidental e a América do Sul, durante a primeira Presidência as autoridades nacionais procuram fortalecer os laços da CE com o mundo, promovendo, com êxito, a inclusão da América Latina e do Brasil na agenda de política externa da UE20. Isso ficou patente na organização da 1.ª Cimeira UE-Mercosul e na assinatura de um acordo de cooperação de terceira geração com o Brasil: o Acordo-Quadro de Cooperação entre a Comunidade Económica Europeia e a República Federativa do Brasil21. A América Latina correspondia a uma área geográfica à qual Portugal estava ligado por profundos laços históricos e culturais; e, na perspetiva de Lisboa, era importante aproveitar a oportunidade da Presidência para inaugurar um processo de institucionalização de cooperação birregional. Nesse contexto, as relações com o Brasil assumiam particular significado. Com efeito, as relações diplomáticas com a maior ex-colónia portuguesa constituíam uma prioridade de política externa nacional que urgia ser reinventada em nome da história e da língua, num quadro de consolidação democrática de ambos os países. Estas também consubstanciavam uma importante valência político-diplomática que as autoridades nacionais pretendiam potenciar ao nível da UE, de modo a incrementar o prestígio e a relevância do país no plano europeu e internacional. No âmbito de um relacionamento mais estreito entre a UE e o Brasil, a língua portuguesa revestia-se de valor estratégico, ao mesmo tempo que concedia às autoridades nacionais uma vantagem comparativa e competitiva relativamente aos seus homólogos franceses, ingleses e, até mesmo, espanhóis22.
As relações entre os dois atores conheceriam um momento decisivo durante a terceira Presidência portuguesa, a 4 de julho de 2007, com a realização da 1.ª Cimeira UE-Brasil que lançou uma parceria estratégica compreensiva ao incluir o diálogo político ao mais alto nível em diversas áreas de interesse mútuo: a defesa do multilateralismo, a democracia e os direitos humanos; a promoção do desenvolvimento sustentável e a luta contra a pobreza; e a cooperação ambiental, energética e na esfera de segurança visando combater as ameaças à segurança internacional, incluindo o terrorismo transnacional. É ainda digno de nota que a declaração conjunta que lançou a parceria estratégica UE-Brasil sublinhou a importância atribuída pelos dois atores ao fortalecimento das relações entre a UE e o Mercosul, e o seu sério empenhamento na conclusão do Acordo de Associação UE-Mercosul23.
De novo, as autoridades portuguesas viram no mandato presidencial europeu uma plataforma oportuna para maximizarem o papel de mediador privilegiado que Portugal tinha assumido, desde 1992, entre a UE e o Brasil; e que ficara ainda mais pronunciado após a criação da Comunidade de Países de Língua Oficial Portuguesa (CPLP), sob a liderança luso-brasileira, em julho de 1996. Acresce que foi identificada uma janela de oportunidade concreta para gerar valor acrescentado: ao contrário do que já havia sucedido com outras potências regionais emergentes do bloco BRIC, designadamente a Rússia, a China e a Índia, que tinham sido reconhecidas como parceiros estratégicos na EES de 2003, a UE ainda não havia institucionalizado com o Brasil uma relação envolvendo a realização de cimeiras regulares bilaterais24. Na ótica dos governantes nacionais, tal lacuna configurava um caso de negligência que era imperioso ultrapassar25, em vista do papel proeminente que o Brasil desempenhava não só no contexto da América Latina, mas também como potência emergente que aspirava a conquistar um lugar cimeiro em importantes fora políticos, económicos e comerciais internacionais (e. g., ONU, Organização Mundial do Comércio, BRIC e IBSA).
