A 24 de dezembro de 2019, teve lugar um atentado com «cocktails molotov» na sede do Porta dos Fundos, grupo de comediantes brasileiros conhecido pelo seu humor irreverente e iconoclasta. Como Leandro Gonçalves Pereira e Odilon Caldeira Neto nos mostram no seu livro O Fascismo em Camisas Verdes: Do Integralismo ao Neointegralismo, este ato, ainda que insólito, enquadra-se num fenómeno político que marcou a história do Brasil e cujas origens remontam aos anos 1930. De facto, pouco tempo depois do atentado, circulou nas redes sociais um vídeo em que três indivíduos encapuzados reivindicavam a sua autoria, alegando que o haviam perpetrado devido ao conteúdo do mais recente vídeo dos humoristas, aparentemente ofensivo para os cristãos. Os três vestiam camisas verdes e, como pando de fundo, via-se uma bandeira com um símbolo que correspondia à letra grega «sigma». Tanto a cor das camisas como o símbolo utilizado no vídeo remetem para o movimento político que Plínio Salgado, inspirado pelo fascismo europeu, criou em 1932, na cidade de São Paulo: a Ação Integralista Brasileira (AIB).
É precisamente a história deste movimento e da ideologia que lhe está associada (o integralismo), que Leandro Gonçalves Pereira e Odilon Caldeira Neto nos contam no seu mais recente livro, que começa nos anos 1930 e termina em 2019. Como nos mostram os autores, apesar de o período de maior atividade do integralismo brasileiro se ter situado, evidentemente, na era dos fascismos, a sua história não terminou com o fim da Segunda Guerra Mundial, nem com a morte de Plínio Salgado e (como acabámos de constatar) ainda hoje é capaz de causar um grande impacto na sociedade brasileira. Assim, a leitura deste livro torna-se fundamental não só para compreender momentos cruciais do passado recente do Brasil, mas também uma parte do seu presente.
A evolução e reconfiguração do integralismo ao longo do tempo
O livro encontra-se dividido em quatro capítulos, cada um deles correspondendo a um período da história do integralismo. O primeiro intitula-se «A formação do Sigma: a Ação Integralista Brasileira» e descreve a origem e evolução do movimento de Plínio Salgado até à sua dissolução em 1937, depois da instauração do Estado Novo de Getúlio Vargas, e posterior exílio do líder (acusado de participar em conspirações contra o regime). A história começa em 1930, quando Salgado, numa viagem pela Europa, se encontrou em Roma com Benito Mussolini, que o aconselhou a criar um movimento capaz de alterar a consciência da sociedade brasileira. Foi depois desta viagem que Salgado criou a Sociedade de Estudos Políticos, embrião daquela que viria a ser a AIB, surgida a 7 de outubro de 1932 com o Manifesto de Outubro. Ideologicamente,
o movimento perfilhava o nacionalismo, o culto da autoridade, o anticomunismo, a construção de um Estado integral, bem como a valorização da família e do cristianismo, de tal maneira que o lema «Deus, Pátria e Família» se lhe adequava perfeitamente. Salgado é-nos descrito como um intelectual nacionalista que iniciara a sua formação política nos anos 1920, mas para quem, a despeito da sua tentativa de se apresentar como original, foram fundamentais influências e conexões estrangeiras, nomeadamente com o fascismo italiano.
O capítulo resume o que precisamos de reter acerca deste movimento, mencionando os seus principais ideólogos: Miguel Reale (inspirado pelo corporativismo italiano) e Gustavo Barroso (influenciado pelas ideias do nazismo alemão). De igual modo, é descrito o «maquinário ideológico» que a AIB utilizava com o intuito de doutrinar e conquistar aderentes, e que incluía símbolos como o Sigma, os uniformes verdes, a saudação tupi «Anauê», marchas e canções, e ainda rituais como as celebrações realizadas em datas comemorativas (como a «Vigília da Nação») e organizações voltadas para os mais jovens, as mulheres e a assistência social. Também não são esquecidas as ferramentas de propaganda, que incluíam a imprensa (jornais como O Integralista e as revistas Brasil Feminino e Panorama), a rádio e o cinema. Por último, são referidos os principais inimigos do integralismo (como os comunistas e os anarquistas) e os conflitos que tiveram lugar, notavelmente a Batalha da Praça da Sé, uma violenta luta entre integralistas e antifascistas que ocorreu a 7 de outubro de 1934, em São Paulo.
O segundo capítulo intitula-se «O integralismo entre a democracia e a ditadura» e vai desde o exílio de Plínio Salgado em Portugal, que começou em 1939, até à sua morte em 1975. Numa época em que o integralismo se encontrava desarticulado e sem possibilidade de atuar, Salgado procurou «uma nova forma de desenvolver o discurso integralista» no exílio (capítulo II). Assim, o livro conta-nos como, ao regressar ao Brasil em 1945, Salgado criou o Partido de Representação Popular (PRP), procurando adaptar-se à democracia, e chegando a candidatar-se à Presidência da República em 1955. O principal dilema do líder e do seu partido nesta época prendia-se com a necessidade de reconfigurar a ideologia, ao mesmo tempo que se revelava difícil renegar as origens integralistas, evocadas tanto por adversários políticos como por militantes saudosistas, que almejavam usar novamente a simbologia dos anos 1930 (algo que o próprio Salgado aprovaria no congresso do partido de 1957). Com efeito, as ideias antidemocráticas do integralismo nunca desapareceram totalmente, e puderam desempenhar um novo papel na Ditadura Militar, que teve início em 1964, durante a qual alguns integralistas chegaram a integrar a junta militar.