Importa referir que a conjuntura prevalecente no primeiro semestre de 2007 afigurou-se propícia para Portugal promover a agenda euro-brasileira. A posição da Comissão Europeia liderada por Durão Barroso era altamente favorável ao estabelecimento de uma parceria estratégica entre a UE e o Brasil, tal como ficara evidenciado em dois documentos-chave publicados em maio de 2007, a saber, o Brazil Country Strategy Paper 2007-201326 e a «Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu e Conselho - Para uma Parceria Estratégia UE-Brasil». Neste segundo documento, a Comissão afirmava: «Chegou o momento de olhar para o Brasil como um parceiro estratégico, um actor económico de primeiro plano na América Latina e um líder regional.»27
Considerando a evolução deveras positiva das relações UE-Brasil no período entre 2007 e 201428, a qual redundou num aprofundamento da agenda brasileira da UE, podemos afirmar que no tocante ao processo dinâmico de estreitamento das relações entre estes dois atores, as autoridades portuguesas foram bem-sucedidas na prossecução do seu desígnio duplo. Em primeiro lugar, contribuir para a expansão da agenda da PESC pela inclusão do último país do (então) bloco BRIC com o qual a UE ainda não tinha fundado uma parceria estratégica. Em segundo lugar, valorizar a expertise do país no quadro comunitário, com todos os dividendos políticos e diplomáticos daí resultantes.
O contributo português para a promoção da «Europa global» ficou também patente na forma como as autoridades nacionais tiraram o máximo proveito do exercício da segunda Presidência europeia em 2000 para se destacarem como principais promotores de uma agenda africana mais ambiciosa no seio da UE, bem como do aprofundamento da cooperação entre esta última e África. Pese embora o enfoque africano cultivado pela diplomacia portuguesa já tivesse ficado sinalizado na primeira Presidência de 1992, nomeadamente na importância atribuída ao desenvolvimento de uma relação mais dinâmica com a região do Magrebe, tal enfoque tornou-se ainda mais saliente durante a segunda Presidência do Conselho da UE, quando os governantes nacionais apelaram à «redescoberta» do continente africano e tomaram a dianteira no lançamento de uma futura estratégia global europeia para África. Isso ficou visível na organização da primeira e histórica Cimeira UE-África realizada no Cairo, entre 3 e 4 de abril de 2000. Reunindo representantes provenientes de 58 Estados (45 africanos e 13 europeus), esse importante encontro foi pautado pela ambição de inaugurar «uma nova dimensão estratégica no relacionamento entre a Europa e a África no século XXI, num espírito de igualdade, respeito, parceria e cooperação»29. O compromisso político em torno dessa nova dimensão enquadradora das relações euro-africanas, que deveria incluir um diálogo político, relações económicas e sociais, e um rapport cultural, ficou selado mediante a adoção de uma declaração final e de um plano de ação que delineou o rumo para futuros desenvolvimentos. Sob o ímpeto e no espírito da Cimeira do Cairo, foi assinado em junho de 2000 um novo acordo de parceria entre os Estados de África, das Caraíbas e do Pacífico (ACP), a UE e os seus Estados-Membros - o Acordo de Cotonu - que substituiu a antiga Convenção de Lomé de 1975.