Os últimos dois capítulos intitulam-se «A morte de Plínio Salgado e a origem do neointegralismo» e «O neointegralismo do século XXI: das redes sociais à violência política». Como referem os autores, o «neointegralismo» representa um «novo capítulo nesta história» e remete para o período posterior à morte de Plínio Salgado, em 1975. Depois do desaparecimento do seu chefe, o neointegralismo foi «caracterizado pela ausência e pela disputa» (capítulo III): ausência de um líder incontestado e disputa entre os diversos grupos que foram surgindo e se reclamavam herdeiros do legado do integralismo, cada um deles apresentando uma leitura diferente do passado integralista e com diferenças ideológicas bastante vincadas. Para além das divisões internas, o neointegralismo foi também afetado pelas ligações ao neonazismo por parte de figuras como Anésio Lara, líder de uma organização que adotara o mesmo nome da dos anos 1960: Ação Integralista Brasileira. Os autores também não se esquecem de mencionar a figura de Marcelo Mendez, membro de uma geração mais jovem de neointegralistas, que procurava utilizar a internet e as novas tecnologias como ferramenta política, e cujo suicídio, em 2002, que causou um grande impacto entre os militantes, foi justificado pelo próprio como um ato político de protesto contra a desunião existente no neointegralismo. Por fim, no último capítulo, os autores do livro descrevem as três principais organizações do século XXI: a Ação Integralista Revolucionária, o Movimento Integralista e Linearista Brasileiro e a Frente Integralista Brasileira, sendo este último o maior e mais organizado dos três. O livro termina com a descrição do atentado que já referimos, e que teve entre os seus perpetradores Eduardo Fauzi, líder de um grupo chamado Accale e militante da Frente Integralista Brasileira.
A AIB e o fascismo?
Uma vez que, como referem os autores deste livro, a AIB foi o mais importante movimento do género no Brasil dos anos 1930, não nos parece despropositado dizer que conhecer a sua história é fundamental para compreender um momento importante do século XX brasileiro. Essa é uma das razões pelas quais a leitura de O Fascismo em Camisas Verdes se revela bastante proveitosa, já que o livro tem o mérito de oferecer ao grande público uma narração breve, mas eficiente, do integralismo ao longo das décadas, cobrindo um período maior do que o de algumas obras clássicas sobre o tema, como a de Hélgio Trindade (1974). Assim, um dos pontos fortes deste livro é o de, em relativamente poucas páginas, conseguir dar ao leitor uma ideia clara e precisa das reconfigurações ideológicas pelas quais o integralismo foi passando, bem como dos acontecimentos, organizações e figuras (para além de Plínio Salgado) que mais o marcaram. A descrição dos anos 1930, época crucial para o movimento, é particularmente bem-sucedida e nela os autores relatam-nos de forma satisfatória como o integralismo procurou propagar uma ideologia capaz de controlar todos os aspetos da vida quotidiana e que «impunha ao militante um modo de ser, de se comportar, de vestir, de falar, de calar, de andar, de casar-se, de morrer, de se embelezar, ou seja, um modo muito próprio de ser integralista» (capítulo i). Neste âmbito, são especialmente interessantes as descrições dos batizados dos recém-nascidos, os chamados «plinianos», que poderiam ser sujeitos a um ritual específico do movimento, bem como dos funerais, cuja liturgia representava a passagem do militante para uma «milícia do além».
Contudo, é importante verificar que um dos pontos menos satisfatórios do livro se prende com a inexistência de uma discussão mais aprofundada acerca da forma como este movimento se insere no fenómeno do fascismo. Se é verdade que os autores não duvidam que a AIB teve claras influências fascistas, o certo é que não explicam com clareza aquilo que entendem pelo conceito de «fascismo» e de que maneira o integralismo nele se insere. Ademais, o uso ocasional do termo «conservador» para definir alguns movimentos integralistas pode parecer paradoxal para aqueles que estão mais familiarizados com a literatura científica, uma vez que autores como Stanley Payne (1995) referem precisamente o «anticonservadorismo» como uma característica fundamental do fascismo.
Assim, ainda que esta seja uma obra com uma forte dimensão descritiva e voltada para um público não especializado, ela sairia fortalecida se fosse inserida uma discussão que abordasse (ainda que brevemente) as componentes centrais do fascismo, porventura fazendo uso de conceitos como o de «mito palingenético», celebrizado por Roger Griffin (1993), e mesmo abordando (porque não?) o historiador português João Bernardo (2005), cuja descrição do fascismo como uma «revolta na ordem» abarca as características simultaneamente radicais e conservadoras desta ideologia. Todavia, este pequeno reparo não compromete a avaliação positiva do livro, cujo conteúdo será de interesse também para o público português, sobretudo numa altura em que a Presidência de Jair Bolsonaro deu um novo impulso a ideias de extrema-direita.