Em 2000, as autoridades portuguesas explicaram a importância de desenvolver um diálogo político abrangente com todos os Estados africanos à luz do intuito de «promover e maximizar a presença da Europa no Mundo»30. Existia também a convicção de que, em virtude da ampla afinidade histórica, cultural e linguística partilhada com muitos Estados da África Subsariana, a diplomacia portuguesa deveria funcionar «como motor da política externa da União Europeia em matéria de assuntos africanos»31. Em 2007, afinando-se pelo mesmo diapasão, a «cooperação estratégica entre a UE e África» foi identificada como uma prioridade da Presidência europeia com base no entendimento de que essa cooperação estratégica configurava, a montante, «uma prioridade da inteira União Europeia»32. Sete anos depois de a Cimeira do Cairo ter revigorado a parceria euro-africana, não tinha sido organizada outra reunião de alto nível similar. Na perspetiva dos governantes nacionais era imperioso corrigir essa omissão e Portugal era o país que reunia as melhores condições para o fazer33. Assim, estes empenharam-se em reintroduzir a prioridade africana na agenda da UE por meio da organização da 2.ª Cimeira UE-África em Lisboa, nos dias 8 e 9 de dezembro. Nessa ocasião, tendo por ambição política fomentar um novo nível de relacionamento entre as partes envolvidas, 80 líderes africanos e europeus apoiaram formalmente a criação da Parceria Estratégica UE-África e aprovaram a Estratégia Conjunta UE-África e o respetivo plano de ação para orientar a sua implementação. A nova estratégia identificou oito áreas prioritárias: a paz e segurança; a governação democrática e os direitos humanos; o comércio e a integração regional; os Objetivos de Desenvolvimento do Milénio; a energia; as alterações climáticas; a migração, a mobilidade e o emprego; e a ciência, sociedade da informação e espaço. Além disso, veiculou uma mudança de paradigma no relacionamento entre a UE e o continente africano, porquanto a anterior estratégia para África deu lugar a uma estratégia com África baseada numa «parceria entre iguais». A organização das duas primeiras cimeiras UE-África, no Cairo (2000) e em Lisboa (2007), que ficou indelevelmente associada ao sucesso das segunda e terceira presidências portuguesas do Conselho da UE34, cimentou o papel de Portugal no desenvolvimento da vocação africana da PESC e corroborou a sua especialidade em matérias atinentes a África. Por outro lado, patenteou uma estratégia bem-sucedida de uploading das relações de Portugal com África e «multilateralização dos interesses lusófonos» empreendida pelas autoridades nacionais, muito vantajosa para a consolidação da CPLP35 e do status global do país dentro e fora desta comunidade.
Ainda no continente africano, as autoridades portuguesas dedicaram particular desvelo ao processo político-diplomático conducente à aprovação de uma parceria inédita que representou um outro expressivo exemplo de uploading de preferências nacionais a nível comunitário; e também uma das principais consecuções externas alcançadas no exercício da terceira Presidência europeia. Trata-se da Parceria Especial UE-Cabo Verde assinada a 19 de novembro de 200736, a primeira e única até à data estabelecida entre a UE e um Estado do grupo ACP. Tal como sucedeu no caso da Parceria Estratégica UE-Brasil, Portugal desempenhou um papel determinante no reconhecimento de Cabo Verde como parceiro especial da UE, sendo certo que o processo conducente a esse reconhecimento deve ser entendido num quadro de relações de grande proximidade entre os dois países, não só nos domínios político-diplomático e comercial, mas também no âmbito da cooperação técnico-militar. Acresce que, também neste caso, a concertação e convergência políticas entre os governantes nacionais e a Comissão Europeia encabeçada por Durão Barroso foram cruciais para a concretização dessa parceria. A este respeito, assinale-se que os contornos da Parceria Especial UE-Cabo Verde centrada no reforço da «cooperação a nível político e nos domínios da segurança, da integração regional, da sociedade do conhecimento e da luta contra a pobreza»37 foram propostos na «Comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu, de 24 de outubro de 2007, sobre o futuro das relações entre a UE e a República de Cabo Verde». A partilha de laços históricos e valores fundamentais, a existência de preocupações comuns em matéria de segurança (por exemplo, luta contra o narcotráfico e imigração ilegal) e «o interesse crescente de Cabo Verde em aproximar-se da UE, e em especial das suas regiões ultraperiféricas (RUP) do Atlântico Norte (Açores, Madeira e Canárias)», justificaram o estabelecimento de uma parceria flexível porque ajustável «à evolução do país e das suas relações com a UE e os países terceiros». Com esta parceria, abria-se para Cabo Verde a possibilidade de «acesso ao mercado interno da UE» e a participação progressiva em «políticas e programas da UE»38 em apoio ao seu desenvolvimento económico, que estava prestes a entrar numa nova fase com a transição deste Estado insular para o «Grupo de Países de Rendimento Médio» (janeiro de 2008).
Do exposto, fica claro que a Presidência europeia de 2007 sob o lema «Uma Europa mais Forte para Um Mundo Melhor»39 redundou no reforço do papel de Portugal no desenvolvimento de novas parcerias estratégicas da UE e, em resultado disso, na extensão do alcance geográfico da PESC. Para além da criação de novas parcerias com o Brasil, Cabo Verde e África, Portugal contribuiu para a consolidação da parceria com a Índia, cuja primeira cimeira bilateral organizou em 2000. Deste modo, foi dada inequívoca evidência da estratégia (nacional) de colocar a secular vocação universalista do país ao serviço da crescente afirmação global da UE, de modo a colher daí dividendos sob a forma de mais prestígio e maior relevância internacional para Portugal.
Tal como foi aludido na introdução do presente artigo, as presidências portuguesas do Conselho da UE procuraram igualmente promover a «Europa global» mediante esforços envidados pelas autoridades nacionais no processo de capacitação militar da UE para responder a crises internacionais. Esses esforços dirigidos a incrementar a presença e o protagonismo da UE na arena internacional como ator político e de segurança ficaram visíveis em 2000 e 2007, após a criação da PESD e o lançamento da EES.
O contributo das presidências portuguesas para a capacitação da União Europeia como ator de segurança global
A segunda Presidência europeia foi precedida da aprovação formal da PESD, enquanto instrumento ao serviço da prossecução cabal dos objetivos da PESC, na Cimeira de Colónia, realizada em junho de 1999; e pelo início do seu processo de concetualização que apontava para a criação, até 2003, de um instrumento militar composto por 60 mil homens, tal como ficou estipulado no chamado «Objetivo Global de 2003», aprovado no Conselho Europeu de Helsínquia de dezembro de 1999. Desta última reunião resultou um mandato para a Presidência portuguesa («Follow-up for the Portuguese Presidency») abrangendo um conjunto de tarefas tendentes à institucionalização da PESD, esperando-se das autoridades nacionais a apresentação de um «Relatório de Progresso» sobre o reforço da componente europeia de segurança e defesa na Cimeira de Santa Maria da Feira, agendada para junho de 2000. Daí a PESC ter sido identificada nas linhas programáticas da Presidência europeia de 2000 como uma das seis dimensões prioritárias40. Sinalizava-se, desta forma, o compromisso das autoridades portuguesas com o desenvolvimento de uma capacidade operacional autónoma e credível da UE ao nível da gestão (militar e civil) de crises, no âmbito das chamadas «missões de Petersberg», que era considerada indispensável para a consolidação de uma política comum de segurança e defesa.
A circunstância de, no primeiro semestre de 2000, Portugal assumir, em simultâneo, a Presidência da União da Europa Ocidental (UEO) e ser membro fundador da Aliança Atlântica foi percebida como conferindo aos governantes nacionais «uma capacidade acrescida para o reforço da coerência da dimensão europeia de segurança e defesa»41. Isto porque, tal como tinha ficado antecipado na Declaração de Saint-Malo, a capacitação militar autónoma da UE para tomar decisões e levar a cabo operações militares em resposta a crises internacionais, «quando a nato como um todo não estiver envolvida», teria de desenvolver-se num quadro de respeito pelo primado da nato, ao passo que deveria contribuir para «a vitalidade de uma Aliança Atlântica modernizada que constitui o alicerce da defesa coletiva dos seus membros»42. Além disso, em linha com as conclusões do Conselho Europeu de Colónia de junho de 1999, perspetivava-se até final de 2000 «a definição das modalidades para a integração das funções da UEO» que seriam necessárias para a UE «desempenhar as suas novas responsabilidades na área das missões de Petersberg», sendo que a concretizar-se tal cenário de integração a UEO, como organização, teria atingido os seus objetivos43. A este propósito, com efeito, a coincidência temporal entre as presidências da UE e da UEO facilitou o progresso na transferência parcial das funções militares e recursos da UEO para a UE, tal como ficaria plasmado na declaração concludente da reunião do Conselho de Ministros da UEO que decorreu em maio de 2000, no Porto.
Entre janeiro e março de 2000, os representantes políticos e diplomáticos nacionais supervisionaram o processo conducente à criação e entrada em funcionamento dos órgãos interinos da PESD, designadamente, o Comité Político e de Segurança, o Comité Militar e o Estado-Maior da UE dentro do prazo estipulado (1 de março de 2000). Além disso, a partir de fevereiro de 2000, estes participaram no progresso da PESD através da execução de tarefas relevantes, nomeadamente, a definição do contexto estratégico das futuras operações da UE; a formulação das premissas-chave que deveriam pautar o planeamento das mesmas; a seleção dos cenários-modelo para o emprego de forças; e a identificação das capacidades e forças a empenhar nos cenários selecionados44. Isto significa que foi sob a supervisão portuguesa que a ambição política subjacente ao «Objetivo Global 2003» adquiriu uma tradução militar concreta; ou, dito de outro modo, que a PESD deixou de consubstanciar uma mera construção conceptual para ganhar expressão no plano real45.
O «Relatório da Presidência sobre o Reforço da Política Europeia Comum de Segurança e Defesa» registou progressos satisfatórios no cumprimento do mandato de Helsínquia. No respeitante à gestão militar de crises, foram sancionadas várias recomendações visando o aperfeiçoamento da coordenação entre os órgãos da PESD e o Conselho Europeu. No domínio da gestão civil de crises, foi criado o Comité para os Aspetos Civis da Gestão de Crises e adotado o compromisso que vinculou os Estados-Membros à constituição, até 2003, de uma força europeia policial de cinco mil oficiais, vocacionada para intervir em missões de gestão de crises e prevenção de conflitos.
Em 2000, no que concerne à componente de segurança e defesa, as autoridades nacionais demonstraram capacidade de dar seguimento ao histórico impulso político gerado pela cimeira franco-britânica de Saint-Malo e, posteriormente, pelas presidências alemã e finlandesa do Conselho da UE por concluírem, de modo diligente, as diversas tarefas que lhe foram consignadas46. Ao fazê-lo, contribuíram para a evolução do recorte conceptual, institucional e jurídico da PESD e, por consequência, para um papel de relevo da UE na segurança global. Desta forma, as elites políticas e diplomáticas nacionais deram clara evidência da interiorização de uma leitura positiva e construtiva do escopo político do processo de integração europeia - fruto de experiências adquiridas e lições aprendidas no contexto da PESC, desde a primeira Presidência europeia47.
No exercício da Presidência de 2007, Portugal confirmaria o seu compromisso com a consolidação da componente de segurança e defesa do projeto europeu, com os governantes nacionais a enfatizarem a PESD como «uma nova prioridade estratégica» e a defesa europeia como um «catalisador indispensável para a integração europeia»48. Tal compromisso tinha ficado assumido, a montante, no plano interno, no âmbito do Programa do XVII Governo Constitucional 2005-2009 que reafirmou o empenhamento dos governantes nacionais «no desenvolvimento da Política Externa e de Segurança Comum» e a vontade de «estar na primeira linha da construção da Política Comum de Segurança e Defesa, incluindo a sua participação nas missões militares sob comando da União Europeia»49.
No plano externo, o compromisso específico com a PESD ficou refletido na contribuição e desempenho das autoridades portuguesas na condução do processo de reforma institucional que teve por corolário a assinatura do Tratado Reformador (também conhecido por Tratado de Lisboa), em dezembro de 2007. O novo tratado consagrava uma moldura legal codificadora da agora denominada Política Comum de Segurança e Defesa (pcsd) que, embora mantendo-se parte integrante do desenvolvimento cabal da PESC, ganhava maior densificação e uma jurisdição própria em torno de uma banda larga de missões militares e civis. Com efeito, o Tratado de Lisboa aumentou o nível de ambição internacional da UE ao alargar o leque de missões a realizar sob a égide da PCSD (artigo 43.º-١), assim como ao dotar a organização de diversos instrumentos, mecanismos e estruturas concebidos para possibilitar um papel autónomo no combate às principais ameaças à segurança internacional, referenciadas na EES de 2003. Nesta perspetiva, a circunstância de Portugal ter sido parte liderante e bem-sucedida na conclusão de um dossiê tão decisivo quanto a assinatura do Tratado de Lisboa - considerado crucial para a afirmação da UE como ator político-estratégico credível e influente na arena internacional - representou a concretização simultânea de um duplo objetivo político nacional: incrementar o contributo da UE para a paz e segurança internacionais, e valorizar a posição de Portugal no seio da UE e no mundo50.
Conclusão
O desempenho de Portugal no exercício da Presidência do Conselho da UE em 1992, 2000 e 2007 produziu um legado político, diplomático, institucional e legal que passou a fazer parte integrante dos anais do processo de construção europeia. Ao mesmo tempo, atestou um incremento da capacidade de iniciativa e de negociação, assim como da influência (relativa) do país nas instituições comunitárias, ao passo que revelou as credenciais europeias de um Estado cada vez mais comprometido com o projeto económico e político europeu. No contexto das três presidências referidas, os governantes nacionais ajudaram a definir o perímetro e as áreas de interesse estratégico da PESC, bem como a estrutura institucional e o «músculo» operacional da PESD, contribuindo, deste modo, para moldar, na esfera internacional, o perfil político e de segurança da UE.
Tal ocorreu em resultado de um crescendo de projeção da visão portuguesa acerca da atuação externa europeia que preconiza a afirmação progressiva da UE como um ator político cada vez mais global, assertivo e influente no quadro das relações internacionais em constante transformação. Manifesta-se aqui uma visão inspirada no ADN universalista da política externa nacional que os governantes portugueses procuraram transpor para o âmbito da UE (e, em particular, da PESC, incluindo a PESD), onde se tem desenvolvido, de forma cada vez mais meândrica e inexorável, a estratégia de afirmação e credibilização de Portugal no mundo. A consequência natural disso é que uma UE cada vez mais global, conetada com diferentes áreas e potências regionais - que as autoridades nacionais se esforçaram por promover a cada Presidência do Conselho da UE -, emerge como uma firme alavanca para a projeção pós-imperial de poder e interesses nacionais a nível mundial. O país consegue, desta forma, ir para além das suas possibilidades ou capacidades, sobrepujando limitações, constrangimentos e periferias inerentes à sua condição de pequeno Estado; e escapar estrategicamente à irrelevância internacional.
Mais concretamente, tomados no seu conjunto, os esforços realizados durante as três presidências europeias encerraram um contributo tangível de Portugal na diversificação das parcerias da UE e subsequente fortalecimento da presença internacional desta organização. Os governantes nacionais encontraram em conjunturas (europeias e internacionais) marcadamente diferentes condições propícias para, através da dinâmica de uploading, assegurar a convergência entre interesses permanentes e específicos em matéria de política externa nacional e prioridades da PESC/PESD. Tais empenhos tiveram como ponto alto a organização das primeiras cimeiras com África, o Mercosul, o Brasil e a Índia, que resultaram no lançamento de uma agenda africana, latino-americana, brasileira e indiana no domínio da ação externa da UE. Ficou, assim, patente a preocupação das autoridades nacionais não só com a afirmação da UE como ator político no plano mundial, mas também com a valorização da especificidade e utilidade de Portugal aos olhos dos seus parceiros europeus, visando os ganhos daí resultantes para o seu próprio posicionamento e relevância internacionais. A capacidade de edificar pontes de diálogo entre a Europa e o mundo demonstrada pelos sucessivos governantes e diplomatas nacionais permitiu a Portugal transcender, em muito, a sua dimensão geográfica e demográfica, bem como o seu peso político e económico que, em conjunto, definem a sua condição de pequeno Estado.
A preocupação das autoridades nacionais com a responsabilidade político-estratégica global da UE ficou igualmente evidente nas presidências de 2000 e 2007, marcadas pelo envolvimento direto das autoridades nacionais no processo de conceptualização, institucionalização e implementação da PESD. A determinação em posicionar o país no «núcleo duro» responsável pelo progresso dessa emergente política comum levou a um empenhamento ativo na criação dos órgãos de decisão adequados, algo que se tornou particularmente notório durante a Presidência de 2000. A participação nacional na trajetória formativa da componente de segurança e defesa aprofundou o senso de pertença do país ao projeto político europeu.
Considerando as grandes linhas orientadoras da agenda da Presidência portuguesa do Conselho da UE de 2021, que decorrerá sob o signo de uma inédita crise sanitária, económica e social, com projeção mundial, provocada pelo surto de covid-19, parece claro que os decisores de política externa portuguesa procurarão robustecer o seu compromisso com a promoção da «Europa global». Farão isso, de novo, com o objetivo de granjear relevância internacional acrescida na base de certas especificidades/especialidades de política externa, face às multifacetadas responsabilidades assumidas pela UE na sua Estratégia Global para a Política Externa e de Segurança de 2016. De facto, a «Europa global» constitui uma das cinco linhas de ação prioritárias da nova Presidência com o lema «Tempo de agir: por uma recuperação justa, verde e digital», sendo certo que essa linha de ação está associada ao objetivo de reforçar a abertura da UE ao mundo, tendo em vista uma maior autonomia estratégica e uma posição geopolítica mais equilibrada nas relações internacionais contemporâneas51. Neste respeito, a relação estratégica UE-África e o reforço das relações entre a UE e a Índia receberão destaque particular, em virtude de o relacionamento (passado e recente) do país com estas áreas de interesse estratégico nacional continuar a conferir-lhe um papel valorizado e valorizável no seio da UE52. Acresce que existe um histórico de sucesso associado a iniciativas levadas a cabo nessas regiões durante presidências anteriores, o que cria uma expetativa positiva relativamente à capacidade de liderança e competência dos governantes nacionais na gestão das relações da UE com a Índia e África. No domínio específico da segurança e defesa, a prioridade da Presidência incidirá num dos espaços de interesse estratégico permanente para Portugal, bem como numa área geográfica de importância crescente para a UE. Durante o primeiro semestre de 2021, as autoridades nacionais procurarão promover «uma reflexão sobre a segurança marítima baseada numa avaliação atualizada das ameaças em áreas marítimas relevantes como o Golfo da Guiné e o Atlântico». Além disso, será formalizado, em maio, o lançamento do Centro Atlântico nos Açores53.
Ao colocar na agenda da quarta Presidência europeia as questões atinentes à PESC/PCSD acima referidas, as autoridades portuguesas procurarão, de novo, combinar as preocupações e ambições que enformam a persona internacional da UE no início da segunda década do século XXI com a (re)afirmação externa de Portugal como «país europeu, de centralidade atlântica e vocação universalista»54. Deste modo, assistir-se-á, de novo, ainda que em circunstâncias fundamentalmente singulares, a um período de simbiose política. Portugal estribar-se-á nos numerosos recursos disponibilizados pela Presidência europeia para promover e projetar os seus interesses nacionais. Por seu turno, a UE poderá capitalizar na vocação global portuguesa, assim como nos países e regiões onde o país tem uma forte presença histórica e cultural para ampliar a sua visibilidade e influência externas.